segunda-feira, 20 de julho de 2009

W110 - A MANELA , aos 13 anos - e nos anos seguintes...

Quando fui estudar para o Porto, fiquei alojada em casa da D. Cândida, viúva de um engenheiro, com quem o meu Pai tinha trabalhado no príncipio da sua carreira.
Os fins-de-semana eram, geralmente, passados em Rio Tinto (casa dos meus avós paternos, Avó Mimi e avô Ernesto), onde estava o Nestó e apareciam os meus primos, Quim e Manica.
Mas, em muitos outros fins-de-semana, ia para Avintes (casa dos pais do tio João), Pedreira (casa da tia Rosaura), ou Gondomar (casa da Avó Maria), com a Manela, Madalena, tia Mariazinha, tio João.
Nessa altura, a Manuela e a Madalena estavam internadas no Colégio Sardão, e, por isso, só aos sábados e domingos podíamos conviver. Ocupavamos o tempo a brincar e a inventar formas de nos distrairmos.
Acho que a Manela, mais velha do que eu, uns 3 anos, me influenciou com as suas ideias, avançadas para a idade, face ao que a sociedade exigia nessa época, principalmente, às meninas... É a idade de formação da personalidade, com ideias bem entendidas e absorvidas, com esperanças e convicções. A minha admiração era tanta, que até imitei a assinatura dela (os nomes muito juntos), que ainda hoje uso. Mas, principalmente, ganhei uma nova visão da independência da mulher - ser ela própria, sem esperar sobreviver com o dinheiro do marido, o que a pode tornar submissa e sacrificada à casa e à família, com horizontes limitados. Quanto ao casamento, pode acontecer casar com o "príncipe encantado "e, mais tarde, esse "príncipe", revelar-se um grande "traste" e ela ter de aguentá-lo para sempre. Eu concordava com tudo isto. Achava justas e fascinantes, essas filosofias - e, com elas, fui fazendo o meu crescimento, mental e psicológico, desde a infância até à adolescência!
Para além dos discursos, a Manela fazia poemas.
Poemas da infância da Manela, da nossa infância.
Tinha ela 12, 13, 14 anos...
Houve mesmo um soneto, num desses fins-de-semana, passado em Avintes, em 31/8/56, que me foi dedicado. Ei-lo:

Vi olhos negros de fulgor sombrio,
Vi olhos claros de azul cor do mar,
Vi olhos verdes, grandes, sonhadores,
Vi olhos muitos triste a chorar.

Mas como esses teus, prima Eduarda,
Que riem antes da boca sorrir,
Estranhamente acesos de alegria,
Tenho a certeza, nunca hão-de existir!

Os teus olhos, de express~so tão bela,
Roubaram a luz de alguma estrela,
Por certo, ou do luar de Portugal.

Essses teus olhos de infinito encanto,
Velados por sorrisos ou por pranto,
Nem entre os anjos acharão rival!

Estes versos foram encontrados num caderno antigo. Mas há uns outros, escritos em 1953, 1954 e 1955, no Colégio do Sardão. Suponho que depois, a Manuela dedicou-se mais à prosa e deixou a poesia:

Saudade

Agora sinto na vida
Uma tristeza sem fim
Nada há que me console
Tudo é nada para mim

Tudo, tudo se desfez
Tudo a saudade levou
Já nada resta do sonho
Que o destino me roubou

Hoje que tudo perdi
Fica-me a recordação
De tudo quanto vivi

E do que já fui outrora
Resta-me hoje um coração
Que apenas sofre e chora

ACORDAR

Acabo de acordar ao sol da vida
Cega-me esta luz forte e radiosa
Procuro tudo ver e vejo, então,
A turba imensa, a multidão chorosa

O mundo inteiro, que geme a meus pés,
Onde eu vou despenhar-me, brevemente,
Para chorar, sofrer, sentir, enfim
Aquilo que toda a gente sente

DESEJOS
Queria ser o rei que tem poder
Queria ser o pobre que mendiga
Queria ser o tudo e ser o nada
E de contrastes fazer uma cantiga

Queria ser a nuvem passageira
Que assusta a timidez de uma donzela
Queria ser o pássaro que voa
Entre o céu, o mar, a caravela

Queria ver chorar a lua branca
E o céu em convulsões tremer
Queria ver o morrer o mundo inteiro
E depois, só depois, morrer!

A VIDA
A vida é um grande sonho
Todo feito de ilusões
Onde desfilam tristezas,
Alegrias e paixões

A vida é o voo de ave
Que depressa vai morrer
Conhecendo desse tempo
O amar e o sofrer

A vida é desigual
É a canção encantada
Que nada tem de real

É a eterna poesia
É triste sina chorada
É um véu de fantasia

QUADRAS DE S. JOÃO (Junho de 1956)
Era tão doce o fulgor
Da fogueira do vizinho
Que punha da cor do ouro
As pedrinhas do caminho

Fogueira de S. João
Tendes brilho de encantar
Roubaste a luz do sol
E o encanto do luar

Rapazes vamos gozar,
Na noite de S. João
Punham sorrisos na cara
Deitem fogo ao coração

Deste-me um bejo de noite,
Perfumado de alecrim
E a fogueira que saltamos
Passou para dentro de mim

MARIA
Maria, nome belo a inspirar
A imaginação de um qualquer poeta.
Sobre Maria há sempre que falar
Há sempre algo que fala ao coração

Maria se chamou uma Mulher
Que perfumou o nome, eternamente,
Com o aroma do seu doce saber
E um sorriso, a sorrir, docemente

E essa Maria, Rainha do Céu
Estende, sempre, o seu formoso véu
A todas as Marias desta terra

Que têm uma doçura especial
Que são os anjos bons de Portugal
Que vivem nos recantos desta terra
Sorrindo, na cidade, aldeia ou serra

DOIS CAMINHOS
Há dois caminos para mim
Nesta vida que piora, dia-a-dia,
Um de tristeza e de mágoa sem fim
Outro de luxo e pretensa alegria

O gozo dos prazeres é curto e falso
Deixa um vácuo que entristece a alma
É ,para nós, nada mais que um precalço
Que enfrentamos já tarde, sem calma

E mágoas e dores quando à fé se aliam
Tornam o caminho mais doce e suave
Àqueles que antes, calados, sofriam

Já de olhos felizes, cheios de ventura,
E de alma mais leve que o voo da ave
Adoram o Deus de amor e ternura!

JESUS
Que dos homens compreendes
O suspiro
Porque Homem também já foste um dia
Eu prefiro
A Ti me dirigir, que outros homens
Sei-o bem não sabem a mágoa que ao poeta
Sobrevém
Se as musas não descerem até Ele
E Ele não puder
Condensar a inspiração que voa
Pelo ar,
E é feita de tristezas e de mágoas
De chorar
De sorrisos, alegrias, águas do rio
A mumurar
E perfume de flores e passarinhos
A cantar
E tem a cor que em verso se define
Cor-de-rosa
A musa, que a sorrir, o inspirou
Ou pardacenta
Se a alegria se nos for com o vento

Mas há sempre um verso que é bem nosso!
Não pode o Mundo dar-lhe volta e rima
Esse verso não morrerá connosco,
Porque dos outros todos está acima

E é espiritual - é como a alma -
Anseia sempre por algo de maior
E um dia, lá no Céu, há-de encontrar
A rima no seio do Senhor!

A UM NAMORADO FUTURO
Ó lindo pequeno
Do coração meu
Teus olhos profundos
São os meus dois mundos,
A terra e o céu

PORTUGAL - ESPANHA EM HÓQUEI EM PATINS
(Julho de 1955)
Chegou o grande dia
Do Portugal - Espanha
Reina a ansiedade:
Qual será o que ganha?

Dão entrada em campo
As equipas fatais,
Vitoriosas, tremendas
Com nomes imortais

Vai findar o torneio
Disputa-se a final
E um dos contendores
Será campeão mundial

Pelo almejado título
Luta-se com ardor
Operam-se prodígios
Demonstra-se valor

O Matos, pequenino,
À boca da baliza
Faz tremerem de raiva
Os homens da Galiza

O Figueiredo calmo,
Veloz e imponente,
Mais parece aos contrários
Um bestial gigante

O famoso Cruzeiro,
Com passes magistrais,
Domina a multidão,
A Espanha... tudo o mais.

Os grandes avançados
Lisboa e Perdigão
Fazem fintas e golos,
Com calma e precisão

O público aplaude
Uma bola que entrou.
É nossa! Venceremos!
Foi Deus que o deliberou.

O jogo vai findar
O árbitro apitou
O público delira
Ó! Portugal ganhou!

E sob um céu de glória
As quinas portuguesas
Tremulam com o vento
de feitos e proezas!


CAMPEONATO DE 1954

Porto! Clube ideal
Eu te dou o meu coração
Dá-me tu nas horas tristes
Golos para recordação

Portistas, muita coragem
Possuimos grandes ases
Tenho fé que os campeões
Serão os nossos rapazes


O EXAME
Devgar o dia se aproxima
E nós num eterno cabular
Vamos rindo, e ainda por cima
Atiramos os livos pelo ar

Já nem o "Carolina nem o "Santa"
São para nós o grande Adamastor
Que, eternamente, a velha lenda canta
Como símbolo do medo e do terror

Já não se usa também
o medo pelas caras fatigadas
Que nos olham com raiva e com desdém
Tentando, em vão, ver-nos atrapalhadas

E nós, que nunca soubemos a lição
E passamos a vida a copiar
Não sabemos bem qual a razão
Porque não temos medo de chumbar

CARICATURA (A CLARINHA)
Das "peneiras" se vê a leve sombra
Num andar quebradinho e indeciso
As mãos voam pelo ar em gestos belos
Só é pena ser bem pouco o juízo!

Da boca esses trejeitos graciosos
Pretendem cativar a atenção
E apenas servem - que doce tristeza!
Para termos piedade e compaixão

E os olhos que pretendem dominar
Revirados, esquivos, sedutores (?)
Fazem-nos rir, e, até, de rir, chorar

Tal a comicidade do seu rosto
Animado ainda para terminar,
Por um sorriso amarelo e mal posto

SONHO
(publicado na revista "Modas e Bordados")

Pudesse eu descrever o que hoje sinto
Tivesse eu o engenho de um Camões
E cantaria o mar, a terra, o céu
E tudo o mais, que encanta os corações

Quisesse Deus deixar-me mergulhar
No mar imenso das minhas ilusões
Fugir do mundo para subir mais alto
Bem longe de loucuras e paixões

Eu gostaria de poder olhar
Esta beleza imensa que me cega
Que oprime um coração que quer amar

Gostaria de viver o que sonhei
E de morrer, depois, já bem velhinha
Com esse sonho, que idealizei

Mais tarde, já a estudar "Direito", na Universidade de Coimbra, poema da Manela publicado em 1965, na revista "A Tábua", em que Mário Cláudio (colega de curso), publicou a sua primeira crónica, quando estavam no último ano:

MULHER DO ROSTO DE VENTO

Vai
pela Terra - Mãe adormecida
que ti hiberna,
as mãos vazias
das rendas de outrora

Vai dar sentido ao Dia!

Vai
para que a Terra - Mãe
Seja em ti,
no cair do momento.

Vai
rosto de vento
em busca de Alma!

Vai
da noite moribunda
do teu SER negado.

Vai
que agonizas
no corpo mutilado
Os sonhos perdidos da manhã!


Dez anos antes, o soneto da Manela, escrito aos 13 anos, no Verão anterior à publicação, em 1955, na revista "Modas e Bordados", com um retrato da autora e com comentário de Fernando Marques Ribeiro:







39 comentários:

Anónimo disse...

Maria Antónia disse:
Fui eu que enviei esta cópia da revista "Modas e Bordados" à Lólita. A letra, na margem esquerda é minha.
Mas quem mandou os versos para a publicação foi mesmo a Lólita.
Para o Fernando Marques Ribeiro, grande pianista e compositor - a quem chamavam o "Chopin" português - e meu antigo namorado.
Ele era, nessa altura, colaborador da revista, que tinha grande difusão pelo País.E ficou encantado com os versos da menina.

Maria Manuela Aguiar disse...

No verão em que a revista "Modas e Bordados" deu à estampa, para meu infinito espanto, o Tal soneto, eu até tinha receio de andar pelas ruas de espinho. Todas as amigas da Mãe eram leitoras da revista e vinham falar comigo, como se o poema fosse uma grande coisa... Já nessa altura eu achava que não era. Aceito a atenuante da pouca idade, e só por isso resisto à tentação de o eliminar do blogue. O mesmo se diga de todos os outros escritos na mesma época...
Num ponto eu concordo com a Docas: os versos acabam por dizer alguma coisa sobre a autora. A paixão pelo futebol(FCP!), pelo hoquéi (Portugal), a crença religiosa, o sentimento de encerramento num "gheto" colegial, numa clausura de onde saíria, em breve, para "o mundo" , a expectativa por essa "libertação", o pessimismo sobre a vida na idade adulta, que nos era dado pelas "reverendas", quase todas assertivamente cépticas,quanto a virtudes (ausentes) e a felicidade (impossível) nesse mundo exterior, ao qual a "vocação" mística as poupava!

Maria Manuela Aguiar disse...

A publicação de um pequeno poema "feminista" na TÁBUA I, essa foi perfeitamente voluntária, mas, mesmo assim , a coberto de pseudónimo. Assinei como Maria Manuela BARBOSA - um apelido da família materna, que, por acaso, não tenho, mas deveria ter.
Foi um projecto portuense, envolvendo vários amigos ou amigos de amigos.
O Rui Barbot (Mário Claúdio), o Manel(Vitorino de Queiroz, meu ex-marido) e eu estavamos a terminar o curso de Direito.
Os outros eram amigos do Rui, creio eu, mas desconhecidos para mim.
Nessa altura, estava longe de imaginar que o Rui se iria tornar um dos grandes nomes das Letras contemporâneas e o meu escritor preferido. Agustina e Mário Claúdio são, simplesmente, geniais. E, na minha modesta opinião, lêem-se por prazer - como os brasileiros , de Erico Veríssimo a Josué Montello. Confesso, no geral, a minha absoluta preferência pelos brasileiros do nosso tempo, com aquelas duas excepções.
E, assim, porque Mário Claúdio é, já, um "Imortal" a TÁBUAI, onde se iniciou, tornou-se uma preciosa raridade!

Maria Manuela Aguiar disse...

Passei o meu tempo de adolescência, não só a fazer versinhos e discursos feministas, mas também iniciativas muito variadas, desde a programação de torneios de futebol, num colégio onde as meninas estavam proibidas de jogar com os pés, até à organização de um inquérito, sobre os gostos, os preconceitos e as ambições de gente da minha idade. Estava, então, no antigo 6º ano do liceu, no Porto (Raínha Santa Isabel) e as entrevistadas foram colegas. As perguntas não são extraordinárias, mas acabaram por permitir respostas muito curiosas.
Para além das amigas, felizmente, também entrevistei a Lecas. Encontrei o caderno, onde cada uma respondeu, escrevendo directamente nas suas páginas - pelo visto, circulou, de mão em mão, sem se perder - apenas há dois dias.
Uma esplêndida surpresa.
As considerações da Madalena já estão no blogue!
Aqui ficam as minhas, pois também não me escusei a pronunciar-me...
Em comentários sucessivos, porque este computador, de vez em quando, faz desaparecer os textos que estou escrevendo, sabe-se lá porquê... Tem vida própria.













liceu,

Maria Manuela Aguiar disse...

P1 Nome, idade, altura, cor de cabelos, medida dos pés, curso, profissão futura.
Isto é o que tu és. Mas como gostarias de ser fisicamente?
R
MMAM,17,1.62,castanho claro, 38, Direito. Advogada? Jornalista? Sei lá...
Gostaria de ter lindos cabelos germânicos, de um louro branco, lisos, compridos. 1.70 de altura.

P2 Qual a intensidade com que vives o teu dia a dia?
R
O meu dia a dia é sempre uma tentativa de fugir à monotonia de mim própria. Tentativa vã, mas não inútil.

P3 O que consideras mais essencial para ser feliz? Qual o sentimento humano que deveria guiar um mundo melhor?
R
O essencial para ser feliz é a satisfação com os seus próprios recursos e condições.
O sentimanto que poderia conduzir toda uma multidão num mundo melhor seria o amor e a compreensão.
Amor que não excluisse ninguém, compreensão que abrangesse todos - vivermos e deixarmos viver. Amar a vulgaridade como a maior das glórias e não tentar sobressair. Ajudar, quando nos pedissem e confiar, imensamente!...

Maria Manuela Aguiar disse...

P4 Qual é o teu passatempo preferido?
R
É muito complexo. É viver com o que, de momento,dá um encanto novo à vida. Pode ser dançar, ou ler, ou passear sem destino, ou manter uma pequena conversa banal, ou ouvir música, ou discutir, ou pensar um pouco, ou sonhar bastante, ou muitas coisas mais.

Maria Manuela Aguiar disse...

Agora está na moda: fumar - beber - usar calças - falar calão - existêncialismo - geração perdida (não sejas prolixa)
R
Fumar: porque não, para distrair, aquecer ou unicamente para sentir um pequeno prazer? É como comer um chocolate ou um rebuçado. Não gosto demasiado de fumar e sinto-me satisfeita com isso, na medida em que o contrário me podia ser prejudicial à saúde. Não condeno quem fume por exibicionismo. Se o condenasse, teria de condenar tantas outras coisas!... De resto, o exibicionismo dá à pessoa que o experimenta satisfação e, talvez, uma sensação de segurança e superioridade. Que a gozem em paz!
Beber - não aconselho excessos. Pessoalmente, só gosto de café e cerveja.
Falar calão - Ora! O calão às vezes é muito expressivo. Gosto de calão. Não o considero ofensivo para a pureza da língua e coisas do género. É uma das melhores manifestações de irreverente e estouvado espírito académico, e até, talvez, do espírito português.
Existencialismo - Não tenho conhecimento sobre o existencialismo filosófico. Aprecio-o vagamente, por ser extravagante e fugir à rotina.
Geração perdida - "onde há muita luz, há também muita sombra".
Calças - útil, aconselhável no inverno, a todos os títulos.

Maria Manuela Aguiar disse...

Interrompo a resposta ao inquérito, para dizer à Manuela daquele tempo, que foi prolixa, depois de pedir às outras que o não fossem...
Mau exemplo!
Jà é mais interessante confessar que, às vezes, fazia perguntas a que não sabia, ela própria dar uma resposta decente - como essa dos existencialistas, que ainda não tinha lido...

Maria Manuela Aguiar disse...

P6 Cinema: Quats osteus actores preferidos?
Fala do filme que mais te agradou.
R
Chaplin - Ingrid Bergman - Yul Brynner - D Kerr - Audrey Hepburn-Eve Marie Saint - Charlton Heston -- Burl Ivers - Charles Laughton - M Schell.
Filmes que mais me agradaram:
"Quero viver" (veemente ataque à pena de morte), "Génio do mal" (idem), "A Pousada da 6ª Felicidade", pela interpretação de Ingrid e pela abnegação, desinteresse e coragem da missionária que ela encarna.

P7 Música: qual a que te desperta mais a sensibilidade?
R
A música agrada-me conforme a disposição do momento, mas há certas melodias que conseguem arrastar- e fazer-me esquecer a triste mediocridade a que quase todos estamos sujeitos. Transformam-nos em génios quando nos deixam antever o paraíso proibido de Beethoven ou Tchaikovsky. Os clássicos são, pois, os preferidos das minhas horas de euforia. Mas o que mais me desperta a sensibilidade são as "orquestras ciganas" e a sua cadência misteriosa, audaz, violenta. Também gosto de música ligeira, da voz de Catarina Valente, de Pat Boone, etc e de folclore austríaco e alemão.

Maria Manuela Aguiar disse...

P8 Qual é para ti o maior pintor do mundo?
R
O maior pintor do mundo para mim é Vlaminck - com os seu céus azul forte que nos falam de independência, de revolta, de ambição.
Vlaminck é quase um desconhecido, mas nenhum quadro me impressiona mais do que os dele.


P9 Literatura: Qual a qualidade que mais aprecias num escritor e numa literatura?
R
O que mais aprecio num escritor é um estilo poderosamente subtil ou poderosamente vigoroso ao serviço de um grande ideal.


P10 Fala-nos dos teus gostos e escritores preferidos.
R
O meu escritor preferido é Gheorghiu. Os meus livros preferidos, os livros de Gheorghiu - "A 25ª Hora"(nunca li nada igual), "Os Mendigos de Milagres".
Outros grandes livros: "A Montanha Mágica", de Thomas Mann, "Bichos", de M Torga, "O Livro de St Michel", de Axel Munthe, "O Obelisco Negro" de Remarque, "Um Gosto e 6 Vinténs" de S Maughman, "A Peste", de Albert Camus...

Maria Manuela Aguiar disse...

P11 Escreve um pensamento que te tenha agradado.
R
"Se a tua acção nasce de um impulso sincero, não tenhas medo do pecado. Estás no bom caminho.


P12 Tens preocupação de filosofia e política?
R
Acho que a Filosofia e a Política são sempre preocupações prementes para quem quer saber o que faz na vida. Entendo, porém, Política num sentido lato e não como a simples aprovação ou condenação de um sistema de governo.


P13 Qual o povo que mais aprecias e porquê?
R
O povo que, sem me referir ao meu, mais admiro é o alemão - pelo seu génio cultural, científico, musical, político, militar, e ainda, pelo seu idealismo, força de vontade e qualidades de trabalho.


P14 Gostarias de casar com um homem de côr?
R
Se gostasse de um homem de côr, não exitaria em casar com ele. Nada têm a mais ou a menos do que nós. Somos iguais.


P15 Em que país achas que podías levar uma vida melhor?
R
O país não interessa muito. Gostaria de viver sempre numa ou em grandes cidades. Viena, Paris, ou uma cidade alemã.

Maria Manuela Aguiar disse...

P17 O que fazias se te saísse a sorte grande?
R
Creio que guardaria metade, dando-lhe o destino que mais me pudesse render mais tarde; com a outra metade, faria algumas viagens por mar e por terra, ofereceria numerosos presentes, e daria algum aos pobres, não só porque os tornaria um pouco mais felizes, mas porque isso me faria parecer, perante mim própria, humanamente melhor.

Maria Manuela Aguiar disse...

P18 O que farías se fosses o 1º habitante da terra a pôr o pé em Marte?
R
Colocaria lá, mesmo antes de sair completamente do foguetão, a bandeira nacional. Depois, sairia a explorar, a tentar descobrir vestígios de habitantes, cidades ou vegetação. Tiraria fotografias. Retiraria tudo o que pudesse ser de interesse para o meu mundo. E, então, procurava maneira de regressar depressa. Se houvesse habitantes pacíficos e amigos, trocaria com eles o maior nº possível de presentes e, se pudesse, trocava impressões e escrevia mesmo essas impressões. Investigaria a sua história, civilização, opiniões, maneira de pensar e de viver.

Maria Manuela Aguiar disse...

P19 O que levavas contigo numa viagem interplanetária? (lembra-te que o espaço não é muito). Em que nacionalidadede foguetão te aventuravas?
R

Iria num foguetão construido por sábios alemães, americanos ou russos, não interessa!
Levaria comigo, além do vestuário e alimentação estritamente indispensável, uma bandeira de Portugal, o Evangelho, Os Lusíadas, um pick-up, com discos, (para tocar se lá houvesse gente), uns livritos policiais, para entreter o tempo, e, se possível, um cão, que seria uma presença "humana", ainda que silenciosa.

Maria Manuela Aguiar disse...

The end.
Caritativamente, no comments...

Maria Manuela Aguiar disse...

Afinal, esqueci-me da P16...
Em que época gostarias de viver e porquê?
R
Gostaria de viver precisamente agora e poder ajudar a construir um mundo ainda melhor para as gerações futuras. Acho que não deve haver nenhuma época que ofereça, como a nossa, a par da possibilidade de alcançar o que se deseja, a possibilidade de lutar.




Claro que o inquérito me serviu para tratamento estastístico!
Nesta pergunta, informo que 14 meninas escolheram, também, o presente, 11 o passado e apenas 7 o futuro (uma delas a Lecas!)

E quantas casariam com "um homem de côr"?
13, entre elas a Lecas e eu.
As outras 18, nem pensar!

Nos escritores, grande destaque para Gheorghiu e Maugham (10, cada) e Pearl Buck(9)

O povo favorito (excluindo o Português), o alemão (16) muito distanciado do inglês e francês (4)

Interesse na filosofia e na política, meio por meio:
F sim, 14, não, 17
P sim1 6, não, 15

Actores, actrizes:
Vitória destacadíssima de Ingrid Bergman(20) e de Yul Brynner (19)
A seguir Audrey Hepburn (11)e Paul Newman(9)

Filmes:
Pousada da 6ª Felicidade (12)
Os dez Mandamentos (11)
Guerra e Paz (9)

Grande divisão entre pintores...
Renoir e van Gogh, na frente da corrida, apenas com 4 votantes. Ninguém mais se lembrou dos céus de trovoada de Vlaminck, é evidente...


Música: ganha a clássica (20) , com Chopin(6)e Strauss (5)
Na ligeira, a italiana (9)
A música cigana tem mais uma adepta, para além de moi-même...


Passatempos: Quase todas gostam de
ler. Muitas de ir ao cinema, dançar e ouvir música. Desporto, só duas.
Estranho eu não ter indicado o desporto!!!

Maria Manuela Aguiar disse...

E agora a prosa dos 15 anos.
Uma crónica sem título sobre o quotidiano de uma menina contestatária num internato de religiosas.
Lembrei-me de a ir procurar depois de ler o comentário da tia Lola sobre a sua expulsão do Colégio da Esperança por "delito de opinião": um manifesto contra a directora da instituição, que não era de freiras, mas era como se fosse.
No meu caso, escapei de tão extrema sentença por muito pouco. Fui suspensa, mandada para casa uma semana e, depois, repreendida e reintegrada, sem mais.

Maria Manuela Aguiar disse...

Tal como a Tia utilizava um vulgar caderno, com a indicação de uma disciplina (Inglês) para disfarçar.
Durante um dos nossos periódicos retiros espirituais, resolvi adiantar a escrita e tão denodada actividade levantou suspeitos. Veio uma das freirinhas, cujo nome e rosto misericordiosamente esqueci, e arrancou-me das mãos a minha obra em feitura.
Depois foi o fim do mundo - um escarcéu medonho!
Consideraram circunstância agravante o facto de ter usado os momentos pios de um retiro para o ímpio objectivo de criticar a "casa"...
Contei, felizmente, com a solidariedade da família, e, pelo desfecho do caso se vê, com a de muitas das Doroteias, que eram minhas amigas e deram ao escrito a importância que ele merecia - e que não era assim tanta...
Fair-play raro para a época, diga-se!

Maria Manuela Aguiar disse...

De qualquer modo, não me restituiram o caderno, nem o devolveram à família, para consubstanciar a acusação e o processo que me moveram... A tenebrosa Mestra Geral, Madre Folque, se bem me lembro, a principal visada, ou o guardou, para atenta leitura, ou o lançou ao caixote do lixo, hipótese mais do que provável.
Só que, na altura eu tinha uma memória espantosa: fotográfica!
Nas férias seguintes, feito o antigo 5º ano do liceu, com dispensa a Letras e a Ciências, aproveitei os longos meses de verão, em Espinho, para reproduzir todo o texto, até à última vírgula.
E esse que ainda conservo.
A Tia Lola - hélas! - perdeu o seu manifesto, irremediavelmente. Que pena!

Maria Manuela Aguiar disse...

A crónica começa por uma verdadeira citação de propaganda do Colégio do Sardão:

Este colégio tem por fim a formação moral e literária das meninas por meio de uma instrução sólida e particularmente prática, que visa de um modo especial a cultura e desenvolvimento das virtudes que fortalecem o carácter e formam o coração.
Parece ficção, mas ainda não é...

Maria Manuela Aguiar disse...

A introdução:

Na verdade, isto é apenas um mundo diferente. Nem completamente bom, nem absolutamente mau. Cá dentro, ri-se e chora-se como lá fora, apenas a monotonia é mais intensa porque o círculo das obrigações, das diversões é muito mais restrito. Rimo-nos do bem e do mal, do natural e do absurdo, delas e de nós e da maior contradição que é a própria vida. E choramos porque não podemos ou não queremos rir, porque sentimos em nós um ridículo abstracto e vemos em tudo o desconhecido que conhecemos e que, quando queremos, apalpamos e se nos escapa entre as mãos como o próprio ar.
Através das janelas vê-se um céu variável, ora azul ora cinzento. Às vezes chove e há dias em que o sol brilha e ilumina as pedras da calçada. Em frente da aula adivinha-se por entre as árvores a frontaria pesada de algumas casas de estilo burguês. Mas isso não interessa! Nós olhamo-las como um boi olha um palácio, porque nos sentimos irremediavelmente longe e irremediavelmente perto desse mundo misterioso que apenas vislumbramos de 15 em 15 dias.
Aquele portão verdeé o símbolo altaneiro desta tremenda divisória. Um portão grande e forte, de grades torneadas, que não passa de um portão e não deixa de ser um abismo intransponível. Atravessa-lo seria calcar aos pés, sem lhe temer o veneno, a víbora do preconceito e do medo. Este portão é acima de tudo uma cortina de nada, uma cortina macabra com a qual se chocam como o passarito na gaiola os nossos melhores anseios de liberdade.
Deixemos, vagarosamente, que o tempo se gaste na penumbra medíocre dos corredores, Vejamos essas raparigas que se arrastam solenes, numa igualdade, numa assimetria assustadora. Antes de tudo avulta a bata preta. Talvez tenham cabelos escuros, olhos azuis... Talvez! Mas a única certeza é o uniforme negrejante.

Maria Manuela Aguiar disse...

Esta é a primeira impressão.
As veteranas têm, porém, uma opinião mais optimista: estar engavetada durante meia dúzia de anos tem as suas vantagens, respirar o ar pelas frinchas, ver a vida embaciada através das lentes biconvexas dos portões colegiais tem as suas vantagens. Primeiro: pode respirar-se mal, mas não se sufoca e o próprio ar está impregnado de responsabilidade, fraternidade, silêncio e filosofia. Não se apanham chuvadas nem se molham os pés, as próprias correntes de ar podem ser facilmente explicadas:
o corpo didáctico é um grande centro de altas pressões (temperaturas glaciais) enquanto as alunas são um pobre centro de pressões mínimas (temperatura capaz de derreter manteiga - mesmo rançosa). Assim se gera o vento colegial.
Podia continuar, falando de monções, ciclones e anti-ciclones, etc, mas não tenciono escrever um tratado de geografia figurativa.
Segundo: ver o céu aos quadradinhos, aos rectângulos ou aos círculos dá-nos uma grande lição - ensina-nos o gosto pelo pormenor, mostra-nos fragmentos de céu, fragmentos de liberdade e permite-nos traçar neles um ideal de bocados, um ideal aos bocados.
A princípio isto parece uma ignóbil desvantagem. Mas quem assim pensa não viveu seis anos no colégio. Quem esteve tem uma opinião muito própria e muito diferente!
Ver o mundo embaciado é a terceira e a maior das vantagens: ensina-nos a verdadeira conformação religiosa, porque ninguém deseja embrenhar-se em névoa (embora muitos - que alarves! - queiram ver Londres) e poupa-nos o auxílio de óculos e binóculos - hoje em dia muito caros - porque uma paisagem de névoa mil vezes aumentada ou mil vezes diminuida não deixa de mostrar a mesma coisa: névoa!
Tudo isto parece muito vago, muito "em sentido figurado". É talvez defeito de estilo, mas de estilo 100% colegial.

Maria Manuela Aguiar disse...

*** O TRIO TERROR

Pensei 3 vezes antes de pegar na caneta, 3 vezes ao pegar na caneta, e depois deixei de pensar, para não acabar como o burro do provérbio.
Ao estudo há sempre um assunto interessante para escrever. O próprio facto de escrever é já um tema e uma aventura, poruqe a esta hora só é permitido o acesso aos calhamaços da física e às retroversões de inglês. No entanto, hoje sinto-me indecisa. Porque é muito fácil dizer asneiras e muito arriscado escrever a verdade. Apesar disso, vou ser franca.
Vou começar por examinar as caras de algumas colegas, Algumas delas davam um livro!
À minha esquerda a Zé, de olhos distantes pregados na lâmpada e lábios descaídos, o que lhe dá um soberbo ar de palerma; à minha direita a Alice, a limpar os óculos e a rever a volframite. Estuda brutalmente, tem sempre um ar sereno e umas fortes dores de cabeça. na fila mais ocidental da aula ficam, de norte para sul: a Catarina, gorda e corada, de dentes serrados e punhos fechados, com ar de boxeur profissional - pesos pesados - a lutar diabolicamente com uma enorme sucessão aritmética; a Ana Maria a espreitar as particularidades gerais do coelho por entre as farripas despenteadas do cabelo ruivo; a Teresa a amarfanhar as folhas crimonosas da gramática francesa. É uma pequena nervosa, que quando não sabe a lição desfaz os livros em tiras. Uma vingança um pouco cara...
No canto, a cábula mór. Não sei porquê mas a indisciplina quase sempre acumula-se nos cantos mais recônditos... Já é sorte! Neste caso são autênticas cábulas com letra grande. Nas últimas semanas tiveram, porém, um pouco de dó na consciência e decidiram não fazer barulho nem falar na primeira hora de estudo. A Amélia serve-se desses escassos 60 minutos para cortar e pintar as unhas, dar um jeito aos caracóis, cozer os botões da bata, fazer camisolas para os pobres da Conferência, arranjar as sobrancelhas, etc. A irmã Sara tem uma carteira que é um autêntico jardim zoológico: grilos dormindo em gaiolas atulhadas de alface, girinos em frascos arredondados cheios de água suja, caracóis repousando na caixa de óculos e na caixa dos lápis, etc, etc, etc. No entanto este coração compassivo tem um ponto fraco: o seu ódio avassalador, imenso e feroz contra as moscas. Por isso, de verão, podemos ver moscas espetadas em alfinetes, moscas enfiadas em linha à maneira de cordão de esqueletos, moscas trituradas por lápis, como se fossem terreno bravio, que necessita de cilindro para o aplanar e até moscas afogadas no verniz de unhas da Amélia ou em frascos de cola e de tinta. Além disso, colecciona num grande caderno negro asas de moscas previamente coloridas. Já tem centenas! E a pior coisa que se lhe pode dizer é: "tu hoje estás com a mosca"!
A Gui, nessa hora, pede os exercícios de matemática à Tété e as retroversões à Luisa e copia tudo à pressa, como quem faz um grande favor à mestra respectiva. E, depois, faz gaiolas de papel para os bichos da Sara, quadros tipo Picasso e quando não tem mais nada a fazer rasga oapelinhos, grava datas e nomes na tampa da carteira e insulta o destino e a professora.
A Ruth lê revistas de cinema e livros policiais e, de quando em quando, olha o relógio com ar aborrecido. Depois faz o sinal de que acabou a hora. A Sara põe no chão dois gigantescos dicionários de inglês e encosta a bengalinha de verga à sua carteira enquanto a Gui tira da carteira um sebento baralho de cartas, com todo o aspecto de taberna. Mas elas acham-no muito "castiço".
Baralham, dão e começa o jogo. As cartas são atiradas para o meio com tal perícia (os efeitos do hábito!) que raras vezes caiem no chão. A que ganha puxa os "dicionários, perdão, a "mesa e tudo recomeça.
Evidentemente que agora não posso olhar para trás. Não porque me doia o pescoço, mas porque daria nas vistas... Apesar disso imagino que estão a jogar, porque além de não me faltar imaginação elas são pouco originais e divertem-se sempre da mesma maneira.

(cont.)

Anónimo disse...

A Fernanada - a essa vejo-a bem - tira para fora a mineralogia e um dicionário de francês e escreve, escreve, escreve... Quem e vir em tais preparativos pode julgar que ela anda a traduzir o quartzo e o volfrâmio na língua de Napolão e pensava decerto que ela poderia dizer e com a mesma facilidade as mesmas asneiras em português...
A Isabel é do mesmo género. Tira 4ou 5 calhamaços e faz deslizar por baixo deles as folhas de um romance azul - Max du Veuzit, Magali, etc... De quando em quando, para disfarçar toma apontamentos, traça sarrabiscos, e a mestra fica, decerto, convencida que ela reviu toda a matéria do
3º, 4ºe 5º ano de botânica ou de geografia!
O que eu não consigo compreender é onde ela esconde as dezenas de romances que traz para o colégio. Tem uma carteira que é mesmo o género de um chapéu de prestigitador - jornais, revistas de cinema, fotografias de artistas, novelas, romances, numa profusão tal que chegaria para montar uma pequena livrariazinha! Nestes tempos que correm é arriscado fazer contrabando e, ai! Se os carabineiros" fazem buscas ao cubículo da Isabel... Que mina!
Mudando de assunto.
Dizem que a variedade é o sal da vida. Apliquei o provérbio nas minhas amizades.
As minhas amigas são 3 estilos tão diferentes que nem sei de quem gosto mais. A Ruth estouvada, malcriada, irreverente, autêntico espécime da era atómica. Tão aberta e franca nos seus juízos e opiniões que, às vezes, me irrita até eu perder a cabeça. Há certas verdades que não devem ser ditas, porque são demasiado chocantes, mas ela ainda não compreendeu isso.
A Zé, lunática, filósofa, reservada, uma amiga estranha. Zanga-se com a máxima das facilidades, corta relações e 5 minutos depois distrai-se e vem falar comigo amigavelmente. É, a um tempo, tão impulsiva e tão calma, tão selvagem e tão expansiva que nunca sei o que posso esperar dela. Dá a impressão de viver num mundo diferente.
A Teresa concentra-se muito em si e é difícil conquistar-lhe a confiança. Ao fim de muito rondar o assunto, como um gatinho guloso atrás do peixe, acabo por apanhar uma espécie de pontapé. E, quando menos espero, ela agarra-se a mim e diz-me tantas e tais que eu nem tenho tempo de fechar a boca aberta...
São estas as minhas amigas e só peço que não me apliquem aquele conhecido ditado: "diz-me com quem andas, dir-te-ei quem és"!...
O trio terror não inclui a Teresa, porque a Teresa não gosta de convivência e detesta a Zé e a Ruth.
Das 3, as freiras não têm dúvida em dizer que eu sou a melhor e que é pena que tais companhias estraguem uma rapariga como eu, com tão bom feitio e tão bom fundo.
Já que fiz tantas apreciaçoes, talvez poco justas, digo também o que me julgo. Não uma pessoa amável, mas uma pessoa demasiado esperta para para ser malcriada. Quando me ralham, não me armo de um ar superior como a Ruth ou de um ar distante como a Zé ou de um ar furioso como a Teresa. Ouço silenciosamente e não emito opiniões e, também,em geral, não peço desculpa. Mas logo que os ânimos se acalmam, diplomaticamente, não deixo de dizer o que antes tivera de engolir... E o meu maior prazer é lançar as mestras contra si próprias! Quando o consigo, não vou espalha-lo aos quatro ventos, mas fico a saber o que queria e o que é preciso para momentos difíceis.
A Zé e´do tempo das primeiras letras, mas a Ruth, foi no 2º ano, já em pleno Abril, que nos apareceu.
Veio num grande Buick preto e eu, que estava à janela, pude ver um chauffer de cabeleira branca, abrir com respeitosa vénia a porta do lado direito enquanto uma miúda de nariz arrebitado saltava pela porta esquerda e assentava dois valentes pontapés no portão verde.
Acompanhava-a uma senhora nova, que era a preceptora, e que sorria benevolente, encantada, decerto, por se ver livre dela por um par de meses...

Docas disse...

(cont)
Não sei ao certo o que a Ruth fez. É uma criança que fantasia um bocado, mas não é difícil acreditar que olhou a mobília da sala, cujas janelas de persianas descidas impediam que o sol dardejasse os seus raios nefastos sobre os cadeirões de pau preto(?).
De pau preto, sim! Para que se há-de dar crédito às más línguas que afirmam que aquilo não passa de pinho pintado? No centro havia e ainda há uma mesa rectangular feita da famosa madeira da contradição, onde repousavam dois albuns de meninas solenes e gordas - antigas alunas - de quem Ruth se riu um bocado, um outro album de propaganda do colégio, dois cinzeiros prateados, um preto de barro que abana a cabeça quando se lhe deita a esmola e uma artística jarra regional com papoilas vermelhas de esponja-nylon. A mesa e todos objectos, como é óbvio, assentavam sobre uma luxuosa carpete de ramagens.
A precetora sentou-se decerto numa das cadeiras estofadas a damasco vermelho e pôs-se a contemplar as cortinas de cassa amarela como se nada mais a pudesse interessar naquele momento. Ruth, depois de cuspir na carpete de esconder a cabeça do preto entre as papoilas da jarra e de ter arrancado um berloque ao fio de puxar os reposteiros, ía sentar-se quando entrou a directora, uma freira nem alta nem magra, embora não parecesse nem baixa nem gorda, de faces brancas como convem a uma verdadeira freira, longas pestanas escuras a guarnecer uns olhos severos que pareciam troçar e ridicularizar o largo sorriso amarelo que lhe torcia os lábios finos e nervosos.
A preceptora levantou-se e disse algo no género disto:
Minha estimada Madre, aqui tem a nossa Ruth Lia! Como sabe decerto os pais estão em África e Ruth tem estado a meu cuidado. Revelou-se uma criança adorável e discreta e os senhores Sade confiam neste colégio para lhe ministrar a educação que faça dela uma dona de casa e uma rapaiga da sociedade. Mademoiselle Ruth cumprimente a Madre Directora!
Mlle Ruth, que à entrada da ilustre personagem lhe voltara deliberadamente as costas, teve de obedecer. Teve de oferecer a face ao molhado ósculo directivo e ouvir o encantador elogio:
É um anjo esta menina! nunca me engano nos meus juizos. Depois de um pouco de convívio com a juventude é tão fácil adivinhar o íntimo dos jovens.
Pois posso dizer-lhe, minha senhora, que este colégio tem todo o prazer de receber a nossa Ruthezinha e de lhe moldar tão adorável cacácter.

Docas disse...

Ruth afirma que nesse momento se assuou ao véu negro da freira, mas quem quiser que não acredite...
Esplêndida directora que dizia sempre e invariavelmente o mesmo elogio. Pobre, pobre colégio, se ela não se enganasse ou até se não se enganasse sempre...
Que seria do mundo se todos os homens se voltassem para o céu?
Desaparecida a maldade que seria da virtude? Sem dúvida ver-se-iam coisas muito surpreendentes!
O Kruchev a rezar na Catedral de Notre Dame pelos mortos da revolução húngara e a enviar cigarros russos a Eisenhower, os pretos e os brancos a decorarem juntos as teorias de Einstein às portas de Litle Rock, o pandita Nehru a fazer greves da fome em honra da Rainha de Inglaterra, Adenaur e Bulganine a cantarem de mãos dadas a Avé Maria de Shubert!

Docas disse...

Actrizes de cinema recolhiam ao Carmelo, gangsters formavam associações protectoras da infância abandonada. Os acordes solenes do orgão substituiriam a loucura do rock e do mambo, enquanto os casinos e as boîtes, lugares mil vezes amaldiçoados, seriam abandonados pela humanidade santa aos morcegos e às aranhas. Os cinemas apenas abririam anualmente as suas portas para apresentar "A vida de Santa Teresa" ou "O martírio de São Cirilo". A cerveja, whisky, e todos os vinhos seriam substituidos pela água benta e os homens fumariam apenas o ar carregado de micróbios.
A humanidade despida de preconceitos e de nacionalidades morreria serenamente a ouvir o canto das aves descuidadas, entoando um último louvor e sorrindo um último sorriso de gratidão. E o mundo continuaria a girar em volta do sol como um minúsculo santuário a espalhar no universo os acordes magníficos do Te Deum.
No colégio desapareceria obviamente o album de asas de moscas da Sara e o famoso trio terror do qual eu quase não falei neste capítulo que lhe era dedicado. Mas demonstrarei seguramente a sua edificante maneira de actuar no decorrer destas páginas.
(fim de capítulo)

Anónimo disse...

Maria Manuela Aguiar disse
Esta crónica, em 6 capítulos e 113 páginas manuscritas, é demasiado longa e chata. Termina, por isso, aqui, na pag. 19, a transcrição na íntegra...
SEGUEM-SE EXTRACTOS, APENAS...
A escolha não é feita com base na qualidade literária - que é coisa de todo inexistente - mas na capacidade de dar a imagem de uma vivência real transposta para a ficção

Anónimo disse...

M M Aguiar disse
I Capítulo
Às duas da madrugada
(...)

Quando acabaram as duas garrafas de espumante todas, sem excepção, estavam "comme il faut".
A primeira a ressentir-se foi a Amélia. Afirmava que sentia os dentes no estómago. A Sara declarou o seu ódio às caravelas e aos marinheiros e assegurou-nos que se fosse Deus mandava secar todos os mares do mundo, menos o Cáspio.A Ruth achou que isso devia ser um bocadinho mais difícil do que secar bacalhau e ninguém compreendeu essa sublime predilecção pelo Cáspio. A Margarida, essa então estava absolutamente anormal. Em geral é uma pequena simpática, distante que nos dá explicações de botânica e de matemática com um certo ar superior e ri das nossas brincadeiras como riria uma raínha se a sua criada de quarto partisse o espelho do quarto. O vinho, porém, destravou-lhe a língua: contou-nos duas daquelas anedotas de fazer corar um soldado, tentou recitar as fábulas de La Fontaine
e acabou a cantar "A Rosinha dos limões", e dpois adormeceu ao som das suas próprias canções. A Marta, porém,continuou a conversa dizendo que para ela o maior homem do mundo foi Dom Pedro I: só aquilo de trincar o coração dos assassinos da amante foi soberbo.
- Não! - interrompeu a Teresa - o maior génio do mundo foi...foi...
O auditório ficou suspenso, porque a Teresa pertence a um género de pessoas que tanto podia dizer Hitler como Jaburú.
-Foi François Villon
Ninguém conhecia tal personagem, mas concordamos que a preferência da Teresa não era das propagandas mais edificantes.
A propósito disto fiz uma reflexão. As estudantes do liceu, especialmente do 2º ciclo, são especializadas em saber o que ninguém sabe e em ignorar que todos sabem. Por exemplo: podem não conhecer nada de história, mas se encontrarem um nome, um facto pouco importante que a própria professora desconhece tornam-se quase diabólicas e nada as satisfaz mais do que arrancar um aflitivo e pálido sorriso de ignorância a uma pessoa que sabe mil vezes mais do assunto do que elas. Se vêm que o interlocutor não é propriamente mestre em determinada matéria tornam-se mais do que perigosas: ferozes! Então se forem do estilo da Ruth ninguém supõe a quantidade de asneiras que se podem ouvir!
- Está provado que o hipismo é o melhor dos desportos! Até todos nós temos um pouco de cavalar. Não é verdade? Se não para o que serviria a nossa cauda equina?
E se a desgraçada vítima percebe que está a ser gozada e reage dizendo que vá meter essa da "cauda equina" a quem goste de comer patranhas, a miuda sorri de uma maneira especial e considera que, em boa verdade, " a vida é digna de ser vivida" .
Um conselho aos adultos: cuidado com as miudas intelectuais. Fugi delas, mesmo que tenhais meia dúzia de cursos superiores. São piores do que o concurso de perguntas e respostas da televisão americana (...)

Anónimo disse...

M M Aguiar disse
Faço notar que as minhas história do Sardão não são autobiográficas.
A autora fala na 1ª pessoa - mas esa pessoa não sou eu.
Nem as outras correspondem às minhas colegas, amigas e inimigas. Mas... il y a du vrai...
A cena da embriaguês colectiva, por exemplo, baseia-se num acontecimento autêntico. Alguém trouxe para o dormitório uma garrafa de Porto...
Felizmente, era a Madre Borghi a nossa supervisora e achou-nos graça. Eu só me lembro de ter adormecido, fulminada, ao fim do primeiro cálice cheio...

Maria Manuela Aguiar disse...

II Capítulo
REACÇÕES
É quarta-feira. Acordamos em geral bem dispostas...apenas com a boca um bocadinho pastosa. Mas não sei porquê, hoje é um dos tais dias em que todas as freiras embirram comigo. Sucede isto a muito boa gente. Nos dias em que se fazemos tudo mal - chegar atrasada à aula, às formas, ao refeitório, fugir do recreio, não ir ao terço, dar respostas tortas - elas fazem que não ouvem, que é aliás a melhor coisinha que podem fazer.
Logo, porém, que procuramos ser virtuosas e nos mantemos muito caladinhas durante 99% do tempo de silèncio nesse 1% em que soltamos meia dúzia de fonemas ouvimos um autêntico sermão de Quaresma, em que nos atiram à cara todos os pecados da vida passada. Simultâneamente, desabam sobre nós as proibições de idas a casa, privações de recreio, escrever 500 vezes "devo ser bem educada" (será assim que se fica bem educada?) e todos os outros métodos de tortura colegial vulgarmente empregados com êxito.
È por estas e outras razões que a "sólida" instrução e educação do colégio se assemelha ao que botanicamente chamamos ritidoma...
A única coisa que se consegue obter é uma formidável pasmaceira e o mais completo sentido de desorientação.
Vejamos:
Depois de ouvir durante meia hora as maiores calamidades a vítima pede humildemente "Desculpe, Madre X", Ai! Fica mais meia hora a ouvir "As meninas já não sabem o que dizem. Por tudo e por nada è desculpe. Cale-se! prefiro que se cale".
Mas se, no mesmo dia,a própria Madre X torna a ralhar à rapariga e esta, naturalmente, não pronuncia o ritual "deculpe" ficará uma hora a assimilar e a desassimilar, num perfeito "metabolismo contradicional" ( de contradições) um tremendo discurso sobre o pecado do orgulho "porque se cometeu a falta e nem sequer teve a humildade de pedir perdão".
(...)
Além disso eu já percebi que não vale a pena pedir desculpa porque "estão desculpadas da acção, mas não do castigo. Eu já esqueci tudo, minha filha". Já esqueceu, mas a nós não nos dá o direito de esquecer.
E já é também sabido que elas detestam dar direitos. Em boa verdade, para que são eles precisos se a liberdade está em fazer aquilo que nos ordenam?

Maria Manuela Aguiar disse...

(...)
Este estabelecimento acompanhou decerto a avolução do século atómico, mas de todas as instituições colegiais uma permanece imutável, como um autêntico baluarte de tradições: o "castigo".
Hoje como há 20 anos quem soltar um risinho no refeitório ou der uma palavra nas formas irá para a cama no recreio da noite ( não interessa que não tenha tempo de fazer a digestão) ou fará uma redacção sobre um tema apropriado, fechada num quartinho de piano.
Pode revolver-se o céu e a terra, que o "castigo" será sempre a "espinha dorsal" do corpo didáctico do colégio. E nós próprias não nos sentiríamos bem se assim não fosse.
Houve uma semana o ano passado em que o meu 4º ano bateu todos os recordes anteriores estabelecidos dentro daquelas paredes: 27 ! Não houve recreios que chegassem para tamanho vendaval. Donde se deduz que para salvar a mais típica e altaneira tradição daquela casa bem podiam conceder para recreio uma hora verdadeira que tivesse mais de 35 minutos!...
Sendo o castigo overdadeiro "test" que põe à prova toda a nossa força de vontade e optimismo, sinto-me tentada a transcrever uns dialogosinhos que vós, pais, nunca podereis ouvir, porque diante de vós "tais anjinhos só merecem parabéns".

Maria Manuela Aguiar disse...

No refeitório:
- Luisa 18, venha cá!
- Porquê, Madre? Eu não estou a fazer nada!
- Venha aqui, imediatamente!
- Mas não era eu que estava a falar!
_ Quem falou fui eu - intervem uma Lili qualquer que tinha estado o tempo todo a contar um romance à do lado. Imediatamente uma dúzia de vozes xeclama: Fui eu!
_ Luisa 18, saia do refeitório!
- Oh madre! Mas o que é que eu fiz?
- A menina é uma malcriada. Saia imediatamente!
- Desculpe, Madre, mas não saio enquanto não me disser porque razão sou malcriada!
A Madre S, vermelha como um pimento, berra-lhe de cima do "púlpito":
- A menina vai ter comigo ao gabinete.
Uma voz calma, imperturbável, mais gelada do que um banho de água fria responde: "Perfeitamente, Madre S".
E enquanto essa tal 18, que é afinal cada uma de nós, sai do refeitório, as que estão no lugar resmungam protestos dificilmente apagados pelo som odioso da campaínha

Maria Manuela Aguiar disse...

No dormitório:
- Porque razão chega a esta hora, Adriana?
- Estive com a Madre L.
- Com licença de quem?
- Não sabia que era preciso pedir licença para falar com uma madre.
- As meninas nunca sabem nada! Vá para a cama e livre-se de fazer outra.
- Eu não fiz nada de especial. Foi a Madre L quem me chamou. Não podia dizer que não!
- Pois dissesse! Era a sua obrigação. Cale-se!
(não repara que a rapariga está calada e continua a zaragata sozinha).
_ Assim é que se vê o que as meninas são. Umas malcriadas, umas ordinárias! Quem a vir dirá que o seu pai e pescador e a asua mãe peixeira!
(...)
...Adriana por uma vez resolveu contar aos pais o que tinha dito a Madre V e eles, chocados, chamaram à sala a tal freira. Suponha-se agora o embaraço dos pais e da madre quando a rapariga anuncia:
- Madre V, aqui tem o meu pai pescador e a minha mãe peixeira!
..............................

Esta terrível mania de chamarem "ordinárias", de fazerem referência do estilo acima descrito aos pais e restante família das vítimas e o "cale-se!" são sumo reduto, o último argumento das freiras. Não se pode dizer que o estratagema seja muito "beato", mas para se fazer uso de um produto, mesmo numa instituição religiosa não é preciso que esteja canonizado.

Maria Manuela Aguiar disse...

... uma espécie de "regra" da instituição é a desconfiança.
Será que a santidade delas é uma redoma de cristal para além da qual só há pecado e intenções perversas?
...
Ainda há poucos dias, tive esta discussão com a Mestra Geral:
- Madre, preciso de tirar uma fotografias para a ficha desportiva.
- Tira no sábado quando for a casa. Não é urgente.
- A Madre C diz que é preciso, o mais depressa possível. E já vão atrasadas!
- Ela não me disse nada.
(apeteceu-me perguntar-lhe se achava que eu estava a inventar!).
Faz favor de falar com a a Madre C. Ela lhe dirá!
- Mas a menina já sabia há muito tempo que precisava das fotografias!
- Não sabia de nada. Nem sequer da existência dessas fichas!
(exibiu o habitual sorriso amarelo enquanto os olhos severos o contradiziam).
- Mas... como é isso possível? Já o ano passado andou na equipa de voleibol!
- Peço desculpa, mas não andei.
- É impossível que não soubesse das fichas!
- Já disse que não sabia. Se a Mestra Geral não quiser acreditar, paciência...
Neste curto diálogo, do princípio ao fim, ela duvidou de mim, como duvida de todas aquelas que não são da "confraria", isto é, que não vão denunciar todas as conversas que as amigas lhes contam, confiadamente.
Agora, desde que essa confraria entrou em campo, todos os cuidados são poucos. As paredes têm olhos e ouvidos!

Maria Manuela Aguiar disse...

...

Capítulo III
Uma manhã de aulas

A aula de português foi acidentada.
A Isabel assassinou algumas estâncias dos Lusíadas, conseguiu tirar um 8 e, ainda por cima, pôs-se a chorar. Esta pequena é injusta consigo própria. Não quero armar em moralista, nem sou da confraria. Acho bem que não se estude, mas tenha-se consciência e aceitem-se as consequências.
...

- Helena, o que é que a menina está a fazer?
...
- Estava a ver umas coisas nos Lusíadas...
- Mostre o que estava a fazer!
Muito corada, mas obediente, a Helena entregou uma folha de sebenta, com versos todos rabiscados e corrigidos. Pela cara da professora compreendemos logo que era paródia aos Lusíadas, e a Helena, nada aflita, passou-me um sub-rascunho.
Ei-lo:

Maria Manuela Aguiar disse...

I
As botas e os calções assinalados
Que da Invicta cidade lusitana
Por estádios jamais ultrapassados
Passaram inda além do Lusitano
Em pontapés e golos esforçados
Mais do que prometia um pé humano
E entre águias, leões edificaram
Vitórias que tanto sublimaram.

II
E também as memórias gloriosas
Dos treinadores que foram dilatando
Os sócio, as cotas, e os campos viciosos
De Alvalade andaram devastando!
E os que por jogadas valerosas
Se vão do amadorismo libertando
Cantando espalharei por toda a parte
Se a tanto me ajudar a bola e a arte

III
Cessem do Azevedo e Araújo
As jogadas granddiosas que fizeram
Cale-se do poeta e do marujo
A fama das vitórias que tiveram
Que eu cantarei aquele a cujo mando
A bola e a sorte obedeceram.
Cesse tudo o que o jogo antigo canta
Que outra equipa mais alta se alevanta

IV
E vós, ó craques meus, pois criado
Tendes em mim engenho ardente,
Se sempre em calão doce celebrado
Foi de mim vosso jogo alegremente,
Dai-me hoje a passos largos um bailado
Que aos lagartos as pernas acorrente
Porque do vosso jogo Knippel mande
Que todo o inimigo já desande!

Maria Manuela Aguiar disse...

Naquela meia folha de sebenta não coubera mais, mas a Helena estava com firmes ideias de fazer a completa adaptação dos "Lusíadas" à maior loucura da era atómica: o futebol.
Fiz-lhe notar que não era muito patriótico substituir o Vasco da Gama por um brasileiro, mas ela invocou o tratado luso-brasileiro e afirmou que sem Yustrich não havia equipa do Porto e portanto não havia poema...
Não pude deixar de argumentar também que havia certos jogadores do Porto que não tinham propriamente estilo de ninfas: por exemplo, o Jaburú!

Maria Manuela Aguiar disse...

...Confesso que com as injecções que ela me espeta de futebol e do Porto eu até já percebo um bocado do assunto e partilho com ela um ódio comum a um tal Eduardo Soares, que nunca me fez mal nenhum, e uma grande admiração pelo Yustrich "a quem toda a cidade deve agradecer"!
Não é difícil simpatizar com um gigante de dois metros, nome alemão e coragem de padeira de Aljubarrota.