quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025
Maria Manuela Aguiar
terça, 3/11/2020, 20:23
para mariamanuelabarbara133
1.1 Gracinda Maria Pereira Aguiar Saraiva
Nasceu em 1878.10.09 1 e foi baptizada pelo Padre António Lopo Pires Monteiro, coadjutor
da igreja paroquial de São Cosme, em 1878.10.20, sendo padrinhos João Pereira de Aguiar,caixeiro, e Camila Pereira de Aguiar, ambos solteiros e irmãos da baptizada, do lugar da
Gandra da freguesia de São Cosme.
Casou em _________ na igreja paroquial de _________ com Manuel Pereira Saraiva
Filhos:
2.1 Rosa Aguiar Saraiva
Nasceu em _________ na freguesia de _________
Faleceu em _________ na freguesia de _________
2.2 Madalena Aguiar Saraiva
Nasceu em _________ na freguesia de _________
Casou em _________ na igreja paroquial de _________ com António Felix
Faleceu em _________ na freguesia de _________
2.3 António Maria Aguiar Saraiva
Nasceu em 1914.10.20 na freguesia de _________
Era importador e distribuidor de material fotográfico
Casou em _________ na igreja paroquial de _________ com Maria Brígida do
Rosário
Viveram na Av. Marechal Gomes da Costa. Era representante em Portugal das marcas
Adox, Montblanc e outras.
Faleceu em _________ na freguesia de _________
3.1 Maria Eduarda
Nasceu em _________ na freguesia de _________
Faleceu em _________ na freguesia de _________
3.2 Maria Gabriela do Rosário Aguiar Saraiva (Manicha)
Nasceu em _________ na freguesia de _________
Casou em _________ na igreja paroquial de _________ com Rogério Martins
Fernando, advogado, foi presidente da CM de Vale de Cambra
Faleceu em _________ na freguesia de _________
Filhos:
4.1 Teresa
4.2 Paula
1 Registos Paroquiais da freguesia São Cosme, B1878-00893-69
4.3 Miguel
4.4 António
4.5 ?
4.6 ?
4.7 ?
3.3 Maria Luísa do Rosário Aguiar Saraiva
Nasceu em _________ na freguesia de _________
Casou em _________ na igreja paroquial de _________ com
___________________________
Filhos:
5.1 Luísa
5.2 João
3.4 Luís Filipe do Rosário Aguiar Saraiva
Nasceu em _________ na freguesia de _________
Casou em _________ na igreja paroquial de _________ com Maria Eduarda
Preto Gonçalves
Filhos:
5.1 Luís Filipe
5.2 Luís Miguel
5.3 Luís Bernardo
2.4 José Armando Aguiar Saraiva
Nasceu em 1916.06.10 na freguesia de _________
Casou em _________ na igreja paroquial de _________ com Maria Fernanda
Faleceu em _________ na freguesia de _________
Maria Fernanda faleceu em _________ na freguesia de _________
Filhos:
3.1 José Pedro
Nasceu em _________ na freguesia de _________
Casou em _________ na igreja paroquial de _________ com ________________
Faleceu em _________ na freguesia de _________
Filhos:
4.1 Joana
Nasceu em _________ na freguesia de _________
Casou em _________ na igreja paroquial de _________ com
________________
4.2 Miguel
Nasceu em _________ na freguesia de _________
Casou em _________ na igreja paroquial de _________ com
________________
3.2 João Manuel (†)
Nasceu em _________ na freguesia de _________
Casou em _________ na igreja paroquial de _________ com ________________
Faleceu em _________ na freguesia de _________
Filhos:
4.1 João
4.2 ?
2.5 Gracinda Amélia Aguiar Saraiva (Belita)
Nasceu em 1917.11.19 na freguesia de _________
Casou em _________ na igreja paroquial de _________ com Walter Karl Heinz
Schmidt, nascido em 1929.06.28, em Berlim; era negociante de
importação/exportação de máquinas industriais
Vive na Rua da Bela Vista, à Lapa, em Lisboa
2.6 Manuel Aguiar Saraiva
Nasceu em _________ na freguesia de _________
Casou em _________ na igreja paroquial de _________ com __________________
2.7 Cristina Fernanda Aguiar Saraiva Lamb
Nasceu em 1930.09.15 na freguesia de _________
Casou em _________ na igreja paroquial de _________ com Ernst Lamb,
administrador da Zeiss e, depois, da Rodenstock
Faleceu em 1977.______ na freguesia de._________ (Munique)
terça-feira, 11 de fevereiro de 2025
Martins dos Santos e de Maria
Antónia)
e de … Martins (por sua vez filha de Custódio João e de Maria Martins)
casou em 1825.12.12 com
Maria Pereira de França (de Vilar, São Cosme),
filha de Manuel Pinto de Castro (por sua vez filho de Manuel de Castro e de Helena Pinto)
e de Maria Pereira de França (por sua vez filha de Manuel Pereira [por sua vez filho de Manuel
Pereira e de Mariana Lopes, do lugar do Carvalho da freguesia de Olival, V.N. Gaia] e de Custódia
de França, de Pevidal, São Cosme [por sua vez filha de António José de França e de Isabel de
França, de Gondomarinho, São Cosme).
Sebastião Martins dos Santos e Maria Pereira de França tiveram vários filhos, entre os
quais uma Maria Pereira de França (como a mãe), que veio a casar e teve vários filhos; a
filha a mais velha, Joaquina, casou com Camilo Castelo Branco, mas faleceu, sem filhos,
a seguir ao casamento.
Pedro Pereira de França (também filho de Manuel Pereira e de Custódia Pereira de França, do
lugar de Pevidal, São Cosme)
casou em 1781.11.03 com
Maria Fernandes de Jesus
Viveram em Quintã, São Cosme, e tiveram 12 filhos, entre eles,
Ana Pereira (de França), que casou em primeiras núpcias, na Gandra, São Cosme, com
José Pinto dos Santos Garrido, de quem teve uma filha, Rosa Pereira (que casou com Manuel
Aguiar, dando os “Pereira de Aguiar”, da Gandra).
e em segundas núpcias com
João Moreira dos Santos, de quem teve dois filhos: Violante Pereira Moreira dos Santos
(afilhada da sua meia-irmã Rosa) e João Moreira.
Violante Pereira Moreira dos Santos casou na Gandra, São Cosme, com José Martins de
Almeida Lopes, da Pedreira, São Cosme, meus bisavós maternos, dando os “dos Santos
Lopes”, da Gandra).
Tenho a ascendência destes "de França" até 1595 — eram originários da abastada família Tomé,
de Bouça Cova, São Cosme, e da igualmente abastada família Moura, da Cónega, São Cosme.
Domingos de Moura, filho de Frutuosos Martins, de Gondomarinho, casara em 1616.02.14 com
Catarina Tomé, filha de João Tomé, de Bouça Cova. Deles descenderam todos os "Moura" e
todos os "de França" de São Cosme, nomes que ainda hoje existem, não só em São Cosme.
Sebastião Martins dos Santos,
filho de José Martins dos Santos (por sua vez filho de Manuel Martins dos Santos e de Maria Antónia)
e de … Martins (por sua vez filha de Custódio João e de Maria Martins)
casou em 1825.12.12 com
Maria Pereira de França (de Vilar, São Cosme),
filha de Manuel Pinto de Castro (por sua vez filho de Manuel de Castro e de Helena Pinto)
e de Maria Pereira de França (por sua vez filha de Manuel Pereira [por sua vez filho de Manuel Pereira e de Mariana Lopes, do lugar do Carvalho da freguesia de Olival, V.N. Gaia] e de Custódia de França, de Pevidal, São Cosme [por sua vez filha de António José de França e de Isabel de França, de Gondomarinho, São Cosme).
Sebastião Martins dos Santos e Maria Pereira de França tiveram vários filhos, entre os quais uma Maria Pereira de França (como a mãe), que veio a casar e teve vários filhos; a filha a mais velha, Joaquina, casou com Camilo Castelo Branco, mas faleceu, sem filhos, a seguir ao casamento.
Pedro Pereira de França (também filho de Manuel Pereira e de Custódia Pereira de França, do lugar de Pevidal, São Cosme)
casou em 1781.11.03 com
Maria Fernandes de Jesus
Viveram em Quintã, São Cosme, e tiveram 12 filhos, entre eles,
Ana Pereira (de França), que casou em primeiras núpcias, na Gandra, São Cosme, com
José Pinto dos Santos Garrido, de quem teve uma filha, Rosa Pereira (que casou com Manuel Aguiar, dando os “Pereira de Aguiar”, da Gandra).
e em segundas núpcias com
João Moreira dos Santos, de quem teve dois filhos: Violante Pereira Moreira dos Santos (afilhada da sua meia-irmã Rosa) e João Moreira.
Violante Pereira Moreira dos Santos casou na Gandra, São Cosme, com José Martins de Almeida Lopes, da Pedreira, São Cosme, meus bisavós maternos, dando os “dos Santos Lopes”, da Gandra).
Tenho a ascendência destes "de França" até 1595 — eram originários da abastada família Tomé, de Bouça Cova, São Cosme, e da igualmente abastada família Moura, da Cónega, São Cosme. Domingos de Moura, filho de Frutuosos Martins, de Gondomarinho, casara em 1616.02.14 com Catarina Tomé, filha de João Tomé, de Bouça Cova. Deles descenderam todos os "Moura" e todos os "de França" de São Cosme, nomes que ainda hoje existem, não só em São Cosme.
ESPINHO 2011 DIA DA CIDADE
Maria Manuela Aguiar
segunda, 8/04/2024, 22:37
para Maria
https://images.app.goo.gl/ewDkA86M9wFL11ky6
DITOS E ESCRITOS DA MARIA ANTÓNIA AGUIAR
RECORDANDO, A 28 DE AGOSTO DE 2020
UMA MENINA DE GONDOMAR
1925 VILA MARIA Avós e meninos na varanda.jpg
A pequena Maria Antónia, excelente aluna a História e a Geografia, sempre muito dada a recolhas de natureza cripto-etnográfica, (no que terá sido influenciada pelo exemplo da Tia Rosaura de quem também se conhecem apontamentos soltos sobre mezinhas e rezas das mulheres do antiquíssimo Gondomar, anotou os lugares, que faziam os seus encantos - o Barroco, a represa de Cascaneira, entre a Gandra e Ramalde, Bouça Cova, Azenha, Ermentão, Rio Carreiro, Fontela, Ponte Real, São Miguel, Pevidal, Santo André...
E, também, expressões, nomes e alcunhas, que lhe despertavam a curiosidade, como Pojeiras,Restivos, Cabaças, Jeque-Jeque,Tarré Fome Negra, Caga Troços, Carriças, Pilha Galinhas,Patacas, Pirabeca, Arregalados, Folhetas, Estabões, Bagulho,Parraxila, Chasco, Varetas, Melros, Pisco, Choco, Pimpão, Pinguinhas, Pombalinos, Toca- certo (um músico, evidentemente)......
Menos invulgar o nome de Isidro Izidoro, que, todavia, fez história, quando deixou dito que, nas exéquias, queria levar um cravo vermelho na lapela. Era ela uma criança, mas conseguiu que a levassem a vê-lo. A Maria Póvoas, fez-lhe a vontade, às escondidas da família...
OS SEUS VERSOS PARA GONDOMAR
1930 aprox postal de GONDOMAR.jpg
OH, MEU GONDOMAR
Oh, meu Gondomar, minha linda terra
Tu que embalaste o meu 1º amor
Porque não levar-te presa nos meus braços
Oh, meu Gondomar, para onde eu for?
Encantamento que nunca esqueci
Roseiral em flor desse meu jardim
Tanta rosa murcha pelo chão caída.
Mas tanto botão a abrir para mim...
Gondomar, meu berço, capital do mundo
És a minha casa, és o meu jardim
Foste tu que viste os meus primeiros passos
E irás guardar-me, ao chegar ao fim.
1933 MÃE.jpg
Procuro-me e não me encontro
E fico parada assim
A chorar, meu Deus, porquê?
Por ter saudades de mim!
À CONVERSA SOBRE O TIO ALEXANDRE
(conversa comigo, a 7 de fev de 2012)
"Já atravessaste os Pirinéus?"
Disse que sim. Continuou:"E paraste em alguma aldeia?"
"Que me lembre, não; talvez, não sei..."
Era para saber se eu tinha visto artefactos de lã dos Pirinéus. Depois, falou dos Xailes de lã (dos Pirinéus, certamente), que o Tio Alexandre lhe ofereceu, durante um passeio pelo Porto. Um era cor-de-rosa, comprado numa loja dos Clérigos, na Rua dos Lóios. Outro beije. A Tia Lola não quis nenhum e ela aproveitou o que devia ser para a mana
Ambas iam com ele, muitas vezes, à baixa da cidade.
No verão lanchavam sempre na Brasileira. Mandava vir enormes pratos de bolos e insistia: "Comei os bolos todos!". Nas outras estações, às vezes, gostava de ir a um pequeno café, na esquina em frente à Brasileira, na rua que vai dar à Av dos Aliados, ou a um outro, junto à Igreja dos Congregados. Ótimo, até tinha música! Descia-se para a rua por um pequeno degrau.
O Tio era um homem encantador, nessa altura, já de meia idade. Em novo, dizia a sobrinha, "era muito bonito, parecia o Gregory Peck"
UM ZEPPELIN EM GONDOMAR
(relato recolhido no início de 2019)
Já a guerra tinha terminado, quando, em pacífico voo turístico, um enorme avião, diferente de tudo quanto se conhecia, atravessou os céus de São Cosme, sobre o Monte Crasto. A aparição foi olhada com pasmo e emoção. Segundo a Mãe, testemunha visual, parecia um gigantesco melão voador! Estava no quarto e a criada foi buscá-la, aos gritos - uma a quem chamavam "Maria nariz de pau". Correu para a varanda que ficava à saída da cozinha, ainda a tempo de se extasiar com o espetáculo - aquela "coisa" estranha, que avançava, lenta e majestosamente, como as suas dimensões e peso permitiam, Um prodígio, como gorga baleia que voava feita pássaro. Era meio dia. Para além da providencial Maria nariz de pau, não se recorda se a mãe e alguns dos irmãos partilharam com ela a singular experiência. Talvez não. Mostrei à Mãe as maravilhas da internet, Procurei em Zeppelin e logo apareceu a precisa imagem do que ela vira numa manhã dos anos quarenta. Lá estava, tal qual ela o descrevera... Não tinha uma máquina à mão para fotografar o momento... .
COM AMÁLIA NO CAFÉ RIALTO e VIRGÍLIO TEIXEIRA NO PRAIA GOLFE
A Mãe e a Tia lola adoravam a Amália, cantavam as suas músicas constantemente - não tão bem, porque isso é impossível, mas muito bem.
A primeira vez que a viu, de perto, foi no Café Rialto, lindíssima, vestida de preto... Muitos anos mais tarde, falou com ele, várias vezes ao telefone, quando ela estava em casa do primo e nosso amigo Dr Seabra da Veiga, cônsul de Portugal em Connecticut - um home engraçadíssimo, muito parecido com o tio Zé, em feitio e até fisicamente, com uma diferença: vestia-se sempre muito bem, muito chique...
Virgílio Teixeira, o famoso ator, um dos homens mais belos que jamais vieram ao mundo, e um amigo maravilhoso que fiz nas lides da emigração estava em Espinho Espinho, em março de 1995, no Congresso Mundial de Mulheres Migrantes. Em nova, achava-o tão bonito que andava com uma retrato dele (colecionava postais de atores dessa época) na carteira, quando não o deixava debaixo do travesseiro, Depois de casada, apesar de guardar numa gaveta a fotografia, tanto o gabava que marido chegava a sentir ciúmes (antigamente tinham ciúmes por tudo e por nada.. na minha geração já não era assim, sempre considerei normal que o meu "ex" tivesse uma paixão cinéfila por Catherine Deneuve, e ele que eu sentisse o mesmo por Gérard Philippe ou Paul Newman)....
Virgílio estava com a sua simpática mulher Vanda, a Mãe também com o marido e conversaram e riram, animadamente...
1995 Espinho Pais V Teixeira e eu.jpg
UM CASAL DE CINÉFILOS
O cinema, nos anos, 40, 50, 60, fazia parte da vida. Ir ver um filme numa sala bonita, (São João, Batalha, Rivoli...) era um ritual que pontuava a semana, como lanchar na Ateneia ou na Villares, tomar um café no Guarani, no Imperial, Estivessem em Gondomar ou em Avintes, o centro da animação era sempre a cidade do Porto. Era lá que tudo acontecia. De tarde, a sétima arte era só para as senhoras (os homens trabalhavam...). A Tia Lina era uma companheira constante. Quando gostava do espetáculo repetia. No São João viram juntas a Madame Butterfly três vezes! À noite, geralmente ao sábado, o acompanhante era o marido. Ambos muito chiques, como então se usava, visto que havia dois intervalos, ocasião propícia de olhar e comentar "toilettes". A Mãe punha os seus óculos escuros (muito graduados), mais uma extravagância, pois na altura. ninguèm mais o fazia e, nem era muito prático, suponho, pois veria, no ecrã, as imagens escurecidas...
Mais difícil era a conciliação de gostos. Ele tendia para filmes de ação, de guerra, westerns", policiais. Ela adorava comédias, Cantinflas, Doris Day. Talvez o ponto de consenso um bom drama, com os grandes nomes de Hollywood. Havia tempo e ocasião para alternarem os géneros. Começavam a noite, antes do filme, sempre num café, onde ele bebia mesmo café e ela um "peppermint" e no café, de novo, terminavam o serão, antes do regresso a Gondomar (ou a Avintes, onde também passavam temporadas)..
Depois, quando a Lecas e eu tínhamos 6, 7 anos, levava-nos, às vezes, a "matinés". E eu tive de suportar as comédias do Cantinflas, que já dessa tenra idade, considerava excessivamente "infantis" - habituada que estava a ir ao cinema com o Avô Manuel assistir a espetáculos sérios, incluindo westerns e operetas, tão do agrado desse querido avô, o mais cinéfilo de toda a família....
OLD FRIENDS
Falava-se do ISCTE, do seu aniversário, e a Mãe relembrou os tempos em que o Pai ali estava a terminar o seu curso de sociologia, em que ela o acompanhava em frequentes idas a Lisboa. Aos voluntários do Porto os professores davam, também como "voluntários" (noutro sentido). aulas especiais nos fins-de-semana e enquanto o pai assistia às aulas, de vez em quando, a mãe combinava um encontro com o velho amigo Maestro Fernando Marques Ribeiro. Para falarem dos tempos da juventude e daquele romance interrompido para sempre. Se o pai ia diretamente do ISCTE para minha casa, o Maestro levava-a de carro à Av do Uruguai. Nunca contou nem a marido nem a filha. Que pena! Eu gostava tanto de o ter conhecido!
Impossível no caso de Celina, desaparecida anos antes do casamento do seu viúvo com minha Mãe e tão fácil no caso do Maestro, que, então, vivia em Lisboa, como eu... Assim, tal como Celina, Marques Ribeiro é uma imagem guardada num retrato.
Mais uns fragmentos de histórias que fui recolhendo..
1940 aprox Marques Ribeiro pianista.jpg1950 aprox JFernado Marques Ribeiro.jpg
1935 Celina VIANA carnaval.jpg
.Celina Viana, a primeira mulher de meu Pai, em época de Carnaval Carnaval
ATRIZ OU PIANISTA?
O seu sonho de ser pianista ou atriz, não se concretizou...Os únicos palcos que pisou foram os do Teatro Nuno Álvares de São Cosme.E, pelos anos fora, atraiu com as suas canções, as suas histórias e as suas benignas excentricidades, a família próxima, um grande número de sobrinhos netos e bisnetos.
Curioso é que até o seu dentista, o Dr Morris, um dia, sem saber dessa ambição secreta. lhe disse: Devia ter sido atriz. Vê-se mesmo que tem jeito!"
Até na cadeira do dentista representava bem a sua personagem. "tem a certeza de que isto está limpo? Não usou essa agulho nos dentes do anterior?" E o Dr Morris, simpático e bonito odontologista respondia: "Claro que sim, serve para todos e nunca é limpa!"
A Maria Antónia gostava de médicos bonitos. E foi tendo vários, ao longo da vida, o anterior dentista, do Porto, o Dr Figueiredo, o Dr Guimarães, o cardiologista...Até no hospital de Gaia, um mês antes de morrer, o neurocirurgião era um rapaz alto, loiro, de expressivos olhos azuis. E o motorista do táxi que nos trouxe para casa, também.
Ao Doutor tratou-o por tu, começando por perguntar "És meu sobrinho?"
Quando ele veio falar comigo, para lhe dar alta, informando que o TAC estava perfeito, disse-me: "Está muito bem. Só achei um bocadinho confusa, porque me julgava um sobrinho!
Esclareci que não era assim tanto anormal, pois era senhora de muitos sobrinhos, alguns médicos, (sendo certo que os médicos não me parece que tenham olhos azuis) . Mas confusão não era - talvez, sim, uma maneira de fazer conversa com um jovem interessante, que poderia ser, mas não era, da família.
1950 VILA MARIA O PIANO.jpg
O piano da sala de visitas da Vila Maria, onde todas as meninas tiveram aulas de piano (à conversa em (conversa a 1 de agosto de 2012)
O Colégio da Esperança, nunca foi para as manas Mariazinha e Lolita, um lugar de boa esperança - tudo o que queriam era fugir de lá. No 1º anos, passaram o tempo a arquitetar planos de fuga, nunca concretizados... De boa memória é, contudo, a sala de piano do colégio! A Profª Margarida Portela, que era uma extraordinária executante, considerava-a uma aluna especial, uma futura grande pianista, e ofereceu-lhe as valsas de Chopin, com uma dedicatória. A Mãe deu-as à única pianista da família na nova geração, a Sameiro, mas esqueceu-se de copiar a dedicatória,e tinha muita pena desse esquecimento. Nas festas, as pianistas eram sempre a Mãe e a Amélia Moreira, de Avintes - chegaram a tocar a quatro mãos, Amélia morreu jovem, vítima da tuberculose, como a Celina. Foi a costureira da terra, que conhecia a mãe da Amélia que quis e conseguiu que se encontrassem, A senhora pediu-lhe que tocasse no piano, que estava fechado desde a morte da Amélia. Parece que a c.
Ah, um pormenor: a professora era muito bonita e tal como a Mãe, muito míope...
Outras memórias do mesmo lugar...
Aí lhe roubaram-lhe uns brincos muito bonitos, dados pela Tia Rozaura. E ela até viu, a rapariga a mexer nas suas gavetas, mas hesitou. Depois, a Miriam, que também era amiga da ladra, pediu-lhe que não a denunciasse. E, assim, nunca mais recuperou os brincos... Há outro relato de um roubo de brincos, com especial valor afetivo, porque tinham pertencido à Tia Glorinha. Não foram achados, mas a ladra foi chamada à diretora e expulsa. Esteve lá apenas no 3º ano do Liceu e, no dormitório ficava ao lado da Mãe, Do outro, estava uma grande amiga a Fernanda Malen (que viria a ser freira).
Anos mais tarde, numa reunião de antigas alunas, a Mãe encontrou a ladra. Talvez tenha sido nessa ocasião , tantas décadas depois, que a Miriam lhe pediu que fizesse silêncio sobre o escândalo.antigo . faz mais sentido...
Os dormitórios estavam separados pela sala de piano. O das mais pequenas completamente aberto, sem cortinas. O das maiores com a privacidade relativa de cortinas que podiam fechar-se . As irmãs ficavam sempre juntas e era aí que planeavam escapadelas e partidas, falando baixinho..
1935 tia lola f14 mae colegio.jpg
Em 1937, já quase a sair definitivamente da clausura, as duas irmãs, à frente.
Eram conhecidas, entre as colegas, como "os galos doidos". Imagina-se porquê .
FORMATURA DA MARIA DO SAMEIRO
Deu-te Deus essa fé determinada
Dos que sabem seus sonhos realizar
Que nasce em ti, em cada madrugada,
A Estrela que brilha em teu olhar
Esse teu ar esbelto e elegante
Esse andar airoso de gazela
Teu olhar sereno e confiante
Sejam eco da tua Boa Estrela
Espinho, Março 1988
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Resposta à Nita
verão 1978
E das arribas do mar
agradeço a atenção
Bem quis logo responder,
mas não tinha a direção
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23 - 8 - 79
O postalzinho da "praxe"
cá chegou, muito obrigada
Agora espero a visita
Dessa minha "sobrinhada"
Para a Nita, Sameiro, Rosário, Lisa e Paulo
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1982
A saudade quando veio
veio mesmo para ficar
aqui no meio do peito,
fazendo rir e chorar
Saudade fica comigo,
porque já me acostumei
Não fujas de mim saudade
- de uma vida que te dei.
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Eu tinha umas tranças loiras
E tão loiras eram elas
passando em campo de espigas
eu parecia uma delas.
Saltando muros e leiras
Na pressa com que corria
Voaram as tranças loiras
E só por isso me ria
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Perverso, inconstante mar
revolto como o meu ser
Vagas em fúria
na procela tenebrosa
Ao longe o meu olhar perdido
na imensidão deste mar revolto
Vem-me a lembrança daquele louco amor
que agora é minha solidão
Pediste ao mar para me falar de ti
ou
Ao longe, o meu olhar perdido na imensidão
deste mar em fúria, revolto como eu.
Vem-me à lembrança aquele louco amor
que enche agora a minha solidão
O 1º ENCONTRO DOS MEUS PAIS, CONTADOS PELA MÃE
13 de outubro. Um dia de chuva e frio para a missa nova do Padre Eduardo Pinheiro na capela do Monte da Virgem. Levava um casaco comprido cor de rosa (feito por uma modista de alta costura do Porto. Foram numa camionete de excursão, guiada pelo Sr Coelho, um homem simpático, cujas filhas estudavam no Porto, e que era sempre o escolhido nas peregrinações organizadas ao túmulo de Frei Bernardo pela Senhora Dona Maria Aguiar - e a quaisquer outras, Com a lotação esgotada, partiu a camionete do Sr Coelho para o Monte da Virgem
A mãe suspeita que o seu 1º encontro com o jovem viúvo João Dias Moreira não foi inteiramente casual, Uma tia materna da Nucha e da Lucinda Aguiar, (sua madrinha, casada com Homero Figueiredo, que foi dono de farmácias no Porto e em Avintes e, depois, em países do sul da América, do Brasil ao Peru), Arminda de Sá era, em simultâneo, amiga de Olivia Capela, mãe do João, e de Maria Aguiar, a mãe da Mariazinha, que já trocavam correspondência e livros religiosos. Morava em Avintes, perto da amiga Olívia e da farmácia de Homero, (junto à Escola do Magarão), e visitava, muitas vezes a casa da Gandra do tio Augusto Aguiar e de sua irmã Leonor.
.Estavam há pouco na capela, quando chegou o grupo de Avintes, com o viúvo e a mãe. A excursão de Gondomar ficou no fundo do templo, enquanto ele, o eventual viúvo e um amigo alto e moreno estavam junto ao altar.. Na verdade, um era loiro, o outro moreno e a Mãe não sabia qual era o João...No fim da missa, enquanto as senhoras mais velhas se dirigiam à sacristia para os cumprimentos, os jovens saíram para o adro. A Mariazinha distanciou-se, foi ver de perto um cruzeiro, subiu os degraus de pedra e para ler as inscrições gravadas na pedra e ouviu uma voz que lhe perguntava: "Boa tarde, dá-me licença? Olhou para trás - era ele, o jovem viúvo, o loiro... (tão atraente como o moreno!...). Pedia licença para lhe oferecer uns soquinhos- miniatura de couro, ligados por um fio de prata. Sorriu e aceitou. Ele tinha acabado de os comprar num lojinha que vendia, terços, imagens religiosas e artesanato. E assim começou a conversa, Contou-lhe que no dia seguinte ia para Lisboa com um primo, o António, visitar a Exposição do Mundo Português. A conversa, porém, teve os seus momentos críticos. Quando ele lhe perguntou a idade ele quis saber: "Que idade me dá?". Não se sabe porquê, talvez por a ver tão magra e pequenina, caiu na tentação de brincar, interrogando: "15 anos?". Mariazinha não achou graça nenhuma e quando ele lhe fez a mesma pergunta, sobre a idade que aparentava, disse-lhe: Não sei... Talvez uns 35..."". Ela tinha 20, ele 22... Logo depois, falaram de música, ela tocava piano, ele violino e o tom cordial foi recuperado...
As apresentação formais das minhas (futuras) avós Maria e Olívia foram feitas pela amiga Arminda e a conversa até à hora de partir não foi longa, mas animada e teria continuação.... De Lisboa, João enviou um soneto à bonita menina de Gondomar e,.seguidamente, uma carta atrás de outra. A Avó Maria estava sempre atenta à chegada do correio. Era ela quem abria as cartas, Li-as e só depois as entregava às filhas. Nunca teve de censurar as dele, quase sempre acompanhadas por sonetos românticos, que agradavam a mãe e filha. Um rapaz exemplar, bem comportado, muito religioso, de família conhecida (e abastada), filho único.... Perfil perfeito para um genro!
A jovem Mariazinha gostava dele, mas não lhe agradava namorar com um viúvo. Em conversa com a Tia Rozaura, desabafou: " Ó Titia, um viúvo...não quero!". E a tia, avisadamente respondeu-lhe:: "Não te importes. De facto, todos os homens são viúvos. Antes de casar connosco, andaram com outras mulheres. quer estejam vivas ou mortas".
Passado pouco tempo, ele telefonou. Na altura, só a irmã Carolina tinha telefone privado. Chamou-a lá a casa e puderam falar, combinando um encontro, que aconteceu prontamente.. E ele passou a aparecer, com frequência. Às 3.00 da tarde, a hora do Terço, ia diretamente para a Igreja, e, depois, acompanhava as senhoras à Vila Maria e ficava a conversar com a Mariazinha no terraço.
A mãe entrava e ficava lá dentro, não aparecia mais, mas mandava a Lolita atravessar, de vez em quando, a sala de jantar, que tinha portas largas e vitrais para o terraço... Ao fim da tarde, ele regressava como tinha vindo, a pé, pelos caminhos da Gandra e São Gemil, até Gramido, onde atravessava o Douro, de barco, para Avintes.
Anos depois, contou à Mulher que se ela lhe tivesse dito "não" junto ao Cruzeiro do Monte da Virgem, tentaria uma de outras duas jovens presentes, a mana Leninha ou a Teresa "da Pinta" - uma de várias irmãs, todas bonitas, que viviam numa das grandes casas de lavoura de São Cosme.
No verão de 1941, a agenda habitual de férias levava a família Aguiar para a Foz e as termas de Vizela, e a família Moreira para Espinho, onde tinham casa de praia na rua 7. Nesse ano, porém, a Leninha estava a recuperar de grave primo infeção e os médicos recomendaram uma longa estadia no campo. Passaram o verão em Branzelo. numa quinta de amigos (Novais da Cunha?), um casarão enorme, e convidaram os primos do João, Alda, Manuela e Maria Helena Capela. O João, também, aos fins de semana. Conviva constante era um Rangel, que morava numa quinta próxima, e que, apesar de ser um pouco mais velho, alinhava bem este grupo numeroso.
Não faltava pessoal doméstico, os caseiros da quinta, e as filhas, eram muito prestáveis. Em fins de outubro, estiveram todos numa desfolhada de lavradores... O romance entre Mariazinha e João progredia, e ritmo mais intenso - ficaram noivos e casaram pelo civil a 1 de novembro (continuando nas casas paternas) , e a 15, "a valer", pelos critérios familiares muito católicos, pela Igreja.
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1969 - A VISITA A PARIS
O "Diário" da Mãe
2ª feira
Em frente à "Cité", à cidade universitária, fica o belo Parque Montsouris, onde fui com a Manela, atravessando o Boulevard Jourdan, De metro, seguimos para o "Quartier Latin", - jardins do Luxemburgo, Panthéon (onde está sepultado Voltaire, entre outros grandes vultos franceses). Almoçamos rapidamente num self service, Wimpy, , mesmo em frente ao Luxemburgo, e descemos Saint Michel, a ver montras, Atravessamos as lindas pontes do Sena, visitamos a catedral de Notre Dame, passámos pela Câmara de Paris, pela Conciergerie, a Tour de Saint Jacques. Tomámos o metro no Chatelet, com os seus longos corredores rolantes. Viemos para a Cité, às 4.00 a Manela fez um chá. Voltamos ao Parque Montsouris. Fiquei junto do lago dos cisnes, enquanto a Manela foi comprar pão, queijos e vinho - um bom jantar (como eu gosto).no quarto dela. Ela foi ao cinema com a Laura, eu preferi ficar no quarto a ler.
3ª feira
Fui a Vincennes no carro da Eduarda. A Manela e ela têm trabalhos das 9.00 ao meio dia. Eu estou sentada no bar da Universidade à espera.que voltem. Acaba de se sentar na minha mesa um velhote, sem pedir licença, a tomar uma bebida qualquer,
A minha estadia em Vincennes (cont)
A Manela está a fazer um exame (especializou-se em Direito do Trabalho e eu no bar, em conversa com os "colegas" (chamavam-me colega), num francês horroroso, como o Mário Soares, metade francês, metade português, e até com certas palavras em inglês. Enfim, a Manela ficava furiosa, quando me ouvia falar assim.
E, quando a Manela estava a fazer o tal exame, eu, já farta de de passear no jardim (a Universidade tem um jardim enorme), depois de ter estado no bar, encaminhei-me para aqueles grandes corredores e vi a Manela, numa sala, a falar com um homem. E eu, cá de fora, (vamos indo que não entrei) a apontar-lhe o relógio, a fazer-lhe ver que era tarde .vamos embora! Enfim , ela nessa altura não andava tão irritada como agora e, quando me disse que estava a fazer um exame, até nos fartamos de rir.
Passámos pelo Bosque de Vincennes e almoçamos em casa. Saímos para o centro de Paris com a Eduarda, que foi ao médico, Estou sentada numa esplanada, junto à Ópera. A Manela e eu viemos, a pé, pelo Boulevard de la Madeleine. Uma das zonas chiques de Paris, Entrei na Igreja da Madeleine, onde a Manela me tirou fotografias, Mais fotografias, adiante, junto ao Maxim's, na Praça da Concórdia. Na viagem para a Cité, há partes em que o metro é aéreo, passei à vista da Torre Eiffel. Fiquei no quarto da Manela, na Casa de Portugal, e ela foi para a Casa britânica., onde havia um quarto vago.
4ª feira
Fomos visitar a Torre Eifel, tomamos umas bebidas num bar agradável, no 1º andar, com uma vista lindíssima, sobre o Champs de Mars, que de cima parece uma passadeira gigante, o Palácio de Chaillot, os telhados da cidade e,ao longe, o Sacré Coeur. Daí fomos até à margem do Sena e demos um maravilhoso passeio de barco, de cerca de uma hora. Passámos pela ilha de São Luís, pelos bairros mais bonitos de Paris, onde mora a Brigitte Bardot, Saímos do barco e subimos os Campos Elísios. Havia grandes manifestações. Acho que que por causa da tomada de posse de Pompidou. Os polícias, aos magotes, todos engalanados, e uma bandeira enormíssima, no Arco do triunfo. Qs Campos Elíseos são um encanto!
À noite, fomos de carro, com o Padre Micael e o Engº Pires a Montparnasse, belos restaurantes, boites" e cafés, onde se reúne a boémia mais selecta. Lindas "boutiques" em Sèvres Babylone e o contraste dos talhos de Halles, que abastecem de carne a região parisiense. Demos a volta à Concorde, à noite tem mais encanto, assim com a Torre Eiffel iluminada e o Palácio de Chaillot, ou os Campos Elísios. Parámos no carro mesmo em baixo do Arco, com a sua gigantesca bandeira o facho a arder, e as enormes coroas de flores, azuis, brancas e vermelhas, em honra dos mortos de Guerra.
Cenário especialmente solene, na altura da posse do Presidente Pompidou. Continuamos para Montmartre, Sacré Coeur, estivemos junto a várias "boites", a de Patachou e outras. Que ambiente, com grupos de músicos, artistas a pintar as suas telas nas ruas, muitos turistas, muita animação. Atravessámos Pigalle, "boites" mais duvidosas, o Moulin Rouge e o Lido. Chegámos à Cité depois da 1 hora
5ª feira
Constipei-me, não pude sair à rua.
6ª feira
De manhã, ainda fiquei em casa, almocei no quarto. Disse-me agora uma amiga da Manela, que ela andava no corredor às 9.00 da manhã, para não me acordar.
À tarde, fomos às Galerias Lafayette, onde andámos horas,. Vimos o Maurice Chevalier, que estava a autografar um livro seu. As Galerias são um mundo gigantesco, com escadas rolantes, que subimos e descemos. Fizemos algumas compras. Fomos, depois, ao mesmo bar onde já tinha estado, perto da Ópera, quando a Manela foi ao famoso otorrino Tirou-me várias fotografias, Tomámos um autocarro já em andamento, o revisor, um preto enorme, segurou-me, mas rasguei a saia...
sábado
Saímos às 10.00 com a Laura e a Isabel, e tiramos muitas fotografias nos jardins da Cité. De metro, para o Luxemburgo, todas a ver as montras e a fazer compras nas boas lojas do Quartier. com uma pausa para almoço rápido num restaurante de Saint Germain, A pé para a Sainte Chapelle, com os seus vitrais lindíssimos, do teto até ao chão. Andámos num supermercado, como aqueles que se vêem nos filmes. à noite, a Manela foi revelar fotografias para um laboratório com o Padre Mário até à meia noite e eu estive no quarto a conversar com a Laura.
Domingo
Levantamo-nos cedo. A Manela continua a revelar as fotografias com o Padre Mário,
Ás 11.00 a Laura, a Manela e eu fomos ver um filme erótico (na realidade pornográfico - só mulheres nuas e striptease, pretendia ser uma comédia). Saímos a meio. Almoço rápido num self perto do cinema e, depois, foi tempo de cultura. Longa visita ao Louvre, Mona Lisa, Vénus de Milo, Vitória de Samotrácia. pirâmides do Egipto, um túmulo autêntico de Faraó...
Chegámos à noite à cité e fomos jantar as três e mais a Eduarda a Gentilly num restaurante, Passámos ao sítio onde existiu a casa da M.me Curie (já demolida)
2ª feira.
Dormimos as duas no apartamento. Estivemos em arrumações. Encontrámos uns escritos do Padre Mário, dentro de uma revista. Estivemos, de novo, em Gentilly, em frente à Casa de Portugal. Fomos a um café, onde a Manela respondeu a uma carta do Manel, que tinha recebido. Acabámos por almoçar num bar da Cité. A Eduarda levou-me de carro até à estação de Austerlitz. A Manela ficou e vai esperar pela Docas, que chega às 5.00 de comboio
Na carruagem em que vou está o actor Jean Pierre Casset, mas no meu compartimento são 4 velhos, que já estão a dormir.
Dois portugueses quiseram meter conversa, mas não estive para os aturar.
Em Bordéus, entrou uma canadiana, muito simpática, conversámos (mal) em francês. Em Irun, atrelei-me ao 1º grupo de portugueses. Vim numa carruagem, que o carregador espanhol me arranjou. - despediu-se, estendendo-me a mão - com um dinamarquês (muito chique), com uma filha de 12 anos. Falámos francês, e à noite, fartamo-nos de rir, os três, porque avariamos uma das cadeiras para fazer cama.
Na fronteira, não me abriram mala nenhuma e Vilar Formoso, nem à ida, nem na volta.. Os portugueses que entraram em Paris, foram mandados para a 2ª classe. Em Irun, tornaram a entrar na 1ª, com mais très, de botas grossas e linguagem ordinária, filho da p---, etc. O que vale é o dinamarquèss não entender
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LECAS
Depois de nos faltar uma filha, nunca mais se esquece. Tenta-se viver como se pode, mas o coração está sangrando constantemente e nunca mais se é a mesma pessoa...
Em noite longas de dor e sofrimento.
meus olhos já cansados de chorar
Eu peço a Deus que me dê alento
E me deixe contigo conversar
A minha adorada, minha confidente,
Conversei contigo, solucei meu pranto,
De saudade infinda, que no peito trago
A noite inteira falei e tu falaste
Compus outrora poemas desmembrados
sem conseguir dizer o que queria
mas agora, passados muitos anos.
a sós contigo (já conseguiria?)
(Para a Lecas)
Minha adorada, luz da minha vida
A noite inteira conversei contigo
Num pranto de saudade infinda
destruí minha alma
SONHOS
Sonhos meus, audaciosos, inquietantes, insatisfeitos - como eu, uma insatisfeita - sonhos belos de um amor quase perfeito. Mais de uma vez desci o Crasto num voo pleno de graça e leveza. Senti mesmo os pés a levantarem-se do solo e voei acima daqueles queridos pinheirais, eucaliptos e mimosas, voava em direção a minha casa... Mas fiquei diferente, sim, depois que perdi a minha querida filha. Ela era a minha alegria e a minha vida, era minha e roubaram-ma. Fique perdida num deserto, fiquei sozinha, Que me perdoem todos os que ficaram comigo, ficaram muitos, ficámos todos , menos ela. Que me perdoem, mas eu fiquei sozinha.
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RETORNO AO PASSADO EM GONDOMAR
Agora, recordo a chorar
as pedrinhas da calçada
que já não volto a pisar...
Ainda tocam trindades na Igreja de São Cosme. Ouvi tocar a primeira carreira para a missa das 7, uma hora antes da missa. !/4 de hora antes, 2ª carreira e, depois, o toque para a missa.
Fez-me muitas saudades, ouvir tocar para a Missa. Pareceu-me ouvir a voz da minha mãe a dizer: "Meninas, vamos embora, já tocou a segunda carreira".
Tenho saudades de pedir a bênção à minha Mãe e minha Tia...
VILA MARIA
Apesar de sentirmos a falta do nosso Pai, eu e os meus irmãos éramos felizes e não sabíamos. A única falta nas nossas vidas (ainda tão jovens) era aquele lugar na mesa da grande sala de jantar, o do Papá (como a nossa Mãe dizia) ocupado, então, pelo meu irmão António.
FÁTIMA
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Agradeço à Nossa Senhora
A VIDA
Fátima, 26-4-86
Agradecer, agradeço esta paz diferente, que sinto em Fátima, como se fosse, em cada ano, a primeira vez. E, neste constante turbilhão de sentimentos, que me invade, sinto-me, aqui em Fátima, mais benevolente e compassiva, são só três dias de "tratamento", mas já é bom para o meu espírito cansado e atormentado. Parece que renasci, aqui, hoje.
Fátima, 27- 4 - 89
(A MANELA)
Corria veloz. cheia de energia
ceifando flores do belo jardim.
Protestos e ralhos. Como elea se ria...
São minhas as flores, são todas para mim...
Manelinha, mas isso é maldade,
dizia-lhe alguèm, decerto era eu.
Intervinha a Avó, ar de cumplicidade,
São dela, claro, foi Deus que lhas deu
É muito inteligente, não precisas ralhar
Um anjo a menina e só eu a entendo.
Só a Avó a sábia levar...
E aquele anjo, menina vestida de anjo, de asas partidas, cabelo em desalinho, laçarote perdido, ia para a procissão
Eu peço a Deus para te acompanhar. O tempo vai passando e a saudade fica connosco pela vida fora
1947 eu na procissao anjo amarelo.jpg1948 Avo Mae e eu.jpg
NOS 50 ANOS DA MANELA
Tempestade traz bonança
o passado traz saudade,
a vida é sempre esperança,
busca da felicidade
Passa um ano, entra a saudade
mil beijos para ti, meu bem
a maior felicidade
te deseja sempre a mãe
Espinho, 8-6-92
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SAUDADES
Saudade, palavra amarga e doce. Saudades da minha linda terra, S Cosme de Gondomar, onde imperam os grandes artistas de filigrana de ouro.
Saudades do meu Monte Crasto majestoso, donde em noites de luar (esse luar ímpar das noites de Natal, que eu guardo na minha memória e recordo comovida), se abrangia toda a minha terra, banhada de um manto de prata. Saudades daquela prenda do menino Jesus, que a minha querida Mãe, com tanto carinho, pòs debaixo do meu travesseiro: uma linda pulseira de prata, toda feita de margaridas, que ainda hoje guardo, com todo o meu amor.
Saudades da minha mocidade, dos meus amores, das minhas ilusões, dos meus tempos de colégio, de minha casa, do meu jardim cheio de flores, do meu piano, meu confidente, o meu piano, que escutou tantas histórias de amor,
Saudades da minha Terra, a minha casa, os meus Natais.
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De todos os sentimentos humanos, nenhum mais natural do que o amor pela Terra, pelo vale, ou pelo bairro onde crescemos. A nossa Terra aviva-nos as recordações mais familiares (íntimas), mexe com as nossas emoções mais profundas. Tudo o que faz parte dela, pertence-nos, em alguma medida, e, decerto forma, nós fazemos parte dela também, tal como a folha pertence à árvore.
Saudade, palavra amarga e doce. Saudades da minha linda terra, S Cosme de Gondomar, onde imperam os grandes artistas de filigrana de ouro.
Saudades do meu Monte Crasto majestoso, donde em noites de luar (esse luar ímpar das noites de Natal, que eu guardo na minha memória e recordo comovida), se abrangia toda a minha terra, banhada de um manto de prata. Saudades daquela prenda do menino Jesus, que a minha querida Mãe, com tanto carinho, pòs debaixo do meu travesseiro: uma linda pulseira de prata, toda feita de margaridas, que ainda hoje guardo, com todo o meu amor.
Saudades da minha mocidade, dos meus amores, das minhas ilusões, dos meus tempos de colégio, de minha casa, do meu jardim cheio de flores, do meu piano, meu confidente, o meu piano, que escutou tantas histórias de amor. Saudades da minha Terra, a minha casa, os meus Natais...
1931 MÃE na Vila Maria.jpg 1928 AVÓ MARIA e família Villa Maria (1).jpg
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Não posso olhar para a nossa casa, a casa da minha Mãe, sufoco de saudades, e as recordações são tantas! Festas de Natal, os risos das crianças, o cheiro das rabanadas, o cheiro da minha adorada casa.
Tantas Páscoas = o compasso!), casamentos, E, de repente, pela minha cabeça passava a minha meninice, adolescência, as nossas gargalhadas - éramos sete - as reprimendas da nossa querida Mãe. "meninas (a minha irmã Lolita e eu passávamos a vida a rir):não riam tão alto, não é bonito". Além disso, Muito riso, pouco siso"
Dentro daquelas paredes guarda-se a história das nossas vidas, meus irmãos, minha Mãe, quantas alegrias, quanto amor, e quantas tristezas também!
Parece mentira que tanta história caiba dentro daquela adorada casa. Desci aquelas escadas para me casar na Igreja da minha Terra. Depois, e a história continua, ali nasceram as minhas filhas. Mais risos, mais gargalhadas. tudo se repete. é a nova geração!
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COMPASSO NA MINHA TERRA
Corações cantando almas em flor, flores em casa e no jardim também. Vem o compasso - é Deus , é amor. Pela aldeia fora campainhas a tocar. Flores desfolhadas e "verde" pelo chão, Aí vem o compasso, aí vem a Cruz a chegar.
Pojeiras onde os criados da minha Mãe iam buscar verdes para pôr no chão - fora do portão, do portão até ao terraço e pelas escadas acima, o percurso que, no domingo de Páscoa fazia o cortejo do compasso.
Alguns anos antes, íamos com a Nucha buscar fetos e verdes ao Barroco. Tão lindo! Era um vale entre a Gândra e Pevidal.
MÊS DE MAIO
Mês de maio, minha aldeia tão linda,tão florida. Ao entardecer, subíamos o Monte Crasto, para as novenas do "mês de Maria". Eu tocava o pequenino órgão do coro da capela de Santo Isidoro. no Crasto, a Lolita e outras raparigas, como nós, cantam coisas tão belas...
Não sou bonita, nem feia, sou simpática, fui sempre muito simpática (isto não é narcisismo...). É verdade. E fui em tempos, há muitos anos, uma rapariga interessante, pequena, bastante pequena, mas cheia de saúde, estuante de vida, vida e alegria, que transbordava por todos os poros do meu corpo. Diziam até que eu tinha muita graça, aquela graça natural de uma rapariga que da vida só queria a vida e nada mais. E o fulcro da vida era o amor. De uma sensibilidade doentia, muito sincera, expansiva e nada egoísta.
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23-2 - 74 PORTO (um sábado)
Primavera nos jardins, primavera nas casas e nas pessoas, sim, porque entrou também a primavera nos corações de cada um. Minha terra tão linda, estás perdida, mas eu encontro-te, minha rainha. Minha terra coroada de mimosas, A tua coroa é o Crasto. Sala de visitas das gentes de Gondomar e de tantas outras. Minha terra, berço de todos os meus... Não é a minha vida que vou passar ao papel, são várias vidas, porque terei de lembrar antepassados e contemporâneos...
ESQUEMA de BIOGRAFIA 4 partes
1ª - nascimento e vida em família
2ª - internamento no colégio
3ª - regresso a casa aos 18 anos: namoros
4ª - casamento e peripécias seguintes
22 - 7 - -92
UM SONHO
Eu vinha de cima, a chegar a casa, e vi a entrar na minha porta a minha Tia, a minha Mãe e várias crianças. Cumprimentei a minha Tia, dei-lhe dois beijos, e ela abraçou-me. A minha Mãe estava mais adiante. Dentro não era a minha casa de Espinho, era aquela sala antiga, muito grande, com um quarto à esquerda, uma porta em frente à porta da rua, que dava para dois quartos interiores, à esquerda do corredor a cozinha e a sala de jantar, ao fundo, com porta e janela para o quintal. Cumprimentei também a minha Mãe, dei-lhe dois beijos, ela também me abraçou. Numa alcofa estava uma criança muito linda e elas disseram-me as duas: "é a Marta, a Martinha, vai ver que é bonita". Aproximei-me, uma dizia: "é parecida com o Avô" (o meu Pai) e eu chamei a Manela, peguei na menina e os olhos eram tão azuis, tão azuis (como eu nunca vi, ou antes, devia ter visto, deviam ter sido assim os olhos do meu irmão Manuel). A criança era lindíssima e era tal e qual este retrato do meu irmão (Manuel), que eu tenho aqui no quarto. Entretanto, a minha Mãe sentou-se numa cadeira e encostou-se a uma mesa, com a mão na cabeça. Eu perguntei : "O que tem a Mamã"? "Estou com azia", e eu virei-me para a Olívia e mandei-a fazer um cházinho".
A minha Mãe e a minha Tia diziam: "Quem muito dorme, pouco aprende (ou seja. é estúpido)
A CASINHA DA PEDREIRA
Queria voltar a ver
as camélias a florir,
as laranjas a crescer.
Queria voltar a ter
na minha mão pintaínhos
acabados de nascer
Queria voltar a ver
o jardim, a capoeira,
a horta - querida Maria -
que te enchia de canseira
Limonete ao fim da escada
Alecrim pro's ramos bentos
toda uma festa, a ramada
a casinha, tão modesta,
com o nicho e a cantareira...
Agora, recordo a chorar
as pedrinhas da calçada
que já não volto a pisar.
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12-6-93 ESPINHO
Ontem fui a Gondomar ao baptizado do António, filho da Ana e do Tozinho. Lindo baptizado, maravilhoso jantar em casa dos pais da Ana em S Cosme.
Que saudades da minha linda Terra, que saudades da minha Mãe, da minha querida casa, dos meus irmãos todos (quando éramos jovens), do terço rezado à volta da mesa, depois do jantar - as criadas e o criado, à porta da cozinha, a rezar connosco), que saudades de mim, meu Deus! Tantas saudades de tudo, que nem me cabem no coração. E choro, choro, por tudo o que eu tive e perdi. Oh minha terra,(onde se vê o céu), meus verdes campos, meu lindo Monte Crasto.
18-5-93 ESPINHO
Daqui do meu sofá, na minha sala virada para o jardim, a partir da porta larga - de parede a parede - vejo um retalho pequeníssimo do jardim da minha casa (pensando) no jardim da casa da minha Mãe, da nossa querida casa.
O meu jardim, o meu roseiral, as minhas adoradas rosas, que parecem as nossas rosas, minha Mãe! A trepadeira vermelha que sobe pela parede, junto ao poço, (e tem ao lado uma japoneira) está coberta de flores e todas as outras mais parecem rir-se para mim.
1998 MÃE NO SEU JARDIM
19-8-93, quinta-feira
UM DIA
Levantei-me às 9 1/2. Está um dia de sol e calor. Vou tomar o meu chuveiro e vou ao café, Talvez encontre a Leninha, (que está cá, a passar uns dias no apartamento do pai).
27 Set 94
TITA
Hoje tenho-me lembrado todo o dia da Tita, minha querida cadelinha, que morreu há mais de um ano.
Mas hoje vejo-a sentadinha no sofá, tão pequenina (era uma yorkshire terrier). Não gostava que ninguém se sentasse perto, queria o sofá todo para ela. Sabia quando eu estreava uns sapatos, farejava-me os pés.
1960 M CARMO RAZZINI E TITÃ .jpg1983 Titã à janela em espinho.jpg
29 - 3- 95
LENA E DAVID
Gosto de encontrar a Lena e o David (ao domingo), em casa do Mário. Já vamos tendo tão pouco tempo para nos encontrarmos, minha querida irmã. temos de aproveitar as ocasiões que se proporcionam para nos vermos. Está a aproximar-se a Páscoa. Que saudades das nossas Páscoas, na nossa casa, que saudades do compasso (com a nossa Mãe, claro), nós, todos os irmãos reunidos, as minhas adoradas filhas, os meus sobrinhos, os namorados deles, as criadas na cozinha, o cheiro dos cozinhados, o saudoso cheiro bom da nossa casa, que cheirava sempre a flores, o nosso jardim, aquele paraíso, como a minha mãe dizia.
1986 Mãe Tios Lena e David em Chaves agosto.jpg
LECAS
Minha Lecas, minha filha, a coisa mais linda que eu fiz e criei, na minha vida. Nem as rosas, as flores do meu jardim. Minha querida filha, valeu a pena viver e sofrer, só para te ter, a ti. Tristes prenda que te dou, minha adorada filha, padre nosso e flores. Tu que gostavas tanto de vestidos, de sapatos, de pequenos chocolates.
1963 Mãe e Lecas no Porto.jpg
O CARNAVAL DE 1962
Grande festa nos dois andares do R/C da Rua Latino Coelho. A Mãe e a Maria do Carmo Razzini pediram aos vizinhos para fechar a porta da entrada e usar o átrio como pista de dança, a continuar a sala dos meus pais, Na sala dos Razzini era a ceia, com mesa de doces, salgados e bebidas.. Todos fantasiados, O Dr Figueiredo fazia um chinês convincente, embora muito alto (Tb há chineses altos). O Pai com vestido, chapéu e sapatos da Maria do Carmo fez sucesso (ele calçava 42, ela 40, deve ter sofrido de aperto e,talvez, dado cabo dos sapatos - possivelmente velhos. Havia muita gente, o Domingos, muito engraçado, sempre a falar da "minha Berta". Os donos do Café Príncipe, a Ester e o Sr Rosas, ela com farda de magala e ele com um traje de vianesa, Simpático casal - gostaram tanto da festa, que, no ano seguinte, a organizaram na sua casa. Foi igualmente uma festa esplêndida. Moravam perto de nós, numa vivenda grande. A recordação mais viva que guardo é a da Madalena a cantar "Índia" e outras das suas músicas preferidas, com uma voz incomparável - a grande estrela da noite querido e saudoso amigo meu.
31-8-94
A Manela foi ontem para Lisboa de carro, (Peugeot), sozinha, e hoje, de manhã cedo partia para a Turquia, a esta hora ainda vai a voar, São 4 horas. da tarde. Esteve aqui em Espinho 3 semanas e por acaso com um tempo ótimo de praia. Esteve também cá, no andar da Manela, a Terezinha, Helder e Tozinho - que está um encanto - uns 15 dias. Foram ontem à tarde embora, para Gondomar, ficámos sozinhos, e com muitas saudades. Estou muito triste, também, porque a Lélé foi fazer e tem de ser operada ao útero. Deus a proteja.
23-9-94
A Maria do Carmo esteve cá 4 dias. Vinha para passar 15 e sentiu-se mal da bronquite, de que já sofre há muitos anos e de uma hérnia no estómago, que também já tem há muito tempo. .
A Maria do Carmo vinha cá 2 ou 3 vezes por ano, mas a viagem é muito longa, faz um grande sacrifício, coitada. É uma grande amiga Assim, eu vou ficando mais pobre (não de dinheiro, mas de dinheiro também, porque os juros vão descendo e eu vivo dos juros), mas de amizades verdadeiras, que tanta falta me fazem. Sinto-me muito abalada e desanimada.
28-4-93
VIAGEM PARA FÁTIMA (no nosso carro, eu e o João)
Matos cheios de verdura, os pinheiros com as suas "crescências" e um mar de juventude. Campo enfeitados de (?) irradia, alegria e jardins cobertos de flores variadas, parecem cascatas ali...para receber a primavera. Há ainda as maias a quebrar o verde das matas, essas flores tão lindas, que alegram os olhos e aquecem o coração. As flores amarelas encantam-me. O céu está carregado de nuvens brancas, o sol espreita, de vez em quando e vai adoçando a viagem. Chove, de longe a lomge. Não gosto de viagens com chuva. Com todas as viagens (aliás, como na nossa vida), não há conversa -2 ou 3 palavras de Espinho a Fátima e estamos agora a parar num bar da Mealhada.para tomar um cafézinho. O João enganou-se, passou o bar e teve de levar o carro em marcha atrás, mais adiante.E parou um carro da polícia mesmo ao nosso lado.. Foi manobra perigosa, esteve prestes a pagar multa, mas lá nos deixaram em paz (o João alegou que tinha tomado um diurético...), Ameaçaram-no de ficar sem carta na próxima transgressão. Agora continuamos a nossa viagem, atravessamos a serra (de Lousã?). Continua o céu cinzento, com abertas de azul, de vez em quando. Há uma cordilheira à nossa frente e do lado esquerdo, a bordar o horizonte. A auto-estrada permite-nos ir a 120, o que para o João é uma grande aventura.. Os matos dos dois lados da estrada continuam cobertos de maias. Que lindo! É para alegrar o cinzento do céu .Estamos a 20 km de Leiria, portanto já perto de Fátima. A paisagem é bonita, mas quanto mais lindos eram aos caminhos por onde eu vinha há 30, há 50 anos?
A 1ª vez que vim a Fátima com a minha Mãe e a Mª Ernestina, irmã do Eduardo, tinha 17 anos.
Uma grande chuvada e estamos a 16 km de Fátima, avista-se ao longe uma povoação, deve ser Vila Nova de Ourém. Já se vêem as características desta região, os muros de pedrinhas - como há em Fátima. Aqui e ali um campito verde, verde tão verde e fresco, parece um tapete de entrada em Fátima Estamos em Fátima. A chuva parou, deu lugar ao sol, lá fora e no meu coração.
Espinho, 24 de Abril de 1996
Vai fazer no próximo domingo 3 semanas que o meu querido João foi para o céu. Meu amigo, meu companheiro de 55 anos. Foi no dia de Páscoa, às 8 e meia da noite no dia 7 de Abril de 1996. Está em Gondomar, ao pé da nossa Lecas. Mas como tem sido difícil para mim sofrer sozinha tão grande desgosto, não tenho com quem desabafar e isto é uma tortura enorme. Tento resistir, mas preferia ir para perto dele e da nossa Filha.
12 de Maio
João e Lecas quero ir para perto de vós, vinde buscar-me, não tenho nada que fazer aqui. A Manela tem a vida dela e eu vivo sozinha, (esta criada que vive aqui em casa não é ninguém). Não posso sofrer assim , quero ir embora, descansar perto de vós. Pedi a Deus por mim. João, meu companheiro, meu amigo, tu tinhas tantos cuidados comigo, e agora deixaste-me sozinha. Eu desabafava contigo e agora não tenho com quem falar. Sofro atrozmente de saudades e solidão. Que mal nós aproveitamos ou vivemos o nosso tempo juntos, João.. Tudo o que eu fazia era para ti, João. Queria um piano para que tu me ouvisses tocar. Agora já não quero. Fiz o meu jardim para tu veres. Vestia-me bem para tu olhares para mim. Lembras-te como antes de estriar uma roupa te perguntava se me ficava bem? E tu sabias como ninguém aconselhar-me, eu acreditava, piamente, no que dizias. Agora já nada me interessa, acabou tudo para mim.Eu não posso, não sei viver sem ti. Triste primavera, triste sol e até as flores do meus jardim são tristes.
3 de Junho de 1996
Cada pessoa tem a sua casa exatamente para poder sofrer e chorar sozinha.Meu querido João eu ando perdida e perdida por esta casa sem te ver e pergunto. para onde foste sem mim? Tu que não ias a parte nenhuma sem me dizer, para onde foste sem me dizer? E deixaste-me aqui, assim, desesperada, Eu morro de saudades tuas.
5 de Junho de 1998
Meu João, meu amor, grande partida me fizeste, naquele dia de Páscoa, 7 de Abril, ao jantar. Tínhamos chegado de Gondomar às 7, tu foste ao Café Vieira tomar o teu cafezinho e chegaste atrasado para o jantar. Eu e a Manela já estávamos à mesa e tu chegaste, sentaste-te em frente a mim, comeste a sopa e ias continuar, quando eu, conversando contigo, te disse que tinha a cara muito vermelha e inchada do calor dos aquecimentos em casa do Mário (eu costumo ficar assim com o calor). Tu, querido, olhaste para mim e ias dizer qualquer coisa. Já não disseste. A cabeça caiu lentamente para a frente e tu, meu amigo e companheiro de 56 anos, partiste e deixaste-me sozinha. Quem me dera ter ido contigo. As minhas lágrimas são de saudade e desespero, eu não sei viver sem ti!. Agora, só agora sei que tudo o que eu fazia era para ti, João. Todos os vestidos que eu comprava, quando eu cantava nas festas da família, as flores do nosso jardim, os móveis para a nossa casa, tudo era para ti, meu querido João. Eu queria que tu gostasses do que eu gostava.. Amanhã, dia 6, fazias 78 anos.e, no dia 7, faz dois meses que me deixaste! Oh, João, como é possivel eu não falar mais contigo e tinha tantas coisas para te dizer, como disse quando era mais nova (éramos mais novos). Mas que eu queria agora, ainda, dizer-te outra vez.
João, leva-me para o pé de ti e da nossa Lecas, meu amor, chama por mim, este mundo não tem interesse nenhum para mim. Nem estes dias esplendorosos de sol, nem o meu jardim cheio de flores, nada, já não há nada que me faça ficar aqui. Sinto-me sozinha e abandonada num mundo desconhecido, João, vem-me buscar!
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1943 Pais retrato de estúdio.jpg1945 Pais penha.jpg
1954 Pais no casamento primo António Reis.jpg1956 pais.jpg
1956 pais casam. m ang. 56.jpg1969 Pais 28 8 Espinho Praia Azul.jpg
1971 Pais LX na varanda do andar da Av Uruguai.jpg1972 pais biarritz 2.jpg
1975 Pais Pascoa junto ao Nosso Café.jpg1979 PAIS E Mora 28 8 .jpg
1983 pais natal 83 2 (1).jpg1984 Pais Espinho esplanada.jpg
1987 mae e pai esplanada café palácio.jpg1988 Pais 1 jan.jpg
1989 Mãe e Pai em casa da Lé .jpg1990 Pais nna Esplanada.jpg
1991 PAIS À BEIRA MAR 1 1 (1).jpg1991 pais 15 11 bodas o.jpg
1990 Pais em 15 nov anis casamento.jpg1992 PAIS em Fatima.jpg
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9 de Junho de 1996
Dia dos anos, 54 anos, da Manela. Está na Venezuela, em Caracas, eu estou aqui, com as minhas recordações. Meu querido João, os dias estão cheios de sol, mas tão tristes para mim! Acabou tudo desde que me deixaste, mas que amargura de vida!
11 de Junho de 1998
Meu João, eu morro cheia de saudades tuas, não posso viver assim, porque me deixaste? Eu não posso nem quero viver sem ti. Preciso de ir para perto de ti e da nossa Lecas.
15 de Junho
Pode-se morrer de saudade e eu acho que vou morrer Já há mais de dois meses, meu amor, que te foste embora. E eu sentada no meu maple sinto que tu estás ao meu lado, sentado no teu, e eu viro a cabeça e vou falar contigo. João, como posso viver assim? Durante o dia, de vez em quando,estou a pensar: logo quando o João chegar eu pergunto-lhe isto ou aquilo.
Ouço os teus passos a subir a escada, ouço o meter a chave, ouço-te a tossir. e morro, aos poucos, de saudades. Como ficou tudo vazio á minha volta
20 Junho
Esta noite sonhei contigo, Em casa da minha Mãe, em Gondomar., no nosso quarto de inverno, (onde nasceu a nossa Lecas), o quarto azul. Tu estavas a chegar a casa (do emprego, cansado), agarraste-me atrás da porta e deste-me muitos beijos e disseste-me que já tinhas muitas saudades minhas.
Tínhamos em casa da minha Mãe outro quarto, de verão, no andar de cima (chamávamos-lhe "o quarto de hóspedes", foi onde nasceu a Manela)..
21 de Junho
Meu querido João, eu dizia até agora "feliz de quem fica cá", mas já não penso assim. Agora sei verdadeiramente que quem é verdadeiramente que feliz é quem parte. Por isso peço-te para me chamares, eu quero partir.
22 de Junho
João passo os dias a chorar, nem sei como tenho tantas lágrimas nos meus olhos. Estamos no verão, eu continuo sozinha, a Manela veio, mas já foi outra vez, ficou só uma noite. Está um sol a brilhar e um céu azul, e é tudo tão triste, Como o mundo ficou diferente, meu companheiro, eu até acho, meu companheiro, que estou a viver noutro mundo. João vem buscar-me.
14 de Julho
João meu amor, que saudades da tua voz, dos teus passos, de te ouvir subir as escadas, meter a chave à porta e dizer :"Sou eu". Que saudades, joão, de te ouvir chamar por mim. Quem me chama és tu, ou o meu irmão Zé, que está aí no céu contigo, desde o dia de Natal 24 - 12- 95, pobre e querido Zé, tão meu amigo também. Meu querido João, tenho saudades de te ouvir tossir, andar à noite no corredor, até de fumar o cigarro (que tão mal te fazia),, Até tenho saudades das nossa zangas, das nossa "guerras"!
11-12 96
João, meu amor, vem aí o Natal, só quero dizer-te: o meu mundo desabou em cima de mim. Mas que deserto é este?
ÉRAMOS FELIZES E NÃO SABÍAMOS
9 de Junho de 1996
Dia dos anos, 54 anos, da Manela. Está na Venezuela, em Caracas, eu estou aqui, com as minhas recordações. Meu querido João, os dias estão cheios de sol, mas tão tristes para mim! Acabou tudo desde que me deixaste, mas que amargura de vida!
11 de Junho de 1998
Meu João, eu morro cheia de saudades tuas, não posso viver assim, porque me deixaste? Eu não posso nem quero viver sem ti. Preciso de ir para perto de ti e da nossa Lecas.
15 de Junho
Pode-se morrer de saudade e eu acho que vou morrer Já há mais de dois meses, meu amor, que te foste embora. E eu sentada no meu maple sinto que tu estás ao meu lado, sentado no teu, e eu viro a cabeça e vou falar contigo. João, como posso viver assim? Durante o dia, de vez em quando,estou a pensar: logo quando o João chegar eu pergunto-lhe isto ou aquilo.
Ouço os teus passos a subir a escada, ouço o meter a chave, ouço-te a tossir. e morro, aos poucos, de saudades. Como ficou tudo vazio á minha volta
20 Junho
Esta noite sonhei contigo. Em casa da minha Mãe, em Gondomar., no nosso quarto de inverno, (onde nasceu a nossa Lecas), o quarto azul. Tu estavas a chegar a casa (do emprego, cansado), agarraste-me atrás da porta e deste-me muitos beijos e disseste-me que já tinhas muitas saudades minhas.
Tínhamos em casa da minha Mãe outro quarto, de verão, no andar de cima (chamávamos-lhe "o quarto de hóspedes", foi onde nasceu a Manela.
21 de Junho
Meu querido João, eu dizia até agora "feliz de quem fica cá", mas já não penso assim. Agora sei verdadeiramente que quem é verdadeiramente que feliz é quem parte. Por isso peço-te para me chamares, eu quero partir.
22 de Junho
João passo os dias a chorar, nem sei como tenho tantas lágrimas nos meus olhos. Estamos no verão, eu continuo sozinha, a Manela veio, mas já foi outra vez, ficou só uma noite. Está um sol a brilhar e um céu azul, e é tudo tão triste, Como o mundo ficou diferente, meu companheiro, eu até acho, meu companheiro, que estou a viver noutro mundo. João vem buscar-me.
14 de Julho
João meu amor, que saudades da tua voz, dos teus passos, de te ouvir subir as escadas, meter a chave à porta e dizer :"Sou eu". Que saudades, joão, de te ouvir chamar por mim. Quem me chama és tu, ou o meu irmão Zé, que está aí no céu contigo, desde o dia de Natal 24 - 12- 95, pobre e querido Zé, tão meu amigo também. Meu querido João, tenho saudades de te ouvir tossir, andar à noite no corredor, até de fumar o cigarro (que tão mal te fazia),, Até tenho saudades das nossa zangas, das nossa "guerras"!
11-12 96
João, meu amor, vem aí o Natal. só quero dizer-te: o meu mundo desabou em cima de mim. Mas que deserto é este?
quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025
MARIA ANTÓNIA Breve história a partir das suas memórias (jan 2020)
2024 - MARIA ANTÓNIA
BREVE HISTÓRIA DA FAMÍLIA A PARTIR DAS SUAS MEMÓRIAS
VINDA DO RIO DE JANEIRO NASCER EM GONDOMAR
Maria Antónia nasceu a 28 de agosto de 1920, poucas semanas depois de Amália Rodrigues, artista que tanto admirava e cujos fados cantava com a voz timbrada e poderosa, que conservou, intacta, quase até aos 100 anos. A música foi a sua grande paixão, que vinha, na sua escala de valores, logo depois do Amor (escrito com letra grande, como os nomes das pessoas). A história de vida, que planeava deixar-nos, dividida em capítulos - infância na Vila Maria, Colégio da Esperança, namorados e casamento, e depois - não passou da enunciação destas quatro partes num papelinho solto.Tinha por hábito anotar assim, em folhas avulsas, às vezes apenas pequenos pedaços rasgados, memórias, pensamentos, versos e variados dados. Poucas vezes, para si própria usou um caderninho, como fazia, cuidadosamente, para os irmãos, cuja poesia se conhece graças a esse desvelo antigo, dos tempos de menina. E, por isso, tendo perdido muitas anotações, nunca mais as histórias todas que iria detalhar, serão contadas com as cores da subjetividade. Restam aquelas que ficaram na memórias dos outros, e os videos em que, nas alegres tardes de sábado em Espinho, à volta da mesa redonda, com a irmã Lolita e os sobrinhos, recordava e encantava a plateia (ela que gostaria de ter sido atriz).
A sua vida começa, verdadeiramente, do outro lado do mar, no Brasil. Daí, nos primeiros meses desse ano, os pais regressavam, em definitivo, a São Cosme, no centro da vila de Gondomar, onde ambos tinham raízes mais do que seculares. António Carlos Aguiar após mais de 25 anos no estrangeiro, a mulher Maria mal completando uma década, pontuada por muitas visitas a Portugal. Nessa última travessia transoceânica, em 1920, estava ela grávida, nada de novo para ela. Assim veio do Rio a Gondomar por três vezes, para que os filhos aí nascessem, na sua casa paterna de Quintã, à vista do Monte Crasto. Era uma viajante nata, quaisquer que fossem as distâncias, os lugares ou meios de transporte, e nada lhe agradava mais do que a vida social a bordo de um vapor moderno e luxuoso, ao lado do marido, o homem mais afetuoso e gentil do mundo. Com eles, a lindíssima, alta e elegante Maria Aguiar, um português de assombrosos olhos verdes e bigode bem tratado, mais baixo, mas igualmente elegante viajavam cinco bonitas e irrequietas crianças (entre os oito anos e os 12 meses) e uma babá brasileira. O bebé de colo, Augusto de todos os bonitos irmãos o mais bonito, já não existia quando Maria Antónia chegou a este mundo, vítima de uma pneumonia fatal, que deixou os pais inconsoláveis e que as gerações seguintes não esqueceriam mais – para o que a beleza do menino morto, bem evidenciada nos retratos, terá contribuído. A menina que ia ocupar o lugar na linha familiar, e que, invisível, a mãe trazia consigo, nunca teria oportunidade de fazer o percurso de retorno, mas considerar-se tão brasileira como os três irmãos, Carolina José e Augusto dados à luz na radiosa cidade do Rio de Janeiro.
O pai manteria, nos anos seguintes, o vaivém solitário, a fechar os negócios no Brasil, que o tinham tornado um homem rico, com joalharia na Rua do Ouvidor. e projetos de integrar uma sociedade bancária, que a morte súbita aos 46 anos inviabilizou. A sua derradeira passagem do Rio para Lisboa foi realizada a bordo do Lipari, dos “Chargeurs Réunis”, em fevereiro de 1926 - exactamente trinta anos, após a sua saída de Gondomar, aos 16 anos.
Era um dos mais novos de uma enorme prole de quinze (ou, a acreditar na narrativa oral, de dezassete) irmãos e, sendo um jovem promissor e aventureiro, aceitou o desafio de um dos mais velhos, João, para ir trabalhar junto dele.
Manuel Pereira de Aguiar, o pai e patriarca, estava ligado à ourivesaria, arte e indústria dominante em Gondomar, e na sua empresa, cuja dimensão se ignora, se terão iniciado alguns dos filhos, caso de João, que no passaporte com que emigrou, indicava como profissão, “caixeiro”. Como proprietários de joalharias (não como artífices), fariam fortuna João e António Carlos no Rio de Janeiro, e Augusto no Porto, Rua das Flores Porto.
Do patriarca a memória da neta Maria Antónia era vaga – falava de um homem alto, bonito, de olhos azuis, feitio alegre e paixão pelo cultivo de rosas, que foi herdada pelos filhos Augusto e António e, provavelmente, por outros também. Esse avô teria de ser, pelo menos, mediamente abastado, para viver na grande casa da Gandra, que, na geração seguinte, seria de Augusto, um tio encantador, também ele possuidor de uns belos olhos azuis (a sobrinha achava essa a cor ideal para olhos enormes e expressivos e nunca deixava de mencionar essa caraterística). A avó Rosa Pereira de França, sobreviveu, por muitos anos, ao marido, mas faleceu em 1921, cedo demais para dela guardar memória (na verdade, nem dos avós maternos se recordava, por terem falecido o avô Joaquim, quando andava pelos 3 anos e a avó Carolina pouco tempo depois.
A Avó Rosa, nas sua fotos de viúva é um largo vulto, de aspeto severo, em vestidos pretos e pouco cuidados (bem arranjada só aparece, num retrato do casal...). Mas dela foi encontrada uma carta para o filho António, em que se revela mãe saudosíssima e muito veemente nos seu protestos de amor materno. Talvez ele fosse um dos seus filhos preferidos, e a sua ausência lhe pesasse, apesar de a visitar com uma regularidade quase anual, sempre em estadas de alguns meses.
Não se conhece o início do percurso brasileiro de João, só se sabe que, numa época áurea da economia brasileira prosperou rapidamente, É mais do que plausível a estimativa de que rapidamente se estabeleceu por conta própria, pois ninguém enriquece a trabalhar por conta de outrem. E, assim, lhe foi possível, poucos anos decorridos, mandar “carta de chamada” a dois dos irmãos, António Carlos, em 1896, e Alfredo, no início do século XX (se, como é muito provável, saiu do país com a mesma idade de António, de quem era quatro anos mais novo).
João, António (e também de Alfredo), rapazes bem-educados e de boa aparência (como o pai), e facilmente fizeram amigos na sociedade carioca e luso brasileira. João casou, em 1901 com a lindíssima Judith de Andrade da Cruz Ferreira, menina de boa sociedade carioca, que, a partir de 1910, seria a melhor amiga da cunhada Maria. Quem se une a mulher brasileira, como João, não volta mais.Tendo procurado noiva portuguesa, António para Gondomar voltou, já na casa dos quarenta, preparado para recomeçar, tranquilamente, um percurso de sucesso empresarial, em S Cosme e no Porto.
Embora descrevesse o Rio como um paraíso terreal e os anos aí passados como os mais felizes da sua vida, Maria Aguiar sentia a falta dos pais, velhinhos e saudosos, e do convívio no círculo largo de parentes e amigos de uma verdadeira comunidade de afetos, como era, então, a pequena vila de Gondomar. O exotismo tropical fora exaltante e desejado, tal como o tranquilo o dia a dia numa das mais belas cidades do mundo, em grandes andares no centro do Rio (no plural, pois pelos endereços da correspondência se constata que mudaram de morada com regularidades) e, nos últimos anos, numa esplêndida mansão, rodeada de jardins no privilegiado bairro de Santa Teresa. Mas chegara, no começo da década de 20, a hora do regresso..
Maria da Conceição Barbosa Ramos (Aguiar por casamento, apelido que sempre havia de privilegiar) era a mais nova dos nove filhos de Carolina Ferreira Ramos, que tinha então 45 anos, o pai, Joaquim Mendes Barbosa, quase 50. Carolina era descendente de muitas gerações de bons burgueses de Gondomar, Joaquim, o notário que viera de Paredes, oriundo de uma antiga família, os Barboza de Bitarães.
Aquela filha, "quase neta", recebeu a mesma educação das duas irmãs, Rosaura e Glória, as primeiras lições em Valbom, ficando alojadas em casa da professora, que era amiga da mãe, depois, em casa, Rosaura e Maria completaram os estudos, com aulas particulares, algumas, certamente, do próprio pai, que tinha começado a sua vida profissional como professor, antes de encetar a longa carreira jurídica. Glória foi a única que quis fazer, no Porto, o curso de magistério, convertendo-se em pioneira na vila, com direito a inscrever o nome na biografia do concelho de Gondomar, ao lado de Contudo, por outra via, a mais jovem havia de tornar-se, também, um nome feminino que se impôs a consideração universa das gentes de São Cosme. Mas isso, só muito mais tarde, na sua segunda vida, uma sofrida viuvez, solitária, mas passada no meio da multidão, em tarefas solidárias. l
Neste ano de 1920, ela é ainda a senhora casada sociável e cosmopolita, que se acomodara perfeitamente ao ritmo citadino da capital, deslumbrada com a beleza incomparável das paisagens, as baías com cercaduras de montanhas do Rio de Janeiro, os picos montanhosos ainda mais altos de Teresópolis. Bem integrada na família luso-brasileira, feliz com o extrovertido e carinhoso marido e com ele criando os filhos que chegavam, a um ritmo praticamente bienal. Das nostálgicas narrações que deixou à descendência, à sua aventura brasileira só apontava um “senão”: o incómodo causado pelo calor excessivo e húmido, que, no verão austral a levava a mudar-se para Teresópolis, com os meninos, em busca da frescura da serra. O marido por ela estava disposto a tudo, não hesitando em deambular incansavelmente pelas estradas sinuosas de montanha, em idas e voltas para o Rio, para estar com eles todo o tempo que lhe sobrava da direção dos negócios. Era, como indiciam todas as cartas, retratos, pequenos episódios e detalhes, recordações soltas guardados pela mulher e pelos filhos, um homem afectivo e devotado à família. Organizava, de facto e muito eficientemente a gestão dos seus negócios, por forma a poder ausentar-se por largos períodos, acompanhando a família nas férias em Portugal. Não obstante essa capacidade, algumas vezes teve de suportar longas semanas de separação, como aconteceu após o complicado parto do filho António Maria, em Fevereiro de 1915, que obrigou a jovem mãe a prolongar a estada em São Cosme. As cartas que existem desses períodos dão bem conta do seu estado de espírito, misto de saudade, solidão e preocupações...
No Brasil, na montanha, como na cidade, preferiu a solução de arrendamento, e, como se vê por uma das cartas escritas do Rio, ele próprio se encarregava de procurar espaços cada vez maiores e melhores para a família que crescia, Dessa vez, encontrara um andar esplêndido, superior a que todos os que anteriormente haviam ocupado, e, por renda surpreendentemente mais baixa, acrescentava. Deduz-se que a mulher, no regresso ao Brasil, se via, assim, instalada num novo ambiente, pronto a habitar, sem ter passado pelas agruras de qualquer mudança.
Através dos endereços de postais e cartas, se constata que, nos primeiros anos de casamento, foi muito frequente a deslocação de casa para casa. Depois, a partir de 1916, sentiram-se visivelmente satisfeitos em Santa Teresa, com vistas esplendorosas sobre a cidade e os montes e montanhas que a cercam, numa moldura de incomparável beleza. Daí só saíram para Portugal, no ano de 1920.
O Avò Aguiar investia na bolsa, não no imobiliário. Comprar propriedades era, então, para um português emigrado, regra geral, sinal que apontava à integração. Dos dois irmãos, só João mandou construir um belo palacete no Flamengo, na Rua de Payssandú. A fotografia da mansão foi por ele enviada à família, com dedicatória, exatamente como lhes oferecia os seus próprios retratos. Os filhos brasileiros continuaram no mundo dos negócios, alguns, segundo dizia Maria Antónia, enveredaram pela política e pela diplomacia. Depois do desaparecimento do pai, sem ligação visível às suas origens lusas. Na década de cinquenta, José Augusto, o quarto filho de António e Maria, voltou ao Rio, de onde era natural, e aí viveu, antes de reemigrar, com passaporte brasileiro, para Nova Iorque. Retomou, então, por poucos anos, relações de amizade com simpáticas e bonitas primas, hoje, já todas, provavelmente, desaparecidas
O casarão de António seria em Gondomar. Primeiro, entusiasmou-o a perspectiva de comprar um solar do século XVI, na quinta da Bouça Cova, quando esteve providencialmente à venda, mas a mulher manifestou reservas. Achava a quinta isolada e sombria. O seu sonho, talvez inspirado nas imponentes residências de Santa Teresa, apontava para conforto e modernidade Queria construir de raiz, pedra a pedra, uma edificação rodeada de jardins e arvoredo, no centro de São Cosme, perto de todos e de tudo. E foi feita a sua vontade, não obstante ser de difícil concretização. Lendo correspondência do pai, constata-se que já em 1918 ele procurava, juntamente com o filho Alexandre, terrenos disponíveis, mais ou menos na área em que veio a implantar-se, nos anos 20, a Vila Maria - no coração da vila de Gondomar, atravessado pela estrada principal, do Largo de Santo António (hoje Largo do Souto) para o de Quintã, de onde seguia para o Porto. Ao longo desse troço entre os dois Largos se situavam fileiras de moradias citadinas, e para elel convergiam caminhos estreitos, cruzando pinhais e campos arados, férteis e verdes a perder de vista, à volta do airoso e frondífero Monte Crasto. Aqui e ali, dispersas, as casas de lavoura de pedra e cal, com amplos pátios, modelos de uma arquitectura tradicional, sólida e harmoniosa.
Os campos não estavam, porém, no mercado. Pertenciam a lavradores abastados, com orgulho em proclamar que "não vendiam terras, compravam".
O notário Mendes Barboza e o filho Alexandre, secretário da Câmara eram homens muito respeitados e bem relacionados e bem informados e até para eles a tarefa de pesquisa de oportunidades se revelou árdua. Muito referenciadas foram umas propriedades da “regedora”, que se comprometeu, caso vendesse, a dar-lhes preferência, a troco da qual eles cobririam, naturalmente, qualquer proposta. A hipótese não se concretizou, ela conseguiu, contra ventos e marés, resolver de outro modo os seus problemas financeiros (sendo que uma das vias faladas para tal era um casamento rico de um dos filhos, que, esse sim, talvez se tenha materializado). Acabaram por ser proprietários relutantes e não necessitados, que cederam ao amigo António, a alto preço e por especial favor, o espaço onde se implantou a única grandiosa mansão de "brasileiro" que houve em São Cosme, situada face da estrada principal, a dois passos do Souto. A propriedade estendia-se, discreta, invisível da frente de rua, por centenas de metros quadrados, num desenho de longas linhas retas, como as recentes fronteiras de África, configurando uma quinta agrícola, que nunca recebeu esse nome. Ao gosto da época, chamou-se ao conjunto, simplesmente, "Vila Maria".
Perfeita, para criar uma família grande e em aumento cadenciado – em seis anos nasceram três meninas, Maria Antónia em 1920, Glória Doroteia, em 1922 e Maria Madalena em 1926, apenas 2 meses antes da morte do pai.
2 – GONDOMAR TERRA BENDITA
Maria Antónia, a Mariazinha, como era chamada, veio ao mundo e passou os primeiros tempos de vida na casa dos Avós, Joaquim, o forasteiro de Paredes, e Carolina, uma gondomarense de várias gerações, como ela própria teria sempre orgulho em se declarar. (uma brasileira de Gondomar).
As suas raízes profundas eram dali, daquele lugar, cuja beleza os seus antepassados tinham celebrado, em prosa e verso.
O tio materno, José Barbosa Ramos, era o autor da letra do hino de Gondomar, com música composta por José Moura (por sinal, o primeiro professor de piano das meninas Aguiares).
"Gondomar, terra bendita
Rincão formoso e fecundo
O nosso Crasto frondoso
Não tem, não, rival no mundo.
Filigranas delicadas,
Verdes prados cinge a serra.
Cantam fontes e avezinhas
Eis os dons
Da nossa terra.
Gondomar é o nosso berço
Beija-o a brisa fagueira
Cantemos por Gondomar,
É divisa da bandeira
Cantar, cantar,
A linda terra de Gondomar".
Na geração seguinte, seu irmão Manuel glosou o tema, num mais longo poema destinado à célebre revista musical “O Nabo”, que estreou em 24 de Setembro de 1933. e ficou nos anais de Gondomar, e cujo refrão voltaria a recitar para amigos, em pleno Monte Crasto. Um repórter registou-o nas páginas do "Correio de Gondomar" de 17-3-34, e minha mãe guardou o recorte nas suas gavetas, onde foi encontrado já depois de ter partido.
"E o Castro
Belo e frondoso
Erguendo-se majestoso
Na terra que nos foi mãe,
No sino da igreja além,
Trindades oiço tocar
Como é linda a minha terra
Como é linda a verde serra
Como é lindo Gondomar!"
O texto completo foi mais tarde encontrado num caderno, recolha de poesias dos três irmãos mais dados à Letras, Carolina, Manuel e António, copiadas pela letra juvenil da Mariazinha
GONDOMAR!...
Gondomar!... o nosso berço de criança
Nossa terra querida, idolatrada…
Tu és o meu cantinho, a minha esp'rança
O meu torrão natal, a minha amada
Tu és o Monte Crasto - o verde altar
Cheio de poesia... de frescura
Tu és o imenso sol a iluminar
O Mundo de prazer... de desventura...
E, ornando o teu Altar, campos fecundos
Ferem a nossa vista... e o lavrador
Vê, nessa curta faixa, os novos Mundos
Do seu divertimento... seu labor.
O Crasto belo e frondoso
Erguendo-se majestoso
Da terra que nos foi Mãe...
No sino da Igreja, além,
Trindades oiço tocar...
Como é linda a minha terra
Como é linda a verde serra!
Como é lindo Gondomar!...
Tu és, meu Gondomar a primavera
Da nossa mocidade, nossos dias
Tu és a minha Igreja: a voz que impera
.Numa canção dolente... Avé- Marias!
Tu és a criancinha caminhando
P'ra os bancos da escola, p'ra o futuro
Tu és a pobre Mãe... rica, embalando
O filho, o seu amor altivo e puro...
Tu és a poesia... hino de amor
Que enches de prazer os meus sentidos
Tu és o bom velhinho - com fervor -
Recordando o passado, os tempos idos
(repete refrão O Crasto belo e frondoso, etc etc )!
Meu Gondomar!... ó fonte cristalina
Onde as pombinhas mansas vão beber...
Tu és o sol cadente, que ilumina
Com maternal carinho o meu viver
Tu és o horizonte azul, infindo
Da nossa Pátria grande e imortal...
Tu és as andorinhas ressurgindo
Depois de longa ausência em Portugal
Tu és essa guitarra triunfante,
Trinando em noites belas de luar...
Tu és a negra capa de estudante
Cobrindo a minha alma: Gondomar!...
Repete o refrão
O Castro belo e frondoso. Etc)
Os poemas têm assinatura, mas retratam o estado de alma de uma família inteira, a olhar quotidianamente, com orgulho, as formosuras paisagistas de São Cosme.
O arrasador e malfadado progresso do cimento e do betão” vedou aos vindouros essa comunhão com a gracilidade de um meio ambiente, hoje irreversivelmente perdido. Nem mesmo o Monte Crasto, seu último bastião de resistência, é tão frondoso quanto era nessa idade de ouro.
Dissolveu-se, também, na populosa "cidade-dormitório do Porto", a dimensão de uma comunidade autêntica, convivial e afável, quando os dias corriam devagar e todos fruíam de recantos onde a vila e o campo se misturavam numa interlocução de pessoas e espaços, em que todos se conheciam, e se falavam nas ruas, nos clubes e tertúlias, na botica, no adro da greja e nas festas populares, partilhando hábitos e costumes, a sonoridade do sotaque, a fala com as peculiaridades, em que o "povo-povo" resistia mais à uniformização do que as elites letradas.
Mariazinha, excelente aluna a História e a Geografia, foi, desde sempre, dada a recolhas de natureza cripto-etnográfica, (no que terá sido influenciada pelo exemplo da Tia Rosaura de quem se conhecem apontamentos soltos, por exemplo, sobre ditados ou sobre mezinhas e rezas das mulheres do antiquíssimo Gondomar), anotou os lugares, que faziam os seus encantos - o Barroco, a represa de Cascaneira, entre a Gandra e Ramalde, Bouça Cova, Azenha, Ermentão, Rio Carreiro, Fontela, Ponte Real, São Miguel, Pevidal, Santo André... - , e, também, expressões, nomes e alcunhas aldeãs, que lhe despertavam a curiosidade, como Pojeiras, Restivos, Cabaças, Jeque-Jeque,Tarré Fome Negra, Caga Troços, Carriças, Pilha Galinhas, Patacas, Pirabeca, Arregalados, Folhetas, Estabões, Bagulho, Parraxila, Chasco, Varetas, Melros, Pisco, Choco, Pimpão, Pinguinhas, Pombalinos, Toca- certo...
Menos invulgar o nome de Isidro Izidoro, que, todavia, fez sensação, quando deixou dito que, nas exéquias, queria levar um cravo vermelho na lapela. Era ela uma criança, mas conseguiu que a levassem a vê-lo. Talvez uma benigna criada, lhe tenha permitido a secreta escapadela.
A família materna, tal como a paterna, encontravam-se praticamente livres de alcunhas, fossem elam trocistas ou amáveis, com uma única exceção conhecida, a de uma tia Pereira de Aguiar, a quem, por ser baixa e gordinha, chamavam Maria Parrachila.
Algumas das antepassadas de sua avó Carolina, as que se assemelhavam a muitas das formidáveis figuras femininas do universo ficcional de Agustina, ficaram conhecidas como "as Alexandras", não entrando, contudo, naquele “dicionário”. O nome popularizou-se e foi adotado, também, no masculino, e ainda hoje o é, em sextas ou sétimas gerações dos seus descendentes. Curiosamente, não o vemos nas pesquisas genealógicas que abrangem o século XIX. Há, sim, entre tias e primas, alguns outros nomes de ressonância greco-latina, como Lavínia, Leocádia, Violante, Blandina ou germânica, como Guiomar.
No apanhado de vocábulos esquisitos, então em voga nos meios populares, apontou, dando sempre o sinónimo, palavras ou expressões como: vasculho malandro), paspalhão (desajeitado), dar uma topada (tropeçar), encatrapiada (aleijada), pimpineira (aldrabice), pixote (pequenino), "embaçado" (envergonhado) … Ou ditos antigos, por exemplo: "estás a olhar para ontem, que já lá vai", ou "estás a ver navios" (distração): Deus nos dê muito e nos abone com pouco":"estreminguei um pé" (torci) "vim da outra banda" (do outro lado) "estou triste como a noite"...
Tudo o que era, ou, pelo menos, considerava ser, particularidade da terra e das gentes de Gondomar lhe dava a certeza de estar onde e com quem mais queria. Ligava-a à longa linha de ancestrais, que certezas semelhantes tinham arreigado ali, mesmo quando, como aconteceu com seu pai, se aventuravam, por muitos anos para além das fronteiras do concelho, do país, ou do mar, sem perder nunca a vontade de revir à melhor das terras à face da Terra - a vila de Gondomar, de onde tantos avoengos eram originários
I - OS MENDES BARBOZA E OS FERREIRA RAMOS
JOAQUIM MENDES BARBOZA
Joaquim, o avô de porte aristocrático e olhar sereno, que veio do norte, de um norte não muito longínquo, era natural de Santa Maria Madalena de Paredes, filho de António Mendes e de Joaquina Roza Coelho Barboza. Fez os seus estudos de Teologia no Bispado do Porto, que concluiu no ano de 1858/59, tendo tido no exame a classificação de “Muito Bom”. Em 1960, foi “admitido à receção de todas as ordens sacras”, mas, em vez da ordenação sacerdotal, vemo-lo, em 1863, aceitar o posto de professor na recém-criada Escola de Vilela, Paredes, com um contrato de três anos. A decisão de mudar de rumo, qualquer que tenha sido a motivação, não afetou a sua fé e religiosidade profundas, bem expressas em alguns trechos de correspondência enviada à filha Maria, meio século depois, enquanto esta morou no Rio de Janeiro, entre 1910 e 1920.
Em Vilela, exerceu o cargo, (que era bem remunerado e com mordomia), incluindo casa oferecida pelas autoridades locais, de forma a merecer os maiores encómios, ou seja, “com tanto aproveitamento para os alunos que provou até à evidência a sua muita inteligência, aptidão e inexcedível zelo”, como atestava o público agradecimento da Junta de Freguesia.
Seguidamente, vemo-lo enveredar por carreiras jurídicas do funcionalismo público, nos serviços de Registo Hipotecário da Conservatória de Paços de Ferreira e na Administração dos concelhos de Paredes e de Gondomar, como escrivão.
No Julgado de Paços de Ferreira, pertencente à comarca de Lousada, seria nomeado solicitador encartado, funções que deixou em 1870, com mais louvares num curriculum imaculado.
1970 é o ano do seu casamento com Carolina Ferreira Ramos, na vila de Gondomar, onde estivera colocado em 1865 e 66. A sua sintética biografia in “O Conselho de Gondomar” não refere os cargos exercidos durante a década de 70. É sabido que se manteve como funcionário público, profissão que lhe é atribuída, por exemplo, em 1879, na certidão de nascimento da filha Rosaura, emitida em Gondomar, onde nasceram todos os seus oito filhos
Em maio de 1983, é colocado como secretário da Junta de Freguesia e, em 1 de Outubro de 1885, nomeado tabelião no Julgado de Gondomar da Iª vara da Comarca do Porto. E como notário se manteve até à aposentação em 1916, já com avançada idade.
Em 1890, foi nomeado Administrador do Concelho, funções que acumulava com as do notariado.
Na monografia “Concelho de Gondomar, descreve-o assim o Autor “ Era um espírito muito culto, tendo colaborado em algumas revistas da sua classe, como “O Direito Notarial” de Lisboa.
Numa nota mais pessoal, não muito comum no conjunto dos seus biografados, apresenta-o, numa data em que já falecera, como um “chefe exemplar de família”, que “legou a seus filhos uma esmerada educação que lhes assegurou uma situação respeitável no meio da sociedade”
Testemunho direto de Camilo de Oliveira sobre qualidades humanas, que impressionavam, pelo menos, tanto quantos as profissionais, e que seriamcorroboradas pelos seus próximos, no rastro imperecível de memórias íntimas
Não sendo, como vimos, oriundo de Gondomar, converteu-se em verdadeiro filho da terra, onde criou família e fez incontáveis amigos, e nenhum inimigo, seguindo a vocação de louvar a Deus, de um outro modo, servindo, cristãmente, os seus semelhantes.
Monárquico, do partido Regenerador, não parece ter sido penalizado pelas suas convicções políticas, a partir de 1910 e até 1918, data da sua retirada por razões de idade e saúde, que, todavia, não o impediram de dar a sua colaboração graciosa, e a tempo inteiro, por largos meses, ajudando a formação do seu sucessor, um jovem licenciado em Direito por Coimbra, muito sabedor de leis, mas sem qualquer experiência prática. (como ele própria relata com um fio de humor, na sua correspondência para o Rio de Janeiro)
CAROLINA FERREIRA RAMOS
O historial de Carolina, menina da sociedade gondomarense, não consta, naturalmente, dos anais da terra. Como quase todas as mulheres desse tempo, fez “curriculum” pelo casamento e uma numerosa prole esta bonita e voluntariosa filha de ANNA PEREIRA, (cujos pais, JOSÉ PEREIRA e THEREZA d' ALMEIDA, eram ambos naturais de São Cosme), e de JOAQUIM FERREIRA RAMOS, filho de FRANCISCO FERREIRA RAMOS e de CATHARINA ALVES, de Valbom.
Anna e Joaquim eram casados já há alguns anos e tinham vários filhos, quando se mudaram de Valbom para São Cosme, para morar na quinta da Bela Vista, que ou compraram, ou herdaram dos pais de Anna Pereira
Carolina, uma das filhas mais novas, nasceu, certamente, na quinta da Bela Vista, e terá conhecido o futuro marido por volta de 1866, no período em que este exerceu o cargo de escrivão do Concelho de Gondomar. Frequentavam o mesmo meio pequeno de comunidade burguesa. Talvez Joaquim Mendes Barboza fosse amigo dos seus irmãos, apesar das divergências políticas, ele monárquico e conservador, os Ramos maioritariamente republicanos e progressistas. Por essa altura, a Carolina não faltaram pretendentes. Houve um que conseguiu ficar no anedotário da família, graças uma equívoca e infeliz quadra que lhe dedicou:
Minha doce Carolina
Estas, porventura lembrada,
Tu ao mirante da esquina
Eu a cavalo na estrada.
Um poeta “cavalgando a estrada” ou “A cava-lo na estrada” (subentenda-se a cavar o ouro da herança) não era literato capaz de granjear o entusiasmo de uma rapariga perspicaz e exigente. (se é que a história é verídica, o que não seguro).
Certo é que ela era um “bom partido” e os pais, de início, terão contrariado a pretensão do jovem escrivão do Concelho… Mulher de forte personalidade, não desistiu de um casamento por amor. Poderá a oposição paterna ter retardado a cerimónia nupcial, que só se efetuou quatro anos depois, em 2 de maio de 1970, quando ela já ia nos 26 anos, para a época idade madura, e ele nos 30.
Foi madrinha da noiva a irmã Joanna, a cuja beleza e graciosidade os retratos fazem justiça. Esse dado leva-nos a considerar que houve, enfim, aprovação parental e que os pais, Anna e Joaquim, terão estado, também, presentes na boda
Joaquim Ferreira Ramos seria um abastado comerciante, ou não teria podido adquirir, por partilhas ou por compra, a quinta da Bela Vista, com a sua casa apalaçada. No retrato do álbum de família, aparentando já mais de 60 anos, é um senhor distinto, pensativo, de olhos claros, com uma extraordinária semelhança com o que terá sido o mais atraente e brilhante dos seus bisnetos, Manuel Joaquim, legatário dos cristalinos olhos azuis e do nome, (que coincidia com o do avô minhoto, o suave enamorado de Carolina).
De Anna há, também uma fotografia de estúdio, em traje de lavradeira rica, de chapéu preto e lenço de seda, ignorando- se o foi, de verdade - ou se estava fantasiada para o entrudo, como então era comum. O pormenor de estar de livro aberto na mão, livro que pode ser, simbolicamente, uma Bíblia, apontará para a primeira hipótese, assim como a lenda das "Alexandras", ligada a heranças e ambição de terras. Essa ambição, frustrada no caso da irredutível Carolina, atingira o seu ponto alto com uma antepassada que queria impor consorte rico a sua filha, e, não logrando os intentos, porque a donzela se mostrava indomável, praticamente a sequestrou dentro de portas, até ao dia em que, ajudada por criados de coração solidário, e pelo pároco, não menos compassivo, a noiva secreta escapou, de manhã cedo, para a Igreja. Aí a esperava o padre para a unir ao bem-amado pretendente pobre, em apressada cerimónia, com a bênção de Deus, mas não com a da mãe (do pai, fosse vivo ou morto, não reza a a narrativa).
Nessa manhã, a “emparedada” levara a sua mãe, à cama, ela própria, prestável e aparentemente resignada, a bandeja do pequeno-almoço, mas não fora ouvida nem vista, depois de não ter vindo recolhe-la. Chamou-a a mãe e, não obtendo resposta, cheia de suspeitas, tratou de se vestir à pressa e correu, também ela, para o templo. Tarde demais chegou… já os noivos estavam ligados para sempre pelo sacramento. Restou-lhe, assim, em incontrolada fúria, apedrejar o cortejo nupcial, à saída da igreja. E com esse insólito comportamento rompeu as barreiras do completo anonimato futuro, convertendo-se em lendária figura familiar...
Joaquim Mendes Barboza pode não terá recebido. Inicialmente, acolhimento muito amistoso, mas, no polido e mais flexível meio de uma burguesia comercial, escapou a gritos de guerra e tentativas de lapidação. Ficou, em todo o caso, ciente de que educação, ascendência, bom carácter e boas maneiras, não contavam tanto, para a família da noiva, como haveres materiais, em que ele era mais parco. Para Carolina, aquelas qualidades sobejavam, tanto mais que ele era um belo e gentil rapaz. Bem andou em não desistir do seu amor, na melhor tradição das "Alexandras”. Meio século de vida em comum com Joaquim dar-lhe-ia razão. E não foi preciso muito tempo para que os sogros se convertessem às virtudes do tão bondoso quanto sensato genro, ao mesmo ritmo de toda a sociedade gondomarense. As memórias das filhas coincidem rigorosamente com o teor da monografia do Concelho de Gondomar, apresentando-o, da mesma forma, que se pode sintetizar numa palavra: exemplar! Como homem, cidadão e profissional.
Foi, assim, longo e feliz o casamento de Carolina, elegante jovem, transformada em imponente matriarca, depois de oito vezes grávida (a última das quais já quase na casa dos cinquenta, para dar à luz Maria da Conceição, que viria a ser a conhecida e reconhecida Maria Aguiar). Mulher forte e determinada, embora mais comedida do que as terríveis antepassadas, parece ter reinado, sem oposição, dentro dos muros de sua casa, como manda a tradição matriarcal nortenha, mantendo sobre o marido e sobre os filhos, mesmo já depois de adultos e independentes, um ascendente natural, compatível com imenso afeto e condescendência da parte de todos eles. Por regra, era feita a sua vontade! Um pequeno diálogo conjugal (dos poucos e fragmentados que o raconto oral traz até nós...), é revelador da permanente busca e facilidade de concórdia na intimidade do casal. Passa-se na última década do século XIX, num tempo em que os apelidos dados aos recém- nascidos eram de arbitrária escolha de quem os registava. Os quatro primeiros rapazes receberam apenas os apelidos do pai. E só quando estava à espera do seguinte, Carolina se deu conta disso e comentou, causticamente: "Os meus filhos não têm o meu nome!". Não ocorrera ao marido, que a tratava carinhosamente por "mamã", ter isso especial relevância para ela. Daí em diante, não só reparou a omissão, como tratou de colocar o apelido da mulher no último lugar, no nosso sistema, é o dominante. Os quatro filhos mais velhos são Mendes Barboza, os quatro mais novos Barbosa Ramos, (independentemente do sexo, pormenor que não é despiciendo).
A partir do 15º ano do casamento, em 1985, Joaquim Mendes Barboza tornou-se, com foi dito, tabelião do concelho de Gondomar, e ocupou o cargo, com universal aceitação e agrado, até se reformar, em 1916. Na vila que o acolheu, foi personalidade ímpar e prestigiada, sempre discreto e confiável, dando de si, nas muitas fotografias em que figura, a imagem da pessoa serena e gentil, que, de facto, era para com todos, ricos e pobres. Um santo", nas palavras da filha Rosaura Barbosa Ramos, a primeira das meninas, depois de quatros rapazes.
O seu nome, que se distingue pela raridade, foi escolhido por ele, inspirado num livro, que andava a ler, por essa altura, um romance de cavalaria com o longo título de "Retiro de Cuidados e Vida de Carlos, e Rozaura". Mais uma nota a acrescentar ao seu perfil humano: o gosto pela leitura, romântica e sentimental.
È fácil imaginá-lo ao serão, enquanto a mulher bordava peças de enxoval (e muitos bordados seus, primorosos, chegaram, em perfeito estado de conservação, ao século XXI), sentado em cadeirões de pau canto e palhinha, igualmente bem preservados, a deleitar-se com a aventuras e desventuras de Rosaura, à luz do candeeiro de "abat jour" de vidro branco e translúcido, e de pé de bronze elaboradamente trabalhado, que, intacto, resistiu ao passar do tempo.
A saga, que lhe ocupava as horas livres, começa auspiciosamente numa madrugada ( "Rompia a aurora..."), continua em extensas narrativas de guerras, conflitos e mil e um obstáculos que vão adiando a união dos jovens, só alcançada no final feliz, com a etnográfica descrição do cortejo nupcial em direção à Igreja: "levando a Marqueza Rozaura da mão e Dom Manrique a Carlos ao lado direitto e assistiao ao seu recebimento e quando voltaram por quantas ruas passarao choviam infinitas flores das janelas, com repetidos “vivas. Cedo com sua espoza Rozaura para Rezzo virao. Laus Deo". (Rosaura Barbosa Ramos não teria tão vistoso casamento, nem iria para Rezzo, permaneceria em Gondomar, feliz, com um viúvo muito afável, chamado simplesmente Manuel Marques).O pesado livro de capas de couro ser-lhe -ia, mais tarde, dado como presente, que legaria à sobrinha preferida, Mariazinha, por sinal, fiel e diligente guardiã de quaisquer antiguidades.
Joaquim Mendes Barboza, ogrande amador de romances, era um monárquico firme, mas tolerante, muito sociável, participava na vida cultural da vila e suas instituições, em tertúlias, em teatros e concertos e celebrações reliiosas. Com as origens (Bitarães. Penafiel, Paredes), parece ele ter mantido escassos contactos. Talvez os pais, quando casou, em 1970, tivessem já falecido, porque deles não há rasto personalizado nas relatos orais. A exceção é um sobrinho, que era Visconde de Paredes (ou um dos filhos do Visconde) e namorou a filha mais nova, Maria da Conceição. Visitava-a, segundo várias vozes, entre elas a da Tia Rosaura, chegava esbelto e sedutor, montado no seu cavalo, e à despedida ela vinha ao mirante dizer-lhe adeus. (Mais um mirante na geografia dos romances gondomarense!). Porém, aí por volta de 1906 ou 1907, Maria pôs fim ao namoro, preferiu o "brasileiro" António Carlos, que, nas suas próprias palavras, a fitava, apaixonado, com uns grandes e expressivos olhos verdes, como jamais vira outros. È facto assente que ela não tardaria a corresponder aos sentimentos e aos olhares. Maria, a menina mais nova, tal como, mais tarde, Rosaura contaram sempre com o apoio dos pais nas suas decisões. E dos homens também não há qualquer eco de afetos contrariados.
O único desgosto que pesou sempre na vida deste casal exemplar foi a morte, aos 21 anos, da encantadora e sempre lembrada filha Glorinha, a professora.
OS IRMÃOS DE CAROLINA
Carolina e as suas irmãs foram educadas para o casamento, e todas elas terão casadobem, ou medianamente bem, não deixando marcas na cronografia da família, onde só destinos ou acontecimentos excepcionais, para o melhor ou o pior, trouxeram à ribalta mulheres das gerações passadas – daquelas gerações sobre as quais não há testemunho de quem com elas privou.
De entre os filhos houve os que continuarm, no modo masculino, as tradições da família, em vários ramos de negócio. Com grande sucesso, o conseguiram, por exemplo, MANUEL GUEDES FERREIRA RAMOS, que dá o nome à praça do Município em Gondomar (antigo Largo de Quintã), e ANTÓNIO FERREIRA RAMOS, emigrado para o Brasil, onde lançou com um Salgado Zenha, (decerto antepassado do que ficou na história da nossa democracia), uma sociedade próspera, a "Ramos e Zenha". Desse tio gostava muito a pequena Maria (mais tarde, Aguiar), e com ele manteve correspondência assídua e trocou retratos, que ocupam várias páginas num precioso álbum de capa de veludo arroxeado e folhas douradas. Este tio António casou com Carolina Silveira Martins, irmã do Silveira Martins,que foi Governador do Rio Grande do Sul, e se notabilizou nos primeiros anos da República brasileira. A sua incontável descendência, está hoje espalhada pelo sul do Brasil, desde Bagé, onde se radicou, a São Paulo, e aos confins do Uruguai.
Dos inúmeros primos que, separados por mais de 15.000 milhas de mar e terra, totalmente se desconhecem, só dois se encontrariam, uma tarde, em fins do século XX, no hemiciclo de Brasília: Maria Manuela Aguiar, então Vice-Presidente da Assembleia da República Portuguesa, e Sá Azambuja, Senador da República Federativa do Brasil, ambos descendentes diretos, e no mesmo grau, de Anna e Joaquim Ferreira Ramos, dos quais nenhum deles guardava os apelidos
Um outro ANTÓNIO FERREIRA RAMOS, sobrinho do que emigrou para O Rio Grande, era filho de Manuel Guedes, e também muito próximo da prima direita Maria. A vida levou-o para longe, embora um longe menos longínquo, (Lisboa), depois do casamento com uma filha de Ramalho Ortigão, Berta, de quem descendem todos os Ortigão Ramos. Entre vários outros negócios e investimentos, foi proprietário do teatro que é hoje o São Luís e, tal como o pai, um benfeitor da sua terra. Camilo de Oliveira, na monografia de Gondomar, salienta que instituiu bolsas de estudos, em igual quantidade e montante para rapazes e raparigas. A instrução feminina foi uma das causas republicanas, defendida pelo movimento feminista, e, também por muitos homens, companheiros de crenças revolucionárias, como este gondomarense, genro de Ramalho.
Manuel Guedes, conhecido pelo republicanismo militante, não viveu para ver o fim do regime monárquico, mas o seu ativismo não fora esquecido e, nos alvores do novo regime, foi dado o seu nome ao Largo de Quintã, onde tivera, antes de se fixar no Porto, uma loja comercial, no casarão de azulejos, que ainda hoje existe, em frente à Câmara Municipal.
É o que, infelizmente, se não pode dizer da Vila Maria, que foi demolida, (e da qual apenas se conservam apenas, graças ao cuidado ao bisneto de Maria e António, Carlos Manuel Aguiar, os azulejos com a grande águia castanha segurando um “R” no bico) ou da Quinta da Boavista, (da qual resta um pequeno lago de pedra, transplantado para junto da capela do Monte Crasto - a crer numa história contada por um frequentador do café do Crasto, simpático velhinho anónimo, que se gabava de ter visitado, muitas vezes, a propriedade).
JOAQUIM e CAROLNA NA PRIMEIRA PESSOA DO SINGULAR
Só pelas cartas que escreveram às filhas, os podemos conhecer mais de perto. Infelizmente, são poucas as que chegaram até hoje, e todas da última fase das suas vidas, enviadas a Maria para o Brasil, entre os anos de 1914 e 1918, e a Rosaura, durante ausências curtas nas termas ou na praia.
Se as da bisavó Carolina quase se limitam ao relato de problemas de saúde, mostrando-a certamente muito diferente do que fora em jovem, cheia de preocupações com a saúde, que a idade ia avolumando, as do marido, pelo contrário, revelam um espírito atento ao mundo, a acontecimentos que marcavam os destinos de milhões, como o progresso da 1ª Grande Guerra, ou a gripe espanhola, tanto quanto ao pequeno mundo de São Cosme, onde se sucediam casamentos, mortes, temporais, festas religiosas, espectáculos culturais, e onde frutos amadureciam e flores desabrochavam no seu jardim.
Retrata-se a si mesmo nestes relatos de época, escritos ao correr da pena, em linguagem muito sóbria, mas, aqui e ali, colorida por uma expressão engraçada, um populismo, a dizer que o sentido de humor que se atribui ao ADN dos Ferreira Ramos, também não está ausente no legado genético dos Barboza…Pequenas achegas, em que o podemos imaginar a sorrir brandamente, por exemplo, quando descreve a mãe a ralhar com o filho padre, por passar tempo demais no confessionário, sujeito ao frio sepulcral das alas laterais da igreja matriz, ele que, mal curado de uma tuberculose, era sempre um doente de risco.
No ano de 1914
Na primeira dessas cartas, de 11 de Julho de 1914, enviada para o paquete Araguaya, nas vésperas da chegada de filha, genro e neta Carolina a Portugal, começa, como era previsível, assim: “Que, com a Lininha, tenhais tido boa viagem são os nossos votos a Deus e a Nossa Senhora”, para logo os prevenir que não poderá estar presente no cais de chegada: “Não deveis contar connosco em Lisboa, nem mesmo em Leixões, porque os 75 tiram todas as vontades de fazer as viagens, ainda que curtas – além do risco de um trambolhão que atire a gente para a outra banda, pois o caruncho é bastante. Com o que podeis contar ao certo é encontrar-nos na nossa choupana de braços abertos para vos receber e à pequenina”
A “choupana” era, de facto, uma casa grande, de dois andares e traça tradicional, e jardim com frente de mais de cinquenta metros para a rua principal (onde não faltava o mirante rasgado no muro, e um terreno extenso para sul e nascente, que terá sido, possivelmente, comprada com dinheiros de herança de um dos cônjuges, ou dos dois, porque, mesmo a preços do último quartel do século XIX, parece propriedade demasiado dispendiosa para os réditos de um funcionário público com numerosa prole.
Seguem-se as notícias:
”É hoje a festividade de São Bento, que este ano reveste uma pompa superior à de anos anteriores. (…).
“O Américo está esta semana em Tuy, onde foi assistir a exercícios religiosos, visto não os haver no Porto”. Mas, acrescenta, o tio padre viria, dentro de dias, visitá-los e ver a menina.
No Clube, havia espectáculo em benefício dos Bombeiros, que já não chegariam a tempo de ver, e em que ele, apesar dos seus 75 anos, pelo visto, marcaria presença
Em casa, não perdia, também, qualquer oportunidade para organizar uma festa, Num recorte de jornal, não identificado nem datado, tomámos conhecimento da “celebração do aniversário natalício da Senhora D. Carolina Ramos Barboza, esposa do estimado e benquisto notário local, Sr. Joaquim Mendes Barboza, Por esse motivo, vieram a esta vila seu filho, Dr. José Barbosa Ramos, novel advogado e proprietário do semanário “O Progresso de Gondomar, e o Sr. Deolindo Oliveira, colaborador do mesmo periódico”
No ano de 1916 (22 de Janeiro)
Os primeiros parágrafos abordam, como era habitual, questões de saúde. Nesse mês de inverno, do seu lado do oceano, problemas tinha “a Rosaurinha, que conquanto de pé, anda afetada com alguma tosse, que lhe desapareceria com pontas de fogo” e, do outro, queria saber como passavam, no verão austral, “a Lininha, o Antoninho com o apartamento que há muito devias ter feito” (pertinente observação, porque o menino estava prestes a fazer um ano, idade avançada para mamar ainda no seio materno) e o Manelzinho com o trambolhão, que não será o último. Eles consomem-te a paciência, é verdade, mas também ajudam a passar os dias”.
No capítulo da vida social de S Cosme, não faltavam novidades: “Casaram-se o Coruja com a irmã da Margarida telegrafista,
No próximo domingo, representa-se no teatro do Club o drama Amor de Perdição, tirado do romance com o mesmo nome do grande Camilo Castelo Branco (sem surpresa descobrimos o seu pendor Camilianos, depois de conhecer o gosto por novelas de cavalaria).
Da malta de gatunos, que infestavam estes sítios, vários já estão presos. Os pequenos do Alfredo estão com bexigas. Se o Antoninho ainda não está vacinado, deve sê-lo. Morreu aí a Maria (apelido ilegível) e, no Rio Grande do Sul, tua tia D, Carolina Silveira, mãe do Eduardo Ramos, a quem escrevi dando os pêsames (trata-se da mulher do tio António Ferreira Ramos, certamente já falecido, de contrário, a ele, não ao filho Eduardo, teria escrito – notícia que aponta para o facto da filha Maria não manter já estreito contacto com esse ramo da família)
“Hoje foi dita missa pela nossa chorada Glorinha. Especialmente interessante é a que se referente à sua aposentação, aos 77 anos de idade : “Estou substituído, mas sempre no trabalho, porque o substituto, conquanto hábil com conhecimentos de direito, não tem prática, e sem ela não pode confiar em si, nem quanto aos; serviços mais rudimentares”
Significativa é, ainda, a exortação feita à jovem filha: “Faz por te distrair e levar a vida sem inquietação, recebendo bem qualquer contrariedade”.”
No ano de 1918 (São Cosme, 22 de Fevereiro)
No Rio e em Gondomar todos estavam bem e, por essa benção, dava Graças a Deus o catolicíssimo bisavô. Esperava, em breve, tê-los perto de si, depois de deixarem, de vez, o Brasil. O enfoque da carta é a procura de terrenos onde pudessem construir casa: “Como já te informei, a Regedora não vende a propriedade (…). E, como há dias o Alexandre informou o vosso mano Augusto, há o terreno do Paciência, que conheceis, e o do Fonte, que está entre o club o José Semana, e o da Rosa, filha do Manuel Marques e, ainda, a propriedade de Serafim Pacheco, contígua à quinta de D. Carolina Novais(…).
São Cosme, (23 de agosto)
Nestas primeiras décadas do século XX, a crença nas qualidades terapêuticas das termas estava no seu auge, e os bisavós rumavam anualmente a Vizela, acompanhados por alguns dos familiares, ritual que a filha Maria haveria de cumprir toda a , a Vizela ajuntando as caldas de Aregos ou do Gerês.
“Regressámos ontem de Vizela, onde estivemos 5 dias com a Rosaura, o marido, Alexandre e mulher e também a tua prima Amélia de Quintã, com a criada, e todos chegámos bem e assim continuamos (…).
“ O José ia este mês para o Funchal, mas ainda não está lá, por não haver conseguido lugar no vapor que para ali seguiu no mês passado. Ele foi, há dias, a Viana, donde ainda não chegou.
O Américo está tentado a ir passar 15 dias ao Bom Jesus em Braga. Ele no próximo S Miguel muda de casa para o Souto do Rosário, para poder estar mais perto da igreja.
Depois de várias referências à seca e aos seus efeitos na lavoura gondomarense, vem a única menção escrita, que se conhece, ao exílio para São Tomé, por razões políticas, do seu filho primogénito, António durante o mandato de Sidónio. Ficam, assim, confirmados relatos orais, mais vagos
“O António está em África onde, quando chegou lhe ofereceram três lugares, dos quais, todos bons, se colocará no que mais lhe agradar. Ele está bem, e não lhe falta a saúde, também o disse em carta para a esposa o Dr. Marcelino.
Foi a maldita política, que para ali o atirou, da qual os desgostos são sempre a pagar para os que têm a fragilidade de nela se meterem manifestamente.
Passaram no 1º ano do liceu os dois pequenos do Alberto, o Mário com boa classificação, o Américo, que é doente e cábula, com baixa classificação. O Alberto pede para eles virem com a Maria Izabel passar cá uns dias.
(nas fotos de família em S Cosme, a neta Izabel, Mimi, é presença frequente, ao contrário do que acontece com os rapazes, o bom aluno, Mário, que viria a formar-se em medicina e o mau aluno, Américo, que, por certo, se chamava assim em homenagem ao tio Padre.
Termina com a notícia da morte do marido da prima Maria, filha da Tia Joaquina da Travagem
São Cosme, 15 de outubro
Tinham, nessa data, acabado de chegar duas cartas escritas pela filha Maria em agosto, um enorme atraso, que lhe causara grandes apreensões, receando que estivessem doentes.
(…) “Eu e a mãe, atrouxados, sim, mas vamos indo de pé. O José adoeceu com gripe na Póvoa do Varzim, em casa de um amigo, de onde veio para casa, achando-se actualmente, em franca convalescença. A Rosaurinha também recolheu à cama, com a sua doença de que ainda está convalescente. Oferece sempre gravidade, porque sofre da pleura e dos pulmões.
Acrescenta que a criada foi para o hospital, parecendo que é broncopneumonia gripal, de que tem morrido quase todos os atacados. O Alexandre também teve gripe simples, que felizmente foi muito benigna.
Sem lhe chamar assim, porque não era certamente a designação corrente, está a falar da epidemia mortífera da “gripe espanhola”, a que escapou a família, mesmo os Barbozas mais vulneráveis, por terem, anos antes, sobrevivido a tuberculose, Rosaura e Américo.
Nem por isso traça uma situação geral menos dramática:
“Poucas pessoas têm sido poupadas por estas doenças, e os casos fatais, principalmente de bronco pneumonia (se não se trata de alguma peste) tem sido tantos, que poucos dias tem decorrido sem seis ou oito óbitos na freguesia.
E o que se dá por aqui, está-se dando por todo o nosso continente, tendo estas doenças sido importadas da Espanha, onde ainda grassam.
A Mimi, receosa das doenças raspou-se para o Porto. Está com os pais e os irmãos, que passam regularmente.”
(Mais um indício de que a neta Mimi lhes era particularmente querida e com eles passava com grandes temporadas em São Cosme, como faria, depois de desaparecidos esses avós, em frequentes e prolongadas visitas à tia Maria Aguiar, que era poucos anos mais velha do que ela - mais pareciam irmãs)
O tema dos terrenos para a casa que viria a ser a “Vila Maria” é retomado:
“O Alexandre havia de procurar o vosso mano Augusto para o informar de que se vende um campo próprio para casa, tem frente para a estrada que conduz à igreja e está da parte de baixo da propriedade do Monteiro da música entre esta propriedade e o campo do Zé do
Paço, que tem um engenho de água”
A descrição dos terrenos para potencial aquisição, nesta e na missiva anterior, parece coincidir com a situação de boa parte das propriedades que vieram a ser efectivamente compradas pelo avô António Aguiar. Os mais ativos aliados, na procura de alternativas, foram o sogro e o cunhado Alexandre, e o irmão Augusto é referido como uma espécie de seu procurador, reforçando a ideia de que eram, além de muito amigos, parceiros de negócios.
Os netinhos, naturalmente, não são esquecidos e sobre eles recaem, por vezes opiniões muito categóricas: “Não metas a menina em barafundas, acho que só aos 9 ou 10 anos deve ocupar-se do piano. Quem tudo quer, tudo perde.
Adiante recomenda à filha que não se esqueça de dar o remédio contra as lombrigas aos meninos, “de quando em quando, para evitar os ataques, que oferecem tanto perigo, como já tens tido ocasião de ver”
Já se sabe em São Cosme que a Lininha há-de ter uma cruzinha com pedras e o Manelzinho uma bengala muito linda” (…)
(…) Há dias, colhemos na nossa figueira, uma cesta de deliciosos figos. Bem nos lembramos de vós, mas…
As festas do Rosário, que, por causa das doenças, chegaram a ser proibidas, e, depois, foram consentidas, estão pouco animadas, ainda assim mais do que seria de esperar
Sobre o filho mais novo, que, desde agosto, esperava rumar ao Funchal, a fim de tomar posse do seu lugar de magistrado dá conta do impasse:
“ O José ainda não foi para o Funchal, porque precisava de licença do Ministro para embarcar e este não lha concedeu, com a fundamentação de que estava próximo de receber a instrução preparatória de oficiais milicianos, mas é quase certo que a guerra está no fim, ou pelo pedido de paz, por parte dos alemães, ou pela derrota destes já começada, e, por isso, é de supor que fique sem efeito a lei que a tal obriga, Deus o queira,
O Américo está na sua nova casa, defronte do Vicente, e do largo do souto do rosário, e, conquanto doentinho, celebra sempre a sua missa, menos num dia ou outro em que o tempo está muito mau, ou em que se sente constipado”
No final de uma das suas mais longas cartas, pergunta se já foi recebido “o grupo de retratos que te enviei, tirado no nosso quintal. Deve ter chegado há muito tempo”, (chegar, chegaram, porque algumas ainda se herdaram do espólio da avó Maria, mas entre o dever e o acontecer por vezes mediavam semanas, como anterior correspondência evidenciava...)..
O “post.scripum” e uma discreta forma de dizer à filha que pode retomar as travessias oceânicas e as visitas a São Cosme, interrompidas pela guerra: “Lembro-te que deve estar afugentado o perigo dos submarinos dos scelerados alemães”
Muito menos numerosa e muito mais sintética é a produção epistolar da Mãe, que devia repousar, largamente, no gosto do marido em escrever
Querida filha
Recebemos a tua carta pela qual vejo que ainda continuas constipada e fraca, tens, pois, filha de ter cuidado, porque dos enfraquecimentos vem todas as doenças, e quando se não tem o cuidado preciso a tempo, quando se quer reagir, já não se pode.
Não te aflijas por causa nenhuma e deves sahir de vez em quando, pois teu marido não te podendo acompanhar vae com a tua filhinha e criada.
Ansiosa espero a vossa vinda, um dia melhor, outro pior, e assim hei-de passar o resto da vida.
O Pae agora passa melhor e a Rosaura tem andado um pouco constipada.
Recorda-me muito ao Aguiar e dá muitos beijos na nossa querida menina (…)
Adeus filha, envia-te mil beijos cheios das mais vivas saudades, a tua mãe
Carolina
Embora a carta não esteja datada, podemos situa-la entre 1913 e 1914, porque apenas refere a neta primogénita, sinal de que ainda não existiam os outros, e fala de uma próxima chegada da filha a Gondomar. Os avós viajaram na segunda metade deste último ano, para que filho, esperado para breve, que seria o Manuel Joaquim, nascesse em São Cosme
OS MENDES BARBOZA RAMOS
Nenhum dos filhos de Carolina e Joaquim se aventurou no mundo empresarial, onde tinham feito fortuna avós e parentes maternos. Os três mais velhos, António, Alberto e Alexandre enveredaram, como seu pai, por carreiras do funcionalismo público, e o mais novo, José Barbosa Ramos, após ter sido advogado e deputado pelo Porto, acabaria por ingressar na magistratura judicial. Américo, em vez de servir o Estado, Américo dedicou-se ao serviço de Deus, e foi um padre muito querido dos paroquianos, pela sua extrema bondade e abnegação. Temperamentalmente, o mais próximo do pai, que teria, com certeza sido tão devotado e generoso à frente de uma paróquia, como foi no seu cartório e dentro de sua casa. A mesma vocação, exercida num outro domínio...
ALEXANDRE MENDES BARBOSA
A monografia do Concelho de Gondomar, dá nota de que foi Secretário da Administração local e, mais tarde, tal como fora seu pai, Administrador do Concelho. Sempre envolvido na vida cultural de São Cosme, esteve entre os fundadores do Clube Gondomarense e pertenceu aos seus executivos, assim como aos de várias outras irmandades locais. Era um jovem alto, bonito e elegante, apreciador de teatro, assíduo frequentador do Sá da Bandeira e das tertúlias da "Brasileira". E, ocasionalmente, poeta. Dos seus versos, resta uma quadra, preservada pela sobrinha Maria Antónia:
"Morre um afeto, outro nasce
Passa um desejo, outro vem
Depois de um sonho, outro sonho
De tantos que a vida tem"
Afetos femininos não lhe terão faltado na juventude. Era, como as fotos de juventude evidenciam, muito bem-parecido. Casou-se com HERMÍNIA, jovem de boas famílias nortenhas, educada num colégio de freiras, onde o pai, tendo enviuvado quando ela era ainda pequena, entendeu que seria bem cuidada e bem formada. Aí parece ter sido feliz , tornando-se uma jovem serena e autoconfiante, e, ao longo do casamento com Alexandre, uma sensata e competente dona de casa, que não mostrava, sob a capa da placidez e da conformidade aos padrões de comportamento de uma pequena vila, o seu potencial de cultura e inteligência. Não interveio nunca ativamente na sociedade, mas soube aceitar, talvez mesmo encorajar, a constante intervenção cívica e cultural.do marido. Um só grande desgosto na vida a dois, a morte da sua única filha, recém-nascida. Ambos gostavam de crianças e dedicaram-se aos sobrinhos, os de Hermínia e os dele, filhos da irmã/cunhada Maria, que tão cedo enviuvara. A mais nova, Maria Madalena, foi criada mais com eles do que com a própria mãe. Moravam em frente à Vila Maria, bastava-lhes atravessar a rua, para irem, diariamente, buscar a menina, que a mãe nunca deixava pernoitar fora da Vila Maria. O ambiente de concórdia e tranquilidade do seu lar, de tal modo moldou o espírito e o comportamento dessa menina, que nem se diria ser parte do grupo dos buliçosos manos Barbosa Aguiar. Era doce e sossegada, embora soubesse mostrar-se, em criança como pela vida fora, inesperadamente firme e determinada, em qualquer questão realmente importante. Adorava animais, em geral, e gatinhos, em particular, tal como os tios de quem era inseparável. Assim se fez muito mais uma “segunda Hermínia”, do que uma segunda Maria Aguiar, com o seu perfil de liderança e filantropia, que, aliás, não teve também seguidoras nas filhas de génio mais temperamental ou turbulento. Nem verdadeiramente nos filhos.
O Tio Alexandre era o padrinho de Manuel Joaquim, o primogénito dos rapazes, dado que, só por si, claramente indicia a estima de que gozava por parte da irmã e do cunhado António. O bonito, espirituoso miúdo era um aluno brilhante e o padrinho fez questão de assumir o encargo com os estudos, que o levaram dos colégios e liceus do Porto à Faculdade de Medicina de Coimbra. Mas, em boa verdade, apoiava, com a mesma atenção e afeto os sete sobrinhos órfãos. Visitava-os todas as semanas nos colégios do Porto, levava-os a passeios e a compras na cidade, dava-lhes mesadas generosas. Todos o consideravam um segundo pai, generoso e compreensivo, quebrando a severidade das exigências maternas
Uma prova da facilidade com que se entendia com os jovens, os da família e os outros, foi o terem-lhe pedido, e ele ter acedido, a ser o encenador de uma peça de teatro, escrita e representada por jovens estudantes gondomarenses em Setembro de 1933 que ficou nos anais da Vila. Uma revista à portuguesa, alegre e mordaz, de crítica hilariante de costumes e acontecimentos locais, com o sugestivo título “O Nabo”. Nunca se tinha visto, nem voltou a ver-se nada de semelhante.
Gondomar, terra de ourivesaria artística e de fértil agricultura tem, como “ex-libris” naturais, quer o coração ou a caravela de filigrana, quer o nabo, de incomparável qualidade.
O nabo era mais apelativo à paródia do que a gloriosa caravela e nele recaiu a escolha da comunidades académica, designadamente dos quatro autores principais, entre os quais se destacava o Manuel Aguiar
O papel do tio Alexandre nesse retumbante êxito teatral era desconhecido, até ao momento em que foi encontrado numa mala, no meio de cartas e postais antigos, um exemplar do jornal comemorativo do 25º aniversário dessa récita sensacional.
O verão de 33 foi inteiramente dedicado aquele projecto colectivo, coisa de rapazes no seu fim de curso liceal ou começo de faculdade, com a exceção de três colaboradores da geração mais velha, o Maestro Moura, que musicou os poemas e dirigiu a orquestra, Alexandre Mendes Barbosa, que foi o paciente e bem-disposto ensaiador, e o Abade Crispim, que , com a sua autoridade, deu o aval ao ousado cometimento da juventude académica. Curioso o convívio entre o laicíssimo Alexandre e o Padre Crispim, aliás, grande amigo de sua mana Maria. Em vão, diga-se, tentava ele moderar os ímpetos de excessiva generosidade com que ela enchia as caixas de peditórios da igreja. Não fora acostumada, durante o casamento, a preocupações de economizar em coisa alguma, e muito menos nas dádivas para iniciativas da paróquia.
Há um curioso bilhete escrito por Alexandre a essa irmã, em que se revela, como é sabido que era, o seu conselheiro para a gestão de património. Nesse dia ele procurara a irmã ao longo do sia, fora três vezes à Vila Maria sem a encontrar, até que desistiu e lhe deixou aquela nota.
Ela precisava demais dinheiro, não é dito para o quê, e queria desfazer-se de algumas acções (sua principal fonte de rendimentos), o que ele achava contra indicado, recomendando preferentemente a venda de jóias, que não davam dividendos. O que tais diligências indirectamente revelam é como era ocupada a agenda quotidiana de voluntariado, a que a irmã se votava…
(CARTA)
Educado como católico, pelos pais, o Tio Alexandre foi ateu, ou agnóstico, na maturidade, mas sentiu o apelo da fé na hora da morte, (provocada por cancro nos pulmões). Quis que lhe chamassem um padre para se confessar e receber a extrema-unção. Ao abade Crispim sucedera, o Abade Andrade, irmão do Bispo do Porto, Dom Florentino, igualmente amigo da benemerente D. Maria Aguiar. Chamado por ela, chegou, de imediato. Ouviu, longamente, o moribundo e escutou as suas últimas palavras. Voltou do quarto muito comovido e disse à família, reunida na sala de visitas: "Acaba de morrer um santo". Os amigos republicanos e laicos, (laicos como ele fora até aos momentos derradeiros), e anticlericais, diriam o mesmo, de outra forma. Talvez: "morreu um justo".
Os sobrinhos Barbosa Aguiar choravam a partida de um insubstituível amigo e protector.
A tia Hermínia sobreviveu por alguns anos, mantendo a convivência preferencial com a Leninha. Foi de sua casa que esta sobrinha dileta, logo que atingiu a maioridade legal (então 21 anos), saiu para casar, contra a vontade da mãe, com o namorado David D’ Almeida Ribeiro. Um muito longo e feliz casamento provou que quem estava certa era a perspicaz tia Hermínia.
CARTAS DE HERMÍNIA PARA A CUNHADA MARIA
Do tio Alexandre não se encontraram as cartas, que terão sido frequentemente enviadas à irmã Maria no Rio de Janeiro. Já da tia Hermínia sobrevivem duas longas e interessantes missivas enviadas à cunhada, em 1912 e em 1914.
ANTÓNIO MENDES BARBOSA
O primogénito dos oito filhos de Carolina Ferreira Ramos foi de todos o que mais se envolveu na política, e o que pagou o preço mais alto pelo seu radicalismo, Terá sido, desde a mocidade o mais rebelde? Não há informação alguma sobre esse período. As irmãs contavam histórias só da fase das prisões e do degredo por razões políticas. Era republicano, como o eram a maioria dos irmãos e dos tios Ferreira Ramos. Mas António era mais do que isso: anarquista, revolucionário, talvez, embora isso nunca tenha sido dito, membro da Carbonária. Preso no Aljube esteve várias vezes e o pior aconteceu-lhe, durante o consulado de Sidónio, em 1918, com a condenação e exílio para São Tomé
São Tomé foi não só uma pausa forçada nas escaramuças partidárias, como a oportunidade de conhecer paisagens, gente e costumes, e de ter rapidamente acedido a empregos bem remunerado.
Desse tempo só há uma notícia e bem reveladora do seu impagável sentido de humor. Já então tinha perdido os dentes e usava uma dentadura postiça, que era coisa completamente desconhecida entre os nativos da colónia. Pois bem, descobriu que os podia espantar “arrancando” a prótese e exibindo-a na mão. Assim se tornou um personagem deveras temido e reverenciado…
Desaparecido Sidónio, pode regressar, e trouxe consigo com um bom pecúlio. Tê-lo-á investido num "café -concerto", onde, não surpreendentemente, não o ajudaram a sorte e a boa gestão.
Voltou a um emprego, já não na administração pública, para o qual o activismo político o tornava indesejável, durante a ditadura do Estado Novo, a que não sobreviveria.
Por esta altura já estava viúvo. Da mulher, que seria mais ou menos da sua idade e terá falecida muito cedo, ninguém nunca falou, ao contrário das muitas referências feitas a consecutivas companheiras espanholas, manifestamente mal aceites pelas irmãs. Viúvo e frequentador do meio boémio, ele sentia-se livre para procurar, no corpo de bailado dos teatros e casinos, as suas espanholas, a última das quais foi a Teresita, Uma ligação duradoura, e, por isso, tolerada, a custo, pela cunhada Maria, menos flexível do que Jesus Cristo na indulgência para com as pecadoras. Ou das “sobrinhas” por afinidade, não pelas mesmas razões, porque a Teresita era metediça e sempre pronta a denunciar qualquer “pecadilho” por elas cometido. Coisas do género de: “Vi a Lolita – ou a Mariazinha – à conversa com um rapaz”… Delações que desencadeavam, de imediato, reprimendas e castigos.
Era usual, António refugiar-se em casa da irmã, senhora insuspeita, para escapar a perseguição política e a mais uma estada no “Aljube”, levando consigo, para a Vila Maria, a Teresita e um cãozinho (tinha sempre um cãozinho e punha-lhes nomes ambíguas, que permitiam segundos sentidos – incorrigível em velho, como fora em novo. As sobrinhas, dele gostavam imensamente, assim como do cão, mas tinham de suportar a vigilância e as denúncias da intrometida Teresita.
Consequente até ao fim, António deixou a exigência de enterro civil, para desgosto das irmãs, que se fecharam em casa. O velório decorreu à sombra não do crucifixo mas de um busto da República e ninguém quis, ou conseguiu, afastar do caixão o seu último e fidelíssimo cão.
Um enterro laico era, para os católicos daquela geração, uma morte eterna pior do que a morte terrena. Ainda não viam Deus como suficientemente justo para receber nos céus um bom ateu, como hoje crescentemente se acredita, tanto ou mais do que num Deus mesquinho e sectário.
Teresita viu-se abandonada e teve um triste fim – velha e demente.
ALBERTO MENDES BARBOSA
De Alberto não há histórias que nos permita traçar-lhe um perfil humano. Só há fotografias e factos que não ajudam à sua individualização. Tal como o irmão Alexandre, foi secretário da Administração da Câmara, no seu caso, Gaia ou o Porto, cidade onde passou a morar.
Era certamente próximo de António e Alexandre, e é de supor que se encontrariam frequentemente nas tertúlias da “Brasileira" e nos teatros da cidade.
Como os irmãos, exceptuado o Padre Américo, escolheu uma carreira no funcionalismo público e era um republicano militante, e terá, ele também, estado enclausurado no Aljube, ainda rapaz solteiro. O casamento com a jovem Maria do Rosário, Zarita, não o desviou das convicções ideológicas, mas abrandou os rasgos revolucionários. Tornou-se um sereno pai de família – pai de três filhos, Américo, descrito numa carta do avô Joaquim com doente e muito cábula, Mário Barbosa, o bom aluno, que se formaria em Medicina e uma filha, invulgarmente bonita e inteligente, Maria Isabel (Mimi), que viria a dar-lhe por genro o pintor Mário Ferreira. Mais do que os pais e os irmãos, Mimi era uma assídua visita da Vila Maria, íntima amiga das Tias Rosaura e Maria Era apenas poucos anos mais nova do que a tia Maria. Como ela ficou viúva, ainda jovem. A sua única filha, Maria Laura, aparece em muitas fotografias com a Mariazinha e a Lolita, que eram, quase da mesma idade.
Veio a casar, alguns anos mais tarde do que elas, com Luís Aragão, um homem cheio de “charme”. Tinha, ao que se dizia, de ascendência francesa, loiro e de olhos azuis, elegante e distinto. A seu lado, Maria Laura marcava o contraste, morena, viva, de aspeto e temperamento bem latinos. Sempre tão chique quanto extravagante, não hesitava em passear pelas ruas do Porto o seu casaco de leopardo, (ao tempo ainda não assumido como espécie protegida…). Luís Aragão era despachante da Alfândega do Porto, quando esse cargo estava no seu mais alto patamar.
Ficaram famosas as receções na sua casa no Porto, onde as primas Aguiares nunca faltavam. O casal tinha dois filhos, Anabela (Bebinha e Luís). Também nesta terceira geração, havia uma diferença de idade, as primas de Gondomar eram mais velhas, mas não o suficiente para prejudicar o convívio de igual para igual. Todas as meninas gostavam da dança que fazia furor, o rock and rol, que animava as tais memoráveis festas.
JOSÉ BARBOSA RAMOS
O último dos rapazes, nascido quando a mãe estava já na casa dos quarenta. Depois dele só uma menina, Maria da Conceição, veio aumentar a família.
Aluno excecional, José seria o único a estudar em Coimbra, onde se formou em Direito. Foi contemporâneo, se não mesmo colega de curso de António de Oliveira Salazar, com quem não partilhava ideologias, mas com quem parece ter convivido de perto. Os bons alunos tendem a constituir um círculo pequeno e essa pertença terá constituído a maior das sintonias.
José não enveredou pela carreira académica, voltou ao norte, exerceu a advocacia, envolveu.se na política, como deputado eleito pelo círculo do Porto. Ativista incansável, foi proprietário e diretor de um jornal de combate, “O Progresso de Gondomar", antes de ingressar na magistratura.
Um outro colega de Coimbra, Dá Mesquita acabaria por marcar mais duradouramente o seu destino, não na profissão, embora ambos viessem a ser juízes conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça, ou na política, pois se supõe ter sido este amigo mais conservador, mas na vida pessoal. Através dele conheceu uma irmã por quem, em Coimbra se apaixonou e com quem casou, Maria Celestina Mesquita de Abreu, a muito estimável tia Celestina, de perfil não muito diverso do da Tia Hermínia, a cunhada minhota. As perfeitas donas de casa. Hermínia menina de colégio elitista, Celestina criada numa casa senhorial em Avô. T
José e Celestina tiveram dois filhos, José Joaquim (Zé Quim) e Maria Celestina (Tininha) Mesquita d' Abreu Barbosa.
O juiz José Barbosa Ramos cumpriu uma trajectória fulgurante, tornou-se o mais jovem juiz de sempre a ascender ao Supremo Tribunal de Justiça. Acabaria aposentado compulsivamente, quando ainda tinha muitos anos pela frente, por uma questão política, devido ao seu envolvimento em tentativas de derrube do regime.
Durante o seu percurso, a família acompanhou-o na deambulação por várias comarcas do país (Santo Tirso foi uma das primeiras), mas mantinham em São Cosme, a casa que fora dos pais Carolina e Joaquim, perto da Praça Manuel Guedes.. O Zé Quim e a Tininha foram bons companheiros de brincadeira dos primos Barbosa Aguiar, como comprovam muitas fotografias na Vila Maria, na Foz, em Vizela
Tininha foi uma pioneira, a primeira mulher da família a completar um curso universitário (Farmácia), que exerceu, por várias décadas, como proprietária e diretora de uma farmácia em Valongo.
José Joaquim licenciou-se em Histórico-Filosóficas e foi Bibliotecário da Universidade de Coimbra. Na geração anterior, o pai distinguira-se, como político, republicano progressista. José Joaquim transportaria o progressismo paterno para dentro das fronteiras do PCP, afastando-se, depois da revolução de 74 para a área adjacente do MDP/CDE, mais compatível, supõe-se com a sua irreverência de espírito.
Grande cultor de Letras e Artes, e coleccionador de estatuária religiosa, quem o visitasse, sem o conhecer bem, e olhasse trípticos e quadros dependurados nas paredes do seu andar da Rua dos Combatente, em Coimbra, julgá-lo-ia um muito devoto cristão e não, como realmente era, um ateu convicto.
Herdara o sentido de humor mordaz, que costuma conotar-se com os Barbozas, (embora venha, de facto, mais no ADN dos Ferreira Ramos. Jovem bonito, muito moreno, fisicamente mais Mesquita do que Barbosa, teve mil e uma namoradas, até casar com Maria da Luz Biscaia (Luzinha). Após divórcio de Luzinha, nos anos setenta, a sua companheira foi uma americana leitora de inglês na Faculdade de Letras, Janice, Teve cinco filhos, dois de Luzinha (José Severo e Madalena) três de Janice, que gostava de ser chamada Nina (Daniel, Paulo e André). O terceiro e o mais feliz dos casamentos foi o último, com uma colega bibliotecária,Maria Teresa.
Celestina foi casada com José Martins – um casamento sem descendência. Contudo José tinha filhos de uma outra ligação, que a Tininha, com uma pouco usual (e, por grande parte da família, não muito apreciada) complacência, acolheu como se fossem seus).
J - AMÉRICO MENDES BARBOZA
Dos cinco homens da família, Américo foi o único que sentiu, desde menino, tal como o pai da sua idade, o chamamento religioso. Foi, também, o único monárquico, que acompanhava, ideologicamente, os pais e as três irmãs, Rosaura, Glória e Maria. De Carolina, a mãe, se ignoram, em rigor, as convicções políticas, embora não custe admitir que fosse monárquica, como tendia a ser, nesse tempo, o género feminino.
Divididos nas escolhas políticas, mas afetivamente unidos, nunca deixaram que divergências de opinião interferissem na sempre boa relação entre todos. Prova disso é o facto de António, ter sempre encontrado refúgio na Vila Maria, onde a polícia do regime não se lembraria de o procurar, junto da irmã, dirigente local da "Obra das Mães" e de outras obras patrocinadas pelo regime. Às criadas, a avó Maria Aguiar dizia: "Daquele Senhor, que está lá em cima, não se fala a ninguém". E elas não falaram nunca.
Ao irmão padre talvez não tenha ele querido recorrer, por razões várias, entre as quais, a vontade de não o comprometer e o desconforto que lhe causaria um ambiente de intensa religiosidade.
Na verdade, o Padre Américo Barbosa não era aquele tipo de pároco sociável e folgazão, sempre pronto a aceitar a hospitalidade à volta de uma mesa farta, era exactamente o contrário, muito piedoso e austero, mais pronto à meditação e à oração do que a grandes festanças, mas adorado pelos paroquianos, porque era também, um guia espiritual, amigo e compreensivo, sempre pronto a prestar ajuda e a dar uma palavra solidária. Muito afectuoso, muito ligado à família, visitava os pais, com frequência, esperava, com ansiedade e alegria, as visitas da família, não faltava ao reencontro dos sobrinhos Maria e de António e dos meninos, quando chegavam do Brasil.
Era esse o retrato psicológico que dele esquiçavam as irmãs, confirmado em breves menções nas cartas de seu pai. Numa delas, refere a ausência do filho padre, para frequentar um curto retiro na Galiza, porque não havia igual no Porto ou no norte do país. Noutra, com alguma graça, conta que a mãe fora repreende-lo, porque passava tempo demais no desconfortável e gélido confessionário da Igreja.
Compreende-se porquê, atendendo ao estado de saúde desse filho, que era muito débil. Sofrera de tuberculose, no princípio do século, resistira a um primeiro contágio, que vitimou a irmã Glória, ambos cuidados, dedicadamente, por Rosaura, Depois, na década de 20, o reaparecimento da doença ser-lhe-ia fatal.
Na correspondência do pai muitas das referência visando Américo são a vulgares gripes, constipações, ataques de tosse, que nele faziam recear o pior.
Foi pároco em terras do Minho e nos arredores do Porto, Gondalães e Rio Tinto Morreu com aura de santidade, entre os paroquianos, que o invocavam nas suas preces e lhe faziam promessas.
Santo, na voz do povo. “Vox populi, vox Dei”! A referência a esse tributo popular passou de geração em geração, no círculo familiar. Uma sobrinha neta que se atreveu a conta-la num colégio de freiras foi chamada a capítulo e proibida de a repetir. A menina não podia obrigar as madres a irem a Gondalães ou Rio Tinto ouvir a voz de paroquianos, pelo que se calou, vencida pelo veto, mas não convencida, no seu íntimo, mais crente no sentir popular do que no preconceito das religiosas…
GLÓRIA BARBOSA RAMOS
Glória, das filhas de Carolina e Joaquim, a única que quis continuar estudos, no Porto. Os rapazes seguiram, um para o seminário, todos os outros para os colégios da cidade. Não era caminho aberto às raparigas, embora também não lhes fosse interdito. Depois do ciclo primário, podiam limitar-se a ter, em casa, aulas de piano de língua e cultura geral, sem grande rigor ou obrigação e a aprender as artes domésticas de cozinhar e bordar.
Glória escolheu continuar o ensino oficial e terminou, com facilidade, o curso do Magistério na Escola Normal, tornando-se a exceção. Contudo, não chegou a exercer o cargo de professora - a tuberculose levou-a aos 21 anos. Do Porto, terá trazido, além do diploma, doença incurável, a tuberculose. Preferiu ficar em casa, não ir para um sanatório de montanha, como quem vai para o exílio. Rosaura, a irmã mais velha, ofereceu-se para a tratar, dia e noite, como trataria, seguidamente, o irmão, o bem-amado Padre Américo Barbosa
Ao contrário de Rosaura, a mais recatada e tradicionalista das irmãs, Glória era uma rapariga moderna, de uma formosura exuberante. Não hesitava em passear, na modesta vila de São Cosme, os seus vestidos citadinos, levando com ela, lado a lado, igualmente alta e chique, Maria, e, atrás, consumida e vigilante, a mana mais baixinha e modesta, com nome de heroína de romance.
Paravam os moços de Gondomar, espantados para as ver pisar caminhos de terra batida como quem desliza em passadeira vermelha e atiravam às meninas os costumeiros galanteio e gracejos, a, que, às vezes, elas ripostavam (ou melhor, no singular, ripostava Glória, ria Maria, discretamente, e quase chorava a conservadora Rosaurinha, com o despropósito).
Seria a jovem professora uma adepta do movimento "feminista"? Não é hipótese que se possa provar, porque morreu antes desse movimento ter ganho visibilidade pública, o que só aconteceu depois de proclamada a República. O mais que se pode dizer é que tinha o perfil e a audácia exigíveis, e convivia, dentro de casa, com as ideias revolucionárias dos irmãos mais velhos. Vai permanecer dúvida. As manas não se lhe assemelhavam e, voluntária ou involuntariamente omitiram a questão que não as interessava especialmente. Apenas contaram que era determinada, inconformista e excelente amazona. E inspirava paixões. Um primo Lobão dedicava-lhe bonitos poemas, supõe-se que fosse correspondido. Um namoro em fase incipiente.
São muitas fotografias que dela nos dão uma imagem de autoconfiança e determinação, de alguém que sabe o que quer, e é capaz de aceitar desafios. Se não foi ideologicamente feminista, foi-a na sua prática quotidiana.
Apesar de tão cedo ter partido, aos vinte anos, é única mulher da família a figurar na monografia do concelho de Gondomar.,
Um quadro seu, de grandes dimensões, dominava a galeria dos retratos da Vila Maria. Entre os muitos gestos de voluntária cooperação da avó Maria na vida social da vila, conta-se, curiosamente, o repetido empréstimo desse retrato, para récitas e peças de teatro da Ala Nuno Álvares, como ornamentação de parede das salas de estar de palco. O mesmo acontecia com o piano
(incrível a cedência do pesadíssimo piano alemão, "Riese", que fazia o curto trajeto para o Souto em carro de bois, segundo os relatos de Maria Antónia, ela própria executante musical e atriz de várias das comédias, que divertiram a boa sociedade gondomarense.
O empréstimo do retrato era, possivelmente, visto por Maria Aguiar, como uma forma de a a fazer presente, de a lembrar, em toda a sua beleza e juventude.
ROSAURA BARBOSA RAMOS
Rosaura frequentou a escola primária oficial em São Cosme, como as irmãs, depois teve lições particulares. Desses tempos, guardou cadernos de exercício de caligrafia e, também letras e assinaturas bordados em lã e muito graciosas. Ao longo da vida, teve sempre essa virtuosa tendência para conservar coisas - tudo, objectos, cartas, fotografias, loiças e móveis. Talvez por sua influência a sobrinha Maria Antónia, desde cedo, revelou semelhante inclinação
A uma e outra se deve a preservação da boa parte do que resta de espólio de documentação sobre a família, assim como mobiliário e louças antigas.
Ambas eram, também, grandes contadoras de histórias, mais precisa e minuciosa a tia do que a sobrinha, que muitas vezes se deixava confundir com nomes e graus de parentesco e até misturava mais do que na realidade estavam entrelaçados, os ramos da família. A tia Rozaura, pelo contrário, comprazia-se no detalhe, nunca falhava um pormenor, dando colorido a todas as descrições, fosse dos disparates do Zezinho da Travagem (um primo com deficiências mentais e comportamentais divertidas), quer da sua peregrinação a Lourdes – onde não faltava a tragédia de uma peregrina que se debruçou da janela do comboio e ficou com a cara esfacelada (nunca mais nós, as crianças que escutamos esse episódio de estarrecer, ousámos pôr a nossa cabeça de fora dos limites fosse em que veículo fosse …).
Extraordinariamente dotada para delicados trabalhos manuais, rendas e bordados, era perspicaz e inteligente, mas muito discreta, despretensiosa no vestir, e poupada nos gastos consigo e com a casa, o que lhe permitiu resistir, depois de enviuvar, a uma vida de dificuldades económicas, mantendo sempre uma casa confortável, aberta e hospitaleira e uma criada fiel, porque era exímia em ganhar a sua estima (das que conheci, primeiro a Maria Póvoas, durante cerca de trinta anos, e depois a Olívia Pessegueiro, por mais de trinta).
Na senda do pai e do irmão Américo, viveu para os outros, como pessoa bondosíssima, sempre pronta a ajudar e a partilhar o que tinha de seu, a casa, os serviços da criada, bons conselhos e até dinheiro.
Foi a incansável enfermeira dos dois irmãos, não pode, por fim, evitar o contágio...Ela porém, não ficaria a ser tratada em casa - decisão sua certamente para poupar mais riscos no círculo próximo, no que foi apoiada pelos pais, talvez cada vez mais crentes na solução hospitalar
Partiu para o sanatório do Caramulo, onde ficou por muitos e muitos meses. Aí viveria uma grande paixão, com um médico que lhe retribuía os sentimentos, o Dr Manso, ou Amâncio, também ele já afectado pela tuberculose. A doença os reuniu e os acabaria por os separar, porque ela se curou e ele não, pelo menos, nessa fase. A tia Rosaura guardou numa caixinha, atadas com uma fita de seda, as cartas por ele escritas, deixando pedido de que fossem enterradas com ela. E assim seguiram com ela, para o seu jazigo em São Cosme, sem que ninguém ousasse abri-las e lê-las, muito embora fosse grande a tentação de as preservar, e a todas as histórias que continham
A Gondomar regressou, pois, saudável, tendo resistido a dietas espantosas, (que incluíam uma dúzia de ovos por dia) e fazendo muitas amigas, sobretudo do sul do país, meninas da alta burguesia, igualmente arrancadas à morte certa pela competência do Dr Manso (ou Amâncio). Com elas se correspondia e, por várias vezes, visitou as melhores amigas nas suas quintas dos arredores de Lisboa. Estava num solar de Benfica, em 1908, aquando do regicídio, e pode assistir, com a anfitriã, às exéquias do Rei D Carlos e do Príncipe Real Luís Filipe, muito loiro no caixão, com os vestígios impossíveis de disfarçar da bala que lhe atravessou a têmpora.
Se monárquica já era, mais intransigente se sentiu. Foi reduto em que não conseguiu influencia-la o médico beirão republicano, e amigo de Afonso Costa, que, um dia, lhe apresentara durante um passeio na serra, O político não teve receio de fazer companhia a um seleto grupo de doentes já no bom caminho da cura. Desses passeios frequentes há imagens muito bonitas, junto a quedas de águas, algumas encaixilhadas que, com a exposição à luz chegaram bastante sumidas ao presente. Em nenhuma delas se vê o famoso Afonso.
Certo é que a jovem de Gondomar teve no sanatório, numa verdadeira Suíça portuguesa, entre tempos de repouso forçado, uma intensa vida social, de que falava com entusiasmo.
Sobreviveu, rija e saudável, até ao ano em que completaria o seu centenário (1979).
Casou, anos mais tarde, já com mais de 30 anos, com o simpático viúvo, funcionário da Contrastaria, MANUEL MARQUES. O facto de ter sido o padrinho da Mariazinha é a melhor prova da estima em que tinham os cunhados
Do primeiro casamento tinha ele um filho já adulto, Armando, de quem todos gostavam, mas com quem conviviam pouco. Morava, talvez em Braga, de onde, tal como o pai, era natural. De Braga, ficou famosa nos Natais de Gondomar uma receita regional de "formigos" ou “mexidos", doce delicioso, à base de pão, mel, pinhões e passas, que ninguém fazia tão bem como a Tia Rozaura - artista incomparável, tanto na cozinha, como nas rendas e bordados, que saiam das sua mãos. Aos 95 anos, terminou uma enorme colcha em crochet, da mais alta complexidade técnica! - e mais teria empreendido, se as sobrinhas não a dissuadissem, receando pela sua saúde, porque exagerava no andamento do trabalho, com receio de morrer e deixar a obra inacabada...
Foi uma velhinha encantadora, com uns olhos vivos e perspicazes, gostava de falar por aforismos e provérbios, e até de usar um "calão" ligeiro, (que escandalizava a irmã e afilhada Maria, incapaz de dizer uma palavra imprópria). Eram radicalmente diferentes, Maria sempre pronta a sair, a passear, a conviver, a liderar iniciativas e a influenciar o seu círculo social, enquanto Rosaura de bom grado se quedava em casa, tricotando, conversando e lendo (sobretudo jornais, analisados de ponta a ponta), vendo televisão, sempre recatada e serena, embora pudesse fazer comentários certeiros e ácidos, a quem, perante ela, caía no ridículo ou a quem conseguia desmascarar jogadas de intriga ou oportunismo.
Numa pessoa tão prudente, hábil e sábia se estranha a decisão mais errada que tomou na vida e de que haveria de se arrepender: - um segundo casamento, já quase sexagenária, com um "brasileiro" de torna-viagem. MANUEL LIMA. Revelou-se homem de mau feitio, que a sua serenidade foi suportando, até que se viu viúva, de novo, e em pior situação financeira, depois da dispendiosa doença que levou o falecido. Com muito sentido prático, hábitos antigos de poupança e o apoio de uma criada dedicadíssima, Maria da Conceição Póvoas, atravessou aqueles tempos em que não existia segurança social, vendendo apenas uma pequena quinta, "a Passagem. A quinta, com a sua pequena casa rústica estava arrendada a um caseiro, mas havia uma parte de árvores de fruta que a Tia Rosaura mantinha para si, entre elas nespereiras que davam frutos ainda hoje lembrados como magníficos espécimes.
Conservou tudo o resto, as "relíquias de família" - móveis, loiças, relógios, jóias, bordados, linhos e "bibelots" - contando à Maria Antónia, que sendo afilhada do marido era como se fosse sua, e as suas filhas, minha irmã Madalena (Lecas) e eu, o historial de cada objecto.
Os meus pais passaram mais de sete anos na Vila Maria, numa parte do primeiro andar da casa (o segundo andar passou a ser ocupado, no fim dos anos quarenta, pela tia Lina e família, que pagavam à mãe uma pequena renda e fizeram obras, retirando à casa de banho um espaço onde construíram a cozinha, ficando, ainda assim, as duas divisões suficientemente amplas), mas uma querela entre a mãe e filha Mariazinha, levou esta a ser, juntamente com toda a família, hóspede da Tia Rosaura, que já estava viúva do segundo marido, e ficou encantada por ter consigo as sobrinhas preferidas.
Foram anos, sete ou oito, muito felizes. A Tia Rosaura e a criada Maria adoravam as meninas. A casa da Pedreira tinha um mirante, coberto de Glicínias, com vista para o imponente tanque de pedra retangular, lavandaria coletiva, onde, todos os dias, dezenas de mulheres esfregavam energicamente cestos e cestos de roupa, no meio de grande vozearia. Um espectáculo...
O terreno era bastante grande e plano, plantado de flores, videiras e árvores de fruta, pessegueiros, pereiras, laranjeiras e junto ao galinheiro e ao tanque um quadrado relvado, muito próprio para jogos de bola, que muitas vezes ia parar abaixo, ao quintal da Adriana, que a inclinação natural da colina, situava num plano cerca de dois metros abaixo. Recuperá-la implicava negociações difíceis, quando a bola causava estragos.
A casa de pedra de pedra com oito divisões amplas, tinha sido originariamente destinada a lavoura. O andar de baixo era de terra batida, e, para a Tia Rosaura, servia só de adega e arrecadação, onde guardava grandes quantidades de carvão e de lenha.
O gato da casa era preto e branco, chamava-se Lulu e não apreciava as brincadeiras das crianças, aliás muito amigas de animais. Levámos para lá a nossa cadela Chinita, (pequinois, de raça pura) que teve também um relacionamento distante, mas pacífico com o insondável Lulu. A tia adorava o gatarrão, a nossa cadelinha mansa e as suas galinhas poedeiras.
Esses foram, para a Lecas e para mim, os anos de internato no colégio do Sardão e, como, nas férias, passávamos temporadas em Avintes, o verão em Espinho e dividíamos as estadas em Gondomar entre a Pedreira e a Vila Maria (eu, sobretudo, ficava frequentemente com a Avó Maria), a permanência na Pedreira não era constante, mas foi sempre agradável. A tia estava, afectivamente, no mesmo plano da avó Maria e dos avós de Avintes.
Em 1958, muito influenciados pelos insistentes pedidos das filhas os meus pais arrendaram, um andar no Porto, na rua Latino Coelho, a dois passos do Colégio da Paz, um externato, onde as meninas deviam continuar como alunas das irmãs Doroteias (só a minha irmã para lá foi, eu escolhi, contra vontade da família, um Liceu, o Rainha Santa, a considerável distância, mas mais a meu gosto).
E a situação inverteu-se – foi a Tia Rosaura que passou a vir passar dias de visita ao Porto, e, por fim, porque a idade já era avançada, ficou a morar connosco, ela e a sua criada Olívia. E, quando nos mudámos para Espinho, para um andar bem maior e mais confortável, com varandas para a rua 16 e vista para o mar, ela acompanhou-nos.
Consigo trouxe recordações, pertences do maior valor afectivo, e o seu dom de criar bom ambiente e de nos falar de outros tempos. Era difícil arranca-la de dentro de casa. Andou sempre pelo seu pé, mas com crescente dificuldade. Lá dentro, porém, estava a par de tudo, lia os jornais, via televisão até ao fecho da emissão, telefonava à família, interessava-se pelo que acontecia à sua volta, mantinha os olhos muito vivos e a sua memória prodigiosa
Custou-lhe, com certeza, muito desfazer a casa da Pedreira, onde tudo tinha o seu lugar, tantas mobílias antigas, de seus pais, que exigiam espaço e pé direito, paredes altas, embora a maior parte tenha transitado para Espinho, para um andar então arrendado para férias. Manteve-a ainda por alguns anos, depois de residir no Porto, fazendo à Pedreira, de vez em quando, romagens de saudade. Em vão o senhorio, desejoso de dar destino mais rentável à propriedade, lhe moveu um processo de despejo. Perdeu a acção. A tia, como associada de uma união de inquilinos, teve direito a advogado e alegou, sem faltar à verdade, que estava ausente no Porto, junto de uma sobrinha, por razões de saúde.
Já antes, na década de cinquenta, tinha corrido o risco de perder a casa e, dessa época, há correspondência sua, que revela a sua aflição e o seu completo desânimo. A Câmara ameaçava obrigar à demolição de parte do edifício, para alargamento das vias de acesso, o que podia deixa-la sem teto, se as paredes antigas ruíssem como castelos de cartas. Em qualquer caso, já então o senhorio se mostrava indisponível para custear a reconstrução
Os móveis e mais bens poderiam ser facilmente recolhidos nas enormes caves da Vila Maria, mas não era solução que lhe conviesse. A dar bem a medida das diferenças entre a tia Rosaura e a avó Maria, na forma como se organizavam e cuidavam dos seus haveres, desabafa que tudo o que para lá fosse se desperdiçaria, pois a irmã nem as coisas dela conservava, deixava que tudo ao Deus dará - o que não era propriamente um exagero, pois a Avó até pequenos larápios recrutava par o seu serviço, na bela e cristã intenção de os regenerar, é claro, e, uma vez, até encarregou um deles de procurar um valioso brilhante, que se tinha desprendido de um anel, quando manuseara roupas, num dos quartos. Como era previsível, o brilhante nunca mais foi achado…
Num dos muitos pequenos bilhetes escrito nesse período agitado à sobrinha Mariazinha, também dá conta de muitos outros desaguisados com a mana (e afilhada), habituada a impor-lhe afazeres, a ela e à sua criada, que tratava como se fosse sua, sem nunca ter a noção dos sacrifícios que Rosaura suportava. E sempre fora assim. Prestável e disponível, em excesso, chegou ao ponto de lhe exigirem o impossível…
Mas teve a compensação de um fim de vida confortável e despreocupado junto da sobrinha que a tratou como sua mãe, e com isso se limitou a retribuir o que dela tinha recebido
GLÓRIA BARBOSA RAMOS (FALTA O INÍCIO)
Glória foi a única das filhas de Carolina e Joaquim, que se aventurou a viver fora de casa para, no Porto, onde concluiu, com facilidade, o curso do Magistério Primário. Dos rapazes se esperava que terminassem o liceu, frequentados bons colégios, (ou, no caso de um deles, Américo, o seu equivalente no seminário), seguindo, eventualmente, para a universidade, onde só o mais novo, José, se formaria, em Direito. Para as meninas, o ensino oficial era facultativo. Depois de terminada a primária, podiam ficar em casa, com aulas particulares de piano, de línguas, de cultura geral, sem grande rigor ou obrigação, e aprendiam, sim, o que se considerava primordial, as artes domésticas de cozinhar e bordar. Mas a impressão que se insinuava no tom das narrativas tanto da avó Maria como da sua irmã Rosaura, era a de um ambiente familiar bastante conservador nos valores, mas muito aberto no relacionamento entre as gerações, os pais confiantes nas escolhas individuais dos filhos. Não há o mais leve indício de que tenham contrariado noivados ou casamentos, influenciados opções profissionais, criado conflitos ou feito oposição à diversidade de posicionamentos políticos.
Glória pretendeu fazer estudos no Porto e foi encorajada e admirada por isso, mas não sentia grande queda para o ensino, segundo o testemunho de Rosaura, nunca quis procurar colocação, terá buscado, sobretudo, uma forma de aprendizagem de conhecimentos e de vivência em horizontes mais largos. Distinguia-se pelo seu espírito forte, independente, interventivo, era uma hábil cavaleira, gostava de cavalgar a égua do pai (que ele mantinha não tanto por desporto, mas para se deslocar em serviço, num concelho vasto, como é o de Gondomar).
A tragédia da sua morte abalou a família profundamente e foi muito sentida na vila. Para além de ser a bonita filha do prestigiado tabelião e de gente com tradições na terra, brilhava com luz própria. Chegou às páginas da imprensa gondomarense, guardadas cuidadosamente, embora sem datas precisas, nem indicação do título do jornal.
"Gondomar, 25 - Falleceu hontem, na primavera da vida, quando tudo lhe sorria, com a idade de 21 anos, a Srª D. Glória Mendes Barbosa, gentil e adorada filha do digno tabelião deste concelho Sr Joaquim Mendes Barbosa. Era uma menina simpática, prendada e de finas qualidades de educação. Aos seus pais, que a adoravam, e aos irmãos Alexandre Mendes Barbosa, secretário da administração deste
Concelho e Américo Barbosa, abbade de Gondalães e à restante família enlutada os nosso profundos sentimentos. O seu enterro realiza-se amanhã, à 9.00, na Paroquial igreja de Gondomar".
A mais destemida e a mais culta das raparigas, terá sido, realmente, especial - "adorada", como diz e repete o periodista. Mulher pensante e atuante, querida de todos. Fora o centro de um grupo alegre de jovens, de que os irmãos faziam parte. Um seleto círculo, ou, como diriam então, "a fina flor” da terra. Ao primo Lobão, que era o seu namorado, inspirou poemas lindos, que se perderam. O seu retrato estava num lugar destacado, nas paredes das casas de todos os irmãos. E, como pioneira que foi, tem o seu nome inscrito e destacado na monografia do concelho de Gondomar. De nenhuma outra mulher da família, no seu tempo ou no que a antecedeu, se pode dizer o mesmo.
MARIA DA CONCEIÇÃO
Maria, em criança, parecia a mais frágil das meninas, mas estava destinada a ter uma vida longa, um marido apaixonado e oito filhos num casamento muito feliz, durante os 16 anos que durou, e, depois, um notável percurso de intervenção cívica. Também ela fez jus a figurar nos anais da Vila.
A Senhora Dona Maria Aguiar era conhecida e reconhecida em todo o Gondomar, por si própria, pela sua incansável acção na paróquia e na comunidade – ainda que com o apelido do marido fielmente adotado e mantido. Coisa rara, pois as senhoras, eram identificadas, quase sempre, apenas, como "mulheres dos seus maridos". ou "mães dos seus filhos", até nas notícias de jornal, nas colunas sociais. Assim vemos referida, por exemplo a bisavó Carolina, a propósito de uma simples festa:
"Passou no último domingo o aniversário natalício da Srº D. Carolina Ramos Barbosa, esposa do estimado e bemquisto notário local, Sr Joaquim Mendes Barbosa. Por esse motivo vieram a esta vila seu filho, Sr Dr José Barbosa Ramos, novel advogado e ilustre director e proprietário do semanário local "O Progresso de Gondomar" e o Sr Deolindo Oliveira, collaborador do mesmo periódico".
A formatura desse filho José merecera, aliás, pouco antes, destaque semelhante.
"Estiveram domingo último nesta vila os nossos conterrâneos Camilo Martins de Oliveira, António Barbosa, Thomaz Pessoa e César de Moura, do Porto, que vieram assistir a um lauto jantar "offerecido, pelo novo bacharel dr José Barbosa Ramos, festejando a conclusão recente da sua formatura em direito.
Escusado será dizermos que o jantar decorreu no meio da mais franca e eloquente cordialidade e com immenso enthusiasmo. Ao jantar, além dos cavalheiros citados assistiu a família do novo bacharel, que partilhou a alegria da festa. Assistiu mais ao jantar o nosso patrício António Pereira de Aguiar, antigo companheiro da vida escolar do sr dr José ramos Barbosa".
A pequena notícia oferece-nos o colorido da celebração de um feito, então, relativamente raro, como era uma formatura coimbrã... De menor interesse etnográfico, mas muito mais interessante para a reconstituição do mosaico de relacionamentos familiares é o facto de salientar a presença de um ilustre "patrício" (forma, porventura, de designar, um expatriado no Brasil...) António Aguiar, que tinha sido companheiro de escola do novo jurista.
Um dado novo, que nos mostra como, já então, o jovem emigrante no Rio e futuro marido de Maria, era considerado figura grada da vila e nela mantinha, em visitas frequentes, uma rede de contactos com pessoas e instituições. Maria casaria com ele, já homem de posses e cultura acima da média, nas vésperas da revolução republicana e, antes e durante o período do casamento, também ela seria referenciada apenas como a sua mulher.
O mais curioso é que também ela falava de si quase só a partir da data em que conheceu o marido. Dos 20 anos anteriores dava, “em passant”, uma imagem de pintura impressionista, traçada a cores suaves, sem um enfoque em episódios particulares. Infância feliz, pais que se entenderam bem e se completavam, com a grande diferença de temperamentos, mas não de caráter, a imperial matriarca Carolina e o complacente Joaquim, tão sensato e afectivo e tão culto, ambos bons educadores, sem precisarem de se impor intransigentemente, sobretudo com a mais pequenina, Maria. Talvez a preferida fosse a estrela mais brilhante, Glória, a que não obstante ser Rosaura a sua madrinha, mais a influenciava, mas o ambiente em que cresceram não criou entre eles conflitos nem pequenas rivalidades.
Teria havido, sim, sintonias especiais, entre a avó Maria e sua mãe, entre Rosaura e seu pai. Feitios mais consonantes, apenas isso.
Desde cedo, a pequena Maria revelou tendência para a música e para a poesia, gosto certamente muito estimulado pelo pai, que era com certeza a orientava, como a todos os outros, nas leituras e os levava ao teatro e a concertos em Gondomar e, talvez, de longe a longe, ao Porto. Pela correspondência que, mais tarde, manteria com a filha, ausente no Brasil, se vê que não faltava a nada do que animava a vida social da terra e, se assim era em idade já avançada, assim teria sido evidentemente quando mais novo.
A mãe, que escrevia razoavelmente, mesmo com a sua letra de velhinha (num tom tendencialmente mais pessimista do que o do marido, mais voltada para mágoas e doenças) terá complementado o pendor intectual da educação paterna, no reino feminino das faculdades domésticas, fazendo de Rosaura e Maria, verdadeiras mestras de rendas, bordados e de segredos culinários, Por muito que ensinassem às criadas, ninguém sabia fazer compotas de chila ou de cerejas, ou o recheio do perú de Natal, como a avó Maria.
No verão passavam algum tempo na Foz, nas caldas de Vizela, nas terras onde paroquava o filho Américo,
Dos alegres convívios com parentes e amigos, falam, exuberantemente, pela força da imagem, algumas fotografias do início do século XX, e de pretendentes (para além do primo visconde), a carta de uma prima, em tom cúmplice e juvenil, referindo um apaixonado que queria muito revê-la, mas tarde demais, num tempo em que ela já estava voltada para mais distantes horizontes.
E é só a partir de 1908 que os seus postais para o bem-amado António Carlos no-la dão a conhecer, na sua faceta de jovem romântica, citando ou elaborando doutas sentenças sobre as virtudes do amor.
OUTRA VERSÃO
2024 - MARIA ANTÓNIA
BREVE HISTÓRIA DA FAMÍLIA A PARTIR DAS SUAS MEMÓRIAS
VINDA DO RIO DE JANEIRO NASCER EM GONDOMAR
Maria Antónia nasceu a 28 de agosto de 1920, poucas semanas depois de Amália Rodrigues, artista que tanto admirava e cujos fados cantava com a voz timbrada e poderosa, que conservou, intacta, quase até aos 100 anos. A música foi a sua grande paixão, que vinha, na sua escala de valores, logo depois do Amor (escrito com letra grande, como os nomes das pessoas). A história de vida, que planeava deixar-nos, dividida em capítulos - infância na Vila Maria, Colégio da Esperança, namorados e casamento, e depois - não passou da enunciação destas quatro partes num papelinho solto.Tinha por hábito anotar assim, em folhas avulsas, às vezes apenas pequenos pedaços rasgados, memórias, pensamentos, versos e variados dados. Poucas vezes, para si própria usou um caderninho, como fazia, cuidadosamente, para os irmãos, cuja poesia se conhece graças a esse desvelo antigo, dos tempos de menina. E, por isso, tendo perdido muitas anotações, nunca mais as histórias todas que iria detalhar, serão contadas com as cores da subjetividade. Restam aquelas que ficaram na memórias dos outros, e os videos em que, nas alegres tardes de sábado em Espinho, à volta da mesa redonda, com a irmã Lolita e os sobrinhos, recordava e encantava a plateia (ela que gostaria de ter sido atriz).
A sua vida começa, verdadeiramente, do outro lado do mar, no Brasil. Daí, nos primeiros meses desse ano, os pais regressavam, em definitivo, a São Cosme, no centro da vila de Gondomar, onde ambos tinham raízes mais do que seculares. António Carlos Aguiar após mais de 25 anos no estrangeiro, a mulher Maria mal completando uma década, pontuada por muitas visitas a Portugal. Nessa última travessia transoceânica, em 1920, estava ela grávida, nada de novo para ela. Assim veio do Rio a Gondomar por três vezes, para que os filhos aí nascessem, na sua casa paterna de Quintã, à vista do Monte Crasto. Era uma viajante nata, quaisquer que fossem as distâncias, os lugares ou meios de transporte, e nada lhe agradava mais do que a vida social a bordo de um vapor moderno e luxuoso, ao lado do marido, o homem mais afetuoso e gentil do mundo. Com eles, a lindíssima, alta e elegante Maria Aguiar, um português de assombrosos olhos verdes e bigode bem tratado, mais baixo, mas igualmente elegante viajavam cinco bonitas e irrequietas crianças (entre os oito anos e os 12 meses) e uma babá brasileira. O bebé de colo, Augusto de todos os bonitos irmãos o mais bonito, já não existia quando Maria Antónia chegou a este mundo, vítima de uma pneumonia fatal, que deixou os pais inconsoláveis e que as gerações seguintes não esqueceriam mais – para o que a beleza do menino morto, bem evidenciada nos retratos, terá contribuído. A menina que ia ocupar o lugar na linha familiar, e que, invisível, a mãe trazia consigo, nunca teria oportunidade de fazer o percurso de retorno, mas considerar-se tão brasileira como os três irmãos, Carolina José e Augusto dados à luz na radiosa cidade do Rio de Janeiro.
O pai manteria, nos anos seguintes, o vaivém solitário, a fechar os negócios no Brasil, que o tinham tornado um homem rico, com joalharia na Rua do Ouvidor. e projetos de integrar uma sociedade bancária, que a morte súbita aos 46 anos inviabilizou. A sua derradeira passagem do Rio para Lisboa foi realizada a bordo do Lipari, dos “Chargeurs Réunis”, em fevereiro de 1926 - exactamente trinta anos, após a sua saída de Gondomar, aos 16 anos.
Era um dos mais novos de uma enorme prole de quinze (ou, a acreditar na narrativa oral, de dezassete) irmãos e, sendo um jovem promissor e aventureiro, aceitou o desafio de um dos mais velhos, João, para ir trabalhar junto dele.
Manuel Pereira de Aguiar, o pai e patriarca, estava ligado à ourivesaria, arte e indústria dominante em Gondomar, e na sua empresa, cuja dimensão se ignora, se terão iniciado alguns dos filhos, caso de João, que no passaporte com que emigrou, indicava como profissão, “caixeiro”. Como proprietários de joalharias (não como artífices), fariam fortuna João e António Carlos no Rio de Janeiro, e Augusto no Porto, Rua das Flores Porto.
Do patriarca a memória da neta Maria Antónia era vaga – falava de um homem alto, bonito, de olhos azuis, feitio alegre e paixão pelo cultivo de rosas, que foi herdada pelos filhos Augusto e António e, provavelmente, por outros também. Esse avô teria de ser, pelo menos, mediamente abastado, para viver na grande casa da Gandra, que, na geração seguinte, seria de Augusto, um tio encantador, também ele possuidor de uns belos olhos azuis (a sobrinha achava essa a cor ideal para olhos enormes e expressivos e nunca deixava de mencionar essa caraterística). A avó Rosa Pereira de França, sobreviveu, por muitos anos, ao marido, mas faleceu em 1921, cedo demais para dela guardar memória (na verdade, nem dos avós maternos se recordava, por terem falecido o avô Joaquim, quando andava pelos 3 anos e a avó Carolina pouco tempo depois.
A Avó Rosa, nas sua fotos de viúva é um largo vulto, de aspeto severo, em vestidos pretos e pouco cuidados (bem arranjada só aparece, num retrato do casal...). Mas dela foi encontrada uma carta para o filho António, em que se revela mãe saudosíssima e muito veemente nos seu protestos de amor materno. Talvez ele fosse um dos seus filhos preferidos, e a sua ausência lhe pesasse, apesar de a visitar com uma regularidade quase anual, sempre em estadas de alguns meses.
Não se conhece o início do percurso brasileiro de João, só se sabe que, numa época áurea da economia brasileira prosperou rapidamente, É mais do que plausível a estimativa de que rapidamente se estabeleceu por conta própria, pois ninguém enriquece a trabalhar por conta de outrem. E, assim, lhe foi possível, poucos anos decorridos, mandar “carta de chamada” a dois dos irmãos, António Carlos, em 1896, e Alfredo, no início do século XX (se, como é muito provável, saiu do país com a mesma idade de António, de quem era quatro anos mais novo).
João, António (e também de Alfredo), rapazes bem-educados e de boa aparência (como o pai), e facilmente fizeram amigos na sociedade carioca e luso brasileira. João casou, em 1901 com a lindíssima Judith de Andrade da Cruz Ferreira, menina de boa sociedade carioca, que, a partir de 1910, seria a melhor amiga da cunhada Maria. Quem se une a mulher brasileira, como João, não volta mais.Tendo procurado noiva portuguesa, António para Gondomar voltou, já na casa dos quarenta, preparado para recomeçar, tranquilamente, um percurso de sucesso empresarial, em S Cosme e no Porto.
Embora descrevesse o Rio como um paraíso terreal e os anos aí passados como os mais felizes da sua vida, Maria Aguiar sentia a falta dos pais, velhinhos e saudosos, e do convívio no círculo largo de parentes e amigos de uma verdadeira comunidade de afetos, como era, então, a pequena vila de Gondomar. O exotismo tropical fora exaltante e desejado, tal como o tranquilo o dia a dia numa das mais belas cidades do mundo, em grandes andares no centro do Rio (no plural, pois pelos endereços da correspondência se constata que mudaram de morada com regularidades) e, nos últimos anos, numa esplêndida mansão, rodeada de jardins no privilegiado bairro de Santa Teresa. Mas chegara, no começo da década de 20, a hora do regresso..
Maria da Conceição Barbosa Ramos (Aguiar por casamento, apelido que sempre havia de privilegiar) era a mais nova dos nove filhos de Carolina Ferreira Ramos, que tinha então 45 anos, o pai, Joaquim Mendes Barbosa, quase 50. Carolina era descendente de muitas gerações de bons burgueses de Gondomar, Joaquim, o notário que viera de Paredes, oriundo de uma antiga família, os Barboza de Bitarães.
Aquela filha, "quase neta", recebeu a mesma educação das duas irmãs, Rosaura e Glória, as primeiras lições em Valbom, ficando alojadas em casa da professora, que era amiga da mãe, depois, em casa, Rosaura e Maria completaram os estudos, com aulas particulares, algumas, certamente, do próprio pai, que tinha começado a sua vida profissional como professor, antes de encetar a longa carreira jurídica. Glória foi a única que quis fazer, no Porto, o curso de magistério, convertendo-se em pioneira na vila, com direito a inscrever o nome na biografia do concelho de Gondomar, ao lado de Contudo, por outra via, a mais jovem havia de tornar-se, também, um nome feminino que se impôs a consideração universa das gentes de São Cosme. Mas isso, só muito mais tarde, na sua segunda vida, uma sofrida viuvez, solitária, mas passada no meio da multidão, em tarefas solidárias. l
Neste ano de 1920, ela é ainda a senhora casada sociável e cosmopolita, que se acomodara perfeitamente ao ritmo citadino da capital, deslumbrada com a beleza incomparável das paisagens, as baías com cercaduras de montanhas do Rio de Janeiro, os picos montanhosos ainda mais altos de Teresópolis. Bem integrada na família luso-brasileira, feliz com o extrovertido e carinhoso marido e com ele criando os filhos que chegavam, a um ritmo praticamente bienal. Das nostálgicas narrações que deixou à descendência, à sua aventura brasileira só apontava um “senão”: o incómodo causado pelo calor excessivo e húmido, que, no verão austral a levava a mudar-se para Teresópolis, com os meninos, em busca da frescura da serra. O marido por ela estava disposto a tudo, não hesitando em deambular incansavelmente pelas estradas sinuosas de montanha, em idas e voltas para o Rio, para estar com eles todo o tempo que lhe sobrava da direção dos negócios. Era, como indiciam todas as cartas, retratos, pequenos episódios e detalhes, recordações soltas guardados pela mulher e pelos filhos, um homem afectivo e devotado à família. Organizava, de facto e muito eficientemente a gestão dos seus negócios, por forma a poder ausentar-se por largos períodos, acompanhando a família nas férias em Portugal. Não obstante essa capacidade, algumas vezes teve de suportar longas semanas de separação, como aconteceu após o complicado parto do filho António Maria, em Fevereiro de 1915, que obrigou a jovem mãe a prolongar a estada em São Cosme. As cartas que existem desses períodos dão bem conta do seu estado de espírito, misto de saudade, solidão e preocupações...
No Brasil, na montanha, como na cidade, preferiu a solução de arrendamento, e, como se vê por uma das cartas escritas do Rio, ele próprio se encarregava de procurar espaços cada vez maiores e melhores para a família que crescia, Dessa vez, encontrara um andar esplêndido, superior a que todos os que anteriormente haviam ocupado, e, por renda surpreendentemente mais baixa, acrescentava. Deduz-se que a mulher, no regresso ao Brasil, se via, assim, instalada num novo ambiente, pronto a habitar, sem ter passado pelas agruras de qualquer mudança.
Através dos endereços de postais e cartas, se constata que, nos primeiros anos de casamento, foi muito frequente a deslocação de casa para casa. Depois, a partir de 1916, sentiram-se visivelmente satisfeitos em Santa Teresa, com vistas esplendorosas sobre a cidade e os montes e montanhas que a cercam, numa moldura de incomparável beleza. Daí só saíram para Portugal, no ano de 1920.
O Avò Aguiar investia na bolsa, não no imobiliário. Comprar propriedades era, então, para um português emigrado, regra geral, sinal que apontava à integração. Dos dois irmãos, só João mandou construir um belo palacete no Flamengo, na Rua de Payssandú. A fotografia da mansão foi por ele enviada à família, com dedicatória, exatamente como lhes oferecia os seus próprios retratos. Os filhos brasileiros continuaram no mundo dos negócios, alguns, segundo dizia Maria Antónia, enveredaram pela política e pela diplomacia. Depois do desaparecimento do pai, sem ligação visível às suas origens lusas. Na década de cinquenta, José Augusto, o quarto filho de António e Maria, voltou ao Rio, de onde era natural, e aí viveu, antes de reemigrar, com passaporte brasileiro, para Nova Iorque. Retomou, então, por poucos anos, relações de amizade com simpáticas e bonitas primas, hoje, já todas, provavelmente, desaparecidas
O casarão de António seria em Gondomar. Primeiro, entusiasmou-o a perspectiva de comprar um solar do século XVI, na quinta da Bouça Cova, quando esteve providencialmente à venda, mas a mulher manifestou reservas. Achava a quinta isolada e sombria. O seu sonho, talvez inspirado nas imponentes residências de Santa Teresa, apontava para conforto e modernidade Queria construir de raiz, pedra a pedra, uma edificação rodeada de jardins e arvoredo, no centro de São Cosme, perto de todos e de tudo. E foi feita a sua vontade, não obstante ser de difícil concretização. Lendo correspondência do pai, constata-se que já em 1918 ele procurava, juntamente com o filho Alexandre, terrenos disponíveis, mais ou menos na área em que veio a implantar-se, nos anos 20, a Vila Maria - no coração da vila de Gondomar, atravessado pela estrada principal, do Largo de Santo António (hoje Largo do Souto) para o de Quintã, de onde seguia para o Porto. Ao longo desse troço entre os dois Largos se situavam fileiras de moradias citadinas, e para elel convergiam caminhos estreitos, cruzando pinhais e campos arados, férteis e verdes a perder de vista, à volta do airoso e frondífero Monte Crasto. Aqui e ali, dispersas, as casas de lavoura de pedra e cal, com amplos pátios, modelos de uma arquitectura tradicional, sólida e harmoniosa.
Os campos não estavam, porém, no mercado. Pertenciam a lavradores abastados, com orgulho em proclamar que "não vendiam terras, compravam".
O notário Mendes Barboza e o filho Alexandre, secretário da Câmara eram homens muito respeitados e bem relacionados e bem informados e até para eles a tarefa de pesquisa de oportunidades se revelou árdua. Muito referenciadas foram umas propriedades da “regedora”, que se comprometeu, caso vendesse, a dar-lhes preferência, a troco da qual eles cobririam, naturalmente, qualquer proposta. A hipótese não se concretizou, ela conseguiu, contra ventos e marés, resolver de outro modo os seus problemas financeiros (sendo que uma das vias faladas para tal era um casamento rico de um dos filhos, que, esse sim, talvez se tenha materializado). Acabaram por ser proprietários relutantes e não necessitados, que cederam ao amigo António, a alto preço e por especial favor, o espaço onde se implantou a única grandiosa mansão de "brasileiro" que houve em São Cosme, situada face da estrada principal, a dois passos do Souto. A propriedade estendia-se, discreta, invisível da frente de rua, por centenas de metros quadrados, num desenho de longas linhas retas, como as recentes fronteiras de África, configurando uma quinta agrícola, que nunca recebeu esse nome. Ao gosto da época, chamou-se ao conjunto, simplesmente, "Vila Maria".
Perfeita, para criar uma família grande e em aumento cadenciado – em seis anos nasceram três meninas, Maria Antónia em 1920, Glória Doroteia, em 1922 e Maria Madalena em 1926, apenas 2 meses antes da morte do pai.
2 – GONDOMAR TERRA BENDITA
Maria Antónia, a Mariazinha, como era chamada, veio ao mundo e passou os primeiros tempos de vida na casa dos Avós, Joaquim, o forasteiro de Paredes, e Carolina, uma gondomarense de várias gerações, como ela própria teria sempre orgulho em se declarar. (uma brasileira de Gondomar).
As suas raízes profundas eram dali, daquele lugar, cuja beleza os seus antepassados tinham celebrado, em prosa e verso.
O tio materno, José Barbosa Ramos, era o autor da letra do hino de Gondomar, com música composta por José Moura (por sinal, o primeiro professor de piano das meninas Aguiares).
"Gondomar, terra bendita
Rincão formoso e fecundo
O nosso Crasto frondoso
Não tem, não, rival no mundo.
Filigranas delicadas,
Verdes prados cinge a serra.
Cantam fontes e avezinhas
Eis os dons
Da nossa terra.
Gondomar é o nosso berço
Beija-o a brisa fagueira
Cantemos por Gondomar,
É divisa da bandeira
Cantar, cantar,
A linda terra de Gondomar".
Na geração seguinte, seu irmão Manuel glosou o tema, num mais longo poema destinado à célebre revista musical “O Nabo”, que estreou em 24 de Setembro de 1933. e ficou nos anais de Gondomar, e cujo refrão voltaria a recitar para amigos, em pleno Monte Crasto. Um repórter registou-o nas páginas do "Correio de Gondomar" de 17-3-34, e minha mãe guardou o recorte nas suas gavetas, onde foi encontrado já depois de ter partido.
"E o Castro
Belo e frondoso
Erguendo-se majestoso
Na terra que nos foi mãe,
No sino da igreja além,
Trindades oiço tocar
Como é linda a minha terra
Como é linda a verde serra
Como é lindo Gondomar!"
O texto completo foi mais tarde encontrado num caderno, recolha de poesias dos três irmãos mais dados à Letras, Carolina, Manuel e António, copiadas pela letra juvenil da Mariazinha
GONDOMAR!...
Gondomar!... o nosso berço de criança
Nossa terra querida, idolatrada…
Tu és o meu cantinho, a minha esp'rança
O meu torrão natal, a minha amada
Tu és o Monte Crasto - o verde altar
Cheio de poesia... de frescura
Tu és o imenso sol a iluminar
O Mundo de prazer... de desventura...
E, ornando o teu Altar, campos fecundos
Ferem a nossa vista... e o lavrador
Vê, nessa curta faixa, os novos Mundos
Do seu divertimento... seu labor.
O Crasto belo e frondoso
Erguendo-se majestoso
Da terra que nos foi Mãe...
No sino da Igreja, além,
Trindades oiço tocar...
Como é linda a minha terra
Como é linda a verde serra!
Como é lindo Gondomar!...
Tu és, meu Gondomar a primavera
Da nossa mocidade, nossos dias
Tu és a minha Igreja: a voz que impera
.Numa canção dolente... Avé- Marias!
Tu és a criancinha caminhando
P'ra os bancos da escola, p'ra o futuro
Tu és a pobre Mãe... rica, embalando
O filho, o seu amor altivo e puro...
Tu és a poesia... hino de amor
Que enches de prazer os meus sentidos
Tu és o bom velhinho - com fervor -
Recordando o passado, os tempos idos
(repete refrão O Crasto belo e frondoso, etc etc )!
Meu Gondomar!... ó fonte cristalina
Onde as pombinhas mansas vão beber...
Tu és o sol cadente, que ilumina
Com maternal carinho o meu viver
Tu és o horizonte azul, infindo
Da nossa Pátria grande e imortal...
Tu és as andorinhas ressurgindo
Depois de longa ausência em Portugal
Tu és essa guitarra triunfante,
Trinando em noites belas de luar...
Tu és a negra capa de estudante
Cobrindo a minha alma: Gondomar!...
Repete o refrão
O Castro belo e frondoso. Etc)
Os poemas têm assinatura, mas retratam o estado de alma de uma família inteira, a olhar quotidianamente, com orgulho, as formosuras paisagistas de São Cosme.
O arrasador e malfadado progresso do cimento e do betão” vedou aos vindouros essa comunhão com a gracilidade de um meio ambiente, hoje irreversivelmente perdido. Nem mesmo o Monte Crasto, seu último bastião de resistência, é tão frondoso quanto era nessa idade de ouro.
Dissolveu-se, também, na populosa "cidade-dormitório do Porto", a dimensão de uma comunidade autêntica, convivial e afável, quando os dias corriam devagar e todos fruíam de recantos onde a vila e o campo se misturavam numa interlocução de pessoas e espaços, em que todos se conheciam, e se falavam nas ruas, nos clubes e tertúlias, na botica, no adro da greja e nas festas populares, partilhando hábitos e costumes, a sonoridade do sotaque, a fala com as peculiaridades, em que o "povo-povo" resistia mais à uniformização do que as elites letradas.
Mariazinha, excelente aluna a História e a Geografia, foi, desde sempre, dada a recolhas de natureza cripto-etnográfica, (no que terá sido influenciada pelo exemplo da Tia Rosaura de quem se conhecem apontamentos soltos, por exemplo, sobre ditados ou sobre mezinhas e rezas das mulheres do antiquíssimo Gondomar), anotou os lugares, que faziam os seus encantos - o Barroco, a represa de Cascaneira, entre a Gandra e Ramalde, Bouça Cova, Azenha, Ermentão, Rio Carreiro, Fontela, Ponte Real, São Miguel, Pevidal, Santo André... - , e, também, expressões, nomes e alcunhas aldeãs, que lhe despertavam a curiosidade, como Pojeiras, Restivos, Cabaças, Jeque-Jeque,Tarré Fome Negra, Caga Troços, Carriças, Pilha Galinhas, Patacas, Pirabeca, Arregalados, Folhetas, Estabões, Bagulho, Parraxila, Chasco, Varetas, Melros, Pisco, Choco, Pimpão, Pinguinhas, Pombalinos, Toca- certo...
Menos invulgar o nome de Isidro Izidoro, que, todavia, fez sensação, quando deixou dito que, nas exéquias, queria levar um cravo vermelho na lapela. Era ela uma criança, mas conseguiu que a levassem a vê-lo. Talvez uma benigna criada, lhe tenha permitido a secreta escapadela.
A família materna, tal como a paterna, encontravam-se praticamente livres de alcunhas, fossem elam trocistas ou amáveis, com uma única exceção conhecida, a de uma tia Pereira de Aguiar, a quem, por ser baixa e gordinha, chamavam Maria Parrachila.
Algumas das antepassadas de sua avó Carolina, as que se assemelhavam a muitas das formidáveis figuras femininas do universo ficcional de Agustina, ficaram conhecidas como "as Alexandras", não entrando, contudo, naquele “dicionário”. O nome popularizou-se e foi adotado, também, no masculino, e ainda hoje o é, em sextas ou sétimas gerações dos seus descendentes. Curiosamente, não o vemos nas pesquisas genealógicas que abrangem o século XIX. Há, sim, entre tias e primas, alguns outros nomes de ressonância greco-latina, como Lavínia, Leocádia, Violante, Blandina ou germânica, como Guiomar.
No apanhado de vocábulos esquisitos, então em voga nos meios populares, apontou, dando sempre o sinónimo, palavras ou expressões como: vasculho malandro), paspalhão (desajeitado), dar uma topada (tropeçar), encatrapiada (aleijada), pimpineira (aldrabice), pixote (pequenino), "embaçado" (envergonhado) … Ou ditos antigos, por exemplo: "estás a olhar para ontem, que já lá vai", ou "estás a ver navios" (distração): Deus nos dê muito e nos abone com pouco":"estreminguei um pé" (torci) "vim da outra banda" (do outro lado) "estou triste como a noite"...
Tudo o que era, ou, pelo menos, considerava ser, particularidade da terra e das gentes de Gondomar lhe dava a certeza de estar onde e com quem mais queria. Ligava-a à longa linha de ancestrais, que certezas semelhantes tinham arreigado ali, mesmo quando, como aconteceu com seu pai, se aventuravam, por muitos anos para além das fronteiras do concelho, do país, ou do mar, sem perder nunca a vontade de revir à melhor das terras à face da Terra - a vila de Gondomar, de onde tantos avoengos eram originários
I - OS MENDES BARBOZA E OS FERREIRA RAMOS
JOAQUIM MENDES BARBOZA
Joaquim, o avô de porte aristocrático e olhar sereno, que veio do norte, de um norte não muito longínquo, era natural de Santa Maria Madalena de Paredes, filho de António Mendes e de Joaquina Roza Coelho Barboza. Fez os seus estudos de Teologia no Bispado do Porto, que concluiu no ano de 1858/59, tendo tido no exame a classificação de “Muito Bom”. Em 1960, foi “admitido à receção de todas as ordens sacras”, mas, em vez da ordenação sacerdotal, vemo-lo, em 1863, aceitar o posto de professor na recém-criada Escola de Vilela, Paredes, com um contrato de três anos. A decisão de mudar de rumo, qualquer que tenha sido a motivação, não afetou a sua fé e religiosidade profundas, bem expressas em alguns trechos de correspondência enviada à filha Maria, meio século depois, enquanto esta morou no Rio de Janeiro, entre 1910 e 1920.
Em Vilela, exerceu o cargo, (que era bem remunerado e com mordomia), incluindo casa oferecida pelas autoridades locais, de forma a merecer os maiores encómios, ou seja, “com tanto aproveitamento para os alunos que provou até à evidência a sua muita inteligência, aptidão e inexcedível zelo”, como atestava o público agradecimento da Junta de Freguesia.
Seguidamente, vemo-lo enveredar por carreiras jurídicas do funcionalismo público, nos serviços de Registo Hipotecário da Conservatória de Paços de Ferreira e na Administração dos concelhos de Paredes e de Gondomar, como escrivão.
No Julgado de Paços de Ferreira, pertencente à comarca de Lousada, seria nomeado solicitador encartado, funções que deixou em 1870, com mais louvares num curriculum imaculado.
1970 é o ano do seu casamento com Carolina Ferreira Ramos, na vila de Gondomar, onde estivera colocado em 1865 e 66. A sua sintética biografia in “O Conselho de Gondomar” não refere os cargos exercidos durante a década de 70. É sabido que se manteve como funcionário público, profissão que lhe é atribuída, por exemplo, em 1879, na certidão de nascimento da filha Rosaura, emitida em Gondomar, onde nasceram todos os seus oito filhos
Em maio de 1983, é colocado como secretário da Junta de Freguesia e, em 1 de Outubro de 1885, nomeado tabelião no Julgado de Gondomar da Iª vara da Comarca do Porto. E como notário se manteve até à aposentação em 1916, já com avançada idade.
Em 1890, foi nomeado Administrador do Concelho, funções que acumulava com as do notariado.
Na monografia “Concelho de Gondomar, descreve-o assim o Autor “ Era um espírito muito culto, tendo colaborado em algumas revistas da sua classe, como “O Direito Notarial” de Lisboa.
Numa nota mais pessoal, não muito comum no conjunto dos seus biografados, apresenta-o, numa data em que já falecera, como um “chefe exemplar de família”, que “legou a seus filhos uma esmerada educação que lhes assegurou uma situação respeitável no meio da sociedade”
Testemunho direto de Camilo de Oliveira sobre qualidades humanas, que impressionavam, pelo menos, tanto quantos as profissionais, e que seriamcorroboradas pelos seus próximos, no rastro imperecível de memórias íntimas
Não sendo, como vimos, oriundo de Gondomar, converteu-se em verdadeiro filho da terra, onde criou família e fez incontáveis amigos, e nenhum inimigo, seguindo a vocação de louvar a Deus, de um outro modo, servindo, cristãmente, os seus semelhantes.
Monárquico, do partido Regenerador, não parece ter sido penalizado pelas suas convicções políticas, a partir de 1910 e até 1918, data da sua retirada por razões de idade e saúde, que, todavia, não o impediram de dar a sua colaboração graciosa, e a tempo inteiro, por largos meses, ajudando a formação do seu sucessor, um jovem licenciado em Direito por Coimbra, muito sabedor de leis, mas sem qualquer experiência prática. (como ele própria relata com um fio de humor, na sua correspondência para o Rio de Janeiro)
CAROLINA FERREIRA RAMOS
O historial de Carolina, menina da sociedade gondomarense, não consta, naturalmente, dos anais da terra. Como quase todas as mulheres desse tempo, fez “curriculum” pelo casamento e uma numerosa prole esta bonita e voluntariosa filha de ANNA PEREIRA, (cujos pais, JOSÉ PEREIRA e THEREZA d' ALMEIDA, eram ambos naturais de São Cosme), e de JOAQUIM FERREIRA RAMOS, filho de FRANCISCO FERREIRA RAMOS e de CATHARINA ALVES, de Valbom.
Anna e Joaquim eram casados já há alguns anos e tinham vários filhos, quando se mudaram de Valbom para São Cosme, para morar na quinta da Bela Vista, que ou compraram, ou herdaram dos pais de Anna Pereira
Carolina, uma das filhas mais novas, nasceu, certamente, na quinta da Bela Vista, e terá conhecido o futuro marido por volta de 1866, no período em que este exerceu o cargo de escrivão do Concelho de Gondomar. Frequentavam o mesmo meio pequeno de comunidade burguesa. Talvez Joaquim Mendes Barboza fosse amigo dos seus irmãos, apesar das divergências políticas, ele monárquico e conservador, os Ramos maioritariamente republicanos e progressistas. Por essa altura, a Carolina não faltaram pretendentes. Houve um que conseguiu ficar no anedotário da família, graças uma equívoca e infeliz quadra que lhe dedicou:
Minha doce Carolina
Estas, porventura lembrada,
Tu ao mirante da esquina
Eu a cavalo na estrada.
Um poeta “cavalgando a estrada” ou “A cava-lo na estrada” (subentenda-se a cavar o ouro da herança) não era literato capaz de granjear o entusiasmo de uma rapariga perspicaz e exigente. (se é que a história é verídica, o que não seguro).
Certo é que ela era um “bom partido” e os pais, de início, terão contrariado a pretensão do jovem escrivão do Concelho… Mulher de forte personalidade, não desistiu de um casamento por amor. Poderá a oposição paterna ter retardado a cerimónia nupcial, que só se efetuou quatro anos depois, em 2 de maio de 1970, quando ela já ia nos 26 anos, para a época idade madura, e ele nos 30.
Foi madrinha da noiva a irmã Joanna, a cuja beleza e graciosidade os retratos fazem justiça. Esse dado leva-nos a considerar que houve, enfim, aprovação parental e que os pais, Anna e Joaquim, terão estado, também, presentes na boda
Joaquim Ferreira Ramos seria um abastado comerciante, ou não teria podido adquirir, por partilhas ou por compra, a quinta da Bela Vista, com a sua casa apalaçada. No retrato do álbum de família, aparentando já mais de 60 anos, é um senhor distinto, pensativo, de olhos claros, com uma extraordinária semelhança com o que terá sido o mais atraente e brilhante dos seus bisnetos, Manuel Joaquim, legatário dos cristalinos olhos azuis e do nome, (que coincidia com o do avô minhoto, o suave enamorado de Carolina).
De Anna há, também uma fotografia de estúdio, em traje de lavradeira rica, de chapéu preto e lenço de seda, ignorando- se o foi, de verdade - ou se estava fantasiada para o entrudo, como então era comum. O pormenor de estar de livro aberto na mão, livro que pode ser, simbolicamente, uma Bíblia, apontará para a primeira hipótese, assim como a lenda das "Alexandras", ligada a heranças e ambição de terras. Essa ambição, frustrada no caso da irredutível Carolina, atingira o seu ponto alto com uma antepassada que queria impor consorte rico a sua filha, e, não logrando os intentos, porque a donzela se mostrava indomável, praticamente a sequestrou dentro de portas, até ao dia em que, ajudada por criados de coração solidário, e pelo pároco, não menos compassivo, a noiva secreta escapou, de manhã cedo, para a Igreja. Aí a esperava o padre para a unir ao bem-amado pretendente pobre, em apressada cerimónia, com a bênção de Deus, mas não com a da mãe (do pai, fosse vivo ou morto, não reza a a narrativa).
Nessa manhã, a “emparedada” levara a sua mãe, à cama, ela própria, prestável e aparentemente resignada, a bandeja do pequeno-almoço, mas não fora ouvida nem vista, depois de não ter vindo recolhe-la. Chamou-a a mãe e, não obtendo resposta, cheia de suspeitas, tratou de se vestir à pressa e correu, também ela, para o templo. Tarde demais chegou… já os noivos estavam ligados para sempre pelo sacramento. Restou-lhe, assim, em incontrolada fúria, apedrejar o cortejo nupcial, à saída da igreja. E com esse insólito comportamento rompeu as barreiras do completo anonimato futuro, convertendo-se em lendária figura familiar...
Joaquim Mendes Barboza pode não terá recebido. Inicialmente, acolhimento muito amistoso, mas, no polido e mais flexível meio de uma burguesia comercial, escapou a gritos de guerra e tentativas de lapidação. Ficou, em todo o caso, ciente de que educação, ascendência, bom carácter e boas maneiras, não contavam tanto, para a família da noiva, como haveres materiais, em que ele era mais parco. Para Carolina, aquelas qualidades sobejavam, tanto mais que ele era um belo e gentil rapaz. Bem andou em não desistir do seu amor, na melhor tradição das "Alexandras”. Meio século de vida em comum com Joaquim dar-lhe-ia razão. E não foi preciso muito tempo para que os sogros se convertessem às virtudes do tão bondoso quanto sensato genro, ao mesmo ritmo de toda a sociedade gondomarense. As memórias das filhas coincidem rigorosamente com o teor da monografia do Concelho de Gondomar, apresentando-o, da mesma forma, que se pode sintetizar numa palavra: exemplar! Como homem, cidadão e profissional.
Foi, assim, longo e feliz o casamento de Carolina, elegante jovem, transformada em imponente matriarca, depois de oito vezes grávida (a última das quais já quase na casa dos cinquenta, para dar à luz Maria da Conceição, que viria a ser a conhecida e reconhecida Maria Aguiar). Mulher forte e determinada, embora mais comedida do que as terríveis antepassadas, parece ter reinado, sem oposição, dentro dos muros de sua casa, como manda a tradição matriarcal nortenha, mantendo sobre o marido e sobre os filhos, mesmo já depois de adultos e independentes, um ascendente natural, compatível com imenso afeto e condescendência da parte de todos eles. Por regra, era feita a sua vontade! Um pequeno diálogo conjugal (dos poucos e fragmentados que o raconto oral traz até nós...), é revelador da permanente busca e facilidade de concórdia na intimidade do casal. Passa-se na última década do século XIX, num tempo em que os apelidos dados aos recém- nascidos eram de arbitrária escolha de quem os registava. Os quatro primeiros rapazes receberam apenas os apelidos do pai. E só quando estava à espera do seguinte, Carolina se deu conta disso e comentou, causticamente: "Os meus filhos não têm o meu nome!". Não ocorrera ao marido, que a tratava carinhosamente por "mamã", ter isso especial relevância para ela. Daí em diante, não só reparou a omissão, como tratou de colocar o apelido da mulher no último lugar, no nosso sistema, é o dominante. Os quatro filhos mais velhos são Mendes Barboza, os quatro mais novos Barbosa Ramos, (independentemente do sexo, pormenor que não é despiciendo).
A partir do 15º ano do casamento, em 1985, Joaquim Mendes Barboza tornou-se, com foi dito, tabelião do concelho de Gondomar, e ocupou o cargo, com universal aceitação e agrado, até se reformar, em 1916. Na vila que o acolheu, foi personalidade ímpar e prestigiada, sempre discreto e confiável, dando de si, nas muitas fotografias em que figura, a imagem da pessoa serena e gentil, que, de facto, era para com todos, ricos e pobres. Um santo", nas palavras da filha Rosaura Barbosa Ramos, a primeira das meninas, depois de quatros rapazes.
O seu nome, que se distingue pela raridade, foi escolhido por ele, inspirado num livro, que andava a ler, por essa altura, um romance de cavalaria com o longo título de "Retiro de Cuidados e Vida de Carlos, e Rozaura". Mais uma nota a acrescentar ao seu perfil humano: o gosto pela leitura, romântica e sentimental.
È fácil imaginá-lo ao serão, enquanto a mulher bordava peças de enxoval (e muitos bordados seus, primorosos, chegaram, em perfeito estado de conservação, ao século XXI), sentado em cadeirões de pau canto e palhinha, igualmente bem preservados, a deleitar-se com a aventuras e desventuras de Rosaura, à luz do candeeiro de "abat jour" de vidro branco e translúcido, e de pé de bronze elaboradamente trabalhado, que, intacto, resistiu ao passar do tempo.
A saga, que lhe ocupava as horas livres, começa auspiciosamente numa madrugada ( "Rompia a aurora..."), continua em extensas narrativas de guerras, conflitos e mil e um obstáculos que vão adiando a união dos jovens, só alcançada no final feliz, com a etnográfica descrição do cortejo nupcial em direção à Igreja: "levando a Marqueza Rozaura da mão e Dom Manrique a Carlos ao lado direitto e assistiao ao seu recebimento e quando voltaram por quantas ruas passarao choviam infinitas flores das janelas, com repetidos “vivas. Cedo com sua espoza Rozaura para Rezzo virao. Laus Deo". (Rosaura Barbosa Ramos não teria tão vistoso casamento, nem iria para Rezzo, permaneceria em Gondomar, feliz, com um viúvo muito afável, chamado simplesmente Manuel Marques).O pesado livro de capas de couro ser-lhe -ia, mais tarde, dado como presente, que legaria à sobrinha preferida, Mariazinha, por sinal, fiel e diligente guardiã de quaisquer antiguidades.
Joaquim Mendes Barboza, ogrande amador de romances, era um monárquico firme, mas tolerante, muito sociável, participava na vida cultural da vila e suas instituições, em tertúlias, em teatros e concertos e celebrações reliiosas. Com as origens (Bitarães. Penafiel, Paredes), parece ele ter mantido escassos contactos. Talvez os pais, quando casou, em 1970, tivessem já falecido, porque deles não há rasto personalizado nas relatos orais. A exceção é um sobrinho, que era Visconde de Paredes (ou um dos filhos do Visconde) e namorou a filha mais nova, Maria da Conceição. Visitava-a, segundo várias vozes, entre elas a da Tia Rosaura, chegava esbelto e sedutor, montado no seu cavalo, e à despedida ela vinha ao mirante dizer-lhe adeus. (Mais um mirante na geografia dos romances gondomarense!). Porém, aí por volta de 1906 ou 1907, Maria pôs fim ao namoro, preferiu o "brasileiro" António Carlos, que, nas suas próprias palavras, a fitava, apaixonado, com uns grandes e expressivos olhos verdes, como jamais vira outros. È facto assente que ela não tardaria a corresponder aos sentimentos e aos olhares. Maria, a menina mais nova, tal como, mais tarde, Rosaura contaram sempre com o apoio dos pais nas suas decisões. E dos homens também não há qualquer eco de afetos contrariados.
O único desgosto que pesou sempre na vida deste casal exemplar foi a morte, aos 21 anos, da encantadora e sempre lembrada filha Glorinha, a professora.
OS IRMÃOS DE CAROLINA
Carolina e as suas irmãs foram educadas para o casamento, e todas elas terão casadobem, ou medianamente bem, não deixando marcas na cronografia da família, onde só destinos ou acontecimentos excepcionais, para o melhor ou o pior, trouxeram à ribalta mulheres das gerações passadas – daquelas gerações sobre as quais não há testemunho de quem com elas privou.
De entre os filhos houve os que continuarm, no modo masculino, as tradições da família, em vários ramos de negócio. Com grande sucesso, o conseguiram, por exemplo, MANUEL GUEDES FERREIRA RAMOS, que dá o nome à praça do Município em Gondomar (antigo Largo de Quintã), e ANTÓNIO FERREIRA RAMOS, emigrado para o Brasil, onde lançou com um Salgado Zenha, (decerto antepassado do que ficou na história da nossa democracia), uma sociedade próspera, a "Ramos e Zenha". Desse tio gostava muito a pequena Maria (mais tarde, Aguiar), e com ele manteve correspondência assídua e trocou retratos, que ocupam várias páginas num precioso álbum de capa de veludo arroxeado e folhas douradas. Este tio António casou com Carolina Silveira Martins, irmã do Silveira Martins,que foi Governador do Rio Grande do Sul, e se notabilizou nos primeiros anos da República brasileira. A sua incontável descendência, está hoje espalhada pelo sul do Brasil, desde Bagé, onde se radicou, a São Paulo, e aos confins do Uruguai.
Dos inúmeros primos que, separados por mais de 15.000 milhas de mar e terra, totalmente se desconhecem, só dois se encontrariam, uma tarde, em fins do século XX, no hemiciclo de Brasília: Maria Manuela Aguiar, então Vice-Presidente da Assembleia da República Portuguesa, e Sá Azambuja, Senador da República Federativa do Brasil, ambos descendentes diretos, e no mesmo grau, de Anna e Joaquim Ferreira Ramos, dos quais nenhum deles guardava os apelidos
Um outro ANTÓNIO FERREIRA RAMOS, sobrinho do que emigrou para O Rio Grande, era filho de Manuel Guedes, e também muito próximo da prima direita Maria. A vida levou-o para longe, embora um longe menos longínquo, (Lisboa), depois do casamento com uma filha de Ramalho Ortigão, Berta, de quem descendem todos os Ortigão Ramos. Entre vários outros negócios e investimentos, foi proprietário do teatro que é hoje o São Luís e, tal como o pai, um benfeitor da sua terra. Camilo de Oliveira, na monografia de Gondomar, salienta que instituiu bolsas de estudos, em igual quantidade e montante para rapazes e raparigas. A instrução feminina foi uma das causas republicanas, defendida pelo movimento feminista, e, também por muitos homens, companheiros de crenças revolucionárias, como este gondomarense, genro de Ramalho.
Manuel Guedes, conhecido pelo republicanismo militante, não viveu para ver o fim do regime monárquico, mas o seu ativismo não fora esquecido e, nos alvores do novo regime, foi dado o seu nome ao Largo de Quintã, onde tivera, antes de se fixar no Porto, uma loja comercial, no casarão de azulejos, que ainda hoje existe, em frente à Câmara Municipal.
É o que, infelizmente, se não pode dizer da Vila Maria, que foi demolida, (e da qual apenas se conservam apenas, graças ao cuidado ao bisneto de Maria e António, Carlos Manuel Aguiar, os azulejos com a grande águia castanha segurando um “R” no bico) ou da Quinta da Boavista, (da qual resta um pequeno lago de pedra, transplantado para junto da capela do Monte Crasto - a crer numa história contada por um frequentador do café do Crasto, simpático velhinho anónimo, que se gabava de ter visitado, muitas vezes, a propriedade).
JOAQUIM e CAROLNA NA PRIMEIRA PESSOA DO SINGULAR
Só pelas cartas que escreveram às filhas, os podemos conhecer mais de perto. Infelizmente, são poucas as que chegaram até hoje, e todas da última fase das suas vidas, enviadas a Maria para o Brasil, entre os anos de 1914 e 1918, e a Rosaura, durante ausências curtas nas termas ou na praia.
Se as da bisavó Carolina quase se limitam ao relato de problemas de saúde, mostrando-a certamente muito diferente do que fora em jovem, cheia de preocupações com a saúde, que a idade ia avolumando, as do marido, pelo contrário, revelam um espírito atento ao mundo, a acontecimentos que marcavam os destinos de milhões, como o progresso da 1ª Grande Guerra, ou a gripe espanhola, tanto quanto ao pequeno mundo de São Cosme, onde se sucediam casamentos, mortes, temporais, festas religiosas, espectáculos culturais, e onde frutos amadureciam e flores desabrochavam no seu jardim.
Retrata-se a si mesmo nestes relatos de época, escritos ao correr da pena, em linguagem muito sóbria, mas, aqui e ali, colorida por uma expressão engraçada, um populismo, a dizer que o sentido de humor que se atribui ao ADN dos Ferreira Ramos, também não está ausente no legado genético dos Barboza…Pequenas achegas, em que o podemos imaginar a sorrir brandamente, por exemplo, quando descreve a mãe a ralhar com o filho padre, por passar tempo demais no confessionário, sujeito ao frio sepulcral das alas laterais da igreja matriz, ele que, mal curado de uma tuberculose, era sempre um doente de risco.
No ano de 1914
Na primeira dessas cartas, de 11 de Julho de 1914, enviada para o paquete Araguaya, nas vésperas da chegada de filha, genro e neta Carolina a Portugal, começa, como era previsível, assim: “Que, com a Lininha, tenhais tido boa viagem são os nossos votos a Deus e a Nossa Senhora”, para logo os prevenir que não poderá estar presente no cais de chegada: “Não deveis contar connosco em Lisboa, nem mesmo em Leixões, porque os 75 tiram todas as vontades de fazer as viagens, ainda que curtas – além do risco de um trambolhão que atire a gente para a outra banda, pois o caruncho é bastante. Com o que podeis contar ao certo é encontrar-nos na nossa choupana de braços abertos para vos receber e à pequenina”
A “choupana” era, de facto, uma casa grande, de dois andares e traça tradicional, e jardim com frente de mais de cinquenta metros para a rua principal (onde não faltava o mirante rasgado no muro, e um terreno extenso para sul e nascente, que terá sido, possivelmente, comprada com dinheiros de herança de um dos cônjuges, ou dos dois, porque, mesmo a preços do último quartel do século XIX, parece propriedade demasiado dispendiosa para os réditos de um funcionário público com numerosa prole.
Seguem-se as notícias:
”É hoje a festividade de São Bento, que este ano reveste uma pompa superior à de anos anteriores. (…).
“O Américo está esta semana em Tuy, onde foi assistir a exercícios religiosos, visto não os haver no Porto”. Mas, acrescenta, o tio padre viria, dentro de dias, visitá-los e ver a menina.
No Clube, havia espectáculo em benefício dos Bombeiros, que já não chegariam a tempo de ver, e em que ele, apesar dos seus 75 anos, pelo visto, marcaria presença
Em casa, não perdia, também, qualquer oportunidade para organizar uma festa, Num recorte de jornal, não identificado nem datado, tomámos conhecimento da “celebração do aniversário natalício da Senhora D. Carolina Ramos Barboza, esposa do estimado e benquisto notário local, Sr. Joaquim Mendes Barboza, Por esse motivo, vieram a esta vila seu filho, Dr. José Barbosa Ramos, novel advogado e proprietário do semanário “O Progresso de Gondomar, e o Sr. Deolindo Oliveira, colaborador do mesmo periódico”
No ano de 1916 (22 de Janeiro)
Os primeiros parágrafos abordam, como era habitual, questões de saúde. Nesse mês de inverno, do seu lado do oceano, problemas tinha “a Rosaurinha, que conquanto de pé, anda afetada com alguma tosse, que lhe desapareceria com pontas de fogo” e, do outro, queria saber como passavam, no verão austral, “a Lininha, o Antoninho com o apartamento que há muito devias ter feito” (pertinente observação, porque o menino estava prestes a fazer um ano, idade avançada para mamar ainda no seio materno) e o Manelzinho com o trambolhão, que não será o último. Eles consomem-te a paciência, é verdade, mas também ajudam a passar os dias”.
No capítulo da vida social de S Cosme, não faltavam novidades: “Casaram-se o Coruja com a irmã da Margarida telegrafista,
No próximo domingo, representa-se no teatro do Club o drama Amor de Perdição, tirado do romance com o mesmo nome do grande Camilo Castelo Branco (sem surpresa descobrimos o seu pendor Camilianos, depois de conhecer o gosto por novelas de cavalaria).
Da malta de gatunos, que infestavam estes sítios, vários já estão presos. Os pequenos do Alfredo estão com bexigas. Se o Antoninho ainda não está vacinado, deve sê-lo. Morreu aí a Maria (apelido ilegível) e, no Rio Grande do Sul, tua tia D, Carolina Silveira, mãe do Eduardo Ramos, a quem escrevi dando os pêsames (trata-se da mulher do tio António Ferreira Ramos, certamente já falecido, de contrário, a ele, não ao filho Eduardo, teria escrito – notícia que aponta para o facto da filha Maria não manter já estreito contacto com esse ramo da família)
“Hoje foi dita missa pela nossa chorada Glorinha. Especialmente interessante é a que se referente à sua aposentação, aos 77 anos de idade : “Estou substituído, mas sempre no trabalho, porque o substituto, conquanto hábil com conhecimentos de direito, não tem prática, e sem ela não pode confiar em si, nem quanto aos; serviços mais rudimentares”
Significativa é, ainda, a exortação feita à jovem filha: “Faz por te distrair e levar a vida sem inquietação, recebendo bem qualquer contrariedade”.”
No ano de 1918 (São Cosme, 22 de Fevereiro)
No Rio e em Gondomar todos estavam bem e, por essa benção, dava Graças a Deus o catolicíssimo bisavô. Esperava, em breve, tê-los perto de si, depois de deixarem, de vez, o Brasil. O enfoque da carta é a procura de terrenos onde pudessem construir casa: “Como já te informei, a Regedora não vende a propriedade (…). E, como há dias o Alexandre informou o vosso mano Augusto, há o terreno do Paciência, que conheceis, e o do Fonte, que está entre o club o José Semana, e o da Rosa, filha do Manuel Marques e, ainda, a propriedade de Serafim Pacheco, contígua à quinta de D. Carolina Novais(…).
São Cosme, (23 de agosto)
Nestas primeiras décadas do século XX, a crença nas qualidades terapêuticas das termas estava no seu auge, e os bisavós rumavam anualmente a Vizela, acompanhados por alguns dos familiares, ritual que a filha Maria haveria de cumprir toda a , a Vizela ajuntando as caldas de Aregos ou do Gerês.
“Regressámos ontem de Vizela, onde estivemos 5 dias com a Rosaura, o marido, Alexandre e mulher e também a tua prima Amélia de Quintã, com a criada, e todos chegámos bem e assim continuamos (…).
“ O José ia este mês para o Funchal, mas ainda não está lá, por não haver conseguido lugar no vapor que para ali seguiu no mês passado. Ele foi, há dias, a Viana, donde ainda não chegou.
O Américo está tentado a ir passar 15 dias ao Bom Jesus em Braga. Ele no próximo S Miguel muda de casa para o Souto do Rosário, para poder estar mais perto da igreja.
Depois de várias referências à seca e aos seus efeitos na lavoura gondomarense, vem a única menção escrita, que se conhece, ao exílio para São Tomé, por razões políticas, do seu filho primogénito, António durante o mandato de Sidónio. Ficam, assim, confirmados relatos orais, mais vagos
“O António está em África onde, quando chegou lhe ofereceram três lugares, dos quais, todos bons, se colocará no que mais lhe agradar. Ele está bem, e não lhe falta a saúde, também o disse em carta para a esposa o Dr. Marcelino.
Foi a maldita política, que para ali o atirou, da qual os desgostos são sempre a pagar para os que têm a fragilidade de nela se meterem manifestamente.
Passaram no 1º ano do liceu os dois pequenos do Alberto, o Mário com boa classificação, o Américo, que é doente e cábula, com baixa classificação. O Alberto pede para eles virem com a Maria Izabel passar cá uns dias.
(nas fotos de família em S Cosme, a neta Izabel, Mimi, é presença frequente, ao contrário do que acontece com os rapazes, o bom aluno, Mário, que viria a formar-se em medicina e o mau aluno, Américo, que, por certo, se chamava assim em homenagem ao tio Padre.
Termina com a notícia da morte do marido da prima Maria, filha da Tia Joaquina da Travagem
São Cosme, 15 de outubro
Tinham, nessa data, acabado de chegar duas cartas escritas pela filha Maria em agosto, um enorme atraso, que lhe causara grandes apreensões, receando que estivessem doentes.
(…) “Eu e a mãe, atrouxados, sim, mas vamos indo de pé. O José adoeceu com gripe na Póvoa do Varzim, em casa de um amigo, de onde veio para casa, achando-se actualmente, em franca convalescença. A Rosaurinha também recolheu à cama, com a sua doença de que ainda está convalescente. Oferece sempre gravidade, porque sofre da pleura e dos pulmões.
Acrescenta que a criada foi para o hospital, parecendo que é broncopneumonia gripal, de que tem morrido quase todos os atacados. O Alexandre também teve gripe simples, que felizmente foi muito benigna.
Sem lhe chamar assim, porque não era certamente a designação corrente, está a falar da epidemia mortífera da “gripe espanhola”, a que escapou a família, mesmo os Barbozas mais vulneráveis, por terem, anos antes, sobrevivido a tuberculose, Rosaura e Américo.
Nem por isso traça uma situação geral menos dramática:
“Poucas pessoas têm sido poupadas por estas doenças, e os casos fatais, principalmente de bronco pneumonia (se não se trata de alguma peste) tem sido tantos, que poucos dias tem decorrido sem seis ou oito óbitos na freguesia.
E o que se dá por aqui, está-se dando por todo o nosso continente, tendo estas doenças sido importadas da Espanha, onde ainda grassam.
A Mimi, receosa das doenças raspou-se para o Porto. Está com os pais e os irmãos, que passam regularmente.”
(Mais um indício de que a neta Mimi lhes era particularmente querida e com eles passava com grandes temporadas em São Cosme, como faria, depois de desaparecidos esses avós, em frequentes e prolongadas visitas à tia Maria Aguiar, que era poucos anos mais velha do que ela - mais pareciam irmãs)
O tema dos terrenos para a casa que viria a ser a “Vila Maria” é retomado:
“O Alexandre havia de procurar o vosso mano Augusto para o informar de que se vende um campo próprio para casa, tem frente para a estrada que conduz à igreja e está da parte de baixo da propriedade do Monteiro da música entre esta propriedade e o campo do Zé do
Paço, que tem um engenho de água”
A descrição dos terrenos para potencial aquisição, nesta e na missiva anterior, parece coincidir com a situação de boa parte das propriedades que vieram a ser efectivamente compradas pelo avô António Aguiar. Os mais ativos aliados, na procura de alternativas, foram o sogro e o cunhado Alexandre, e o irmão Augusto é referido como uma espécie de seu procurador, reforçando a ideia de que eram, além de muito amigos, parceiros de negócios.
Os netinhos, naturalmente, não são esquecidos e sobre eles recaem, por vezes opiniões muito categóricas: “Não metas a menina em barafundas, acho que só aos 9 ou 10 anos deve ocupar-se do piano. Quem tudo quer, tudo perde.
Adiante recomenda à filha que não se esqueça de dar o remédio contra as lombrigas aos meninos, “de quando em quando, para evitar os ataques, que oferecem tanto perigo, como já tens tido ocasião de ver”
Já se sabe em São Cosme que a Lininha há-de ter uma cruzinha com pedras e o Manelzinho uma bengala muito linda” (…)
(…) Há dias, colhemos na nossa figueira, uma cesta de deliciosos figos. Bem nos lembramos de vós, mas…
As festas do Rosário, que, por causa das doenças, chegaram a ser proibidas, e, depois, foram consentidas, estão pouco animadas, ainda assim mais do que seria de esperar
Sobre o filho mais novo, que, desde agosto, esperava rumar ao Funchal, a fim de tomar posse do seu lugar de magistrado dá conta do impasse:
“ O José ainda não foi para o Funchal, porque precisava de licença do Ministro para embarcar e este não lha concedeu, com a fundamentação de que estava próximo de receber a instrução preparatória de oficiais milicianos, mas é quase certo que a guerra está no fim, ou pelo pedido de paz, por parte dos alemães, ou pela derrota destes já começada, e, por isso, é de supor que fique sem efeito a lei que a tal obriga, Deus o queira,
O Américo está na sua nova casa, defronte do Vicente, e do largo do souto do rosário, e, conquanto doentinho, celebra sempre a sua missa, menos num dia ou outro em que o tempo está muito mau, ou em que se sente constipado”
No final de uma das suas mais longas cartas, pergunta se já foi recebido “o grupo de retratos que te enviei, tirado no nosso quintal. Deve ter chegado há muito tempo”, (chegar, chegaram, porque algumas ainda se herdaram do espólio da avó Maria, mas entre o dever e o acontecer por vezes mediavam semanas, como anterior correspondência evidenciava...)..
O “post.scripum” e uma discreta forma de dizer à filha que pode retomar as travessias oceânicas e as visitas a São Cosme, interrompidas pela guerra: “Lembro-te que deve estar afugentado o perigo dos submarinos dos scelerados alemães”
Muito menos numerosa e muito mais sintética é a produção epistolar da Mãe, que devia repousar, largamente, no gosto do marido em escrever
Querida filha
Recebemos a tua carta pela qual vejo que ainda continuas constipada e fraca, tens, pois, filha de ter cuidado, porque dos enfraquecimentos vem todas as doenças, e quando se não tem o cuidado preciso a tempo, quando se quer reagir, já não se pode.
Não te aflijas por causa nenhuma e deves sahir de vez em quando, pois teu marido não te podendo acompanhar vae com a tua filhinha e criada.
Ansiosa espero a vossa vinda, um dia melhor, outro pior, e assim hei-de passar o resto da vida.
O Pae agora passa melhor e a Rosaura tem andado um pouco constipada.
Recorda-me muito ao Aguiar e dá muitos beijos na nossa querida menina (…)
Adeus filha, envia-te mil beijos cheios das mais vivas saudades, a tua mãe
Carolina
Embora a carta não esteja datada, podemos situa-la entre 1913 e 1914, porque apenas refere a neta primogénita, sinal de que ainda não existiam os outros, e fala de uma próxima chegada da filha a Gondomar. Os avós viajaram na segunda metade deste último ano, para que filho, esperado para breve, que seria o Manuel Joaquim, nascesse em São Cosme
OS MENDES BARBOZA RAMOS
Nenhum dos filhos de Carolina e Joaquim se aventurou no mundo empresarial, onde tinham feito fortuna avós e parentes maternos. Os três mais velhos, António, Alberto e Alexandre enveredaram, como seu pai, por carreiras do funcionalismo público, e o mais novo, José Barbosa Ramos, após ter sido advogado e deputado pelo Porto, acabaria por ingressar na magistratura judicial. Américo, em vez de servir o Estado, Américo dedicou-se ao serviço de Deus, e foi um padre muito querido dos paroquianos, pela sua extrema bondade e abnegação. Temperamentalmente, o mais próximo do pai, que teria, com certeza sido tão devotado e generoso à frente de uma paróquia, como foi no seu cartório e dentro de sua casa. A mesma vocação, exercida num outro domínio...
ALEXANDRE MENDES BARBOSA
A monografia do Concelho de Gondomar, dá nota de que foi Secretário da Administração local e, mais tarde, tal como fora seu pai, Administrador do Concelho. Sempre envolvido na vida cultural de São Cosme, esteve entre os fundadores do Clube Gondomarense e pertenceu aos seus executivos, assim como aos de várias outras irmandades locais. Era um jovem alto, bonito e elegante, apreciador de teatro, assíduo frequentador do Sá da Bandeira e das tertúlias da "Brasileira". E, ocasionalmente, poeta. Dos seus versos, resta uma quadra, preservada pela sobrinha Maria Antónia:
"Morre um afeto, outro nasce
Passa um desejo, outro vem
Depois de um sonho, outro sonho
De tantos que a vida tem"
Afetos femininos não lhe terão faltado na juventude. Era, como as fotos de juventude evidenciam, muito bem-parecido. Casou-se com HERMÍNIA, jovem de boas famílias nortenhas, educada num colégio de freiras, onde o pai, tendo enviuvado quando ela era ainda pequena, entendeu que seria bem cuidada e bem formada. Aí parece ter sido feliz , tornando-se uma jovem serena e autoconfiante, e, ao longo do casamento com Alexandre, uma sensata e competente dona de casa, que não mostrava, sob a capa da placidez e da conformidade aos padrões de comportamento de uma pequena vila, o seu potencial de cultura e inteligência. Não interveio nunca ativamente na sociedade, mas soube aceitar, talvez mesmo encorajar, a constante intervenção cívica e cultural.do marido. Um só grande desgosto na vida a dois, a morte da sua única filha, recém-nascida. Ambos gostavam de crianças e dedicaram-se aos sobrinhos, os de Hermínia e os dele, filhos da irmã/cunhada Maria, que tão cedo enviuvara. A mais nova, Maria Madalena, foi criada mais com eles do que com a própria mãe. Moravam em frente à Vila Maria, bastava-lhes atravessar a rua, para irem, diariamente, buscar a menina, que a mãe nunca deixava pernoitar fora da Vila Maria. O ambiente de concórdia e tranquilidade do seu lar, de tal modo moldou o espírito e o comportamento dessa menina, que nem se diria ser parte do grupo dos buliçosos manos Barbosa Aguiar. Era doce e sossegada, embora soubesse mostrar-se, em criança como pela vida fora, inesperadamente firme e determinada, em qualquer questão realmente importante. Adorava animais, em geral, e gatinhos, em particular, tal como os tios de quem era inseparável. Assim se fez muito mais uma “segunda Hermínia”, do que uma segunda Maria Aguiar, com o seu perfil de liderança e filantropia, que, aliás, não teve também seguidoras nas filhas de génio mais temperamental ou turbulento. Nem verdadeiramente nos filhos.
O Tio Alexandre era o padrinho de Manuel Joaquim, o primogénito dos rapazes, dado que, só por si, claramente indicia a estima de que gozava por parte da irmã e do cunhado António. O bonito, espirituoso miúdo era um aluno brilhante e o padrinho fez questão de assumir o encargo com os estudos, que o levaram dos colégios e liceus do Porto à Faculdade de Medicina de Coimbra. Mas, em boa verdade, apoiava, com a mesma atenção e afeto os sete sobrinhos órfãos. Visitava-os todas as semanas nos colégios do Porto, levava-os a passeios e a compras na cidade, dava-lhes mesadas generosas. Todos o consideravam um segundo pai, generoso e compreensivo, quebrando a severidade das exigências maternas
Uma prova da facilidade com que se entendia com os jovens, os da família e os outros, foi o terem-lhe pedido, e ele ter acedido, a ser o encenador de uma peça de teatro, escrita e representada por jovens estudantes gondomarenses em Setembro de 1933 que ficou nos anais da Vila. Uma revista à portuguesa, alegre e mordaz, de crítica hilariante de costumes e acontecimentos locais, com o sugestivo título “O Nabo”. Nunca se tinha visto, nem voltou a ver-se nada de semelhante.
Gondomar, terra de ourivesaria artística e de fértil agricultura tem, como “ex-libris” naturais, quer o coração ou a caravela de filigrana, quer o nabo, de incomparável qualidade.
O nabo era mais apelativo à paródia do que a gloriosa caravela e nele recaiu a escolha da comunidades académica, designadamente dos quatro autores principais, entre os quais se destacava o Manuel Aguiar
O papel do tio Alexandre nesse retumbante êxito teatral era desconhecido, até ao momento em que foi encontrado numa mala, no meio de cartas e postais antigos, um exemplar do jornal comemorativo do 25º aniversário dessa récita sensacional.
O verão de 33 foi inteiramente dedicado aquele projecto colectivo, coisa de rapazes no seu fim de curso liceal ou começo de faculdade, com a exceção de três colaboradores da geração mais velha, o Maestro Moura, que musicou os poemas e dirigiu a orquestra, Alexandre Mendes Barbosa, que foi o paciente e bem-disposto ensaiador, e o Abade Crispim, que , com a sua autoridade, deu o aval ao ousado cometimento da juventude académica. Curioso o convívio entre o laicíssimo Alexandre e o Padre Crispim, aliás, grande amigo de sua mana Maria. Em vão, diga-se, tentava ele moderar os ímpetos de excessiva generosidade com que ela enchia as caixas de peditórios da igreja. Não fora acostumada, durante o casamento, a preocupações de economizar em coisa alguma, e muito menos nas dádivas para iniciativas da paróquia.
Há um curioso bilhete escrito por Alexandre a essa irmã, em que se revela, como é sabido que era, o seu conselheiro para a gestão de património. Nesse dia ele procurara a irmã ao longo do sia, fora três vezes à Vila Maria sem a encontrar, até que desistiu e lhe deixou aquela nota.
Ela precisava demais dinheiro, não é dito para o quê, e queria desfazer-se de algumas acções (sua principal fonte de rendimentos), o que ele achava contra indicado, recomendando preferentemente a venda de jóias, que não davam dividendos. O que tais diligências indirectamente revelam é como era ocupada a agenda quotidiana de voluntariado, a que a irmã se votava…
(CARTA)
Educado como católico, pelos pais, o Tio Alexandre foi ateu, ou agnóstico, na maturidade, mas sentiu o apelo da fé na hora da morte, (provocada por cancro nos pulmões). Quis que lhe chamassem um padre para se confessar e receber a extrema-unção. Ao abade Crispim sucedera, o Abade Andrade, irmão do Bispo do Porto, Dom Florentino, igualmente amigo da benemerente D. Maria Aguiar. Chamado por ela, chegou, de imediato. Ouviu, longamente, o moribundo e escutou as suas últimas palavras. Voltou do quarto muito comovido e disse à família, reunida na sala de visitas: "Acaba de morrer um santo". Os amigos republicanos e laicos, (laicos como ele fora até aos momentos derradeiros), e anticlericais, diriam o mesmo, de outra forma. Talvez: "morreu um justo".
Os sobrinhos Barbosa Aguiar choravam a partida de um insubstituível amigo e protector.
A tia Hermínia sobreviveu por alguns anos, mantendo a convivência preferencial com a Leninha. Foi de sua casa que esta sobrinha dileta, logo que atingiu a maioridade legal (então 21 anos), saiu para casar, contra a vontade da mãe, com o namorado David D’ Almeida Ribeiro. Um muito longo e feliz casamento provou que quem estava certa era a perspicaz tia Hermínia.
CARTAS DE HERMÍNIA PARA A CUNHADA MARIA
Do tio Alexandre não se encontraram as cartas, que terão sido frequentemente enviadas à irmã Maria no Rio de Janeiro. Já da tia Hermínia sobrevivem duas longas e interessantes missivas enviadas à cunhada, em 1912 e em 1914.
ANTÓNIO MENDES BARBOSA
O primogénito dos oito filhos de Carolina Ferreira Ramos foi de todos o que mais se envolveu na política, e o que pagou o preço mais alto pelo seu radicalismo, Terá sido, desde a mocidade o mais rebelde? Não há informação alguma sobre esse período. As irmãs contavam histórias só da fase das prisões e do degredo por razões políticas. Era republicano, como o eram a maioria dos irmãos e dos tios Ferreira Ramos. Mas António era mais do que isso: anarquista, revolucionário, talvez, embora isso nunca tenha sido dito, membro da Carbonária. Preso no Aljube esteve várias vezes e o pior aconteceu-lhe, durante o consulado de Sidónio, em 1918, com a condenação e exílio para São Tomé
São Tomé foi não só uma pausa forçada nas escaramuças partidárias, como a oportunidade de conhecer paisagens, gente e costumes, e de ter rapidamente acedido a empregos bem remunerado.
Desse tempo só há uma notícia e bem reveladora do seu impagável sentido de humor. Já então tinha perdido os dentes e usava uma dentadura postiça, que era coisa completamente desconhecida entre os nativos da colónia. Pois bem, descobriu que os podia espantar “arrancando” a prótese e exibindo-a na mão. Assim se tornou um personagem deveras temido e reverenciado…
Desaparecido Sidónio, pode regressar, e trouxe consigo com um bom pecúlio. Tê-lo-á investido num "café -concerto", onde, não surpreendentemente, não o ajudaram a sorte e a boa gestão.
Voltou a um emprego, já não na administração pública, para o qual o activismo político o tornava indesejável, durante a ditadura do Estado Novo, a que não sobreviveria.
Por esta altura já estava viúvo. Da mulher, que seria mais ou menos da sua idade e terá falecida muito cedo, ninguém nunca falou, ao contrário das muitas referências feitas a consecutivas companheiras espanholas, manifestamente mal aceites pelas irmãs. Viúvo e frequentador do meio boémio, ele sentia-se livre para procurar, no corpo de bailado dos teatros e casinos, as suas espanholas, a última das quais foi a Teresita, Uma ligação duradoura, e, por isso, tolerada, a custo, pela cunhada Maria, menos flexível do que Jesus Cristo na indulgência para com as pecadoras. Ou das “sobrinhas” por afinidade, não pelas mesmas razões, porque a Teresita era metediça e sempre pronta a denunciar qualquer “pecadilho” por elas cometido. Coisas do género de: “Vi a Lolita – ou a Mariazinha – à conversa com um rapaz”… Delações que desencadeavam, de imediato, reprimendas e castigos.
Era usual, António refugiar-se em casa da irmã, senhora insuspeita, para escapar a perseguição política e a mais uma estada no “Aljube”, levando consigo, para a Vila Maria, a Teresita e um cãozinho (tinha sempre um cãozinho e punha-lhes nomes ambíguas, que permitiam segundos sentidos – incorrigível em velho, como fora em novo. As sobrinhas, dele gostavam imensamente, assim como do cão, mas tinham de suportar a vigilância e as denúncias da intrometida Teresita.
Consequente até ao fim, António deixou a exigência de enterro civil, para desgosto das irmãs, que se fecharam em casa. O velório decorreu à sombra não do crucifixo mas de um busto da República e ninguém quis, ou conseguiu, afastar do caixão o seu último e fidelíssimo cão.
Um enterro laico era, para os católicos daquela geração, uma morte eterna pior do que a morte terrena. Ainda não viam Deus como suficientemente justo para receber nos céus um bom ateu, como hoje crescentemente se acredita, tanto ou mais do que num Deus mesquinho e sectário.
Teresita viu-se abandonada e teve um triste fim – velha e demente.
ALBERTO MENDES BARBOSA
De Alberto não há histórias que nos permita traçar-lhe um perfil humano. Só há fotografias e factos que não ajudam à sua individualização. Tal como o irmão Alexandre, foi secretário da Administração da Câmara, no seu caso, Gaia ou o Porto, cidade onde passou a morar.
Era certamente próximo de António e Alexandre, e é de supor que se encontrariam frequentemente nas tertúlias da “Brasileira" e nos teatros da cidade.
Como os irmãos, exceptuado o Padre Américo, escolheu uma carreira no funcionalismo público e era um republicano militante, e terá, ele também, estado enclausurado no Aljube, ainda rapaz solteiro. O casamento com a jovem Maria do Rosário, Zarita, não o desviou das convicções ideológicas, mas abrandou os rasgos revolucionários. Tornou-se um sereno pai de família – pai de três filhos, Américo, descrito numa carta do avô Joaquim com doente e muito cábula, Mário Barbosa, o bom aluno, que se formaria em Medicina e uma filha, invulgarmente bonita e inteligente, Maria Isabel (Mimi), que viria a dar-lhe por genro o pintor Mário Ferreira. Mais do que os pais e os irmãos, Mimi era uma assídua visita da Vila Maria, íntima amiga das Tias Rosaura e Maria Era apenas poucos anos mais nova do que a tia Maria. Como ela ficou viúva, ainda jovem. A sua única filha, Maria Laura, aparece em muitas fotografias com a Mariazinha e a Lolita, que eram, quase da mesma idade.
Veio a casar, alguns anos mais tarde do que elas, com Luís Aragão, um homem cheio de “charme”. Tinha, ao que se dizia, de ascendência francesa, loiro e de olhos azuis, elegante e distinto. A seu lado, Maria Laura marcava o contraste, morena, viva, de aspeto e temperamento bem latinos. Sempre tão chique quanto extravagante, não hesitava em passear pelas ruas do Porto o seu casaco de leopardo, (ao tempo ainda não assumido como espécie protegida…). Luís Aragão era despachante da Alfândega do Porto, quando esse cargo estava no seu mais alto patamar.
Ficaram famosas as receções na sua casa no Porto, onde as primas Aguiares nunca faltavam. O casal tinha dois filhos, Anabela (Bebinha e Luís). Também nesta terceira geração, havia uma diferença de idade, as primas de Gondomar eram mais velhas, mas não o suficiente para prejudicar o convívio de igual para igual. Todas as meninas gostavam da dança que fazia furor, o rock and rol, que animava as tais memoráveis festas.
JOSÉ BARBOSA RAMOS
O último dos rapazes, nascido quando a mãe estava já na casa dos quarenta. Depois dele só uma menina, Maria da Conceição, veio aumentar a família.
Aluno excecional, José seria o único a estudar em Coimbra, onde se formou em Direito. Foi contemporâneo, se não mesmo colega de curso de António de Oliveira Salazar, com quem não partilhava ideologias, mas com quem parece ter convivido de perto. Os bons alunos tendem a constituir um círculo pequeno e essa pertença terá constituído a maior das sintonias.
José não enveredou pela carreira académica, voltou ao norte, exerceu a advocacia, envolveu.se na política, como deputado eleito pelo círculo do Porto. Ativista incansável, foi proprietário e diretor de um jornal de combate, “O Progresso de Gondomar", antes de ingressar na magistratura.
Um outro colega de Coimbra, Dá Mesquita acabaria por marcar mais duradouramente o seu destino, não na profissão, embora ambos viessem a ser juízes conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça, ou na política, pois se supõe ter sido este amigo mais conservador, mas na vida pessoal. Através dele conheceu uma irmã por quem, em Coimbra se apaixonou e com quem casou, Maria Celestina Mesquita de Abreu, a muito estimável tia Celestina, de perfil não muito diverso do da Tia Hermínia, a cunhada minhota. As perfeitas donas de casa. Hermínia menina de colégio elitista, Celestina criada numa casa senhorial em Avô. T
José e Celestina tiveram dois filhos, José Joaquim (Zé Quim) e Maria Celestina (Tininha) Mesquita d' Abreu Barbosa.
O juiz José Barbosa Ramos cumpriu uma trajectória fulgurante, tornou-se o mais jovem juiz de sempre a ascender ao Supremo Tribunal de Justiça. Acabaria aposentado compulsivamente, quando ainda tinha muitos anos pela frente, por uma questão política, devido ao seu envolvimento em tentativas de derrube do regime.
Durante o seu percurso, a família acompanhou-o na deambulação por várias comarcas do país (Santo Tirso foi uma das primeiras), mas mantinham em São Cosme, a casa que fora dos pais Carolina e Joaquim, perto da Praça Manuel Guedes.. O Zé Quim e a Tininha foram bons companheiros de brincadeira dos primos Barbosa Aguiar, como comprovam muitas fotografias na Vila Maria, na Foz, em Vizela
Tininha foi uma pioneira, a primeira mulher da família a completar um curso universitário (Farmácia), que exerceu, por várias décadas, como proprietária e diretora de uma farmácia em Valongo.
José Joaquim licenciou-se em Histórico-Filosóficas e foi Bibliotecário da Universidade de Coimbra. Na geração anterior, o pai distinguira-se, como político, republicano progressista. José Joaquim transportaria o progressismo paterno para dentro das fronteiras do PCP, afastando-se, depois da revolução de 74 para a área adjacente do MDP/CDE, mais compatível, supõe-se com a sua irreverência de espírito.
Grande cultor de Letras e Artes, e coleccionador de estatuária religiosa, quem o visitasse, sem o conhecer bem, e olhasse trípticos e quadros dependurados nas paredes do seu andar da Rua dos Combatente, em Coimbra, julgá-lo-ia um muito devoto cristão e não, como realmente era, um ateu convicto.
Herdara o sentido de humor mordaz, que costuma conotar-se com os Barbozas, (embora venha, de facto, mais no ADN dos Ferreira Ramos. Jovem bonito, muito moreno, fisicamente mais Mesquita do que Barbosa, teve mil e uma namoradas, até casar com Maria da Luz Biscaia (Luzinha). Após divórcio de Luzinha, nos anos setenta, a sua companheira foi uma americana leitora de inglês na Faculdade de Letras, Janice, Teve cinco filhos, dois de Luzinha (José Severo e Madalena) três de Janice, que gostava de ser chamada Nina (Daniel, Paulo e André). O terceiro e o mais feliz dos casamentos foi o último, com uma colega bibliotecária,Maria Teresa.
Celestina foi casada com José Martins – um casamento sem descendência. Contudo José tinha filhos de uma outra ligação, que a Tininha, com uma pouco usual (e, por grande parte da família, não muito apreciada) complacência, acolheu como se fossem seus).
J - AMÉRICO MENDES BARBOZA
Dos cinco homens da família, Américo foi o único que sentiu, desde menino, tal como o pai da sua idade, o chamamento religioso. Foi, também, o único monárquico, que acompanhava, ideologicamente, os pais e as três irmãs, Rosaura, Glória e Maria. De Carolina, a mãe, se ignoram, em rigor, as convicções políticas, embora não custe admitir que fosse monárquica, como tendia a ser, nesse tempo, o género feminino.
Divididos nas escolhas políticas, mas afetivamente unidos, nunca deixaram que divergências de opinião interferissem na sempre boa relação entre todos. Prova disso é o facto de António, ter sempre encontrado refúgio na Vila Maria, onde a polícia do regime não se lembraria de o procurar, junto da irmã, dirigente local da "Obra das Mães" e de outras obras patrocinadas pelo regime. Às criadas, a avó Maria Aguiar dizia: "Daquele Senhor, que está lá em cima, não se fala a ninguém". E elas não falaram nunca.
Ao irmão padre talvez não tenha ele querido recorrer, por razões várias, entre as quais, a vontade de não o comprometer e o desconforto que lhe causaria um ambiente de intensa religiosidade.
Na verdade, o Padre Américo Barbosa não era aquele tipo de pároco sociável e folgazão, sempre pronto a aceitar a hospitalidade à volta de uma mesa farta, era exactamente o contrário, muito piedoso e austero, mais pronto à meditação e à oração do que a grandes festanças, mas adorado pelos paroquianos, porque era também, um guia espiritual, amigo e compreensivo, sempre pronto a prestar ajuda e a dar uma palavra solidária. Muito afectuoso, muito ligado à família, visitava os pais, com frequência, esperava, com ansiedade e alegria, as visitas da família, não faltava ao reencontro dos sobrinhos Maria e de António e dos meninos, quando chegavam do Brasil.
Era esse o retrato psicológico que dele esquiçavam as irmãs, confirmado em breves menções nas cartas de seu pai. Numa delas, refere a ausência do filho padre, para frequentar um curto retiro na Galiza, porque não havia igual no Porto ou no norte do país. Noutra, com alguma graça, conta que a mãe fora repreende-lo, porque passava tempo demais no desconfortável e gélido confessionário da Igreja.
Compreende-se porquê, atendendo ao estado de saúde desse filho, que era muito débil. Sofrera de tuberculose, no princípio do século, resistira a um primeiro contágio, que vitimou a irmã Glória, ambos cuidados, dedicadamente, por Rosaura, Depois, na década de 20, o reaparecimento da doença ser-lhe-ia fatal.
Na correspondência do pai muitas das referência visando Américo são a vulgares gripes, constipações, ataques de tosse, que nele faziam recear o pior.
Foi pároco em terras do Minho e nos arredores do Porto, Gondalães e Rio Tinto Morreu com aura de santidade, entre os paroquianos, que o invocavam nas suas preces e lhe faziam promessas.
Santo, na voz do povo. “Vox populi, vox Dei”! A referência a esse tributo popular passou de geração em geração, no círculo familiar. Uma sobrinha neta que se atreveu a conta-la num colégio de freiras foi chamada a capítulo e proibida de a repetir. A menina não podia obrigar as madres a irem a Gondalães ou Rio Tinto ouvir a voz de paroquianos, pelo que se calou, vencida pelo veto, mas não convencida, no seu íntimo, mais crente no sentir popular do que no preconceito das religiosas…
GLÓRIA BARBOSA RAMOS
Glória, das filhas de Carolina e Joaquim, a única que quis continuar estudos, no Porto. Os rapazes seguiram, um para o seminário, todos os outros para os colégios da cidade. Não era caminho aberto às raparigas, embora também não lhes fosse interdito. Depois do ciclo primário, podiam limitar-se a ter, em casa, aulas de piano de língua e cultura geral, sem grande rigor ou obrigação e a aprender as artes domésticas de cozinhar e bordar.
Glória escolheu continuar o ensino oficial e terminou, com facilidade, o curso do Magistério na Escola Normal, tornando-se a exceção. Contudo, não chegou a exercer o cargo de professora - a tuberculose levou-a aos 21 anos. Do Porto, terá trazido, além do diploma, doença incurável, a tuberculose. Preferiu ficar em casa, não ir para um sanatório de montanha, como quem vai para o exílio. Rosaura, a irmã mais velha, ofereceu-se para a tratar, dia e noite, como trataria, seguidamente, o irmão, o bem-amado Padre Américo Barbosa
Ao contrário de Rosaura, a mais recatada e tradicionalista das irmãs, Glória era uma rapariga moderna, de uma formosura exuberante. Não hesitava em passear, na modesta vila de São Cosme, os seus vestidos citadinos, levando com ela, lado a lado, igualmente alta e chique, Maria, e, atrás, consumida e vigilante, a mana mais baixinha e modesta, com nome de heroína de romance.
Paravam os moços de Gondomar, espantados para as ver pisar caminhos de terra batida como quem desliza em passadeira vermelha e atiravam às meninas os costumeiros galanteio e gracejos, a, que, às vezes, elas ripostavam (ou melhor, no singular, ripostava Glória, ria Maria, discretamente, e quase chorava a conservadora Rosaurinha, com o despropósito).
Seria a jovem professora uma adepta do movimento "feminista"? Não é hipótese que se possa provar, porque morreu antes desse movimento ter ganho visibilidade pública, o que só aconteceu depois de proclamada a República. O mais que se pode dizer é que tinha o perfil e a audácia exigíveis, e convivia, dentro de casa, com as ideias revolucionárias dos irmãos mais velhos. Vai permanecer dúvida. As manas não se lhe assemelhavam e, voluntária ou involuntariamente omitiram a questão que não as interessava especialmente. Apenas contaram que era determinada, inconformista e excelente amazona. E inspirava paixões. Um primo Lobão dedicava-lhe bonitos poemas, supõe-se que fosse correspondido. Um namoro em fase incipiente.
São muitas fotografias que dela nos dão uma imagem de autoconfiança e determinação, de alguém que sabe o que quer, e é capaz de aceitar desafios. Se não foi ideologicamente feminista, foi-a na sua prática quotidiana.
Apesar de tão cedo ter partido, aos vinte anos, é única mulher da família a figurar na monografia do concelho de Gondomar.,
Um quadro seu, de grandes dimensões, dominava a galeria dos retratos da Vila Maria. Entre os muitos gestos de voluntária cooperação da avó Maria na vida social da vila, conta-se, curiosamente, o repetido empréstimo desse retrato, para récitas e peças de teatro da Ala Nuno Álvares, como ornamentação de parede das salas de estar de palco. O mesmo acontecia com o piano
(incrível a cedência do pesadíssimo piano alemão, "Riese", que fazia o curto trajeto para o Souto em carro de bois, segundo os relatos de Maria Antónia, ela própria executante musical e atriz de várias das comédias, que divertiram a boa sociedade gondomarense.
O empréstimo do retrato era, possivelmente, visto por Maria Aguiar, como uma forma de a a fazer presente, de a lembrar, em toda a sua beleza e juventude.
ROSAURA BARBOSA RAMOS
Rosaura frequentou a escola primária oficial em São Cosme, como as irmãs, depois teve lições particulares. Desses tempos, guardou cadernos de exercício de caligrafia e, também letras e assinaturas bordados em lã e muito graciosas. Ao longo da vida, teve sempre essa virtuosa tendência para conservar coisas - tudo, objectos, cartas, fotografias, loiças e móveis. Talvez por sua influência a sobrinha Maria Antónia, desde cedo, revelou semelhante inclinação
A uma e outra se deve a preservação da boa parte do que resta de espólio de documentação sobre a família, assim como mobiliário e louças antigas.
Ambas eram, também, grandes contadoras de histórias, mais precisa e minuciosa a tia do que a sobrinha, que muitas vezes se deixava confundir com nomes e graus de parentesco e até misturava mais do que na realidade estavam entrelaçados, os ramos da família. A tia Rozaura, pelo contrário, comprazia-se no detalhe, nunca falhava um pormenor, dando colorido a todas as descrições, fosse dos disparates do Zezinho da Travagem (um primo com deficiências mentais e comportamentais divertidas), quer da sua peregrinação a Lourdes – onde não faltava a tragédia de uma peregrina que se debruçou da janela do comboio e ficou com a cara esfacelada (nunca mais nós, as crianças que escutamos esse episódio de estarrecer, ousámos pôr a nossa cabeça de fora dos limites fosse em que veículo fosse …).
Extraordinariamente dotada para delicados trabalhos manuais, rendas e bordados, era perspicaz e inteligente, mas muito discreta, despretensiosa no vestir, e poupada nos gastos consigo e com a casa, o que lhe permitiu resistir, depois de enviuvar, a uma vida de dificuldades económicas, mantendo sempre uma casa confortável, aberta e hospitaleira e uma criada fiel, porque era exímia em ganhar a sua estima (das que conheci, primeiro a Maria Póvoas, durante cerca de trinta anos, e depois a Olívia Pessegueiro, por mais de trinta).
Na senda do pai e do irmão Américo, viveu para os outros, como pessoa bondosíssima, sempre pronta a ajudar e a partilhar o que tinha de seu, a casa, os serviços da criada, bons conselhos e até dinheiro.
Foi a incansável enfermeira dos dois irmãos, não pode, por fim, evitar o contágio...Ela porém, não ficaria a ser tratada em casa - decisão sua certamente para poupar mais riscos no círculo próximo, no que foi apoiada pelos pais, talvez cada vez mais crentes na solução hospitalar
Partiu para o sanatório do Caramulo, onde ficou por muitos e muitos meses. Aí viveria uma grande paixão, com um médico que lhe retribuía os sentimentos, o Dr Manso, ou Amâncio, também ele já afectado pela tuberculose. A doença os reuniu e os acabaria por os separar, porque ela se curou e ele não, pelo menos, nessa fase. A tia Rosaura guardou numa caixinha, atadas com uma fita de seda, as cartas por ele escritas, deixando pedido de que fossem enterradas com ela. E assim seguiram com ela, para o seu jazigo em São Cosme, sem que ninguém ousasse abri-las e lê-las, muito embora fosse grande a tentação de as preservar, e a todas as histórias que continham
A Gondomar regressou, pois, saudável, tendo resistido a dietas espantosas, (que incluíam uma dúzia de ovos por dia) e fazendo muitas amigas, sobretudo do sul do país, meninas da alta burguesia, igualmente arrancadas à morte certa pela competência do Dr Manso (ou Amâncio). Com elas se correspondia e, por várias vezes, visitou as melhores amigas nas suas quintas dos arredores de Lisboa. Estava num solar de Benfica, em 1908, aquando do regicídio, e pode assistir, com a anfitriã, às exéquias do Rei D Carlos e do Príncipe Real Luís Filipe, muito loiro no caixão, com os vestígios impossíveis de disfarçar da bala que lhe atravessou a têmpora.
Se monárquica já era, mais intransigente se sentiu. Foi reduto em que não conseguiu influencia-la o médico beirão republicano, e amigo de Afonso Costa, que, um dia, lhe apresentara durante um passeio na serra, O político não teve receio de fazer companhia a um seleto grupo de doentes já no bom caminho da cura. Desses passeios frequentes há imagens muito bonitas, junto a quedas de águas, algumas encaixilhadas que, com a exposição à luz chegaram bastante sumidas ao presente. Em nenhuma delas se vê o famoso Afonso.
Certo é que a jovem de Gondomar teve no sanatório, numa verdadeira Suíça portuguesa, entre tempos de repouso forçado, uma intensa vida social, de que falava com entusiasmo.
Sobreviveu, rija e saudável, até ao ano em que completaria o seu centenário (1979).
Casou, anos mais tarde, já com mais de 30 anos, com o simpático viúvo, funcionário da Contrastaria, MANUEL MARQUES. O facto de ter sido o padrinho da Mariazinha é a melhor prova da estima em que tinham os cunhados
Do primeiro casamento tinha ele um filho já adulto, Armando, de quem todos gostavam, mas com quem conviviam pouco. Morava, talvez em Braga, de onde, tal como o pai, era natural. De Braga, ficou famosa nos Natais de Gondomar uma receita regional de "formigos" ou “mexidos", doce delicioso, à base de pão, mel, pinhões e passas, que ninguém fazia tão bem como a Tia Rozaura - artista incomparável, tanto na cozinha, como nas rendas e bordados, que saiam das sua mãos. Aos 95 anos, terminou uma enorme colcha em crochet, da mais alta complexidade técnica! - e mais teria empreendido, se as sobrinhas não a dissuadissem, receando pela sua saúde, porque exagerava no andamento do trabalho, com receio de morrer e deixar a obra inacabada...
Foi uma velhinha encantadora, com uns olhos vivos e perspicazes, gostava de falar por aforismos e provérbios, e até de usar um "calão" ligeiro, (que escandalizava a irmã e afilhada Maria, incapaz de dizer uma palavra imprópria). Eram radicalmente diferentes, Maria sempre pronta a sair, a passear, a conviver, a liderar iniciativas e a influenciar o seu círculo social, enquanto Rosaura de bom grado se quedava em casa, tricotando, conversando e lendo (sobretudo jornais, analisados de ponta a ponta), vendo televisão, sempre recatada e serena, embora pudesse fazer comentários certeiros e ácidos, a quem, perante ela, caía no ridículo ou a quem conseguia desmascarar jogadas de intriga ou oportunismo.
Numa pessoa tão prudente, hábil e sábia se estranha a decisão mais errada que tomou na vida e de que haveria de se arrepender: - um segundo casamento, já quase sexagenária, com um "brasileiro" de torna-viagem. MANUEL LIMA. Revelou-se homem de mau feitio, que a sua serenidade foi suportando, até que se viu viúva, de novo, e em pior situação financeira, depois da dispendiosa doença que levou o falecido. Com muito sentido prático, hábitos antigos de poupança e o apoio de uma criada dedicadíssima, Maria da Conceição Póvoas, atravessou aqueles tempos em que não existia segurança social, vendendo apenas uma pequena quinta, "a Passagem. A quinta, com a sua pequena casa rústica estava arrendada a um caseiro, mas havia uma parte de árvores de fruta que a Tia Rosaura mantinha para si, entre elas nespereiras que davam frutos ainda hoje lembrados como magníficos espécimes.
Conservou tudo o resto, as "relíquias de família" - móveis, loiças, relógios, jóias, bordados, linhos e "bibelots" - contando à Maria Antónia, que sendo afilhada do marido era como se fosse sua, e as suas filhas, minha irmã Madalena (Lecas) e eu, o historial de cada objecto.
Os meus pais passaram mais de sete anos na Vila Maria, numa parte do primeiro andar da casa (o segundo andar passou a ser ocupado, no fim dos anos quarenta, pela tia Lina e família, que pagavam à mãe uma pequena renda e fizeram obras, retirando à casa de banho um espaço onde construíram a cozinha, ficando, ainda assim, as duas divisões suficientemente amplas), mas uma querela entre a mãe e filha Mariazinha, levou esta a ser, juntamente com toda a família, hóspede da Tia Rosaura, que já estava viúva do segundo marido, e ficou encantada por ter consigo as sobrinhas preferidas.
Foram anos, sete ou oito, muito felizes. A Tia Rosaura e a criada Maria adoravam as meninas. A casa da Pedreira tinha um mirante, coberto de Glicínias, com vista para o imponente tanque de pedra retangular, lavandaria coletiva, onde, todos os dias, dezenas de mulheres esfregavam energicamente cestos e cestos de roupa, no meio de grande vozearia. Um espectáculo...
O terreno era bastante grande e plano, plantado de flores, videiras e árvores de fruta, pessegueiros, pereiras, laranjeiras e junto ao galinheiro e ao tanque um quadrado relvado, muito próprio para jogos de bola, que muitas vezes ia parar abaixo, ao quintal da Adriana, que a inclinação natural da colina, situava num plano cerca de dois metros abaixo. Recuperá-la implicava negociações difíceis, quando a bola causava estragos.
A casa de pedra de pedra com oito divisões amplas, tinha sido originariamente destinada a lavoura. O andar de baixo era de terra batida, e, para a Tia Rosaura, servia só de adega e arrecadação, onde guardava grandes quantidades de carvão e de lenha.
O gato da casa era preto e branco, chamava-se Lulu e não apreciava as brincadeiras das crianças, aliás muito amigas de animais. Levámos para lá a nossa cadela Chinita, (pequinois, de raça pura) que teve também um relacionamento distante, mas pacífico com o insondável Lulu. A tia adorava o gatarrão, a nossa cadelinha mansa e as suas galinhas poedeiras.
Esses foram, para a Lecas e para mim, os anos de internato no colégio do Sardão e, como, nas férias, passávamos temporadas em Avintes, o verão em Espinho e dividíamos as estadas em Gondomar entre a Pedreira e a Vila Maria (eu, sobretudo, ficava frequentemente com a Avó Maria), a permanência na Pedreira não era constante, mas foi sempre agradável. A tia estava, afectivamente, no mesmo plano da avó Maria e dos avós de Avintes.
Em 1958, muito influenciados pelos insistentes pedidos das filhas os meus pais arrendaram, um andar no Porto, na rua Latino Coelho, a dois passos do Colégio da Paz, um externato, onde as meninas deviam continuar como alunas das irmãs Doroteias (só a minha irmã para lá foi, eu escolhi, contra vontade da família, um Liceu, o Rainha Santa, a considerável distância, mas mais a meu gosto).
E a situação inverteu-se – foi a Tia Rosaura que passou a vir passar dias de visita ao Porto, e, por fim, porque a idade já era avançada, ficou a morar connosco, ela e a sua criada Olívia. E, quando nos mudámos para Espinho, para um andar bem maior e mais confortável, com varandas para a rua 16 e vista para o mar, ela acompanhou-nos.
Consigo trouxe recordações, pertences do maior valor afectivo, e o seu dom de criar bom ambiente e de nos falar de outros tempos. Era difícil arranca-la de dentro de casa. Andou sempre pelo seu pé, mas com crescente dificuldade. Lá dentro, porém, estava a par de tudo, lia os jornais, via televisão até ao fecho da emissão, telefonava à família, interessava-se pelo que acontecia à sua volta, mantinha os olhos muito vivos e a sua memória prodigiosa
Custou-lhe, com certeza, muito desfazer a casa da Pedreira, onde tudo tinha o seu lugar, tantas mobílias antigas, de seus pais, que exigiam espaço e pé direito, paredes altas, embora a maior parte tenha transitado para Espinho, para um andar então arrendado para férias. Manteve-a ainda por alguns anos, depois de residir no Porto, fazendo à Pedreira, de vez em quando, romagens de saudade. Em vão o senhorio, desejoso de dar destino mais rentável à propriedade, lhe moveu um processo de despejo. Perdeu a acção. A tia, como associada de uma união de inquilinos, teve direito a advogado e alegou, sem faltar à verdade, que estava ausente no Porto, junto de uma sobrinha, por razões de saúde.
Já antes, na década de cinquenta, tinha corrido o risco de perder a casa e, dessa época, há correspondência sua, que revela a sua aflição e o seu completo desânimo. A Câmara ameaçava obrigar à demolição de parte do edifício, para alargamento das vias de acesso, o que podia deixa-la sem teto, se as paredes antigas ruíssem como castelos de cartas. Em qualquer caso, já então o senhorio se mostrava indisponível para custear a reconstrução
Os móveis e mais bens poderiam ser facilmente recolhidos nas enormes caves da Vila Maria, mas não era solução que lhe conviesse. A dar bem a medida das diferenças entre a tia Rosaura e a avó Maria, na forma como se organizavam e cuidavam dos seus haveres, desabafa que tudo o que para lá fosse se desperdiçaria, pois a irmã nem as coisas dela conservava, deixava que tudo ao Deus dará - o que não era propriamente um exagero, pois a Avó até pequenos larápios recrutava par o seu serviço, na bela e cristã intenção de os regenerar, é claro, e, uma vez, até encarregou um deles de procurar um valioso brilhante, que se tinha desprendido de um anel, quando manuseara roupas, num dos quartos. Como era previsível, o brilhante nunca mais foi achado…
Num dos muitos pequenos bilhetes escrito nesse período agitado à sobrinha Mariazinha, também dá conta de muitos outros desaguisados com a mana (e afilhada), habituada a impor-lhe afazeres, a ela e à sua criada, que tratava como se fosse sua, sem nunca ter a noção dos sacrifícios que Rosaura suportava. E sempre fora assim. Prestável e disponível, em excesso, chegou ao ponto de lhe exigirem o impossível…
Mas teve a compensação de um fim de vida confortável e despreocupado junto da sobrinha que a tratou como sua mãe, e com isso se limitou a retribuir o que dela tinha recebido
GLÓRIA BARBOSA RAMOS (FALTA O INÍCIO)
Glória foi a única das filhas de Carolina e Joaquim, que se aventurou a viver fora de casa para, no Porto, onde concluiu, com facilidade, o curso do Magistério Primário. Dos rapazes se esperava que terminassem o liceu, frequentados bons colégios, (ou, no caso de um deles, Américo, o seu equivalente no seminário), seguindo, eventualmente, para a universidade, onde só o mais novo, José, se formaria, em Direito. Para as meninas, o ensino oficial era facultativo. Depois de terminada a primária, podiam ficar em casa, com aulas particulares de piano, de línguas, de cultura geral, sem grande rigor ou obrigação, e aprendiam, sim, o que se considerava primordial, as artes domésticas de cozinhar e bordar. Mas a impressão que se insinuava no tom das narrativas tanto da avó Maria como da sua irmã Rosaura, era a de um ambiente familiar bastante conservador nos valores, mas muito aberto no relacionamento entre as gerações, os pais confiantes nas escolhas individuais dos filhos. Não há o mais leve indício de que tenham contrariado noivados ou casamentos, influenciados opções profissionais, criado conflitos ou feito oposição à diversidade de posicionamentos políticos.
Glória pretendeu fazer estudos no Porto e foi encorajada e admirada por isso, mas não sentia grande queda para o ensino, segundo o testemunho de Rosaura, nunca quis procurar colocação, terá buscado, sobretudo, uma forma de aprendizagem de conhecimentos e de vivência em horizontes mais largos. Distinguia-se pelo seu espírito forte, independente, interventivo, era uma hábil cavaleira, gostava de cavalgar a égua do pai (que ele mantinha não tanto por desporto, mas para se deslocar em serviço, num concelho vasto, como é o de Gondomar).
A tragédia da sua morte abalou a família profundamente e foi muito sentida na vila. Para além de ser a bonita filha do prestigiado tabelião e de gente com tradições na terra, brilhava com luz própria. Chegou às páginas da imprensa gondomarense, guardadas cuidadosamente, embora sem datas precisas, nem indicação do título do jornal.
"Gondomar, 25 - Falleceu hontem, na primavera da vida, quando tudo lhe sorria, com a idade de 21 anos, a Srª D. Glória Mendes Barbosa, gentil e adorada filha do digno tabelião deste concelho Sr Joaquim Mendes Barbosa. Era uma menina simpática, prendada e de finas qualidades de educação. Aos seus pais, que a adoravam, e aos irmãos Alexandre Mendes Barbosa, secretário da administração deste
Concelho e Américo Barbosa, abbade de Gondalães e à restante família enlutada os nosso profundos sentimentos. O seu enterro realiza-se amanhã, à 9.00, na Paroquial igreja de Gondomar".
A mais destemida e a mais culta das raparigas, terá sido, realmente, especial - "adorada", como diz e repete o periodista. Mulher pensante e atuante, querida de todos. Fora o centro de um grupo alegre de jovens, de que os irmãos faziam parte. Um seleto círculo, ou, como diriam então, "a fina flor” da terra. Ao primo Lobão, que era o seu namorado, inspirou poemas lindos, que se perderam. O seu retrato estava num lugar destacado, nas paredes das casas de todos os irmãos. E, como pioneira que foi, tem o seu nome inscrito e destacado na monografia do concelho de Gondomar. De nenhuma outra mulher da família, no seu tempo ou no que a antecedeu, se pode dizer o mesmo.
MARIA DA CONCEIÇÃO
Maria, em criança, parecia a mais frágil das meninas, mas estava destinada a ter uma vida longa, um marido apaixonado e oito filhos num casamento muito feliz, durante os 16 anos que durou, e, depois, um notável percurso de intervenção cívica. Também ela fez jus a figurar nos anais da Vila.
A Senhora Dona Maria Aguiar era conhecida e reconhecida em todo o Gondomar, por si própria, pela sua incansável acção na paróquia e na comunidade – ainda que com o apelido do marido fielmente adotado e mantido. Coisa rara, pois as senhoras, eram identificadas, quase sempre, apenas, como "mulheres dos seus maridos". ou "mães dos seus filhos", até nas notícias de jornal, nas colunas sociais. Assim vemos referida, por exemplo a bisavó Carolina, a propósito de uma simples festa:
"Passou no último domingo o aniversário natalício da Srº D. Carolina Ramos Barbosa, esposa do estimado e bemquisto notário local, Sr Joaquim Mendes Barbosa. Por esse motivo vieram a esta vila seu filho, Sr Dr José Barbosa Ramos, novel advogado e ilustre director e proprietário do semanário local "O Progresso de Gondomar" e o Sr Deolindo Oliveira, collaborador do mesmo periódico".
A formatura desse filho José merecera, aliás, pouco antes, destaque semelhante.
"Estiveram domingo último nesta vila os nossos conterrâneos Camilo Martins de Oliveira, António Barbosa, Thomaz Pessoa e César de Moura, do Porto, que vieram assistir a um lauto jantar "offerecido, pelo novo bacharel dr José Barbosa Ramos, festejando a conclusão recente da sua formatura em direito.
Escusado será dizermos que o jantar decorreu no meio da mais franca e eloquente cordialidade e com immenso enthusiasmo. Ao jantar, além dos cavalheiros citados assistiu a família do novo bacharel, que partilhou a alegria da festa. Assistiu mais ao jantar o nosso patrício António Pereira de Aguiar, antigo companheiro da vida escolar do sr dr José ramos Barbosa".
A pequena notícia oferece-nos o colorido da celebração de um feito, então, relativamente raro, como era uma formatura coimbrã... De menor interesse etnográfico, mas muito mais interessante para a reconstituição do mosaico de relacionamentos familiares é o facto de salientar a presença de um ilustre "patrício" (forma, porventura, de designar, um expatriado no Brasil...) António Aguiar, que tinha sido companheiro de escola do novo jurista.
Um dado novo, que nos mostra como, já então, o jovem emigrante no Rio e futuro marido de Maria, era considerado figura grada da vila e nela mantinha, em visitas frequentes, uma rede de contactos com pessoas e instituições. Maria casaria com ele, já homem de posses e cultura acima da média, nas vésperas da revolução republicana e, antes e durante o período do casamento, também ela seria referenciada apenas como a sua mulher.
O mais curioso é que também ela falava de si quase só a partir da data em que conheceu o marido. Dos 20 anos anteriores dava, “em passant”, uma imagem de pintura impressionista, traçada a cores suaves, sem um enfoque em episódios particulares. Infância feliz, pais que se entenderam bem e se completavam, com a grande diferença de temperamentos, mas não de caráter, a imperial matriarca Carolina e o complacente Joaquim, tão sensato e afectivo e tão culto, ambos bons educadores, sem precisarem de se impor intransigentemente, sobretudo com a mais pequenina, Maria. Talvez a preferida fosse a estrela mais brilhante, Glória, a que não obstante ser Rosaura a sua madrinha, mais a influenciava, mas o ambiente em que cresceram não criou entre eles conflitos nem pequenas rivalidades.
Teria havido, sim, sintonias especiais, entre a avó Maria e sua mãe, entre Rosaura e seu pai. Feitios mais consonantes, apenas isso.
Desde cedo, a pequena Maria revelou tendência para a música e para a poesia, gosto certamente muito estimulado pelo pai, que era com certeza a orientava, como a todos os outros, nas leituras e os levava ao teatro e a concertos em Gondomar e, talvez, de longe a longe, ao Porto. Pela correspondência que, mais tarde, manteria com a filha, ausente no Brasil, se vê que não faltava a nada do que animava a vida social da terra e, se assim era em idade já avançada, assim teria sido evidentemente quando mais novo.
A mãe, que escrevia razoavelmente, mesmo com a sua letra de velhinha (num tom tendencialmente mais pessimista do que o do marido, mais voltada para mágoas e doenças) terá complementado o pendor intectual da educação paterna, no reino feminino das faculdades domésticas, fazendo de Rosaura e Maria, verdadeiras mestras de rendas, bordados e de segredos culinários, Por muito que ensinassem às criadas, ninguém sabia fazer compotas de chila ou de cerejas, ou o recheio do perú de Natal, como a avó Maria.
No verão passavam algum tempo na Foz, nas caldas de Vizela, nas terras onde paroquava o filho Américo,
Dos alegres convívios com parentes e amigos, falam, exuberantemente, pela força da imagem, algumas fotografias do início do século XX, e de pretendentes (para além do primo visconde), a carta de uma prima, em tom cúmplice e juvenil, referindo um apaixonado que queria muito revê-la, mas tarde demais, num tempo em que ela já estava voltada para mais distantes horizontes.
E é só a partir de 1908 que os seus postais para o bem-amado António Carlos no-la dão a conhecer, na sua faceta de jovem romântica, citando ou elaborando doutas sentenças sobre as virtudes do amor.
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