quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

W Memórias de Paris



...no pós Maio de 1968

1 – A minha relação com os acontecimentos de Maio de 1968, em Paris, é a história de um “rendez-vous manqué”.
Cheguei tarde, nos últimos meses do ano. Ou cedo, para avaliar o seu impacto no futuro da instituição “universidade” e da sociedade francesa – ou o seu significado profético, revelação de um mundo emergente de novos conflitos e tensões sociais, de formas novas de manipulação ou de “opressão”, não num quadro de exploração de classes e de pauperização, mas em economias prósperas, de sedimentação de “classes médias”, e enriquecimento generalizado, ainda que desigual…
Para Paris parti, numa segunda-feira, 28 de Outubro de 1968, no wagon-lit do Sud-Espresso – já na sua fase de declínio, sobrevivência do gosto de viajar sem pressa e com conforto. Até Hendaye, o Sud avançava com um vagar próximo da indolência.
Parava aqui e ali. E ficava estacionado o tempo suficiente para entrarem e saírem das carruagens famílias inteiras, na despedida do passageiro (assim foi comigo, na Pampilhosa…). Havia tempo para tudo: para ler, passear nos corredores, gozar o exclusivo de um restaurante quase vazio e dormir num beliche, entre lençóis bem engomados, uma noite longa. Na fronteira francesa, era obrigatório mudar de comboio – porque até nos carris a Península divergia do resto da Europa! – um comboio velho, “vulgar”, superlotado, mas bastante mais rápido. Deixou-me, sem um minuto de atraso, terça-feira à tarde, na Gare de Austerlitz.
Um sem número de emigrantes portugueses – em número largamente superados por sacos e por enorme malas - desembarcaram também. Foi tarefa difícil arranjar um táxi, no meio de uma multidão desordenadas de portugueses e não só, com os seus pertences espalhados extensivamente pelos passeios, a dar à primeira imagem de Paris revisitada, um ar de arraial, de desfazer de feira muito pouco cosmopolita…
Havia apenas o escape do “metro”, mas não ousei aventurar-me na sua rede densa, a caminho de um “quartier” desconhecido, algures na direcção da “Porte d’Orleans”, da Cidade Universitária e, dentro do seu perímetro vasto, da “Casa de Portugal”.
Com o motorista cheguei, sem mais problemas, ao edifício, que, aliás não tinha nada de caracteristicamente português. Aí fui conduzida a um pequeno quarto, onde não cabia muito mais do que um divã estreito (como o beliche do Sud) e uma secretária de trabalho. Deixei a mala pousada num canto, olhei de relance a janela com vista para a Igreja de Gentilly (que seria, anos depois, a primeira grande paróquia dos nossos emigrantes) e saí. No momento da despedida tinha, pouco avisadamente, prometido telefonar a minha mãe, logo que possível. Mas não foi possível… Não havia linha exterior disponível para os residentes, nem mesmo na recepção (um retrocesso até em comparação com o provinciano lar de freiras, do meu primeiro ano em Coimbra…)
O porteiro deu-me instruções para demandar a estação de correio, junto à entrada principal da “Cité”, no Boulevard Jourdan, Mas, perante a minha perplexidade, traçou, numa folha, um mapa improvisado útil! Fui direita à estação em poucos metros. Depois esperei numa comprida fila a minha vez, para receber apenas a informação de que teria de aguardar até à hora de encerramento de serviços. Só então fariam o favor de discar o número de minha casa. Faltavam ainda duas horas! Mandei um telegrama sintético e económico.
Senti-me só e longe. Nunca o Porto me parecera tão remoto.
À medida que outros episódios semelhantes foram despertando a minha combatividade, habituei-me a reagir à má vontade ou má disposição de alguns parisienses, nos correios, nas lojas, nos cafés, com mais determinação – chegando, se preciso, à agressividade verbal controlada – e obtive, regra geral, melhores resultados.
Na altura, atribuía tanta sobranceira (se assim era comigo, como seria com os emigrantes, sem o mesmo domínio da língua?) à maneira de ser e de estar do povo local. Mas mais tarde achando-os bem mais comunicativos e amáveis – como ainda são – conclui que sofriam, de uma irritabilidade conjuntural, que era apenas uma das sequelas dos traumas de Maio de 68 (a primeira com a qual tive de lidar…).

2 – No início de 1968, enquanto os estudantes ensaiavam as primeiras formas de contestação, em Caen e Nanterre, faziam a greve geral, em Itália, ou se manifestavam, contra a guerra do Vietnam, nas ruas de Berlim, eu estava em Genebra. Geograficamente perto, mas distante, em termos de percepção do fenómeno…
Se alguma erupção de descontentamento estudantil ocorreu na Suíça, nós, no “Instituto Internacional de Estudos de Trabalho”, não demos por isso. Éramos um grupo de investigadores, professores, sindicalistas, funcionários públicos e até alguns políticos – todos vistos como promissores, embora nem todos nos tivéssemos revelado, como previsto, nas décadas seguintes – e no centro das nossas atenções não estava Nanterre, nem a França, mas regiões do mundo onde residiam maiores desafios ao desenvolvimento (o chamado “terceiro-mundo”) e à paz (Vietnam, Cuba, Checoslováquia…).
Quase todos púnhamos moderadas esperanças na “primavera política” de DubceK, que foi quase contemporânea da portuguesa, mas ainda mais breve e com epílogo mais trágico, logo em Agosto de 68…
Quando a chama do Maio francês já praticamente se apagara, os tanques do exército soviético mostravam, em Praga, como se reprime e extingue uma vivência curta de liberdade condicionada.
Dubcek era o meu tipo de “herói” e Cohn-Bendit não era (por muito atraente que (mais as suas circunstâncias do que a sua pessoa) o tivessem tornado e, a meu ver, por erros alheios, efectivamente tornaram!
À falta de “posters” de Dubcek na colecção da “Librairie Gibert” de St. Michel, seriam os Kennedys, John e Bob, a ocupar vários metros quadrados nas paredes brancas do meu quarto no Boulevard Jourdan. Alguns dos meus amigos portugueses escolhiam, por veneração ou talvez por provocação, à distância, ao regime que nos aguardava no regresso a casa (para os que podiam regressar…), retratos gigantes de “Che”, que estava na moda e era decorativo.
De qualquer modo, acho que naquele tempo o paradigma português das “greves académicas” do início dessa década, que pouco incomodaram o regime, e também, as expectativas que se abriam – embora não muito… com as “conversas em família” de Marcelo e, nas eleições de 69,com a criação da “ala liberal” - contribuíam para que eu, jovem recém-licenciada em Direito, e politicamente reformista, desvalorizasse à época, o alcance e simbolismo de Maio de 68. Pesava negativamente o facto de saber que as consequências para os paladinos do “movimento” e até para os seus simples seguidores seriam fatais em Lisboa, ou em Moscovo, com perseguições e chacinas, que, apesar de tudo – da violência e até de algumas mortes, que mancharam o balanço final – não aconteceram na França “Gaullista”.
Não deixava, contudo, de sentir atracção, não ideológica, pela espontaneidade e pela bravura com que os jovens e os “citoyens”, em geral, mesmo na periferia do movimento, ajudaram ao crescimento de uma fantástica vaga contestária.
Mas o “Poder” – o poder político e os poderes no interior daquela sociedade em concreto, como as organizações partidárias ou sindicais – era-me simpático em comparação com o que imperava no meu país. Como pôr-lhe, à data, os defeitos que, hoje, no do Portugal de hoje, lhe reconheço? (pondo em causa a lógica aparelhística, e o carreirismo nos nossos partidos políticos e falando de partidocracia, ou olhando, por exemplo, os próprios sindicatos com não menor distanciamento afectivo…).
Mas em verdade, durante Maio de 68, já de volta ao “Centro de Estudos” na Praça de Londres, em Lisboa, acho agora que visionava então, aquele filme de peripécias alucinantes, sem realmente compreender as suas motivações (que obviamente faziam mais sentido para quem respirava o ar de uma democracia estabilizada - embora em crise momentânea de destabilização…), para uma parte da “inteligentzia” europeia e universal (muitos professores e investigadores apoiaram o “protesto” dos jovens, tal como vários “Prémios Nobel” - esse clube restrito). Mas, estranhamente, assim não aconteceu com a maioria dos políticos franceses,. Também eles não souberam fazer a correcta e atempada leitura da situação….

3 – Tal como a via, a revolta de Maio era um “happening”!
Maior, em si, no movimento que passava, na dimensão que ocupava, do que em consequências futuras – isto é, em rupturas portadoras de mutações para uma instituição (a universitária) ou para um país (a França). E a verdade é que, pelo menos no curto prazo, o reformismo a que deu azo, era o oposto dos objectivos – dispares, aliás – dos heterogéneos protagonistas principais do “movimento”. Absolutamente indesejável para qualquer revolucionário. E de menos, face aos meios envolvidos na luta.
A mim, nos dois anos lectivos que passei no território da revolta, no imediato futuro do movimento de Maio, o movimento parecia-me mais sem futuro, e sobretudo, mais inútil do que na minha perspectiva actual…
Frequentei, com curiosidade, os seus locais de culto” (a Sorbonne, Nanterre) e ainda, Vincennes, nascida por causa de Maio. Por aí vagueei em cursos de frequência livre, (quando quis inscrever-me em sociologia, na Sorbonne, já as inscrições tinham encerrado por excesso de procura e tive de contentar-me com a matrícula no “Centro Universitário Experimental de Vincennes, que fazia jus ao seu carácter experimental, para além da École Pratique des Hautes Études, onde pude escolher como director de estudos, Alain Touraine).
Como “case study”, Maio era obsessivamente estudado, analisado e comentado pelos grandes nomes da Paris académica (Poulantzas, Althusser, Friedman, Chombart, Aron, Bourdieu…). Via-os de perto, ouvia-os com a fascinação com que no Olympia ou no Bobinno, assistia aos espectáculos de Léo Ferré, ou Serge Reggiani,
Porém, a dissecação da “revolta”, ou da revolução (que não o chegou a ser) operada, com inexcedível brilhantismo, nas suas lições e palestras, parecia-me sempre, aquém ou além das intenções de qualquer deles, uma autópsia ou um requiem pelo Maio próximo passado...
Ao meu sentimento de perda – perda do espectáculo, já em análise póstuma… – subjazia a convicção de que ele era irrepetível e estava definitivamente encerrado. Passara da rua para as salas de conferências, as páginas dos livros.
É certo que uma de infinitos ensinamentos.
Em primeiro lugar para o poder ou poderes: desafiados, desacreditados, vencidos, no tempo efémero da aventura, e logo reinstalados. Os políticos que se haviam convertido em actores principais pela ausência, pelo imobilismo, pela inépcia, pela incompreensão da forma e direcção que o curso daquela história ia tomando. Permitindo, com isso, alianças impossíveis e um efeito “bola de neve” (no caso, mais “bola de fogo”…) dos descontentamentos e dos conflitos , a que a repressão da polícia de choque deu um voo de asa – e a adesão popular. Do povo em estado de indignação! Solidário, contra a máscara bélica de uma democracia desfigurada…
Nesta base de emoções e de reacções se construiu um império da palavra, da imaginação, da acção pela acção, a unir indiferentes, ou opositores, numa festa de protestos: manifestações, desfiles, ocupações, greves – de estudantes, de operários – a reunião magna do Champs de Mars, as barricadas do “Quartier Latin e da Bastilha, a brutalidade policial, detonador de uma explosão de fraternidades… Por uns dias – ou semanas – foi como se a democracia francesa tivesse sumido do mapa, deixando em seu lugar, omnipresente e omnipotente, um regime policial.
Por fim, até De Gaulle seria dado como desaparecido, num interregno táctico, para reaparecer, vindo da plácida Colombey, a dissolver o parlamento e a convocar eleições legislativas – solução última em democracia.
E, assim, mudando o campo de batalha (ou melhor: a batalha de campo…) ganhou força, com outras armas…
Os resultados eleitorais só terão surpreendido os que se equivocaram nas razões da complacência popular com o “movimento” (que eram apenas as do coração, de simpatia pelos combatentes, mais do que pelas razões do seu combate). Na hora de votar, venceram as razões da razão… Venceu De Gaulle, que proclamara “La réforme, oui, la chienlit non”.
Na primeira volta, a 23 de Junho, o gaullismo ressurgiu, na segunda, uma semana depois, a sua vitória foi esmagadora. O velho general reocupava o comando (por pouco tempo, é certo…). E o reformismo, o espaço da contestação, dando a Maio 68, enquanto “happening”, um lugar no álbum de recordações.

4 – Como escreveu Touraine, num livro de leitura obrigatória ( (Le mouvement de Mai ou le communisme utopique), Maio foi “um movimento revolucionário sem revolução…” E o alvo não fora De Gaulle, mas a sociedade francesa, as forças de controlo e manipulação da sua vida, postas em causa por um núcleo minoritário, que mobilizou massas gigantescas à sua volta, beneficiando, fundamentalmente, de dois erros alheios, que em análise retrospectiva, pareceriam fáceis de evitar: primeiramente, o encerramento da Faculdade de Nanterre, que transporta a contestação de uma espécie de “laboratório experimental”, isolado nos subúrbios, para o palco aberto e central do “Quartier Latina” em redor da Sorbonne, a “alma mater”. E, depois, no auge dos tumultos, o eclipse total do poder político, deixando, como sucedâneo, a polarizar indignação e antipatia, o aparelho policial e, com ele, a violência à solta. Touraine dixit... por outras palavras. Ouvi-o dize-lo, de viva voz, em Nanterre, ou na “École Pratique”, nunca achei argumentos para discordar…

5 – Propendo, 40 anos depois, a valorizar Maio de 68. (vulcão extinto ou,na perspectiva de então, simplesmente dormente?), enquanto factor determinante da decisão de aceitar uma bolsa de estudos para fazer a pós-graduação de sociologia em Paris.
A meio do ano, ainda a minha prioridade era: Northwestern, Illinois, onde tinha matrículas e direcção de estudos meticulosamente organizada (e uma bolsa melhor!)
Em Paris era a improvisação que me aguardava. Parti quando pude, retida por várias peias burocrática - e, em pleno Novembro, tive de encontrar “in loco” as soluções possíveis. A École Pratique dês Hautes Études – um dos objectivos iniciais - o departamento de sociologia de Vincennes e a “Catho” (Universitai Catholica Parisiensis), onde coleccionei certificados de cursos.
Sentia-me no quotidiano, a transitar entre mundos universitários colocados nas antípodas uns dos outros.
Os reflexos do “movimento” eram mínimos na “Católica” (indiciados no pormenor do uso de gravata por professores e alunos…) e máximo na novíssima Vincennes: um aquartelamento universitário acabado à pressa - implantado nas lonjuras de um bosque, sem nada mais do que belezas naturais à vista. Aí o dia podia ou não ou não ser tumultuoso, sem qualquer risco de intervenção dos CRS (ainda visíveis e frequentemente actuantes em incidentes menores no “Quartier Latin”). Em Vincenne ocorreria, de vez em quando, sem periodicidade previsível, ma batalha campal entre clãs rivais (comunistas versus “gauchistes”). Partiam vidros e cadeiras. Pouco mais! Nada que perturbasse (excepto durante o desenrolar das escaramuças) a normal frequência das aulas, algumas das quais de excelente nível. De Vincennes, herança de Maio 68, ficou-me uma boa impressão. Como um “self-service”, lá encontrávamos o que queríamos – da lição tradicional, ao “comício” dos grandes profetas do tempo ou a “bagarre”.

6 – Quarenta anos depois, aquela bastante impulsiva e muito enigmática e questionável (do meu ponto de vista…) preferência por “Paris” = dispersão de esforços e incertezas, em vez de “Northwestern, Evanston” = perfeita organização e perspectivas de progressão segura, só não são motivo de maior arrependimento e de lamentação, porque acabou por se revelar uma aprendizagem inesperadamente adequada, para o que viria a ser, o trabalho da maior parte da minha vida profissional (ou política). De facto, não estava destinada, como queria, a passa-la no interior de gabinetes de estudo, ou em em salas de aula, mas em incessantes viagens para contacto e colaboração com comunidades de expatriados!
Ora em Evanston, ter-me-ia faltado não só o conhecimento de “experiência feito” da realidade da emigração portuguesa no seu período heróico na França, mas também e, sobretudo, a vivência em pequena e coesa comunidade no estrangeiro – comunidade de estudantes, com as suas semelhanças e diferenças face às comunidades de trabalhadores imigrantes.
Illinois nunca foi terra de acolhimento da nossa gente nos Estados Unidos da América (que, como é sabido, se fica, tradicionalmente pelo litora,l a Leste e a Oeste).
Aí teria, pois, estado entre estrangeiros, certamente bem integrada a dar curso ao meu velho sonho americano. Em Paris, pelo contrário, permaneci entre portugueses, num espaço extra-territorial português (em 68/69) ou entre portugueses e argentinos (em 69/70), quando, involuntariamente, fui transferida da Casa de Portugal para a Fundação Argentina, dentro da “Cite” – e em boa hora: lá pude fazer amigos para sempre, entre jovens de um dos países mais europeístas e cosmopolitas e, para mim, dos mais atraentes de todo o universo…
Esta pertença a uma comunidade de emigração (ou melhor, a duas) não a teria tido no Illinois com americanos, ainda que americanos de origens diversas.
Como sabemos, a nossa emigração atingiu, em França, nesse período, o seu máximo de sempre – superando a emigração “delirante” de que falava Emygdio da Silva, abismado perante os números do êxodo de 1911 – 1913.
De 1968 a 1970, os expatriados foram mais de 500.000, na maioria clandestinos (a que se somavam os que partiam em direcção aos chamados novos destinos, como o Canadá e a Venezuela, constituindo um movimento quase da mesma ordem de grandeza, ainda que com muito menor visibilidade - talvez pela sua componente maioritariamente insular, dos açoreanos para Norte e dos madeirenses para a América Latina).
A França atravessava um “boom económico” – e, por isso, é óbvio que Maio de 68 não teve a ver com a crise neste sector… - e precisava destes portugueses tanto quanto eles precisavam de buscar, em França, trabalho ou refúgio contra perseguições políticas ou recrutamento forçado para as guerras de África.
Estes trabalhadores fazem parte das minhas memórias do pós-Maio 68, não porque tivesse com eles um relacionamento próximo (o que só aconteceu com um ou outro exilado político), mas porque eram símbolos sempre presentes de um Portugal que não queríamos que fosse como era.
Com eles me cruzava, no dia-a-dia, nas ruas de Paris. Reconhecia-os, mesmo que não falássemos. Quando falávamos - se os via em dificuldade de comunicação - era para servir de interprete. Espantavam-se com a minha fluência na língua local, como se fosse coisa impossível para um compatriota…
Uma das recordações mais pungentes que guardo dessa minha expatriação temporária é a dos passeios de domingo a Versalhes. Não porque lá fosse muitas vezes, com os amigos, mas porque, sempre que ia, lá estavam dezenas de portugueses, só homens – e homens sós… - de fato completo e chapéu preto, espalhados em pequenos núcleos pelos jardins geométricos do palácio real, assim como que colocado no lugar do átrio de uma igreja paroquial minhota… Eram o retrato perfeito dos sentimentos de inadaptação e de nostalgia.
O movimento associativo não tardaria a recriar um espaço, de cultura popular portuguesa, com os seus bares, cafés, restaurantes, ranchos folclóricos, bandas de música, grupos desportivos, escolas – a transplantação de uma aldeia portuguesa .bem organizada em todo o seu pitoresco e modos de estar (como se costuma dizer…)
Também na “Cité” a “Casa de Portugal” nos oferecia o factor proximidade num círculo fechado, se o soubéssemos aproveitar com laços de amizade – e soubemos !
Éramos um grupo unido, coeso, com um “projecto de convívio” nos tempos livres, embora sem comando, sem “chefes”, como iguais. Não incluíamos todos os portugueses da “Casa” – longe disso! – nem excluíamos, à partida, os estrangeiros (um dos nossos amigos, jovem exilado pelo regime dos coronéis, viria a ser, muito mais tarde, Embaixador da Grécia em Lisboa!).
Apenas “uma trintena de residentes”, como fomos chamados num momento de “confronto” com a direcção da Casa, logo no início do ano lectivo.
Terá esse “incidente”estado na origem do espírito de grupo? Talvez sim, talvez não… Tudo começou assim: alguns de nós – nem sequer me lembro quantos… - resolveram lançar mão de um dos direitos que o Maio de 68 conquistara: o “droit d’affichage”. O direito de expor cartazes, anúncios, sem autorização do director da residência.
Usamos esse direito para convocar eleições para os órgãos dirigentes da Casa. Apresentámos uma lista de candidatos e proponentes (no conjunto, a tal “trintena”). Ganhámos as eleições e logo o processo foi posto em causa… A administração não reconhecia – a “uma trintena de residentes” a legitimidade para afixar convocatórias sem a chancela da Autoridade.
Mostrámos, então, que nos faltava, em absoluto, o impulso revolucionário, na tradição de Nanterre 68. Não contestámos. Reconvertemos o projecto cívico de intervenção nos destinos da “Casa” em projecto lúdico de convívio dentro da “Casa” e da “Cité”, Em inúmeras reuniões, ao longo do ano, sempre pedíamos e obtínhamos autorização, para usar cozinhas e salões de festas à maneira de um clube ou de uma tertúlia.
Os contactos com a França, limitavam-se ao local de trabalho (ou estudo!), do qual voltávamos para casa: familiar.
A residência da Fundação Gulbenkian estava assim, para nós, integrada em dois mundos: o do nosso País, com as marcas da sua mentalidade, das suas cisões, dos seus “fantasmas” (também das expectativas geradas pelo “marcelismo”…) e o da Cidade Universitária, que fora um dos palcos de Maio 68 – embora palco do segundo plano - com outros “fantasmas”, as imagens da destruição no seu interior e o encerramento violento das residências “representativas” de regimes ditatoriais, Espanha, Argentina, Portugal… Pouco importara que a nossa não fosse do Estado, mas de uma Fundação privada, com sede em Lisboa.
A “trintena de residentes” não escapara, neste contexto, a uma conotação política: de “católicos progressistas”. Na verdade, uns eram católicos outros não – o mesmo podendo dizer dos progressistas. Talvez fossemos todos democratas. Admito que sim. Mas não éramos os únicos nem essa qualidade podia justificar um tão forte ímpeto a uma cooperação que não passava por preocupações políticas.
Tenho uma certeza: foram insignificantes as afinidades e as divergências políticas sobre o evoluir da situação em Portugal ou em França, no nosso relacionamento.
E no pós 25 de Abril de 1974, uns manter-se-iam independentes – a maioria – outros adeririam a formações partidárias variadas, entre as muitas que então floresciam. Raros foram os intervenientes na cena política.
Dali saíram, sim, professores, investigadores, académicos em várias áreas, como seria previsível face aos seus “curricula” e aos interesses que os norteavam em vários ramos do saber.
Recordo-me, por exemplo, dos nossos três bolseiros de engenharia nuclear, que num curso extremamente elitista de uma vintena de franceses e estrangeiros, ficaram classificados em primeiro, segundo e quinto lugar… Ou de um outro que, nesse ano, se doutorou na Sorbonne com vinte valores - o primeiro não francês a alcançar tal distinção na sua especialidade…

7 – Como disse, em 1969, o Maio do ano anterior estava já pouco presente no quotidiano da “Cité”, (o “droit d’affichage” e outros direitos eram já apenas vestígios da “utopia autogestionária”…
Nesse ano, houvera um terramoto em Portugal (que divertido foi, sabendo o seu epílogo, receber em simultâneo, dois dias depois, uma vintena de cartas, a contar pormenores hilariantes de reacções muito individualizadas ao susto colectivo…). O Homem fora à lua (e nós aguardáramos pelo momento alto ao longo de uma noite inteira de conversa, na sala de televisão da residência…). Eddie MercKx ganhara, de forma indescutível e galvanizante o primeiro dos seus cinco “Tours de France” que igualmente acompanhámos diante do grande ecrã de televisão, torcendo pelo belga, naturalmente…
De Gaulle retirou-se, de vez, por iniciativa própria, para Colombey, a pretexto de um contratempo menor.
Spínola era um “habitue” da televisão francesa (o mais mediático dos portugueses), impressionando com o seu monóculo e a sua serena heterodoxia, sempre em directo confronto com o sereno ortodoxo Amílcar Cabral.
Estávamos atentos à França e ao mundo exterior, mas vivíamos intensamente Portugal – como é característico de uma comunidade imersa em terra alheia
O regresso à Pátria iria significar a dispersão, a incapacidade de vencer os obstáculos postos pela grande cidade dissolvente à nossa vontade de continuar a realidade do grupo.
Permanecem memórias (mais do que é possível contar) desse tempo eminentemente feliz, repartido na transposição quotidiana da fronteira entre o território do estudo ou do trabalho e o da convivialidade e do lazer, entre dois países em movimento descompassado: a “França pós Maio” e o futuro “Portugal de Abril”.
Quarenta anos depois, (mais de 30 passados sobre a nossa “revolução”, torna-se mais fácil acompanhar, sentimentalmente, a insatisfação e os impulsos de rebeldia que sacodem, a espaços, as águas mornas dos “paraísos democráticos”.
A aversão aos aparelhos partidários, ás cooperações ou a uma classe política, como a de Maio de 68, pouco sensível à expressão de novas formas de dominância e dependência cultural e não só económica.
E por isso me é mais fácil equacionar no presente o sentido da acção desse Maio passado.

Janeiro de 2008
Maria Manuela Aguiar