domingo, 31 de agosto de 2008

P9 - MARIA DO SAMEIRO RAMOS PEREIRA CAETANO PEREIRA

SEMPRE LEMBRADA , E MAIS AINDA NESTE DIA

A Maria do Sameiro, a Maria Antónia Aguiar (tia) e a Maria do Carmo Razzini (a amiga algarvia) eram as três nascidas a 28 de Agosto. Não no mesmo ano, evidentemente - o que seria excessiva coincidência.
Acho que se admiravam mutuamente, apesar de tão diferentes, em feitio e modo de viver.
Para mim, desde o seu casamento com o Mário, a Meira tornou-se mais do que prima: quase irmã, como o próprio Mário.
Irmã um pouco mais velha, que nos aconselhava bem, a mim e à Lecas. Suficientemente próxima em idade para ter a mesma" linguagem".
Era muito, muito inteligente. E tão simpática, tão acessível. Serena. Equilibrada. Sentíamos que gostava de nós.
Foi uma óptima "aquisição" para a família, sem dúvida! E deu-nos quatro maravilhosos primos. Neste caso, pode dizer-se, com absoluta pertinência, que foi uma grande mulher ao lado de um grande homem. (do Mário dizia-me um colega dele, o Dr. Paulo Mendo: "o seu primo é uma sumidade" - e era, e não só como médico, professor, cientista, mas também como pessoa...).
Algumas imagens antes dos vossos comentários.


























P5 f - JO TIO JOSÉS AUGUSTO for ever young


O O FOREVER YOUNG
O nosso tio Ze´nunca envelheceu no sentido em que as pessoas envelhecem, aos 80 anos. Sempre feliz e divertido com as nossas visitas, insistia em nos convidar, todos os dias, para grandes jantares no Ibéria (o Sr. João era um amigo) ou no cabana Carioca, que era perto de casa. Marisco em quantidade era um "must". E bom vinho! E como era conversador! Tinha uma memória fantástica. Ria das suas próprias histórias... E nunca falou de doenças, mesmo quando estava muito doente. No hospital, dizia a todos que a sobrinha Manuela estava a chegar. Mas só cheguei no dia seguinte ao da sua partida. Eu já não o vi. Ele viu-me. Já muito mal, confundiu-me com uma amiga, que o foi visitar... Contou-me isso o Sr. João (o do restaurante Ibéria) que o acompanhou nessa fase. Foi naqueles dias tristes a melhor notícia que me poderia dar !

P5 e- TIO ZÉ AS VIAGENS À ÁSIA




Em NY os maiores amigos eram ,além dos joalheiros judeus com quem trabalhava( as jóias com a sua assinatura eram valiosas...) japoneses( a Hiroko e o marido) e chineses da Formosa. Para os rever correu mundo - Israel,Japão,Taipé... As paisagens e as cidades exóticas não o atraiam particularmente. As pessoas, sim! Esta era uma das suas excentricidades- havia muitas outras, a começar pelo modo de vestir e pelos sapatos à Sarkozy- muito antes de aparecer Sarkozy, a impor modas em França.
O tio Zé era , como ele, pequeno de estatura,mas enorme em generosidade, o que o francês não é... Também daria um presidente "vertiginoso", ("enfant terrible" e apreciador de mulheres grandes e bonitas , como sempre foi, mas evitando o casamento ,sensatamente ...) . Inclinado à actividade política, não era nada, nada...Todavia ,encontrei um pequeno colante de H Delgado entre os seus documentos. Confesso a minha surpresa! (as bençãos do padrinho - como diz o povo - o famoso tio Zé Conselheiro, velho e ilustre republicano.

P5 d - TIO ZÉ - VISITAS A PORTUGAL




E

Em 1966, juntos os sete irmãos no dia de Natal

11 W - MARIA DA CONCEIÇÃO DO AMARAL BARBOSA DE AGUIAR


MARIA DA CO NCEIÇÃO AGUIAR II - JA, SIE IST
Afilhada da Avó Maria, e a única que tem o seu nome: Maria da Conceição. Aguiar, obviamente, pois é a mais nova das filhas do Tio António. Ele, o filho, entre todos, predilecto da Avó. Ela, uma das netas mais queridas (acho mesmo que nós as duas partilhamos o topo da lista- que não é pequena).
A Sãozinha é uma beleza natural - natural mesmo, porque não é de usar pinturas, ou, como diria a nossa Avó, artifícios! Na altura das telenovelas com a Maitê Proença, as pessoas, na rua, olhavam para ela, a ver se era, ou não, a célebre Maitê... È um pouco mais baixa, talvez, mas não menos bonita.
É de uma enorme simplicidade e simpatia. Espontânea e generosa.
Casada com o Alvarinho, tem três rapazes, qual deles o mais bonito. Ou o mais simpático. A escolha é difícil...
Hobby ou paixão: a língua alemã!As férias são sempre passadas em países germanófonos : Alemanha, Austria...
Foi uma excelente aluna no liceu. E continua, nos Institutos de línguas, a tirar as melhores notas.
Teve, com o marido, negócios prósperos, em Gondomar. Agora, apesar de ainda tão novos, gozam a reforma, em Espinho. São os meus novo e benvindos "vizinhos"!

P5 c TIO ZÉ O EMBARQUE PARA O BRASIL





De volta às origens...

P5 b - O " TIO das AMÉRICAS " nos anos trinta e quarenta








O tio Zé nos tempos em que vivia em Gondomar (na vila Maria), retratado com os irmãos , os amigos, e a sobrinha e afilhada Docas (a menina da rosa na mão)

P5 - a - JOSÉ AUGUSTO -O TIO DAS AMÉRICAS




O

O tio Zé nasceu no Rio de Janeiro em 1916. Era o terceiro dos rapazes.
Vemo-lo ao colo da avó Maria naquela foto em que o loiro tio Manuel está nos braços da tia Rosaura - o primeiro dos seus retratos que chegou até nós , já tirado em Gondomar. Dois anos mais tarde, é a mais pequena das crianças de caracóis.
Está de volta ao Rio. No mais recente dos retratos, é o menino sentado na fila da frente. De novo em Portugal..
Habituou-se ,bem cedo, ao gosto das viagens transoceânicas. Não iria parar nunca mais!
Foi um "cidadão do mundo". Viveu em três continentes. Tinha três nacionalidades.Por fim, ficou, definitivamente, em NY.
Era um fantástico anfitreão, no seu 40º andar de um condomínio na 44th St, a dois passos dos teatros da Broadway.
Teria feito 90 anos no dia 27 de agosto de 2008. Muito o lembramos nesse dia !E vamos contar algumas das suas histórias. Estão todos convidados a participar.

sábado, 30 de agosto de 2008

P3 - RECORDANDO A AVÓ MARIA



I – Um pouco da sua história, a partir das suas histórias

A Avó nasceu em S. Cosme, a 6 de Agosto de 1888 – há exactamente 120 anos.
Em casa dos pais, perto da actual praça do município, última filha da bisavó Carolina, então já com a “bíblica” idade de 52 anos. Os outros sete eram, por ordem não necessariamente cronológica, os tios Alexandre, Américo, Alberto, Rosaura, José e Glória.
Foram padrinhos de baptismo da Avó, a irmã Rosaura, com nove anos apenas, (mas nem por isso levou menos a sério a sua responsabilidade…) e o irmão Américo, futuro padre.
A menina inspirava cuidados – era magrinha, fraquinha, sofria do fígado. Cresceu rodeada de atenções, da mãe, dos padrinhos, dos irmãos. E do Pai também, é claro – embora ele não fosse de preterir ou favorecer qualquer dos filhos. Dedicadíssimo à família – a todos. Ponderado, bondoso, disponível. Olhamos as suas fotografias. Parece exactamente o que era. É impossível pôr em dúvida o testemunho das filhas!
“Génio” tinha a bisavó, mas com ele ao lado não se notava demais.
A pequena Maria da Conceição teve, com certeza, uma infância feliz. Mas nunca me contou histórias desse tempo – talvez as considerasse banais e irrelevantes.
As muitas histórias, que lhe ouvi, começavam na juventude, e por aí adiante. Episódios envolvendo mãe e pai, de quem falava como modelo para todas as mães e pais do mundo, com orgulho e saudade, em metades iguais.
Ou factos passados com os irmãos, quando jovens: romances, perseguições políticas (aos três que eram republicanos e radicais)
Outras muito centradas em doenças, que eram descritas ao pormenor - a tuberculose, fatal para a Glória e Américo e, milagrosamente, não para José e Rosaura.
Os primos eram” personagens” importantes, tal como os irmãos. Havia muitos, desde o “Zézinho da Travagem”, que fazia disparates extraordinários (era deficiente…), até aos parentes aristocráticos de Paredes (Rãs e Bitarães) e aos mais próximos – os de Gondomar, com apelidos vários: Guedes, Lobão, Lopes, Ramos... Recordo, sem saber necessariamente quem eram, nomes como Lavínia, Antoninha, Arminda, Judith Lobão (mãe da Fernanda, nossa grande amiga), Beatriz Lopes Cardoso, ou Maria Harbertz, mãe de um primo alemão, que foi locutor de rádio durante a “Grande Guerra” e se tornou, depois, médico, em Lisboa, obstetra muito conhecido.
Estimadíssimos eram dois António Ramos: um primo direito, que casou com uma filha de Ramalho Ortigão (os Ortigão Ramos, com quem, na minha geração, não mantemos hoje qualquer relação, descendem deste parente); outro tio, irmão da bisavó Carolina, que emigrou para o Rio Grande do Sul, e aí deu origem a uma numerosa família. A mulher, Carolina, era irmã do Silveira Martins, Governador do Estado nos princípios da República.
Esse tio nunca deixou de dar notícias, de enviar retratos, de se manter, desse modo, presente. No velho álbum de família, de veludo roxo, que eu herdei e guardo no cofre, como tesouro que é (apesar de bastante danificado, com muitos retratos arrancados, estupidamente, sabe-se lá por quem…), há muitas fotos dele, de Carolina Silveira Martins e de uma quantidade de meninos e meninas, lindamente ataviados – sobre os quais nada consta.
Muito Interessante, para nós, é a primeira fotografia em que aparece a avó Maria, com um vestidinho florido e um ar saudável, ao lado de toda a família, (exceptuando o irmão António). Talvez em 1885.
Aos sete anos Maria foi, como, antes dela, as irmãs Rosaura e Glória, para a Escola Pública, em Valbom.
A professora era uma amiga e, segundo vaga lembrança da minha mãe, hospedava-as em casa, durante a semana. Ou iriam e voltavam todos os dias? O Bisavô tinha cavalos (que deixava nas cavalariças da Quinta de Bouça Cova, cujos donos eram visita da casa), mas parece menos provável que os usasse para levar e trazer as meninas. Havia também a “diligência”. Há uma foto do Bisavô a sair de uma carruagem, tão recoberta de panejamentos, que mais parece um andor de igreja…, mas talvez nem parasse perto da escola. Enfim… Pequenos mistérios insolúveis.
Acabada a 4ª classe, Maria regressou a casa, onde uma professora particular lhe dava lições de português, história, francês. E o Pai completava ou complementava esse ensino, seguramente.
Só a tia Glória fez o curso completo de Magistério, no Porto – uma pioneira na sua terra e no seu tempo. Mas a aprendizagem era um meio de se instruir.
Contou-me a tia Rosaura que ela nunca tencionou dar aulas – era coisa fora do seu horizonte, antes mesmo de adoecer. Não sei é se tinha outros planos “profissionais” ou se, como as irmãs, estaria “apenas” destinada ao casamento. No seu caso, acredito que seria não só com quem quisesse (nesta geração, aliás, ao contrário do que aconteceu nas anteriores, não houve amores contrariados, nem tentativa de decidir pelas meninas, isto é, pretendentes impostos pelos pais…), mas também com quem quisesse satisfazer-lhes as vontades – no que, afinal, seguiria a tradição da linha materna, bem viva, para ela, no exemplo de sua mãe…
Não foi este, exactamente, o caso da avó Maria – o avô Aguiar, emerge, em pormenores de relatos vários, como um homem, que, como a maioria, à época, prezava a autoridade – mas, no seu caso, uma autoridade gentil com as mulheres (nunca bateu nas meninas e nem sequer lhes ralhava…) e severa com os rapazes (que eram “prevaricadores” compulsivos e imparáveis e deviam merecer alguns dos castigos, diga-se…)
À Avó tratava-a regiamente. Foi sempre apaixonado, afectuoso, mas também, acho eu, um pouco“possessivo”… Um exemplo: zangou-se, (amuando…) quando, num baile, a bordo de um navio, ela dançou com o famosíssimo Chabi Pinheiro (um Pavarotti, no início desse século, segundo a minha Mãe, e um “galã”).
Ou quando, no Rio, a Avó, sem o “consultar” resolveu cortar o cabelo, “curto” e com franja, e ir “sozinha” ao fotografo fazer-se retratar. O Avô não comentou, não disse palavra, mas foi, ele próprio, ao mesmo fotógrafo e tirou uma foto em que aparece de semblante “pesado”. Fez 12 cópias e colocou-as no fundo de uma mala, onde a sua mulher, quando a abrisse em viagem, havia de as encontrar e compreender o “recado”.
Detalhes… mas reveladores de um relacionamento: um pouco cerimonioso, muito convencional e, apesar disso, muito afectuoso.
Assim vemos recortado em cenário carioca - anos 20 - o perfil psicológico do Avô, à maneira daquele postal, com seu inconfundível perfil desenhado a negro, com a torre Eiffel em fundo (eu tenho um parecido, feito ,recentemente por um artista de rua em Budapest…)
A tia Rosaura, essa, surpreendentemente, casou duas vezes – depois do romance platónico com o médico que a tratou no sanatório da Serra da Estrela, o Dr. Manso. Primeiro, já com mais de 30 anos (tarde, para os usos da época) com Manuel Marques, um respeitado funcionário da Contrastaria de Gondomar.
Formaram um casal harmonioso. Ele era minhoto, de Braga, com bom feitio, bem educado. Entrou na família, sem quaisquer objecções. Tornou-se um deles (ou de nós). Era o padrinho da minha Mãe, um segundo Pai.
Muitos anos depois da sua morte, já na avançada meia-idade, a tia Rosaura aceitou como segundo marido um “brasileiro de “torna viagem”. O tio Lima, que gostava de crianças. Brincava connosco. Já muito doente ainda nos aturava, a fazer barulho no seu quarto. Mas não fez nunca esquecer o tio Marques…

Falámos das mulheres. É tempo de mencionar os homens da família.
Ao contrário das meninas, frequentaram os bons colégios do Porto.

Excelente aluno, o tio José, formou-se em Direito e avançou, meteoricamente, na carreira de magistratura judicial, depois de ter sido deputado e activo cidadão (fundador do jornal “O Progresso de Gondomar”, entre outros feitos de que há registo).
Tornou-se o mais jovem juiz conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça. Mas a intervenção na política, em “conspirações” anti--salazaristas determinou a sua aposentação prematura. Contemporâneo de Salazar, terá sido o próprio ex-colega a sugerir que voluntariamente se aposentasse, para não ser “saneado” …
O tio Américo saiu do colégio para o seminário. Foi padre exemplar, de paróquia pequena (Recarei?). Muito estimado pelos paroquianos. Se acreditarmos na voz do povo era um Santo. Morreu muito novo, de tuberculose, e logo lhe fizeram romagens ao túmulo. Rezas e promessas…
No mínimo, julgo que podemos, com segurança, dizer que era muito bondoso, piedoso, dedicado aos paroquianos. Aquele dos filhos com temperamento mais semelhante ao de seu Pai.
Os outros eram mais “Ferreira Ramos”, embora com gradações.
O tio Alexandre, que para a irmã se mostrou de uma generosidade e disponibilidade constantes (apoiando-a na gestão do património, tanto como na educação dos filhos), foi também um gondomarense muito participativo na vida cultural da terra, dirigente de associações e de jornais, secretário da Câmara, administrador do Concelho.
Casado com a tia Hermínia. Um matrimónio feliz, com a infelicidade da perda à nascença da única filha. Mas filhos não lhes faltaram – todos os da irmã Maria, em especial a Madalena e o Manuel. Moravam em frente à “Vila Maria” – para se encontrarem bastava atravessar a rua. E até podiam conversar, ela do mirante, ele da janela do 1º andar… Não quer dizer que o fizessem.
O tio Alberto estava geograficamente mais longe. Era Secretário da Administração em Gaia. Parece-me que também esteve, episodicamente, no “Aljube” – como “preso político”. Era um “activista”, mas não tanto como o irmão António.
Casou com a tia Zarita, teve dois filhos, a Maria Isabel, ou Mimi – a prima favorita da Avó – e o Mário, que se formou em medicina.
O tio António é ainda hoje, o mais” fascinante” de todos, na sua veste quixotesca de político, para quem a política nunca trouxe benefício algum. E que não viu os sonhos feitos realidade…
Andou aos tiros no consulado de Sidónio Pais, mas, graças a Deus, não foi ele que o atingiu.
Esteve, várias vezes, preso no “Aljube” (há mesmo registos fotográficos desse passagem…). Foi exilado para a costa de África (Angola?). De vez em quando, “passava à clandestinidade” em casa da irmã Maria, onde ninguém se lembraria de o procurar.
As divergências de opinião nunca afectaram as boas relações da família (o Bisavô era do partido regenerador, as filhas, Américo e o genro António Aguiar monárquicos, os outros quatro rapazes “republicaníssimos”, na tradição do tio Manuel Guedes, o tal que dá nome à Praça ).
Inesperadamente, o tio António deu-se muito bem no “degredo” africano. Prosperou em vários negócios. Veio de volta com capital suficiente para se estabelecer no Porto. Nesse capítulo teve altos e baixos – mas nas fotografias vemo-lo sempre “janota”. E, muitas vezes, acompanhado por uma bailarina (ou ex-bailarina) espanhola. Nunca casou. A última das companheiras foi a Teresita, que lhe sobreviveu. A avó Maria ajudou-a bastante, mas sem lhe reconhecer o” estatuto” de cunhada.
Este tio era ateu militante. Exigiu, por disposição expressa, enterro civil. No velório, a estátua da República ocupava o lugar da cruz cristã. As irmãs, desgostosíssimas, não estiveram presentes, fecharam-se nas suas casas, duplamente de luto.
Pormenor insólito, que ele teria apreciado: o seu cão ficou o tempo todo aos pés do caixão…
O juiz (a quem chamávamos o “tio Zé velho”, para o distinguir do tio Zé, seu afilhado) era um magistrado, e um marido, austero – honestíssimo, competentíssimo, mas definitivamente austero.
A tia Celestina (Mesquita de Abreu), sua mulher, era dócil, sempre bem disposta, e assim, havia paz no lar…
Os filhos, o José Joaquim (Zé Quim) e a Maria Celestina (Tininha), foram os melhores companheiros dos primos “Aguiar”.
O Zé Quim, mais tarde, seguiu a senda dos tios republicanos. E, como os tempos eram outros, aderiu ao partido comunista. Quando convivi mais com ele, no pós-25 de Abril, já estava desligado do partido.
Era formado em Histórico-Filosóficas. Foi bibliotecário da Universidade de Coimbra. Coleccionador de raridades, de livros, mapas antigos, pinturas, (dir-se-ia um fervoroso católico, a avaliar pelos trípticos retábulos e quadros da Virgem que abundavam na sua casa…). Foi bibliotecário da Universidade de Coimbra.
A Tininha fez o curso de Farmácia. Seria a primeira mulher da família a licenciar-se em Coimbra? Creio que sim, veio a ter a sua farmácia em Sobrado, onde vivia.
Gostava muito deles. Tive muito mais contacto com o Zé, sobretudo entre 74 - 76, quando dei aulas na Universidade. O Zé, então casado com a Janice, ”adoptou-me” como uma espécie de sua filha mais velha! E retomamos essa tradição familiar de diálogo de opostos politicamente. Em boa verdade, nem éramos assim tão opostos e à medida que o PREC avançava, estávamos mais cada vez mais de acordo…





II – A Avó Maria, menina e moça

Voltemos atrás, aos tempos em que a avó Maria, acompanhava a irmã Glória, que era dois anos mais velha, mais segura de si, com ascendente e influência naturais.
Acho que era a mais próxima, na sua atitude perante a vida, dos manos “progressistas”. A mais inconformista. Possivelmente a mais inteligente, ou, pelo menos, a mais “intelectual”.
Não chegaram até nós muitos dos seus ditos, das suas histórias do quotidiano, mas um ou outro comentário das irmãs é indiciador de um perfil determinado e até contestatário.
Nem por isso, deixou de ser uma menina “bem comportada”, não infringia as regras capitais de uma educação interiorizada no convívio com os pais já não muito novos e muito afectivos (pais quase avós, para os últimos filhos).
Em qualquer caso, pensava pela sua cabeça, tinha ideias definidas sobre o seu futuro. Quando adoeceu (contagiada no Porto, por outra estudante) namorava o primo Raul Lobão. Ele não a esqueceria. Falava dela, sempre, com saudade e sem complexos, mesmo depois que casou.
Marcou-os a todos, essa morte aos 21 anos. Marcou-nos até a nós, que não a conhecemos e ainda hoje a lembramos, como se fosse da nossa geração.
Maria e Rosaura eram diferentes dela e diferente entre si. Ambas inteligentes, mas conservadoras… Rosaura mais introvertida. Apesar de tudo, mais capaz de ditos atrevidos (na intimidade, claro…) Diante da avó Maria, nem calão inofensivo se podia usar…
A tia Rosaura era muito dada a profetizar desgraças, que não aconteciam (porventura porque viveu, de perto, algumas que aconteceram mesmo: as pavorosas doenças dos irmãos, que ela própria tratou, e pelos quais foi contagiada: o seu internamento em sanatórios, onde viu desaparecer tantos dos companheiros de infortúnio…), e gostava de apoiar as suas opiniões em ditados e provérbios sábios e antigos. Nunca que esqueci de que, a propósito do meu namoro, com o Manel, não achando, com a sua perspicácia, que ele era uma escolha sensata me disse: Não te comprometas já: “atrás de uma montanha, outra mais alta se levanta”.
A avó Maria ficou viúva quase com a idade com que a irmã casou (36 anos). Nunca mais usou cores garridas.
Tornou-se uma figura de uma elegância severa, primeiro sempre de preto, depois “aliviando” o luto, apenas com o cinza ou o roxo: nem sequer um bonito azul marinho ou um castanho escuro!
São questões de pormenor. Parecem insignificantes, mas não serão…
Das três, só a Glória (Glorinha, como lhe chamavam) parece ter sido uma mulher à frente do seu tempo. Moderna. Não apenas a vestir. Moderna na forma de pensar.
Como disse, só conhecemos fragmentos de conversas suas, algumas atitudes que tomou. Dispersas, como peças de um “puzzle” incompleto. E, apesar do seu fim tão triste, a imagem que dela prevalece, é da sua vitalidade, da sua determinação.
A mesma “mensagem” nos deixou nas fotografias. O que a distingue das outras, não é o vestido mais bonito, nem o penteado mais cuidado. Não é sequer a beleza (embora fosse lindíssima). É um olhar que nos olha com firmeza. Um rosto expressivo, sem sorriso fácil, sem a subserviência, ou a candura esteriotipadamente feminina das heroínas oitocentistas. De alguém que sabe o que quer e não aceita ser secundarizada só por ser mulher…

S. Cosme era, então, uma vila pequena, mas com uma animada vida social. É fácil imaginar Glorinha e Maria, uma com 19 / 20 anos, outra com 17 / 18, em divertidas cavalgadas pelos montes, em festas e piqueniques com primos e amigos de infância. Ou em passeios pelas ruas poeirentas de S. Cosme rural, com longos vestidos de cauda, espantando transeuntes (para consumição da irmã mais velha, que sempre cultivou a modéstia, como se já adivinhasse um futuro de maior contenção de meios – contenção devida, sobretudo, às prolongadas doenças tanto do primeiro, como do segundo marido, quando não havia segurança social e as mulheres viviam de heranças, nem sempre resistentes ao correr do tempo…)
Raul Lobão era, como disse, o namorado da tia Glorinha. Um outro Lobão, António, foi um dos pretendentes da avó Maria. Ambos primos. Primo era também um dos filhos do Visconde de Paredes, que vinha de longe, a cavalo, “namorá-la”. Namorar resumia-se a conversas no mirante da casa, virado para a rua principal e não muito alto – convenientemente à altura do cavaleiro! Claro que não ficavam sós – a companhia mais frequente era a Mimi, a prima dez anos mais nova.
Assim foi até ao encontro com António Aguiar – talvez em 1907, o ano em que desapareceu a Glorinha. Ou antes. A partir de 1907, há correspondência que revela já um compromisso firme entre Maria e António.
Perguntei à minha mãe como tinha nascido o improvável romance. A família Aguiar era da Gandra e não frequentava as tertúlias dos Lobão, dos Ramos, dos Guedes…
Julga a minha mãe que, em 1905 ou 1906, a tia Glória e a Avó se relacionaram, talvez na igreja, com as tias Gracinda, Doroteia e Violante, jovens da mesma idade. As três Aguiar – três de quinze irmãos! – eram expansivas. Davam grandes gargalhadas! As Barbosa, mais contidas, achavam-lhes muito graça. Convidaram-nas para casa, de vez em quando. E, numa dessas visitas, acompanhou-as o irmão do Brasil, que já não vinha a Gondomar há anos. Terão tido grande prazer em apresentar às amigas, aquele irmão tão cosmopolita, que vestia pelos figurinos de Paris – colarinhos engomados, flor na lapela. Bigode frisado. Enormes olhos verdes, verdes. Não muito alto, não muito magro (é certo), mas, em compensação, conversador, com sentido de humor, culto e com “charme”. Culto e rico!
Terá sido “amor à primeira vista”! Talvez sim…
Entre 1907 e 1910 (o casamento foi neste ano, a 10 de Setembro) há uma constante troca de cartas e de postais. Muitos deles ainda existem, bem preservados. Curiosamente, os noivos escreviam postais, a anunciar o envio imediato de cartas …
E, todos os anos, ele atravessava o oceano para passar o verão em Gondomar – terra que adorava!
Este” vaivém “ periódico manter-se-ia durante todo o período - cerca de dez anos - em que os avós viveram no Rio, até entre 1814 - 18, embora mais espaçado pelo perigos da travessia no período da Grande Guerra…
O casamento aconteceu em 1910. Uma cerimónia memorável. Mas quanto a fotografia, só há uma e de estúdio.
Os noivos embarcaram em Lisboa, depois de presenciarem, com alguns sobressaltos, tumultos que vitimaram o cozinheiro do hotel, atingido por uma bala perdida (segundo a Docas, o hotel era o “Palace”, nos Restauradores, em outra versão, ou em outra altura, terão ficado num hotel que já não existe, o “Frankfurt”).
Foi uma verdadeira viagem de lua de mel. A Avó revelou-se uma “marinheira” nata. Apesar do mar revolto até à Madeira mal chegou a enjoar. Com os passageiros, na sua maioria, forçadamente recolhidos nos camarotes, foi convidada assídua na mesa do comandante! Do Funchal, cidade que achava paradisíaca, ao Brasil, o mar permitiu um ameno passeio.



III - A aventura “ Brasileira”

O Avô era dono da joalharia Aguiar, no nº 63 da Rua do Ouvidor. Moravam perto, na Rua 7 de Setembro. Aí nasceu, em 1912, a primeira filha, Carolina Rosa (os nomes das duas Avós).
A Avó Maria sentia, com certeza, saudades da terra e da família. É a sina de todos os emigrantes. Mas foi felicíssima no Rio de Janeiro. O Rio, na altura, devia ser mesmo, como ela nos dizia, a cidade mais bonita do mundo!
Fez amigas. Ganhou uma irmã na cunhada, Judith, casada com o tio João Aguiar – também um grande empresário, joalheiro.
Ela era brasileira, muito bonita e de “boas famílias”. Viviam numa mansão na Rua de Paysandú e não pensavam no retorno a Portugal. Os filhos eram bem brasileiros. Segundo a minha Mãe, alguns fizeram carreira na política, na diplomacia… Só tenho notícia e fotografias da tia Judith, de uma filha, com o mesmo nome, e de duas netas com quem o tio Zé conviveu, durante o seu tempo de “emigrante” no Rio.
Sei que o tio João era sócio do Real Gabinete Português de Leitura. Isso foi-me confirmado por um dos actuais directores. Fiquei contente. Revela que se manteve dentro da comunidade luso-brasileira – ou “colónia” como então se dizia… E é possível que o mesmo aconteça com alguns dos seus descendentes. Há um político, por acaso meu “inimigo”, socialista (embora eu tenha amigos socialistas!) de apelido Aguiar e com traços familiares. Hei-de averiguar se há parentesco e tentar “descobrir” alguns dos inúmeros primos que lá temos - herança do tio que no Rio ficou.
Os meus Avós, pelo contrário, preparavam o regresso desde a primeira hora. Nunca compraram casa. Viviam em casarões arrendados – primeiro no centro, depois em Santa Teresa.
O Verão era passado em Teresópolis – a Avó e os meninos, durante dois meses, a aproveitar o bom clima e as paisagens da montanha. O Avô ia e vinha, conforme os negócios lhe permitiam. No Verão europeu, vieram, quando possível, a Portugal. E, por isso, uns meninos eram “brasileiros” e outros “portugueses”.
A tia Lina, o tio Zé e o tio Augustinho (que morreu aos dois anos, de pneumonia), nasceram no Brasil. O tio Manuel, o tio António, a minha mãe, Maria Antónia (ela duvida, acha-se brasileira, foi concebida no Rio…), a tia Glória (Lola) e a tia Madalena( Lena), em Portugal. A tia Lena já na casa recém construída em S. Cosme: a “Vila Maria”. Lá nasceram, mais tarde, muitos anos depois do falecimento do Avô, cinco netos: os dois filhos da tia Lina (Mário e Tónio), as duas filhas da Maria Antónia (a Lecas e eu própria ) e a mais nova da Lola (a Xana).



IV - Na “Vila Maria”

A “Vila Maria” podia incluir-se na amplíssima categoria das “casas de brasileiro” do início do século XX.
Em São Cosme, com dimensão semelhante e com iguais espaços de jardim e quinta de lavoura, não havia mais nenhuma. E de “brasileiro” há apenas uma outra, com características bem diferentes, a “Vila Deolinda”, em Quintã, muito bem enquadrada numa elevação de terreno, perto da Câmara Municipal. É muito mais pequena, sem grandes jardins. Perdeu parte deles que iam até ao Monte Crasto, mas está hoje, impecavelmente restaurada. Pertenceu à prima Beatriz (Pinto Lopes) e, anos depois, morou lá, já casada com o Tio Serafim e mãe de dois meninos, a tia Carolina.
A “nossa” “Vila” – e digo “nossa” porque o foi de facto, pela hospitalidade permanente da Avó e de direito, visto que a herança se manteve indivisa durante a sua vida – era realmente grande. No estilo arquitectónico e na escala daqueles últimos casarões da Avenida de Gaia, que passávamos na descida para a ponte D. Luís. “Vila Maria” era de cor rosa, bem tradicional, com venezianas verdes e um torreão emoldurado de azulejos (representando uma águia a segurar um “R”). Erguia-se no interior do terreno.
À face da rua, ficava o mirante, continuado por um muro com gradeamento e um portão de ferro, verde escuro – ladeado por pilares de pedra, um com a inscrição ACPA, as iniciais do Avô (António Carlos Pereira de Aguiar), desenhadas com a sua própria letra e o outro com a data de construção da casa (1923?). O muro seguia ligeiramente curvado até ao “chalet”, que ficava na extremidade sul.
O primeiro andar do chalet era, inicialmente, destinado a residência dos criados e o de baixo a garagem, mas nunca chegaram a ter essa serventia. O rés-do-chão foi sim, uma espécie de “atelier” do Avô.
A minha mãe recorda-se de uma enorme mesa oval onde se espalhavam utensílios, os seus livros de catalogação das rosas e as respectivas chapas de identificação.
No meu tempo de criança, o chalet foi arrendado a pessoas pacatas – tão pacatas que não me lembro delas. Tinham entrada independente para a rua.
O jardim de rosas – as flores preferidas por várias gerações da família Aguiar – contornavam o largo espaço da entrada. Em hemiciclo. Em canteiros situados em plano ligeiramente superior, para os quais se subia por quatro ou cinco degraus de pedra.
O Avô, já se vê, passava uma parte dos seus tempos livres a cuidar das rosas – rosas extraordinárias, que cultivava, cruzava, levava a exposições – ganhando prémios, de vez em quando.
As roseiras eram todas etiquetadas com chapinhas rectangulares de metal – e nomes latinos, o que eu, em criança, achava uma despropositada extravagância.
A avó Maria conservou esse acervo ao longo de décadas – até velhinha! Mesmo enquanto teve criados - rudes moços de lavoura, alguns deles ladrões cadastrados, que a Avó tentava, cristãmente, reinserir na sociedade, em regra, sem grande êxito, como no caso daquele de que me lembro melhor, o “Cobra”… - nunca os deixou lidar com as flores. Ela própria as podava, protegida do sol por um enorme chapéu de palha). Filhos e netos estavam igualmente proibidos de usar a tesoura de poda… Mas podíamos assistir ao ritual, a que presidia, e apanhar as folhas e ramos caídos ao chão.
Tudo o resto, excepto o perímetro do poço, considerado perigoso por poder aluir, nos era acessível. Brincávamos com as acarretas de madeira, saltávamos muros e janelas altas, escalávamos todas as árvores de porte razoável – e eram dezenas e de toda a espécie. Exóticas só o imenso diospireiro, junto ao mirante da frente, e os araceiros, o vermelho e o branco, junto à “casa da eira”. Havia figueiras, laranjeiras, pereiras, macieiras… E os rasteiros morangos. E também abóboras de chila, que se entrelaçavam nos troncos das videiras e, depois de colhidas, repousavam nos muros baixos, de pedra., Muros de demarcação da área de jardim e da “quinta agrícola”. Com os seus tanques, que serviam de piscina ao avô Aguiar, o galinheiro, a casa da eira e a extensão de terreno plano, onde cresciam os famosos nabos de Gondomar, e tudo o mais que o solo fértil dava. Lá no fundo, depois das vinhas muito bem alinhadas, um outro mirante rodeado de damasqueiros gigantes. Daí, nesse tempo, só víamos campos de lavoura a perder de vista. Agora está lá implantada uma Escola e o “Auditório”, do lado de lá de uma rua nova, talvez dos anos 60. Do lado de cá, em terreno não expropriado, construiu uma vivenda, o Tio António.

Falo assim da casa, tão longamente, porque ela foi o reino da Avó Maria (e uma espécie de “oásis” da minha infância…)
Era a sua casa, tal como a sonhou, tal como a viveu, por mais de meio século, connosco e com a sua variada lista de convidados: padres, frades, seminaristas eram visita diária. Freirinhas ficavam, por temporadas, como se ali fosse a continuação da residência paroquial de S. Cosme.
E também, por exemplo, professoras primárias, quando chegavam e até encontrarem acomodação permanente. E filhos e netos, naturalmente… Meus Pais viveram com ela, alguns anos, durante a minha infância.
O tio António, tesoureiro da Fazenda Pública em terras de Portugal profundo, vinha passar os fins-de-semana.
E, a partir dos anos 50, o último andar da casa foi transformado para receber a tia Lina e tio Serafim, com os filhos. Foram “inquilinos” e, depois da morte da Avó, donos. Ficaram até ao fim da vida deles, que foi também o fim da vida da casa, em fins do século XX.
O regresso da primogénita trouxe animação aos corredores silenciosos, aos quartos desabitados pelos meninos que tinham vindo do Brasil no início da década de vinte.
Ao último andar íamos constantemente para estar com os primos Tónio e Mário. Subíamos, em correria, pela escada de dois metros de largo, com o seu corrimão de madeira sedosa. Descíamos, vertiginosamente, o corrimão, que dava uma curva apertada no patamar intermédio. Nem tempo tínhamos para olhar através do gigantesco vitral a paisagem (ainda…) bucólica de S. Cosme. Poucas casas, a igreja e muito, muito verde.
As nossas gargalhadas, os latidos do cão “Mirão”, os ensaios de peças de teatro, a organização das festas da igreja, (lembro-me de meninas a fazer flores de papel para carros alegóricos…), as cantorias acompanhadas pelos pianistas da família, eram um deleite para a Avó! Durante anos, as recepções da tia Lina frequentadas por senhoras e jovens da paróquia, padres e seminaristas (a quem eu chamava os “pretinhos”, por usarem sempre fato escuro…) foram parte integrante da vida social de S. Cosme.
Como no tão breve período em que o avô António pode gozar a casa, com família e amigos!
A seu volta à terra, que devia ter sido idílica, acabou não sendo - porque os negócios, por ele tão bem geridos, na fase de idas e vindas para a preparação da retorno definitivo a Gondomar, foram entregues a um parente, que rapidamente ia deitando tudo a perder. Um desfalque enorme! E, mais do que isso, o verdadeiro “ abuso de confiança “ por parte de um sobrinho que tratou como filho, abalaram a saúde do Avô, (esse rapaz não era filho do tio João mas de um outro irmão, que abandonou a família e sumiu, para sempre, no interior do Brasil).
O Avô viveu na Vila Maria, muito pouco tempo…
Muito à brasileira, tomava um duche frio pela manhã, na sua sala de banho com sete grandes janelas panorâmicas. E um pequeno-almoço de fruta, depois de umas braçadas no tanque piscina. Cuidava das rosas. Brincava com os meninos. Visitava ou convidava amigos. Foi comprando terrenos, jogando na bolsa, como todo o homem de negócios, que se preza. Assim pensava gozar uma “reforma” de homem ainda jovem e com fortuna. Morreu subitamente aos 46 anos. De angina de peito. Não viu crescer as árvores, não viu crescer os filhos…

A nossa “casa de brasileiro” já só existe na memória, mais como autentica personagem, testemunha das nossas alegrias e tristezas, com corpo e alma, com a sua juventude e a sua entrada em declínio, em simultâneo com a nossa Avó.
Curiosamente, e ao contrário do que poderia pensar-se, a sua construção não se deve ao Avô “brasileiro” mas à avó Maria. De facto, ele queria comprar a Quinta de Bouça Cova, com um belo solar seiscentista, pronto e feito a habitar.
A jovem Maria achava o sítio ermo e remoto. Preferia o centro da Vila. Não foi fácil comprar o terreno a vários lavradores ricos de Gondomar – o Zé do Paço, o Sr. Cosme Paciência, entre outros - que venderam ao amigo, por favor e muito caro. Depois, envolveram-se ambos, com entusiasmo na criação da casa, dos jardins, dos pomares, das vinhas…
Tudo em Gondomar o divertia. Na festa da terra – a Senhora do Rosário – gostava de partir com a sua bengala de castão de prata (ou de ouro), toda a louça de uma das tendas, escolhida no momento para a devastação… Uma tenda privilegiada, porque ele pagava bem! Quando o viam, as feirantes gritavam logo. “Venha aqui, Sr. Aguiar! Olhe a minha louça”.
A sua morte foi uma tragédia e revolucionou a vida da Avó.
O casamento durara 16 anos. Tinha tido oito filhos e nem sempre boa saúde. Mesmo para uma jovem a quem nada faltava – dinheiro, casas confortáveis, criados quantos quisesse, carros, as roupas mais elegantes, as constantes viagens transoceânicas na primeira classe dos melhores navios (e a Avó adorava viajar - aos 90 anos, ainda estava sempre pronta a sair connosco, fosse para onde fosse…), foi uma vida de muitos sacrifícios e momentos dolorosos – os partos, pelo menos alguns difíceis. Todos a exigir longa convalescença, como era de uso no início do século xx. E um filho que lhe morreu nos braços, a olhá-la com os imensos olhos azuis e a balbuciar a palavra “Mamã”. E a morte tão inesperada e dramática do marido.
Assim, ela fazia um balanço não inteiramente “cor-de-rosa” desses anos áureos…
Na velhice não tolerava a solidão. Ouvi-lhe muitos queixumes. Refugiava-se, mais e mais na vida religiosa.
Quando organizava as grandes reuniões de família, na Páscoa e no Natal, em quaisquer festas, em passeios, a Avó transformava-se por completo: era o seu “habitat”. Vicejava! Recuperava, logo, a graça, o bom humor, a alegria.
O tio Manuel e a tia Clara eram sempre os mais disponíveis para a acolher e a tratar em doenças prolongadas, como uma pneumonia grave em 1968.
Foi em casa deles no Porto – Av. Fernão Magalhães que viveu desde o início de 1979. Faleceu em Março, não resistiu a uma pleurisia. Não sei se o internamento em Hospital – coisa que não queria – a teria salvo…
De qualquer modo, atenções e cuidados não lhe faltaram.
Estava completamente lúcida e conservava a vontade de viver.
Na sua última carta, falava-me, muito contente, de um grande jantar com filhos e netos, a que eu não pude ir, e comentava: faltaste lá tu, para tirar fotografias. Eu era de facto, a fotógrafa habitual.




V - Deixo a história inacabada…

Conto com outras vozes e escritos de membros da família para ir fazendo a história de Maria Aguiar, onde a nossa começa.
Ao dizer isto, estou, afinal, a reconhecer que a avó está e estará sempre no centro da vida dos Aguiar: há as gerações que a antecederam. Há as que a continuam. Porém a referência é ela!
Não sei se a veríamos deste modo, caso tivesse tido a felicidade de envelhecer na companhia - e na sombra… - de um marido tão amigo e protector.
Com ele, foi socialmente discreta, como à época se esperava de uma senhora, paciente e complacente com os seus meninos irrequietos e não demasiadamente ocupada com as coisas do mundo transcendental…
Sem ele, surgiu a líder. A matriarca. E, do mesmo passo, a cidadã envolvida nos acontecimentos da terra - a partir de preocupações fundamentalmente religiosas. Da participação na comunidade.
À igreja, à comunhão, ia todos os dias. Visitava doentes. Ajudava os pobres. Os marginais. Os ex-presidiários.”Promovia” casamentos cristãos, onde via “uniões de facto”. E baptizados.
Organizava peregrinações. Peditórios (hoje diríamos “fund-raising”). Era da “Obra das Mães” e de muitas outras boas obras.
Foi a revelação de uma improvável ” Maria Aguiar, figura pública”. Um papel de que gostou e que só com o avançar da idade foi diminuindo.

Diferente terá sido o grau de dificuldade da “gestão” das coisas dentro da própria casa!
Tornou-se uma mãe exigente e severa, na sua dupla veste de pai e mãe…
Admitamos que os meninos não lhe davam sossego. Eram terríveis! Na escola, no colégio os primeiros, não tanto em aplicação, como a capitanear tumultos, burlescas partidas e actos variados de indisciplina habitual… Nenhum parece ter apreciado os bons internatos escolhidos pela mamã. E alguns até conseguiram ser expulsos, apesar de serem filhos de quem eram: por exemplo, o Zé por ter feito explodir o laboratório de química (acidentalmente, segundo ele); a Lólita por ter congeminado um processo de confraternização, à janela, com os namorados – o dela, e o das parceiras do seu grupinho, que, é evidente, sofreram castigo igual.
A tia Lina escrevia cartas lancinantes para a salvarem daquele verdadeiro degredo. Ainda o pai era vivo. Sorte! Ele tirou-a de lá, não suportou a pressão emocional!...
A tia Lina era, por sinal, ou por sina, a única a mostrar tendência para o activismo humanitário. Nunca saberiam compreende-la, depois que perdeu o pai e aliado. Chegou a vender jóias suas para valer aos pobres do Barredo (o que ninguém aprovava…). Foi enfermeira, voluntária da Cruz Vermelha, durante a Grande Guerra. Enfeitava altares de igreja. Recebia, em casa, os grupos corais, os meninos seminaristas, os senhores padres... Era expansiva, generosa. Alguns dirão: excessivamente…
Andava bem nesse tempo. Quando a impediram de viver assim, nunca mais foi a mesma …
Dos sete irmãos, o único que chegou à universidade foi o tio Manuel. Excelente aluno, desistiu do curso no último ano de medicina. Para casar. Não sei qual terá sido o primeiro emprego. Veio a ser especialista de segurança social e director de serviços nas caixas de previdência. Suponho que tirou um qualquer curso, nessa área, e acabou mestre…
Era tipicamente “Barbosa” (ou melhor, “Ferreira Ramos”). De uma impressionante semelhança física com o meu trisavô Joaquim. Loiro, olhos muito azuis. E o tal “temperamento”…Seguro de si. Ousado. Divertido. Sarcástico. Imbatível na dialéctica política ou desportiva. Socialista militante. Fanático da “Académica”. A alegria turbulenta em qualquer espécie de reunião. Um “must”!
O tio Zé conseguia distinguir-se, mesmo num grupo tão homogeneamente rebelde. Bateu todos, em matéria de mau comportamento dentro das instituições escolares. Mas podia ser, e foi, noutros lugares e circunstâncias, o que eu chamo um” santo laico”. Nunca conheci pessoa mais capaz de pôr os interesses dos outros acima dos seus. Não dava o menor valor ao dinheiro - o que tinha era para gastar com amigos, quando não com desconhecidos que lhe parecessem necessitados. Também não queria saber de diplomas, títulos ou benesses. Adolescente, chegou a dar, com sucesso, explicações de cadeiras que ele próprio não fez… A mim, diligente estudante, muito isso me impressionava! Mais ainda do que os relatos do desespero da Avó sempre que ele oferecia a um qualquer infeliz o seu casaco ou sobretudo novo e continuava a usar os velhos…
O tio António parecia, comparativamente, um menino exemplar, mas também tinha os seus assomos de traquinice: aproveitava uma pontaria excepcional para destruir, com a fisga, os vidros das janelas dos vizinhos… E o que isso o devia divertir!... (a mãe depois pagava os estragos…)
Conservou sempre um ar jovem, boa disposição, o seu humor benigno, o seu sorriso. Vestia-se muito bem. Fatos completos. Discretos. Conservadores – o extremo oposto do irmão Zé (esta é uma família de contrastes.)
Foi tesoureiro da Fazenda Pública no Funchal, em Paços de Ferreira, Castro Daire, Fafe e Gondomar. Já reformado dedicou-se a negócios, e em boa hora – foi o único dos sete com talento nesse campo!
A minha mãe também fez furor no Colégio da Esperança, onde a tia Lola e ela eram chamadas “os galos doidos”. Está tudo dito… (galos, não galinhas, notem: mandavam qb…) Estudava só aquilo de que gostava – geografia, história, línguas vivas… E piano. Fez o 6º ano do conservatório, exactamente como a tia Lena. A tia Lina ficou pelo 5º. A tia Lola preferia o canto, e bem: tinha uma voz esplêndida. E, assim, até nisso as manas se completavam! A avó apreciava imenso os concertos que davam, em privado. Eram momentos de encantamento… e de tréguas.
A tia Lena era um caso aparte – nem parecia mana daqueles manos. Mais criada pelos tios Hermínia e Alexandre era como se fosse uma 2ª Hermínia. Tranquila. Serena. Assim foi pela vida fora, num casamento longo e feliz com o tio David. Ambos queridíssimos dos seus numerosos sobrinhos, entre os quais me conto. Com eles demos incontáveis passeios. O tio David era um ás do volante e não havia carro que ele não ultrapassasse. E a tia Lena sempre imperturbável! Eu radiante, adorava velocidade – o meu pai andava devagar demais para o meu gosto. Outra perfeita sintonia: a paixão pelos animais, gatos, cães, que a tia Lena aprendeu com os tios Alexandre e Hermínia e nós com ela.

Sete filhos, mais o Augustinho, 17 netos. E já não sei quantos bisnetos, trinetos, tetranetos.
Este “puzzle” de memórias dispersas é para elas e eles.



Maria Manuela Aguiar
(“Manela” para a Avó)