A Avó Maria Aguiar
Maria Manuela Aguiar
A
Avó Maria Aguiar era figura pública proeminente em Gondomar, vila antiga, na
fronteira oriental do Porto. Os seus sete filhos e todos os netos eram
referidos e considerados em função dela, para sempre umbilicalmente ligados à
aura e ao nome da matriarca, quase sem luz própria, por mais brilhantes
que fossem.
Nasci
na sua casa, cercada de jardins murados, com um mirante florido na frente da
rua e pomares e vinhedos a perder de vista, por detrás da mansão grande de
"brasileiro", de cor rosada e venezianas verde escuro - a Vila
Maria. Aí, fui tão feliz quanto se pode desejar, nos primeiros oito
anos de vida. Com ela, aprendi a gostar de histórias (mais de
narrativas engraçadas sobre si e a família do que de lendas e contos infantis),
a declamar poemas de Guerra Junqueiro, exercitando a memória em alguns dos
que parecem intermináveis - "O
melro, eu conheci-o, era preto, brilhante e luzidio..." - , a bordar pequenos quadrados
de linho a ponto cruz, com o mínimo de habilidade inata. E a comportar-me
bem, tanto em procissões e novenas de Igreja, como nos lanches das
confeitarias portuenses, a Villares ou a Ateneia, onde lhe fazia boa companhia.
Criança
rebelde, com reputação de indomável, várias vezes, emboscada atrás
de um móvel, ou de
uma porta, ouvi a avó levantar a voz para me defender, dizendo:
"Ninguém
compreende esta menina! É preciso explicar-lhe a razão das coisas. Se ela
perceber, aceita”!
A esta persuasiva pedagoga, devo algumas das mais extraordinárias
alegrias da infância: a compra de uma carteirinha de verniz
vermelho, usada a tiracolo - a contragosto dos pais -, a oferta de um
grande boneco pretinho, por muito tempo namorado na montra do bazar de Sá
da Bandeira, e o traje de anjo amarelo, de grandes asas brancas, com que
desfilei pelas ruas de São Cosme, em cortejo processional, depois de
vencida, pela avó, a relutância dos pais em satisfazer tão ardente ambição
infantil.
À Avó devo,
igualmente, a remota origem do meu feminismo - o que não era, de todo,
resultado que ela desejasse.
A sua influência na "res publica”crescera circunscrita
ao pequeno círculo bem frequentado das obras paroquiais, onde debutou, e
foi extravazando para o da comunidade como um todo, do campo da
assistência e do atendimento de casos sociais ao da cultura.
Organizava peregrinações, a par de récitas e concertos beneficentes, cujos
ensaios decorriam, muitas vezes, na sua sala do piano. Outras vezes, as arcadas
e a espaçosa adega do piso térreo transformavam-se em estaleiros de produção de
carros alegóricos,
ornamentados com flores de papel, confecionadas por ruidosos bandos de meninas,
a que as netas tinham licença de se juntar. Para tudo havia regras, naquele
mundo que se movia sob o impulso de Maria Aguiar, defensora do recato e das
"boas maneiras", ao serviço das quais, tantas vezes me
repreendia: "As meninas não fazem isso!". Isso sendo o que era
permitido aos primos da minha idade, como subir às árvores do jardim ou
aos telhados, saltar de carros eléctricos em andamento, jogar à bola com os
garotos da rua.
Achei
por bem provar, pela "praxis", que "as meninas" podiam
tornar-se tão aptas como os rapazes a cumprir objetivos nos domínios
interditos. E assim me converti, a partir dos seis ou sete anos, ainda que
sem consciência clara da existência das questões de género, em feminista
praticante. Por sinal, os homens da família, pai e avô paterno, cedo me
iniciaram na paixão pelo cinema, pelo teatro e pelo futebol, não mostrando
partilhar as preocupações das avós - Avó Maria e Avó Olívia - sobre a construção
cultural do "feminino". Na altura, não me ocorreu nunca indagar o
porquê da posição singular que a Avó Maria ocupava na sociedade local. Só
muito mais tarde me apercebi de que o ganhara num trabalho incansável e
generoso, que, mais do que vocação, fora destino, fatalidade de se ver mulher
só e ter de encontrar os modos de se realizar numa segunda vida.
Maria
da Conceição Barboza Ramos era a mais nova de oito filhos de Carolina Ferreira Ramos
(de uma família enraizada, há séculos, em Gondomar) e de Joaquim
Mendes Barboza, o tabelião, que viera do norte (Bitarães, Paredes), para
nunca mais deixar a terra de adoção. Em tudo fora menina do seu tempo e
condição social. Depois da escola primária, recebeu, em casa, os ensinamentos
de explicadores e do pai (que fora professor, antes de enveredar por
carreiras jurídicas e ser o notário de Gondomar), à espera de
encontrar noivo. Jovem inteligente, prendada e lindíssima, não lhe faltaram
pretendentes. A sua escolha recaíu num conterrâneo emigrado no Brasil
- António Carlos Pereira de Aguiar - pessoa “muito ilustrada”, homem bonito,
com expressivos olhos verdes. O Avô António partira para o Rio de Janeiro
em 1996, com 16 anos, levado por um dos seus quinze irmãos, João,
bastante mais velho, quase com idade para ser seu pai, e, por essa altura,
já um próspero joalheiro. O jovem António Carlos, revelando-se exemplar
discípulo de bom mestre, fez fortuna rápida e honesta, e era, então, o dono de
uma joalharia da moda, na cosmopolita rua do Ouvidor. Sendo a
Avó Maria uma incondicional entusiasta de viagens e excursões, de
movimentação e convívio social, é possível que a perspetiva de viver, por
uns anos, no mundo novo americano, com frequentes visitas a Portugal, a
bordo de esplêndidos paquetes, tenha sido fator de peso na aceitação
daquele pedido de namoro, logo depois convertido em pedido de casamento.
Da parte do Avô Aguiar, fora o "coup de foudre", "amor à
primeira vista", até que a morte os separou...
No mais clássico modelo de papéis conjugais,
com rígida divisão de tarefas, uma união perfeita! Dos oito filhos, só três
nasceram no Rio de Janeiro. Maria preferia ter os meninos em São Cosme, no
conforto da casa materna. Vinha o marido, de bom grado, trazê-la e
buscá-la e, durante o tempo de separação, escrevia-lhe extensas cartas de
amor, em tudo idênticas às dos tempos idos de noivado - documentado numa
sucessão de postais ilustrados, com breves mensagens e saudações, uma
espécie de “tweets” do início do século passado.
A
Gondomar regressaram em 1920, e viveram, por breves anos, na terra e na
casa dos seus sonhos. A morte súbita do Avô António, aos 46 anos, deixou a
viúva num estado de depressão profunda. A senhora elegante e mundana das
salas de festas transformou-se em vulto negro e austero dos
salões paroquiais. Os retratos contam, sem necessidade de palavras, a
tragédia da sua vida, na forma e colorido dos chapéus, das
"capelines" floridas da senhora casada a que se sucedem os
pequenos chapéus de viúva, rentes à testa, enfeitados por uma simples
"aigrette" (a que chamávamos, na sua ausência, "os quicos
da avó"). Do torpor de muitos meses, saiu buscando
orientação na fé e nas práticas religiosas, fonte inesgotável de novas
energias, e razão de viver para a família e para os outros.
Fora
a mulher do empresário António Aguiar, que o caráter extrovertido e
generoso tornara tão estimado e popular no Rio de Janeiro como em
Gondomar. E, por fim, ela própria, Maria Aguiar, líder no feminino,
universalmente admirada. Latente, sempre, o culto do marido, simbolizado na
sobriedade dos trajes escuros e no uso do seu
apelido Aguiar. O nome que, hoje, descendentes de quarta e quinta geração continuam a
usar, por ser o dela - a nossa avó, a prodigiosa contadora de
histórias, a força que unia a família inteira.
Hoje, na mais completa fragmentação familiar, é,
ainda, a memória da Avó Maria Aguiar, que nos reune nesta
árvore genealógica de afetos.
1 comentário:
Que privilégio Manela!
Eu conheci a bisavó Maria Aguiar mas era muito pequena...as lembranças que tenho são de muito carinho e guloseimas!
Adoro ler estas tuas memórias e rever em muitas das mulheres descendentes muitos traços do seu carater e personalidade.
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