quarta-feira, 5 de novembro de 2008
OLÍVIA FERNANDES CAPELA
PODER NO FEMININO
Olívia Fernandes Capela
5 de Novembro, dia de aniversário da Avó Olívia, dia de muitas saudades!
O título é uma homenagem à Mulher que foi. À sua força, sagacidade e coragem, que eram enormes. Mas, também, à forma como as punha em acto, no dia a dia. Era amável e discreta. Não fazia alarde das decisões, que tomava. Não se impunha em voz alta. Mas impunha-se! Ao tempo, ficava melhor ao "segundo sexo" actuar assim. Em qualquer caso, o mais importante é saber mandar. E, sobre isso, esta Avó serena e modesta podia dar lições.
Nasceu em Oliveira de Azeméis. Porquê essa terra simpática, onde não temos raízes? Suponho que aí o Avô Capella começava a sua vida de (então) pequeno empresário, depois de ter rompido, definitivamente, com a família, os Capella da Foz do Sousa, donos Quinta dos Orfãos.
A razão da desavença terá sido a "teimosia" em casar com a filha de um farmacêutico, a bisavó Joaquina. Não sei se tinham outros planos para o herdeiro, ou se não gostavam, pura e simplesmente, da jovem senhora. Ela não era para graças. Conheci-a já idosa, gordíssima, como uma típica matrona de antigamente. As suas palavras eram ordens, o seu ar severo - nada parecida, neste aspecto, com as filhas, Clementina e a simpática e popular Avó Olívia... Curiosamente, não me recordo de nada que me tenha dito. Nunca me ralhou, ou lembrar-me-ia. Intimidava-me o suficiente para me comportar bem. Não creio que eu fizesse o seu ideal de bisneta. Ao tempo, muito isso me surpreendia, porque estava habituada a ser um caso de sucesso com os outros ascendentes... Era madrinha da minha irmã Madalena, que adorava, e a quem dava impressionantes somas de dinheiro, no Natal, Páscoa e aniversário. E a mim, nada! Nem uma caixa de chocolates, ou um mero chocolatinho!
E, como pouco mais sei desta antepassada, aqui fica o registo. É justo acrescentar, porém, que a Avó Olívia venerava a mãe, e que tratou dela, dedicadamente, no fim da vida. Sabendo o que sei hoje, acho que foi vítima de demência senil, ou "Alzheimer". Por fim, não reconhecia ninguém. Até à filha perguntava, de vez em quando: "Quem é a senhora?". Uma pena acabar assim quem tinha sido mulher inteligente e dominadora. Parece -me que se impunha mesmo ao Avô Capella, o que é dizer bastante, já que ele era um homem de muita personalidade, pose imponente, distante e aristocrático. Para além da Mulher, não creio que tenha cedido ou transigido com alguém, em coisa importante. O corte com a sua família foi radical. Nunca connosco falou deles... Das duas filhas Clementina era a mais "chique", uma senhora magra, pequena, elegante, sempre de chapeuzinho na cabeça e vestida de escuro , (porque já viúva). Assim a recordo! Teve 4 filhos, mas nenhum com o porte dela... A Avó Olívia, mais bonita, mais alta, muito mais modesta e provinciana a vestir. Porém, o filho, esse, sempre pareceu um galã de cinema. Mesmo em velhinho, só gostava de bons fatos ingleses e de gravatas de seda italianas... "Saía" ao Avô Capella - e até também aos Dias Moreira...
A Avó Olívia tinha um ar suave e doce. Era uma diplomata! Jamais lhe passaria pela cabeça distinguir entre as netas. Guardo dela as melhores recordações. Era uma grande amiga, e generosa comigo, como com todo o mundo. A dar, estava no seu elemento!
Podia até ter a sua preferência pela Madalena. E porque não? Era a neta mais bonita, mais tranquila, mais alegre, sempre a cantar, com uma voz assombrosa. Mas eu sentia que também gostava de mim.
Quem mandava na sua casa era ela. O Avô Manuel aceitava as decisões, com uma ou outra pequena divergência ou desavença. O Avô era muito mais poupado. A Avó recebia visitas a toda a hora, ajudava os vizinhos, dava esmolas e comida aos pobres, contribuía, largamente para a Igreja. Tal como a Avó de Gondomar privilegiava o convívio com padres e freiras (tinha uma tia Doroteia, a Madre Capela). Era muito religiosa, rezava terços e terços, connosco, diariamente, bem mais até do que a Avó Maria!
À medida que os anos avançavam mais unidos ficavam os Avós. Já na última semana de vida, lembro-me do Avô Manuel, no quarto do hospital de Gaia (nesse tempo ainda havia muito bons quartos particulares), olhar para nós as duas e a dizer:"Aqui estão os meus dois amores".
A Avó, a quem tanto a Lecas como eu chamávamos "Madrinha", era extraordinariamente inteligente, e tinha capacidade para gestão de negócios, um sentido prático das coisas da vida. Se fosse uma mulher de hoje seria uma empresária de sucesso (como foi seu pai, que recomeçou, sem nada, apartado de uma família abastada...)
Adaptou-se bem à modernidade. Era condescendente com a evolução dos costumes - e mais em velha do que em nova, o que revela um espírito vivo e jovem. Nesse aspecto, nunca envelheceu. Reagiu à adversidade da viuvez. Aceitou, muitas vezes o meu convite para passar temporadas em Lisboa. Era óptima companhia para a Maria e para mim e para a cadela Endora. Tudo estava bem para ela. Adorava os passeios pela costa, por Sintra... Bom feitio! E sempre a oferecer presentes, à Maria e a mim, mesmo que não quiséssemos. Estava -lhe nos genes... Lembro-me, por exemplo de um rádio Grundig, que mandou a Maria comprar, na Av. do Uruguai, porque me tinha ouvido dizer que o do meu quarto não era grande máquina....
Outra notável faceta da Avó era a determinação de nunca incomodar os outros com os seus problemas. Não se queixava de nada, nem do passado, nem do presente.
Sei pouco da sua vida de criança ou de jovem. Não contava muitas histórias, ao contrário do Avô Manuel ou da Avó Maria. Deve ter sido uma menina saudável e feliz. Não era dada à leitura, nem às artes, excepto as domésticas. Cozinhava maravilhosamente! E tinha, como disse, grande argúcia como gestora, com tendência para a liberalidade. Mandava e sabia mandar, ainda que não exteriorizasse, demasiado, o seu real poder de decisão. Muito feminina, à moda antiga!
Era mais de partilhar os bens do que o "poder": mais de dar o peixe do que a cana de pesca, pelo menos no que respeitava ao filho, e às netas, enquanto pequenas. Não era de atribuir "mesadas". Dava, caso a caso. À época, isso era normal... Conheço outros casos na família, talvez mais comuns nos homens, porque seria mais comum seres eles a dispor do dinheiro...
Casou aos 16 anos. Um belo romance! Teve o primeiro filho aos 18 anos: João, o meu pai.
Os outros, nascidos já ela ia nos vinte e tal anos, acabaram morrendo todos, com doenças hepáticas. Deve ter sido tremendo, mas nem disso se queixava!
Do que me apercebi, foi do seu receio de doenças, sobretudo do cancro, que vitimou o pai - um cancro na língua. Passou muito tempo em Lisboa, no Instituto de Oncologia, em tratamentos dolorosos, que não resultaram. Mais tarde, durante anos, a Avó recorria aos melhores dentistas do Porto, constantemente, preventivamente, e levava-nos com ela. Mas, de facto, no seu caso, nunca esteve aí o risco.
Aos 81 anos não resistiu a um cancro do esófago. Foi sempre paciente e corajosa. Na última visita que lhe fiz, no quarto do Ordem do Terço, no Porto, sorria o tempo todo, e falava da Endora, então já a viver em Espinho ( a Maria morrera lá em casa, no ano anterior, tratada por ela e pela criada Arminda, e eu, sozinha em Lisboa, não podia ter a cadelinha comigo). Falava da Endora, porque era o tema mais alegre para a ocasião. Não trouxe à conversa nem as dores que sentia, nem a certeza da morte próxima. Um exemplo de coragem. E de cuidado e afecto pelos outros. No caso, pela neta. Estava então no Governo. Um ou dois dias depois recebi o telefonema do meu Pai, muito resignado: "Ela sofria muito. Foi melhor assim. Está com Deus".
O filho era tão católico como a Mãe. Não tinha dúvidas sobre a vida eterna. A haver céu (eu sou crente, mas não tanto... espero que haja!), a Avó foi, certamente, directa para lá.
18 comentários:
Acho que sabia que ela gostava do exercício do poder de dar. Ele gostava, apenas, de dar. Outro pormenor: quando o caseiro começou o contrato dizia-lhe" Vê se podes pagar tudo. Se não, não precisas de pagar. Só o que podes". Era assim mesmo o meu Avô! Ainda bem que o António me contou isto.
O mais curiosa é que a Madrinha nunca tratava a Endora por "cadela", por considerar o termo ofensivo. Dizia "a tua cãozinha", de brincadeira, mas dizia...
Apesar de agora compreender, que, sendo eu "enfant terrible", a hipótese que surgia como mais provável era a de eu saber que estava a dar cabo da obra. Mas, não. Estava mesmo de boa fé...
O pior era quando queria mostrar-nos, à Madalena e a mim, por exemplo, o coelho caseiro, que ia matar para o almoço. Nenhuma de nós queria ver! Nunca fui capaz de comer um animal "meu conhecido"...
Mas os coelhos eram, também, depois de assados, deliciosos. Para não ter problemas, optava por não confraternizar com eles. Parece que estou a ver a Madrinha, com um coelhinho branco dependurado pelas orelhas,e nós a olharmos, de longe.
Não sei o porquê dessa espécie de ritual. Sei que era assim. A Madrinha saía pouco, para fora de Avintes ou de Espinho, mas devia apreciar uma "excursão de compras" com as netas, de longe a longe, por Santo António e Santa Catarina.
Tinha, como já disse, um evidente prazer em "presentear-nos". Para ela, poucas coisas comprava. Andava sempre vestida com simplicidade. Até exagerava... Muito diferente do Avô Manuel, a quem eu oferecia gravatas, que eram altamente apreciadas. Para a Avó, apenas um cachecol, um lenço. Difícil escolher prendas para ela!
Recordo-me que, quando estava doente, no que seria o derradeiro aniversário, pensei oferecer-lhe um aparelho caro, uma televisão. E o Pai disse-me: "Não faças isso. Ela vai perceber que achas que está muito doente".
E eu mudei de oferta, para um presente mais vulgar, que não levantasse suspeitas. De qualquer modo, era uma pessoa que gostava mais de dar do que de receber!
Aliás, não pareciam assim tão velhos, nunca chegaram a ter um ar decadente. O Padrinho guardou a agilidade e a força, que lhe davam, aos 80, o aspecto de 60. E a Madrinha, embora com problemas de circulação, menos rápida e desportiva, no andar, conservava uma cara bonita, sem muitas rugas, e um espírito vivíssimo.
Por causa dos achaques, não dispensava as termas, no fim do verão - Vizela, Monte Real e outras. Famalicão, também, para tratamento de varizes, com um reputado mágico das medicinas alternativas(?). A Maria Póvoas, também precisava do mesmo, e, às vezes, lá estagiavam juntas. O Padrinho ia, sempre também, porque gostava da terra e dos restaurantes. Algumas vezes fui, com os meus pais, levá-los e trazê-los, de carro. Estava, precisamente em Famalicão, feliz e contente, queixando-se só da falta da minha correspondência menos assídua, quando sofreu o AVC.
Depois do seu desaparecimento, levei, com regularidade, sobretudo nos primeiros tempos, a Avó para Lisboa. Distraía-se, em conversas com a Maria, em brincadeiras com a Endora, ainda novita e a fazer disparates contínuos, a que achavam, as duas, imensa graça, e até em passeios, no meu Peugeot 304, até Sintra, Cascais, Arrábida...
Sempre lembrava, com saudade, o Avô, que nem sequer foi conhecer a minha casa de Lisboa, e que teria apreciado as visitas guiadas aos arredores de Lisboa ainda mais do que ela.
Como desperdiçamos oportunidades, não pensando, nunca, que os mais velhos se vão, quando menos esperamos... que não temos pela frente, para gozar a sua companhia, todo o tempo do mundo (ou todo o nosso próprio tempo).
E a Madrinha , sempre a ver o que havia de me oferecer. Lembro-me, por exemplo, dos rádios. Na altura, passava o meu tempo a fazer gravações audio.
Era fácil levar e trazer a Avó, porque quase todos os fins de semana, fazia a viagem de carro, para não deixar a cadelinha abandonada. Ela enjoava, horrivelmente, até que o veterinário lhe receitou remédio. O mesmo que tomam as pessoas, sofredoras do mesmo mal...
As duas Avós vieram de automóvel, com os meus Pais, e ele, como o carro era pequeno, para não atrapalhar, fez a viagem de combóio. Estávamos à espera, em Coimbra B. Ainda hoje não percebo como nos desencontrámos.
Das Avós, há abundante documentação fotográfica. Dele, nada...
E, por isso, eu, com boa intenção, disse: "A partir de agora, para não ter trabalho, convidamos o Sr. Padre para um restaurante". E, meu dito, meu feito... Que disparate, se a refeição já estava pronta. Coisas minhas...
Eu tinha-a visitado no fim de semana, e, nesse dia, estava em Lisboa, no Ministério dos Negócios Estrangeiros. Recebi o telefonema do meu Pai, triste, mas resignado, a dar a notícia.
Pelo contrário a Madrinha preocupava-se comigo, com aquela agitação louca em que me via, e um dos últimos conselhos que lhe ouvi foi: "Deixa isso! É um cansaço e não vale a pena". Sabedoria feminina...
Dava alguns sinais de hipocondria. A única outra pessoa da família com essa tendência sou eu mesma... O Avô João Capela morreu com um cancro na língua. Um horror...E a filha cuidava-se particularmente bem em matéria de odontologistas. Foi tratada pelo Dr. José de Freitas e pelo Dr. Alcino de Magalhães - dois nomes famosos, no meio portuense. Não teve qualquer problema grave nessa especialidade (teve, infelizmente, em outra).E bem tentou cuidar dos meus dentes tortos, com aparelhos de correção. O Dr. Magalhães conseguia pô-los direitos, mas, recordo-me perfeitamente, dizia-nos ele, graças a muito trabalho, o triplo do normal - em três movimentos diferentes, porque a dentadura não entortava linearmente. E eu estava pronta para o sacrifício, mas a minha Mãe não consentiu. Tinha lido, no "Readers Digest", ou coisa parecida, que a manipulação dos dentes podia causar transtornos mentais!!!
Verdade seja dita, a família de Avintes era bem mais sensata. De um Aguiar, pode sempre esperar-se o melhor e o pior. Se soubessem o desconforto que sinto com os dentes tortos, compreenderiam a minha irritação, até hoje, subsistente com os meus Pais - ele, só por ser tão influenciável... - e a minha simpatia por esta Avó perspicaz e pouca dada a crendices.
Achavam, suponho, que o título de "avós" os envelhecia e ambos queriam resistir ao avançar da idade.
Enquanto a Avó Maria era, desde que me lembro dela, uma, uma Senhora de idade, sempre de escuro vestida, a lembrar a viuvez, um certo lado trágico da vida, a Avó Olívia nunca pareceu ter 70, ou perto de 80 anos. Mesmo o choque da morte do marido foi suportado com resignação. Continuou a mesma, na relação connosco e com os amigos. Interessava-se pelas coisas de sempre. Falava comigo, animadamente, dos cães e dos gatos, porque sabia que era um dos meus tópicos preferidos. Não interferia na minha vida, sobretudo depois da minha "maioridade".
Embora eu gostasse, por igual das duas Avós - reconhecendo o maior "glamour" da materna, e até, também, maiores afinidades com ela, desde a mais tenra infância - o certo é que houve pelo menos um episódio que mostra a forma oposta como encaravam o "conflito de gerações", ou a maneira de lidar com a "mudança de comportamentos - sinal dos tempos".
Estávamos no verão, em Espinho, onde eu costumava passar temporadas, e onde ía para a praia, de manhã, para o cinema ou esplanada, à tarde, para o café, ver televisão, à noite - sozinha, excepto quando o Avô cá estava ou quando o Manel, que fazia o serviço militar no sul, vinha passar o fim de semana.
A Avó Maria, a dada altura, foi convidada a juntar-se a nós, na casa da Rua 7, durante uns tempos.
Eu segui o meu programa normal, que nunca, jamais, tinha levantado sombra de objecção por parte da Madrinha. À noite, lá fui um bocado ao café, como em Espinho, é normalíssimo. Ao chegar a casa, deparo com as duas Avós à janela!
Ao entrar, a Madrinha diz-me, imediatamente, alguma coisa do género: "sabes que não fica bem a uma senhora casada sair sozinha à noite?"
Imaginam a minha resposta... Pouco mais ou menos, isto: "Vou já fazer as malas e voltar para o Porto!"( o tempo em que as mulheres, casadas, solteiras ou viuvas, não tinham autonomia para dar um passeio, sem escolta, já tinha passado, há muito...). E a Avó Olívia lá começou a desculpar-se e a dizer que eu tinha toda a razão. Dava bem para perceber quem tinha levantado a questão... Porém, a Avó Maria não proferiu nem uma palavra. Era como se nem estivess ali...
Uma grande senhora, sem dúvida, mas tão conservadora, moralista e... interventora!... Sempre em campanha, ou em missão.
Eu estava no MNE, em Lisboa, e as sobrinhas, Alda e Maria Helena, é que tinham vindo para casa dela, tratá-la - a Arminda só era competente, e não muito, para fazer limpezas e recados...
(Não sei por intermédio de quem acabou por cair na nossa família - foi herdada da bisavó Joaquina, disso tenho certeza).
Quando recebi a notícia, pelo Pai, vim imediatamente. Só me lembro de ver a Madrinha já na capela mortuária da Ordem. Parecia tão pequena, estava tão magra, de vestido escuro, sobre um fundo muito branco, acetinado, no caixão.
A missa de corpo presente teve um número grande de padres. O Padre Pinheiro, o Abade Álvaro e vários outros. Foi o Senhor Padre Leão quem falou. Breve e muito bem, como sempre. Salientando as qualidades de bondade, de religiosidade, de rectidão da minha Avó.
Mas que eu, em criança, a achava excessivamente pia, também é verdade. Os terços que nos obrigava a rezar, em coro, no quarto dela, quando estávamos em Avintes, pareciam não ter fim...
Nem a Avó Maria, em Gondomar, tentou semelhante coisa. Levava-nos para a Igreja, à missa, e, às vezes, ao terço, mas não todos os dias - e, depois, em casa, não insistia... até uma breve oração ao deitar...
Tenho esta sensação de proximidade das duas fatalidades, até porque o Pai me preveniu da doença, praticamente irreversível, da Avó, logo depois, no outono de 79. Ao contrário da Maria, que só muito tardiamente foi diagnosticada e tratada, a Madrinha ainda fez "quimio", mas de nada valeu. Ou valeu mais uns meses de vida.
Mal, mal, sentiu-se, sobretudo, nas últimas semanas, em que pedia a Deus para a levar depressa.
Agora que a eutanásia está em discussão, penso sempre em ambas, na Madrinha e na Maria, se bem que nenhuma delas, por razões de ordem religiosa, aceitasse essa saída...
A mim, apesar de tudo, também me repugna. O meu fundo católico leva-me a sonhar com milagres, no meio da maior desgraça...
Por exemplo, um 14 de Agosto, aniversário do meu casamento, em que a Madrinha me deu um presente, para me animar.
Eu já estava tão convictamente divorciada, que nem sequer me tinha recordado da efeméride!
Não reparei que ontem era o dia 5 de Novembro, dia dos anos da Madrinha. Reparei nas datas hoje e logo a recordei, como deve ser.
E, a propósito desta conjuntura agitada vêem-me à memória palavrassuas, quando já estava muito doente:
"Não trabalhes tanto, não te cances tanto! Não vale a pena..."
Era a sabedoria de quem estava a fazer um último balanço de vida, e dava um óptimo conselho - difícil de seguir!
Shakespeariano, embora ela não tivesse lido a célebre frase:
Life is a tale, told by a fool, plenty of sound and fury, signifying nothing.