domingo, 4 de dezembro de 2022

1 - UMA FAMÍLIA ESTIMULANTE Sou feminista desde que me lembro de ter opiniões sobre assunto... Comecei cedo, com 5 ou 6 anos, e para isso muito contribuíram as Avós, especialmente a Avó materna Maria (Aguiar), uma verdadeira matriarca, que ficou viúva, com 7 filhos, aos 36 anos e se tornou líder não só na sua casa, como na sua terra. Pertencia à Obra das Mães, às organizações da paróquia, às associações culturais. Era uma senhora muito bonita, muito inteligente e muito conservadora. Em nome das boas maneiras e do recato feminino, que tanto prezava, apesar da sua respeitável proeminência, dizia-me, vezes sem conta, "as meninas não fazem isso" - "isso" sendo por exemplo, subir às árvores, saltar dos elétricos em andamento ou jogar futebol com os primos... Eu sabia que gozava do estatuto de neta favorita e gostava imenso da Avó, mas não seguia esses seus conselhos. O plural: "as meninas", levava-me a reagir. Achava que devia mostrar que as "meninas" eram tão capazes como os rapazes de "fazer isso" e partia para o demonstrar no dia a dia. Era, pois, uma feminista praticante, com uma emergente consciência da existência das questões de género ... Curiosamente, os homens, Pai e Avó Manuel, eram fãs das minhas proezas desportivas, tanto como das escolares. Sempre me incentivaram a estudar e preparar o futuro profissional. Nunca o paradigma da "dona de casa" esteve nos meus horizontes, ou nos seus. Pelo contrário: punham em mim, a meu ver, excessivas expectativas.... E assim, graças a eles, o meu feminismo esteve "ab initio" na linha de pensamento de uma Ana de Castro Osório, mesmo que, nesse tempo, não conhecesse sequer o seu nome (como aquele personagem que fazia prosa sem saber...). Os homens foram, de facto, aliados - muitos, incluindo numerosos tios e primos, e, mais tarde, os meus professores da Faculdade de Direito de Coimbra. Tive uma infância divertida e feliz, numa família unida e convivial, apesar de politicamente dividida. Uma tradição que vinha de trás -houve, sucessivamente, regeneradores e progressistas, monárquicos e republicanos, salazaristas e democratas, germanófilos e anglófilos (como eram os meus Pais). A política estava bem presente, em acesas discussões sem fim, mas nunca ninguém se zangava. Consideravam os outros "gente de bem", por mais extremadas que fossem as suas opiniões. Tendo a atribuir mais a essa experiência vivida do que à idiossincrasia a ausência de preconceitos partidários em relação a quem não pensa como eu. E, possivelmente, também o gosto pela argumentação, pela entusiástica defesa de pontos de vista, uma sensibilidade a formas de injustiça como as assimetrias regionais, o despertar para um saudável regionalismo nortenho, a par da paixão pelo Porto (e pelo FCP)... Outra fórum de "convívio e debate" determinante foi a escola – dois anos na pública, sete anos de Colégio do Sardão (um internato de religiosas Doroteias), dois anos de Liceu. Costumo comparar o colégio a um quartel elegante, onde prestei uma espécie de "serviço militar obrigatório". Não foi, de facto, uma opção voluntária, mas, com a excelência do ensino e, sobretudo, das estruturas desportivas, ginásio, campos de jogos, parques e largos espaços de recreio, posso dizer que lá passei muitos bons momentos. Organizava competições desportivas (incluindo futebol clandestino), dirigia peças de teatro, escrevia crónicas e romances que partilhava com as colegas, dava largas à imaginação e à energia. Uma dessas crónicas, que pretendia fazer humor à custa da instituição, suas regra e poderes constituídos foi apreendida, e quase provocou uma expulsão mesmo nas vésperas do exame do antigo 5º ano. Não seria a primeira da família a passar por isso, mas escapei, suponho que com a interferência do capelão e de algumas das Madres, que me compreendiam e me achavam graça... Mas eu quis mudar para o Liceu Rainha Santa Isabel, no Porto, contra a vontade do Pai, que me vaticinava toda a espécie de retrocessos escolares, que tinham desabado sobre ele, quando depois de 10 anos de Colégio dos Carvalhos se viu "à solta" no Liceu Rodrigues de Freitas. A história não se repetiu, pelo contrário. Bati todos os recordes pessoais no exame de 7º ano e ganhei, pelo bem-amado Liceu, o prémio nacional. De qualquer modo, foi no Sardão que vivi a minha primeira batalha política - ou político-sindical. E um "enclausuramento" que me fazia apreciar mais os fins de semana e as férias de verão em Espinho, como espaço e tempo de liberdade... Frequentava com o Pai o estádio das Antas, com os Pais e o Avô os cinemas e teatros e, também, os cafés do Porto, coisa invulgar na época para o sexo feminino, de qualquer idade... COIMBRA ANOS 60 In illo tempore – Trindade Coelho (leitora – primeiro a Bíblia do tio padre). Praxe (lar das dominicanas). Baile das finalistas de capa e batina… Em Coimbra, era também à mesa dos café que estudava, que convivia e bradava contra as discriminações em que continuava fértil a sociedade portuguesa de 60. .. No Tropical, no Mandarim, no bar da Faculdade de Letras ou de Farmácia encontrava-me com colegas, com assistentes, pouco mais velhos do que eu, embora bastante mais sábios, como era o caso do Doutor Mota Pinto, que viria a ser o responsável pelo meu tirocínio na política. Eu falava abertamente, contestava leis e costumes. A leitura do Código de Seabra era um pesadelo - a "capitis diminutio" da mulher casada, que era a expressão latina para a escravidão feminina subsistente 2.000 anos depois, só podia alimentar sentimentos de revolta, a revigorar um feminismo que, por oposição à situação portuguesa, ia ganhando base doutrinal na social-democracia sueca. O tema da igualdade de sexos não estava na agenda política de 60 – e ainda hoje não está suficientemente... Em todo o caso, na altura soava mais a radicalismo e excentricidade. Esperava tudo menos que, anos e anos mais tarde, essa faceta pudesse pesar, como creio que pesou, numa mudança de rumo, que pôs fim a escolhas profissionais assentes (assistente de um Centro de Estudos Sociais, assessora do Provedor de Justiça). Sempre sonhei com uma carreira jurídica. A magistratura estava-me vedada por ser mulher. Queria ser advogada, uma cópia portuguesa de Perry Mason. Era no terreno jurídico que queria competir, não no da política. Direito era, então, um curso de perfil masculino, com um corpo docente sem uma única mulher e com mais de 80% de alunos homens. No meu livro de curso, conto 63 homens e 12 mulheres. Entre elas há excelentes advogadas e juristas, mas, das 12, na política só eu, e acidentalmente... Dos 63, foram muitos os que, no pós 25 de Abril, se distinguiram em Governos da República - Daniel Proença de Carvalho, Laborinho Lúcio, António Campos, Luís Fontoura, João Padrão... Ou que são vozes autorizadas no domínio em que se cruza o Direito com a Política, como Gomes Canotilho ou Manuel Porto, ou com as Letras, como Mário Cláudio ou José Carlos Vasconcelos... Ao fim de 5 anos felizes, eu trazia de Coimbra apenas um pequeno trauma: na única eleição a que concorri, pelo Conselho de Repúblicas, para uma qualquer comissão, cujo nome nem recordo - só sei que dava acesso à direção da Associação Académica - perdi num colégio eleitoral que era 100% feminino. Coisa natural, porque a maioria das meninas era conservadora, mas eu assumi pessoalmente a derrota e convenci-me de que não estava mesmo nada vocacionada para tais andanças... E depois, arranjar emprego? Muitas carreiras fechadas. Fui fazendo o estágio de advocacia… Bolsa da Fac. Para fazer o mestrado (Prémio Beleza dos Santos – Dº criminal)- Dr. Carneiro Leão ISE, onde o pai fazia Política Social, Administração de Empresas, sociologia – fomos colegas, depois eu desisti, ele continuou (ISCTE, sociologia) Mº Corporações (Praça de Londres) Sérvulo Correia, Monteiro Fernandes, Bernardo Lobo Xavier, Carlos Branco, Luís Galvão Teles… OIT (única M no curso com gente de todo o mundo – o russo, Yuri Ymelianov a meu lado. Vaclav Sekanina (no tempo de Dubceck). Mário Lages, um dos fundadores da Católica, os brilhantes engº nucleares, a Eduarda Cruzeiro, a Adelaide Brandão, Nadir Afonso, - fotografia com Mº Lages – jogos de futebol no campo em frente a Casa dos Est Port). 3 - A FORÇA DO IMPREVISTO Na história dos antecedentes da minha relutante ocupação de cargos políticos, estava já a força do imprevisto: primeiro uma proposta para assistente de sociologia na Universidade Católica que veio da parte de um professor que não conhecia, o Doutor Álvaro Melo e Sousa ( um amigo comum, Carlos Branco, indicou-lhe o meu nome, na altura em que acabava de regressar de Paris, com uns certificados na matéria – escolhe de Paris em vez de Northwestern, Illinois). Foi preciso ele insistir, mas acabei por dizer o sim - e não me arrependi. Esse facto tornou mais fácil aceitar um segundo desafio lançado pelo Professor Eduardo Correia, para a recém-criada Faculdade de Economia em Coimbra da qual ele era o diretor. Confesso que nem sabia da abertura efetiva dessa Faculdade.... Foi um encontro acidental, num colóquio. Quando me viu achou boa ideia associar-me ao empreendimento. Não houve hesitação da minha parte. Que bom voltar a Coimbra! Tomei posse na véspera do 25 de Abril de 1974. Na semana seguinte, Eduardo Correia era Ministro da Educação do 1ª Governo Provisório e, pouco depois, um novo encontro com outro dos grandes juristas do nosso século XX, o Professor, Ferrar Correia, em pleno pátio da universidade, à sombra da torre, levou-me para a minha própria Faculdade. Ao saber que estava ali ao lado, na Economia, convidou-me, de imediato, a transitar para Direito e eu aceitei tão depressa, que ele até julgou que eu julgava que ele estava a brincar. Não era o caso, era mesmo questão de feitio. Decido assim muitas vezes no que exclusivamente me respeita. E ali e então não havia que pensar duas vezes!... Guardo boas memórias de todas as passagens pelas funções docentes, na Universidade Católica, na Universidade Aberta, (num curso de mestrado cheio de jovens "promessas"), mas aquela tinha um significado muito especial - o convite chegava com atraso, mas chegava... Quando acabei o curso, em 1965, as mulheres estavam barradas do ofício - tinha havido uma, não existia impedimento legal, mas a prática era essa. Entretanto mudara, mas não me lembro de nenhuma colega - só homens e, quase todos, ótimos colegas, como o Fernando Nogueira, o Cordeiro Tavares, o Proença. Dez anos mais novos do que eu, o que me ajudou a rejuvenescer. (Pink Floyd, Alice Cooper, Simon e Garfunkel…). Fui assistente de dois grandes juristas, o Doutor Rui Alarcão e o Doutor Mota Pinto, integrei uma linha de investigação de Direito de Família. Os tempos agitados são-me geralmente favoráveis - como estudante dei-me bem em Paris, no pós Maio de 68, e o mesmo posso dizer de Coimbra, no pós 25 de Abril. Há coisas que seriam impensáveis fora de períodos revolucionários, e que fiz, sem oposição de ninguém, como dar aulas "extra muros", aos voluntários do Porto ou aulas práticas, a turmas naturalmente pequenas, no bar de Farmácia, ao ar livre, em dias de sol. Saíamos, em cortejo, dos "Gerais", já a falar das matérias, como os peripatéticos. Esclarecia dúvidas, exatamente como se estivéssemos numa daquelas escuras e frias salas de aulas. E, depois, analisávamos o PREC. Os rapazes (ainda em maioria) eram quase todos de outros quadrantes ideológicos, mas isso não obstava ao ambiente de tertúlia. Em 1975/76 dei aulas teóricas de Introdução ao Estudo de Direito a salas cheias de "caloiros" simpáticos. Um dever e um prazer. E refiro tudo isto, porque julgo que foi esta segunda estada em Coimbra que me abriu as portas da política. Antes de mais, porque reatei, naquele preciso momento da nossa História, o relacionamento próximo com amigos que estavam no centro da fundação de partidos (em particular do PPD) e da criação de um regime democrático, E, por outro lado, porque descobri que era capaz de comunicar em público - eu, que me considerava fadada apenas para trabalho de gabinete. Anos mais tarde, (coordenação das MSD – observatório) ao fazer um levantamento do perfil profissional das mulheres mais ativas do PSD, descobri que, sobretudo a nível local, havia um grande número de professoras. (ONG’s fora do partido, AMM, Assoc Ana Castro Osório, Ana Bettencourt, Mª Margarida Silva Pereira, MParl, Ana Paula e Julieta Sampaio e outras, - com todos os partidos) etc. A meu ver, não era coincidência, mas a consequência de uma maior autoconfiança do que a que se consegue em outras funções... No meu caso, não tenho dúvida de que me transformou o suficiente para admitir a hipótese de enveredar pela exposição nos palcos da política. Que não para a planear... Na verdade, o convite que o Primeiro Ministro Mota Pinto me dirigiu para a Secretaria de Estado do Trabalho, uma daquelas que eram vistas como coutada masculina, foi um absoluto imprevisto. E o Doutor Mota Pinto usou o argumento decisivo: "se recusar, não haverá mulheres no meu Governo". Depois da mera combatividade verbal, era a hora de agir.... Estávamos em fins de 1978. A ousadia da minha designação valeu ao Professor Mota Pinto um rasgado elogio de Marcelo Rebelo de Sousa num editorial do Expresso, que ainda guardo na pasta de recortes e na memória. (mesmo a nível europeu surpreendia - partiam do princípio de que era SE do Trabalho Feminino). Sendo defensora do sistema de quotas, assumi-me como a "quota mínima" daquele Executivo, que veio a integrar outra Secretária de Estado na área mais tradicionalmente feminina da Educação... Sabíamos que a missão era de curto prazo - um governo de independentes de nomeação presidencial, que não cedia nem a pressões de rua nem a influência de máquinas partidárias, algumas já então poderosas. Na minha opinião, foi um Governo que se impôs, ganhou credibilidade e, por isso, durou ainda menos do que o esperado... Os partidos trataram de se entender para o derrubar. Foram 9 meses intensos e formidáveis, findos os quais voltei para a Provedoria de Justiça, que, com o Dr. José Magalhães Godinho como Provedor, era o melhor lugar de trabalho à face da terral. Para mim, o Dr Godinho representava um conjunto de lendários tios republicanos, com quem nunca tive as conversas que pude ter com ele. Era família - não aquela em que se nasce, mas a que se faz tão raras vezes na vida. Entrei com Costa Braz, que saiu para organizar eleições. Era a única que discutia política dentro do palacete da 5 de outubro – os versinhos do Dr Godinho. Até que novo imprevisto sobreveio: em janeiro de 1980, logo depois da posse do VI Governo Constitucional, um telefone do Primeiro Ministro Sá Carneiro, que não conhecia pessoalmente, mas com quem me identificada, porque, como afirmou numa entrevista a Jaime Gama, e era "social-democrata à sueca".( É por isso que, sem ter filiação partidária antes de 80, me considerava PPD "avant la lettre", ou seja, Sácarneirista desde 1969). Nele gostava tanto das qualidades do que dos defeitos (que, para mim, eram as suas melhores qualidades…) Pelo telefone, Sá Carneiro, foi sintético e breve a marcar um encontro para as 5.00 horas da tarde - audiência para o qual eu parti inquieta, mal penteada e mal vestida, como andava normalmente. E se ele fosse pessoa distante e pouco simpática? Se com isso arrefecesse a minha "condição de incondicional" de tudo o que dizia e fazia? Grande preocupação... Quanto ao que me esperava, isso já não era assim tão misterioso, porque os jornais falavam do meu nome para várias pastas. Sá Carneiro recebeu-me à hora exata - não cheguei a sentar-me na sala de espera. Com um sorriso luminoso, que começava no seu olhar claro! Assim sempre o recordo, em todos os encontros que se seguiram. Quando a ele me dirigi pelo seu título de chefe do Governo, atalhou: "Não me chame Primeiro Ministro". Ao que eu respondi: "Desculpe, mas é como o vou chamar, porque me dá imensa satisfação que seja Primeiro-Ministro, e esperei anos para o poder tratar assim". Mas, tratamento cerimonioso aparte, a conversa tomou o rumo de uma alegre informalidade. Dei respostas um pouco insólitas, no tom que tantas vezes usei com outros políticos de quem era amiga de longa data. Sá Carneiro fez-me sempre sentir absolutamente à vontade. Parece que havia quem ficasse inibido na sua presença. Eu, pelo visto, ficava eufórica. O Doutor Sá Carneiro, ele próprio, era, assim, uma esplêndida surpresa. A outra surpresa veio do pelouro que me propôs: a emigração, num Ministério onde nunca tinha entrado, o de Negócios Estrangeiros. No governo da AD, em 1980, havia apenas três Secretárias de Estado, uma de cada um dos partidos, a Margarida Borges de Carvalho pelo PPM, a Teresa Costa Macedo pelo CDS e eu pelo PSD (num impulso, filiei-me nessa altura). Ainda a "quota mínima", tripartida... A emigração, ou melhor dizendo, a Diáspora Portuguesa,( porque falo da que tem uma estrutura orgânica, uma vida própria, coletiva, imersa na nossa cultura e um futuro que talha com a preservação da herança cultural) foi uma esplêndida descoberta - andava de comunidade distante em comunidade distante, sempre e reencontrar-me em Portugal - um fenómeno por mim insuspeitado de extraterritorialidade da nação. Um mundo associativo espantoso, embora um mundo de homens. Eu era a primeira mulher que junto deles aparecia, como face do governo da Pátria. Se tinha dúvida quanto à reação que provocaria, logo os receios se desvaneceram - receberam-me sempre com alegria, com simpatia. Não fiz unanimidade, é claro, mas os afrontamentos que houve foram sempre devidos a questões políticas, não a questões de género. Trataram-me tão bem, que me deram o que mais me faltava: um superávide de confiança. Mesmo nas hostes ideologicamente adversárias encontrei quase sempre boa vontade para trabalho conjunto, até no, por vezes, agitado Conselho das Comunidades, que me coube organizar e presidir, desde1981 (era então um fórum associativo, de perfil masculino, politicamente dividido entre uma Europa mais contestatária e uma Diáspora transoceânica mais próxima das posições do governo´). Na verdade, acredito que ser mulher tornou bem mais fácil a minha missão. Logo em 82, quem me fez ver isso, de uma forma bem divertida, foi um jornalista de S Diego, o Paulo Goulart. No fim de uma entrevista, ao almoço, disse-me: "Sabe, aqui só há dois políticos de quem gostámos: é de si e do João Lima". (João Lima, antigo Secretário de Estado da Emigração era, então, deputado pelo PS). Fez uma pausa, como quem avalia e compara os seus dois eleitos e acrescentou: "Pensando bem, o João Lima até tem mais valor, porque é homem e socialista". Achei muita graça à sua franqueza. Na América ser socialista, de facto, assusta e não dá votos... E também é verdade que, em certas situações, mesmo na vida política, mesmo em ambientes dominados pelo poder masculino, é uma vantagem ser Mulher... Porque é a "exótica" exceção? Porque há no fundo, um reconhecimento de que as mulheres fazem falta? Muitas hipóteses, para uma só certeza: no meu caso, senti simpatia, adesão e apoio desde o 1º momento, de um sem número de homens influentes e de algumas raras mulheres, que já se faziam ouvir. Quando deixei o governo, depois de cinco sucessivas experiências - sendo a última aquela em que os Secretários de Estado passaram a ser considerandos "adjuntos de ministro"... - o imprevisto estava, de novo, à minha espera na AR, onde tinha o meu lugar pelo círculo do Porto. Um convite para ser candidata à 1ª Vice-Presidência da Assembleia. Aceitei, como aconteceu anteriormente, não muito segura de me sair bem na responsabilidade da representação feminina... Fui, assim, a 1ª Mulher a presidir às sessões plenárias do parlamento, à Conferência de líderes, a Delegações parlamentares - ao Japão, para começar... Após 4 anos nesse cargo que, enquanto não assumido por uma mulher, tinha sido sempre mais discreto, apesar da sua importância protocolar (2ª figura na linha da sucessão do Presidente da República, "en cas de malheur"...) sucedeu-me Leonor Beleza. Mas o País teria ainda de esperar um quarto de século por uma Presidente da AR, escolhida pelo mesmo partido, que é contra as quotas mas aposta na alternativa do pioneirismo na abertura de oportunidades ao que eu chamo "mulheres de exceção”... Só em 1991, me propus, eu própria, como voluntária, para um lugar que verdadeiramente queria: representante da AR na APCE (Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa). Aí, me mantive até abandonar o Parlamento nacional em 2005. Fui bem mais feliz e bem sucedida fora do que dentro de fronteiras (tanto na emigração como nas organizações internacionais, a APCE. e a AUEO...). Aí havia menos jogos políticos de bastidores, não se sabia o que era disciplina partidária, era larga a margem de iniciativa pessoal, para intervir, para propor recomendações... Presidi à Comissão das Migrações à Subcomissão da Igualdade e a outras, fui relatora em inúmeras propostas. Defendi a dupla nacionalidade, o estatuto dos expatriados, a não expulsão de imigrantes, o reagrupamento familiar, insurgi-me contra a guerra do Iraque, denunciei a discriminação de género no desporto... Acabei a presidir, entre 2002 e 2005, à própria Delegação Portuguesa à APCE e á Assembleia da UEO – onde fui VP , como poderia ter sido da APCE (não quis retirar do lugar Medeiros Ferreira…). A 1ª a receber um diploma de membro honorário (não havia essa tradição – juntamente com Terry Davis e Pedro Roseta – grande adepta da UEO, como braço europeu da NATO). Amizade com Russel Johnston – dificuldades com Van der Linden – a “gauchiste” do PPE…). Paris, de novo (os tempos em que tinha um gira-discos, com mecanismo de repetição e meia dúzia de discos de 33 rotações, que ouvia, interminavelmente – Serge Reggiani, Barbara, Leo Ferré. Aznavour, Brassens e Nicoletta… paredes decoradas com três enormes posters dos Kennedys, comprados no Blv St Michel, John, Bob e um terceiro com John e Bob. Mais tarde, Annie Bettencourt dir-me.ia: nunca me esqueci dos teus Kennedys. Eram os únicos… Por todo o lado só havia o “Che” (Guevara). Bonito homem… mas não tão popular assim na Casa da Argentina, onde vivi no meu 2º anos de Paris (setia-me na Argentina, adoro para sempre a Argentina – que diferente da Casa Estudantes Port… pouca política, muita música e dança – tocavam viola divinamente, sobretudo a Morita, que era a filha do diretor, o Prof Covian – um democrata cristão, genuinamente democrata, que pouco depois partiria para o exílio em S Paulo… Um outro inesperado e insistente convite me levou, depois, à vereação da Câmara da cidade onde vivo, Espinho... Fui vereadora da Cultura no ano do centenário da República e isso permitiu fazer coisas diferentes e por o enfoque no movimento feminista e republicano. Não que eu seja republicana hoje, mas tenho a certeza que o teria sido em 1910, na companhia da Carolina Beatriz Àngelo, Ana de Castro Osório ou Adelaide Cabete. E feminista sou-o no sentido preciso que lhe davam as nossas sufragistas. (8 de março de 1989, quando era VP da AR e presidente da Comissão da Condição Feminina – proposta de Natália… escolhi Ana de Castro usório. Finalmente, falaram pelas nossas vozes Também nunca tive complexos de inferioridade por prencher, eventualmente, um espaço aberto pela "quota" , mais ou menos larvada. No meu caso, nunca explicita, nem mesmo no cargo de VP da AR e sempre rejeitada como tal pelos opositores das quotas do meu partido. Quando eu dizia: "escolheram-me para Vice-Presidente da AR, porque queriam uma Mulher" (o que para mim era evidente, estava certo e só pecava por ser decisão tardia), respondiam-me: "Manuela, não diga isso! Está nas funções pelo seu mérito" O meu mérito não era coisa que eu fosse discutir!... Discutia, sim, o mérito do sistema de quotas, que em nada contende com o valor ou capacidade pessoal, antes pelo contrário o pressupõe, mesmo quando, porventura, errando. Mas erros de "casting" não faltam também, e são muito mais comuns, no caso de políticos promovidos pelas máquinas partidárias, à maneira tradicional. PELA PARIDADE, PELAS QUOTAS Com este tema recorrente, vou terminar a minha intervenção longa.... Quando há avaliações objetivas dos candidatos, o sistema de quotas é gritantemente inaceitável! No acesso às universidades, por exemplo, são escolhidos os melhores alunos, os que têm melhores notas. Por sinal, são mulheres, mas aí, se não fossem, não seria justo nem legítimo intervir . A falta de educação, de formação seria, de resto, o único fundamento de uma desigual participação feminina na vida pública. Onde a situação é de igualdade ou supremacia, a ausência das mulheres num domínio como o da intervenção cívica, da política, impõe uma presunção de discriminação. A Lei da Paridade torna essa presunção inilidível e, a meu ver, é com base nela que determina uma quota mínima em função do género. A igualdade de mérito presume-se e a realidade tem vindo a comprovar a presunção onde quer que o sistema seja praticado de boa fé e com honestidade: no norte da Europa, onde o sistema nasceu, ou no sul, onde chegou com atraso. E Portugal não é exceção. As quotas vieram garantir novos patamares de equilíbrio de género, com aparente valorização do todo! Mas é da maior importância que a aplicação da Lei da Paridade seja objeto de avaliação, como a própria Lei impõe, ao fim de cinco anos (artº 8º).Estranho que 7 anos depois da entrada em vigor da lei, a obrigação de cumprir o preceituado no artº 8º ande esquecida. Onde estão os estudos sobre a progressão das mulheres, a nível do parlamento e das autarquias locais? Sobre a sua atuação concreta? Estranho, ou talvez não... porque as questões de género continuam descentradas da agenda política em Portugal. Aqui fica uma chamada de atenção ao Governo (à Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género, que terá condições ideais para levar a cabo um estudo conclusivo) e ao Parlamento, seja para eventualmente poder o legislador pensar alterações à lei nº 3/2006, com vista a "mais paridade", ou a dar mais visibilidade ao percurso que as mulheres vêm fazendo no caminho aberto pela Lei, contra regras não escritas e práticas discriminatórias vigentes nos aparelhos partidários. E quanto à frase com que comecei para me definir como feminista, devo dizer que não a li num livro, nem a ouvi num congresso - vi-a, há muitos anos, inscrita numa placa de um automóvel que atravessava o centro de Boston, num dia de sol: FEMINISM IS THE RADICAL NOTION THAT WOMEN ARE PEOPLE

quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

30 nov - autoretrato

UTO-RETRATO 26 de novembro O paraíso da infância Nasci em Gondomar, numa das chamadas “casas de brasileiro”, a Vila Maria – uma homenagem do avô, que era portuguesíssimo, a sua mulher. Prática muito comum nessa época. O que não há, tanto quanto sei, é “vilas” batizadas com nome masculino. Para quem havia de trabalhar no terreno da emigração durante mais quatro décadas, pode parecer predestinação ter vivido os seus primeiros e felizes sete anos num ambiente marcado pelo Brasil. A Vila Maria era uma propriedade enorme, constituída por um casarão de paredes cor de rosa e venezianas verdes, circundado por jardins simétricos com canteiros de rosas (rosas magníficas, que o avô levava a exposições) e, nas traseiras, extensos pomares e vinhedos. Não havia palmeiras, nem vestígios de flora tropical, descontado um diospireiro gigante e dois graciosos araçazeiros, de porte arbustivo, mas a “brasilidade” estava bem presente no dia a dia, nas histórias sobre o avô António Carlos Pereira de Aguiar, tão prematuramente desaparecido, nas memórias da cidade fascinante, o Rio de 1910 - a Rua do Ouvidor, as colinas de Santa Teresa residencial, a mata da Tijuca - das férias de verão austral em Teresópolis, e de muitas travessias festivas do mar em luxuosos vapores. E, também, na gastronomia, na música, sobretudo, na paixão com que alguns dos tios se orgulhavam de ser brasileiros. Até minha mãe, que viera a luz em São Cosme, como tal se considerava por ter sido concebida do lado de lá do Atlântico e cruzado o oceano no seio materno. Nunca lá iria fisicamente, mas reencontrava o seu Brasil em Érico Veríssimo e Jorge Amado ou nas telenovelas da Globo. A Vila Maria, que já só existe na nossa memória, foi o paraíso da infância da geração anterior e da minha, também. Era um mundo aparte, com as suas fronteiras de granito, muros altos a toda a volta, um espaço de total segurança, de total liberdade de movimentos, com alamedas largas, recantos e casinhas (a do forno, a da eira, as pocilgas de pedra e reboco, o pequeno “chalet” face à rua principal). Do mirante da frente e do gradeamento do portão olhávamos o exterior, um Gondomar urbano, mas ainda com mais transeuntes do que carros e, espaçadamente, vagarosos elétricos amarelos, que nos levavam ao Porto. Na outra extremidade do terreno, um mirante mais modesto oferecia-nos o Gondomar rural e bucólico, campos de cultivo a perder de vista, casario disperso. Da varanda de pedra que continuava a sala de jantar, uma visão panorâmica do Monte Castro. O nosso Gondomar! Quando meus pais casaram, em 1941, a avó Maria quis que ficassem a morar com ela, numa casa cheia de quartos vazios, onde já só restavam dois filhos solteiros. prestes a partir. Arranjo ideal para os recém-casados, muito novos, ela com 21 anos, ele com 23, fama de rico sem proveito, tendo por certa a modesta remuneração de funcionário júnior da Câmara de Gaia, e por incertas e ocasionais as ajudas paternas. Logo depois, em anos sucessivos, 1942 e 1943, chegaram as duas meninas, e a solução tornou-se ideal para a generalidade dos coabitantes, pequenos e grandes. Madalena (Lecas) e eu sempre tivemos uma relação de igual proximidade com pais e avós, incluindo os paternos, Olívia e Manuel, de quem éramos as únicas netas e com quem passávamos fins de semana, férias, largas temporadas, na casa de Avintes, também bastante grande, por padrões atuais, e com vistas pitorescas sobre telhados em cascata e sobre o rio Douro, em fundo. Destas figuras tutelares, é difícil avaliar quem contava mais, quem mais influenciou a criança precoce, apressada e rebelde, de que falam crónicas alheias. A mãe, Maria Antónia, a quem chamavam Mariazinha, era pequeníssima (um metro e meio…), mas compensava a estatura com magnetismo, exuberância e uma certa tendência para a excentricidade, que o historial da família regista, tanto do seu lado Aguiar, como do seu lado Barbosa. Fazia gala de qualquer singularidade, como, por exemplo, ter olhos de cores diferentes, muito claros, um verde, o outro azulado. Foi sempre uma menina pouco menos que indomável e, no Colégio da Esperança, uma aluna preguiçosa, que só se dedicava ao que lhe dava prazer –línguas, história, geografia e, sobretudo, música. Talentosa pianista, solista em todas as festas do colégio, sonhava com uma carreira nos palcos. Não teria, também desdenhado seguir arte dramática no Conservatório e tornar-se atriz – uma segunda Mirita Casimiro, uma outra Laura Alves. Mas nem pensar… a mamã educava as filhas para o casamento, combinando aprendizagens adequadas, sem exclusão do piano – ela própria adorava música. A Mariazinha retaliou, recusando todo e qualquer tirocínio em artes domésticas. Dentro de uma cozinha, não sabia fazer quase nada...Era alegre, divertida, tocava Chopin e cantava os fados da Amália, com uma voz fortíssima, que conservou afinada até aos quase 100 anos. Ao ritmo do seu tempo, gostava de dança, de cinema, de corridas de automóveis, touradas, vida de praias e esplanadas, passeios, e dos romances de Eça e de Zweig, de Maria Archer e Aurora Jardim, que conhecia de vista, da hora do chá elegante da Ateneia. Discípula de Florbela, ela própria, tal como a irmã Carolina escrevia sonetos pungentes. Curiosamente, a poesia foi ponto de encontro com o futuro marido, João. João, sem diminutivos, atraente rapaz, alto e loiro, poeta repentista - dom herdado de uma fantástica avó, Quitéria Francisca, que cantava ao desafio em festas populares. O neto, mais letrado, lia o seu Virgílio, os poetas clássicos em latim, tocava violino, (sem ser um virtuoso) e, seguindo o lema “mens sana in corpore sano” praticava atletismo, jogava futebol. Após onze anos no Colégio dos Carvalhos, desistiu do curso na universidade de Coimbra, para se casar, romanticamente, com uma lindíssima e requestada Celina, que já estava muito doente e faleceu, de tuberculose, poucos meses depois. Viúvo aos 19 anos, voltou a casar, aos 22, com outra mulher, que aliava magnetismo e beleza. O enamorado achava-a parecida com Paulette Goddad! Mãe e pai tinham, apesar das sintonias literárias e musicais, temperamentos muito diferentes. Ela otimista, impulsiva, irrealista, gastadora, ele, um sonhador cético e pragmático, pessoa ponderada, às vezes a rondar a indecisão. E muito poupado, quase “forreta”. O avô Manuel e a avó Maria, mais a sua irmã, tia-avó Rozaura, com quem, contas feitas, passávamos mais tempo do que com os pais, eram maravilhosos contadores de histórias, e graças a eles, aprendi a ouvir, atentamente, os mais velhos, pela vida fora. Pouco dada a rememorar o passado, a outra avó, Olívia, preferia pôr-nos a falar sobre nós ou sobre animais, partilhava connosco a paixão por gatos, os seus fabulosos gatos franceses, filhos da Tita, cujas ninhadas eram disputadíssimas E dava-nos boas mesadas -não havia ascendente mais pródigo… O avó Dias Moreira, Manuel, nos documentos oficiais, identificado como “proprietário”, era, como prefiro considera-lo melómano, cinéfilo e ator de teatro amador, (do Grupo Mérito Avintense). Com ele, desde os cinco ou seis anos, me iniciei no gosto do cinema (operetas, westerns, comédias, nunca filmes infantis…), e do ambiente dos cafés do Porto. Ao que consta, eu própria seria o tema favorito de conversa desse avô. Parentes e amigos tratavam de debandar, se pressentissem que se preparava para abordar, com grande detalhe, os feitos da neta mais querida. A avó Maria tinha outro perfil, era já então, figura lendária, muito para além do círculo da família. Viúva aos 38 anos e mãe de sete órfãos, o envolvimento na vida da comunidade, na paróquia, na “Obra das Mães” e em quaisquer iniciativas de cultura e beneficência à espera de patronato, foi a sua maneira muito pessoal de reagir à tragédia. Da sombra de um bem-amado marido, da maior infelicidade, emergiu a líder, que deixou de ser, para sempre, apenas a filha, a mulher, a parente de homens notáveis. Doravante, os filhos, netos, parentes passariam a ser vistos na sua relação com ela: os Aguiares! Ao contrário de tantas mulheres da família, em que minha mãe e eu nos contámos, e contra uma velha tradição peninsular, adotara o apelido do marido, reduzindo um nome comprido a “Maria Aguiar”. Mais um dos inúmeros tributos de fidelidade à sua memória, a par do traje escuro, não necessariamente preto, pois se permitia incursões num discreto cinza ou no roxo, sua cor preferida. E, sobretudo, trouxe até nós, a imagem encantatória de um homem capaz de pensar e de realizar em grande. Alegre, generoso, expansivo, capaz de fazer bons amigos em qualquer latitude. Sempre impecavelmente vestido e bonito, com uns espantosos olhos verdes e os seus bigodes de época. E muito “ilustrado”, na linguagem antiga da avó Maria. A tia-avó Rozaura é outra das personagens marcantes da minha primeira idade, com a sua paixão por lendas, crenças e ditos populares e tudo o que havia de pitoresco ou excêntrico na história esquecida da família. Tão diferente da sua irmã Maria… pequenina e roliça, discreta, mas terrivelmente observadora e capaz de um humor caustico, conciso e irreverente. Duas vezes viúva, sem filhos, era a nossa avó, “ex-aequo” com as outras duas. Uma sobrevivente da tuberculose, curada no sanatório do Caramulo, onde, na convalescença, gozou de trepidante vida social com um bonito romance pelo meio. Quem mais traria tão esplêndidas recordações de um sanatório? Assim cresci neste círculo físico e humano, alargado por alegres convívios com muitos tios e primos. A Vila Maria era o meu amável pequeno mundo, regido pela avó Maria, mestra e cúmplice, que tão bem me compreendia. Quantas vezes, escutando de onde não me viam, a ouvi bradar: “Não sabeis lidar com esta menina. É preciso explicar-lho o porquê das coisas”. Já então, para mim, obedecer ou não obedecer era coisa a avaliar por bons critérios. Contudo, não nutro incondicional simpatia por essa criança nem me reconheço inteiramente nela. Tinha um feixe de cintilantes qualidades, muito sobre valorizadas, que fui perdendo, num trajeto vivido em plano inclinado. Agustina, a genial retratista de mulheres do Norte (com algumas das quais antepassadas minhas tiveram gritantes sintonias), dizia que nascera adulta e morrera criança. Não é esse o meu caso. Nascera simplesmente precoce, e isso não é coisa boa, quando nos vamos “normalizando”, devagarinho, e, com isso, frustrando expetativas gerais, incluindo as próprias. Disse a primeira palavra aos sete meses – e não foi “mamã” nem “papá”, mas “Jesus”, graças às virtudes pedagógicas e à persistência da avó Maria. Só mesmo ela se lembraria de treinar a neta para um feito inédito em clã muito católico, embora com alguns ateus à mistura. Dei os primeiros passos aos nove meses, ao que consta em corrida, terminada numa queda contra a esquina de um guarda-vestidos, que por sorte, não deixou marcas. Com um ano de idade comecei a palrar, a amealhando vocabulário, de forma galopante, E não me calei mais - uma dessas pequenas criaturas cansativas que não param de metralhar perguntas, e estão no centro das atenções, ou pela exibição de aparentes talentos ou por malfeitorias. Tornei-me enormemente popular, embora fosse uma das crianças mais terríveis de sempre, mesmo na família materna, com pergaminhos nesse capítulo. Na geração anterior (anos 20 e 30 do século passado), todas as partidas escolares e outras pequenas patifarias acontecidas em São Cosme de Gondomar eram consideradas obra dos filhos da Senhora Dona Maria Aguiar. Raramente se enganavam. A tradição vinha de trás, com esse e outros apelidos, e não excecionava as mulheres (as tais que poderiam ter servido de inspiração a Agustina. Ao contrário das que se notabilizaram pela excentricidade, a avó Maria enquadrava-se no polo oposto, como pináculo das virtudes femininas da época.

sexta-feira, 25 de novembro de 2022

EU "IN ILLO TEMPORE"

EU in illo tempore Uma infância feliz e passageira Olho o retrato da menina pequena e dificilmente me reconheço nele. Na família, sobretudo a materna, o gosto pela fotografia vem de longe, de sucessivas gerações, desde tetravós, e meus pais terão passado a juventude de máquina a tiracolo. Não me faltam, por isso, imagens de mim, em papel brilhante de bordos ondulados, na primeira dos quais apareço em forma de embrulho branco, que um casal enlevado partilha nos braços. Estão sentados num banco comprido de jardim, e um cão grande, preto e branco passeia por perto. É verão, o bebé protegido pelo abafo deve estar a morrer de calor e vai gostar de aragem fresca pelo resto da vida…. O meu autorretrato é feito de um sem número de retratos de época, de cada época. E não só os que a câmara captou, mas os outros, os de um percurso de formação e afirmação. É no feixe de qualidades e defeitos que alardeava nesses anos primordiais que dificilmente me reconheço. Era irritantemente precoce, turbulenta, imparável. Dentro e fora do círculo da família, quando confronto esse género de crianças, procuro disfarçar impaciência e antipatia dissonantes no ambiente geral que, em regra, cerca essas pequenas criaturas exibidas como troféus. A precocidade eleva expetativas gerais, e, em muitos casos, é terreno para deceções futuras. Os Mozart são a exceção… Eu disse a primeira palavra aos sete meses – e não foi “mamã” nem “papá”, mas “Jesus”, (bem amestrada pela devota avó Maria) . Dei os primeiros passos aos nove meses, ao que consta em corrida, terminada numa queda contra a esquina de um guarda-vestidos, Por sorte, sem dano perdurável. Com um ano de idade comecei a palrar e a absorver vasto vocabulário. E não me calei mais! Metralhava perguntas, incansavelmente, contava histórias incrivelmente inverídicas, e dava largas a inesgotável energia em imaginativas asneiras. Um dos pedagógicos livrinhos que a avó Maria me ofereceu, mal aprendi a ler, foi “Os desastres de Sofia” … Com “Os desastres de Manuela”, já estava convertida numa das crianças mais terríveis de sempre, até na família materna, cheia de pergaminhos nesse capítulo. Na geração anterior (anos 20 e 30 do século passado), tudo o que acontecia de insólito ou heterodoxo em São Cosme de Gondomar era considerado culpa dos Aguiares. E raramente se enganavam… A tradição vinha de trás, com esse e outros apelidos, e não excecionava as mulheres, que poderiam ter servido de inspiração a heroínas de Agustina. Avoengas excêntricas, capazes de feitos incomuns, também as havia do lado paterno, a mais recente das quais era a bisavó Quitéria Francisca Pinto, que, em Avintes, cantava ao desafio e jogara varapau em dias de festa popular. Tenho na ascendência gente das duas margens do Douro, com o Porto à vista, em Gondomar e em Avintes. A família materna com raízes a norte, em Gondomar, a paterna dividida entre o sul, com os Dias Moreira, proprietários de terras ribeirinhas, rigorosamente em frente à histórica Gramido, e o norte, com o ramo Castro Mello/Capela, da Foz do Sousa. Sobre estes pouco se sabe. O bisavô Capela que aí nasceu, na Quinta dos Órfãos, fixou-se em Avintes, tendo, na juventude, rompido com os pais por razões que permanecem misteriosas, sendo a hipótese mais provável, mas nunca confirmada, o casamento contrariado com a bisavó Joaquina. O século XIX familiar abunda em crónicas de paixões proibidas, romances que parecem ultrapassar a ficção, mas não a camiliana, pois, quase sempre, esses casais “viveram felizes para sempre”. Suspeito que muito por mérito das mulheres que ousaram desafiar a autoridade, e não, necessariamente, a masculina. Também as mães parecem ter estado sempre na frente das disputas... A geografia em que tudo isto acontecia era propícia - território agustiniano. Ao menos nas últimas gerações, em linha reta, não há grande mobilidade familiar, com exceção de alguns “brasileiros de torna viagem”. Durante séculos, todo o norte de Portugal se despovoou pelo caminho marítimo para o Brasil… Os que realizaram o sonho de regresso, são os nossos avós, os que por lá ficaram os progenitores de incontáveis primos, na sua maioria desconhecidos. No meu caso, são dois os ancestrais de boa memória que fizeram o trajeto de volta. O trisavô Pinto, que construiu casa de traça bem portuguesa na rua principal de Avintes, que é hoje a 5 de Outubro, e se estabeleceu com um pequeno estaleiro de barcos do rio. Aparentemente, trouxe dos trópicos não só um razoável pecúlio, mas mentalidade aberta. Suas filhas foram raparigas modernas, gozando de invulgar margem de liberdade - a mítica bisavó Quitéria Francisca, a menina dos olhos muito azuis, poetisa repentista e jogadora de varapau, e a mana Esperança, a menina dos olhos muito verdes, que seria a matriarca de gerações de artistas, os Marques, pintores, entalhadores, escultores e arquitetos. O outro “emigrante de sucesso”, como passou a dizer-se na era cavaquista, foi o Avó Aguiar, que quando a morte o levou, repentinamente, aos 46 anos, vivia, com a mulher e sete filhos, no seu enorme casarão de Gondomar, mantendo um vaivém entre Gondomar e o Rio, onde mantinha interesses financeiros, preparando a entrada numa sociedade bancária. Duas exceções. A mobilidade dos outros, praticamente, não ultrapassou os limites de um pequeno círculo geográfico traçado à volta do Porto, nossa cidade berço. Alguns ramos, como o Pereira de França, no qual se entrelaçou o Aguiar, no segundo quartel do século XIX, tem mais de três séculos de permanência em São Cosme! Os Aguiares eram, cinco gerações antes de mim, oriundos de Montalegre. Enraizamento antigo no concelho de Gondomar tinham, também, os Ferreira Ramos, ascendentes maternos da Avó Maria, embora, muito lá para trás, encontremos entre eles avoengos imigrados do reino da Galiza para terras de Valbom. Os paternos Mendes Barboza eram de Bitarães e Paredes, apenas um pouco mais nortistas. Panorama semelhante na genealogia paterna. Está menos estudada à falta de primos com pendor genealogista. Mais rigorosamente, à falta de primos, ponto final. Os bisavós João Dias Moreira e Quitéria Francisca Pinto, de um casamento contrariado, com um longo historial de adiamentos, tiveram apenas dois filhos, e, nas gerações seguintes, três netos, três bisnetos, e um tetraneto, o Frederico, com pouco mais de um ano, várias nacionalidades e ascendência lusa, canadiana, escocesa, ucraniana e holandesa. Pode ser que venha a ter dois irmãos, batendo um recorde de várias gerações! Outros ramos paternos despertam especial curiosidade, por estarem cercados de mistério - os Castro Mello e os Capela da Foz do Sousa. Apelidos sem história, por causa de rutura antiga e definitiva, que levou o avô Capela para Avintes, sem olhar para trás. No entanto, de qualquer outro ângulo de abordagem do legado familiar, que não o geográfico, diversidade é a palavra certa para o definir. Diversidade de trajeto, fortuna, mentalidade, posições políticas e ideológicas, desafiante para quem o queira continuar. Invejo, benignamente, as ou os biografados (ou autobiografados), que se reconhecem num determinado meio, bem definido e homogéneo. E mais ainda quando fizeram, em condições adversas, trajetórias ascendentes. O meu caso é precisamente o inverso. Fui regredindo, devagarinho, de criança explosiva e cheia de si a adolescente e mulher cheia de dúvidas sobre si. E, de um modo geral, as novas gerações, acompanharam face as antecedentes, o mesmo movimento descendente, em estatuto e em meios, ao menos materiais. O bisavô João Dias Moreira, um gigante de quase dois metros de altura, que mais parecia de origem viquingue do que lusitana (e talvez fosse), não sendo filho de agricultores, fez sólida fortuna nas terras férteis do Douro, com uma mentalidade empresarial moderna. Comprou, durante a vida, 99 propriedades, entre quintas, pinhais e pequenas courelas.! O feliz marido da bisavó poetisa, que todos os netos adoravam. Um mito ao lado de outro mito. E irmão (meio irmão), do Padre Manuel Pinto da Silva, que foi fâmulo do Bispo do Porto Cardeal D Américo, primeiro pároco de Espinho e pioneiro fundador de um jornal da sua terra, “A Aurora de Avintes”, de tendência radicalmente monárquica, contra os ventos da República. O avô Manuel contava deste tio impetuoso e prosélito, por quem tinha filial admiração, episódios bem pitorescos. Não era para graças… Eu devo-lhe a leitura do mais fascinante livro proibido que lia às escondidas no sótão d casa dos avós: uma bíblia sumptuosa, com preciosas iluminuras e imagens. O outro bisavô, João Fernandes Capella foi, também, um homem bem-sucedido nos negócios e bem casado com a bisavó Joaquina - a que fica para sempre envolta na suspeita de ter provocado o desentendimento entre Capelas, pais e filho. Casal fenómeno de complementaridade, de tão diferentes que eram, ele um senhor de esmerada educação, sempre elegante e sóbrio, ela uma mulher enorme, enroupada em saias compridas demais, altaneira e introvertida. Das origens dela só sei que era filha de um farmacêutico, (no sentido de ser dono de uma farmácia, em Melres, suponho). E os apelidos Gonçalves da Rocha. Do lado de minha mãe, outro tanto posso dizer. Seu pai enriqueceu, meteoricamente, no “boom” do início do século XX, no Rio de Janeiro. Era um de 17 irmãos. Criança promissora, inteligente e bom aluno, que aparece nas fotos de grupo sempre mais aprumado do que os outros, recebeu, aos 16 anos, “carta de chamada” de um dos mais velhos, João, que já tinha idade para ser seu pai e uma boa posição na sociedade carioca. Com ele terá aprendido a arte de bem gerir negócios, e aos vinte e poucos anos, talvez com apoio do irmão, abriu a sua “Joalharia Aguiar” na Rua do Ouvidor. Na Rua das Flores, no Porto havia a outra “Joalharia Aguiar” propriedade do mano Augusto, de quem era muito próximo. Quando pediu namoro à avó Maria era um jovem milionário de 28 anos. De estatura, mais baixo do que ela, mas bonito, alegre e muito ilustrado, segundo nos dizia, velhinha, viúva há mais de 30 ou 40 anos, mas ainda apaixonada. Do lado gondomarense da avó Maria (os Ferreira Ramos maternos) fica nesta série de retratos “a la minute” uma burguesia comercial, com funcionários públicos, médicos e outros profissionais à mistura e do ramo minhota (paterno) parentela mais aristocrática. O pai foi por muitas décadas o notário de Gondomar, mas mantinha contactos com os primos, um dos quais, filho do Visconde de Paredes, foi protagonista de um breve romance com a avó Maria. Vinha a cavalo visitá-la e namoravam no mirante, sempre com alguém por perto (que denominavam à francesa: “chaperon”) O que aqui vai de heterogeneidade, antes mesmo de chegar à política… e na política, a divisão é ainda maior – há positivamente de tudo. Não há tradição que eu não possa escolher, desde monárquicos regeneradores, (a bisavó notário, o tio bisavô padre, o avô Aguiar) até anarquistas (o tio António, irmão da avó Maria, que foi exilado para São Tomé, durante a ditadura de Sidónio), e outros republicanos perseguidos, com estadas no Aljube ou aposentação compulsiva, (caso do tio avô José Barbosa Ramos, que tinha sido o mais jovem juiz conselheiro do STJ). E muitos outros ativistas, como o Manuel Guedes, que dá o nome à Praça do Município em Gondomar (um tio da avá Maria, ela própria monárquica e salazarista). Na verdade, não segui as pisadas de ninguém, mas o que aprendi sobre todos eles e muitos mais, graças às grandes contadoras de histórias que eram os avós foi a virtude da tolerância. O queridíssimo Avô Manuel Dias Moreira, (o meu maior fã!), era melómano, cinéfilo, ator teatral (do “Grupo Mérito” de Avintes). A profissão, que as escrituras notariais lhe atribuíam era “proprietário”. Não desbaratou a herança, nem a aumentou. A agricultura não o atraía. Arrendou as terras a caseiros, de quem foi sempre bom amigo. E viveu de rendimentos, vivendo bem. Meu pai teve fama de herdeiro rico, mas não o proveito. O declínio geral da agricultura foi o principal fator de empobrecimento súbito, em duas gerações. Algumas das propriedades ainda estão lá e são, para mim, fonte de preocupação e despesa… Não servem para me manter, eu que as mantenho…. Razão de sobra tinha o Avó Manuel quando repetia, aos ouvidos do filho e, depois, das netas: “A única fortuna que quero deixar-te é um curso”. E foi consequente. Todos os descendentes frequentaram, por decisão sua, os melhores colégios privados da região. (meu pai o Colégio dos Carvalhos, a Madalena e eu, o Colégio do Sardão). Ele não o pode fazer, não chegou à universidade de Coimbra, como sonhava - sendo o único filho varão, o pai opôs-se e manteve-o junto a si, na gestão das terras. A sua única aventura no mundo dos negócios (uma moderna loja de tecidos na Praça Carlos Alberto), correu mal. Era o “sócio capitalista”, com o filho a seu lado, e foram facilmente enganados pelo “sócio de indústria”, que, como consumado golpista bem-falante, fez o desfalque da praxe dos e sumiu nas lonjuras africanas – deixando os ricos a pagar a crise. Só sei que se chamava Oliveira, como o herói português dos álbuns de Tintin… A moral desse conto ou parábola familiar manteve-nos, a meu pai e a mim, cautamente a leste de tudo quanto fosse negócio…. É, sem dúvida, atividade muito compensadora, útil à riqueza das Nações e dos cidadãos, mas não é para nós… Nós trabalhámos por conta de outrem – Estado, municípios, instituições… Ou em profissões liberais. De resto, também nos avoengos, não nos faltavam precedentes - bastante mais numerosos nos ramos maternos, o que pode dever-se ao facto de serem melhor conhecidos, pela história oral e em estudos genealógicos. Funcionários públicos, professores, médicos… Mas, também, proprietários abastados, gente endinheirada, enriquecida no comércio… Por exemplo, os antepassados maternos da Avó Maria, o seu avô Ferreira Ramos, com próspera descendência em Portugal e no Brasil. Um dos tios, António Ferreira Ramos, foi dono de grandes empresas em Bajó, casou com Carolina Silveira Martins, irmã do Governador do Rio Grande do Sul, com os mesmos apelidos, um conhecido político do fim do império e da república nascente e tem, hoje, numerosos netos espalhados pelo sul do país e pelo Uruguai. Outro desses tios foi Manuel Guedes (Ferreira Ramos) A vocação empresarial perdeu-se, por completo, nas gerações seguinte, e, com ela, se foram as fortunas, que ninguém verdadeiramente dissipou. Tudo se foi perdendo devagarinho na mudança de conjunturas e circunstâncias. Hoje abundam parentes nas profissões liberais e na função pública. O queridíssimo a metralhar perguntas, tornei-me muito popular, e reconhecida como uma das crianças mais terríveis de sempre, mesmo na família materna. Uma família que tinha pergaminhos demais, nesse capítulo - em São Cosme de Gondomar, na geração anterior (anos 20 e 30 do século passado), tudo o que acontecia de insólito ou heterodoxo era considerado, acertadamente, culpa dos Aguiares. E a tradição vinha de trás, do mesmo ramo familiar, ainda que os nomes fossem variando, devido à discriminações de género na sua transmissão. Herdada, suponho, dessa longa linha de antepassados gondomarenses, possuía inquietante energia e vontade de empreendimento, e mantinha-me em constante movimentação, o que tornava difícil vigiarem-me. A sorte protegeu a audácia, como diz o ditado, porque nunca sofri mais do que escoriações menores, enquanto a minha serena irmã mais nova, Madalena chegou a ser levada para o hospital por ter ingerido veneno de formigas (estávamos, momentaneamente, entregues a uma aprendiza de criada de servir, aceite como competente por tomar conta de um rancho de irmãos pequenos… coisas de outro tempo, outra mentalidade). Eu nunca andei pelos cantos a farejar poções mágicas – era demasiado aérea para isso… - mas corria outras formas de perigo não menores. A pior revê a ver com carros. Adorava tudo o que dissesse respeito a carros. Aos três ou quatro anos, sabia as marcas de todos os automóveis… Quando ia a casa dos tios Lena e David, que moravam no Porto, Rua Firmeza, punham-me à janela para eu exibir essa habilidade em relação a todos os carros que passavam e eu não falhava um só… Paixão que me levou a entrar à socapa na viatura paterna, a sentar-me no lugar do condutor e a copiar os gestos do pai, baixando o travão de mão com a direita, e colocando ambas as mãos no volante quando senti que começou a deslizar. Um atlético Avó Manuel apercebeu-se da manobra, correu para a frente do carro e conseguiu imobiliza-lo. Nem sei como, numa descida íngreme - foi um milagre! Até hoje, recordo o prazer que a brevíssima condução me trouxe e nada mais…. O susto terá sido de tal magnitude, que ninguém se lembrou de me castigar. Já anos antes, ainda com passo incerto, tinha consumado outra fuga para a liberdade de andar só… A minha primeira recordação de mim! Em Espinho, no meio de uma multidão, talvez no vaivém da Avenida 8, ao domingo, ou numa festa da Nossa Senhora da Ajuda. Soltei-me da mão materna, ou paterna, e segui em frente. Dessa vez, o gozo logo cedeu ao medo do desconhecido. Ainda hoje vejo a imagem surrealista de uma floresta de pernas muito altas, entre as quais procurava os pais… A memória fica nessa angústia, não no feliz reencontro, que foi bastante rápido. Não cheguei a ganhar distância, o próprio susto me travou. Nasci na casa da Avó materna, uma “casa de brasileiro” enorme, de cor rosada e venezianas verde escuras, varandas voltadas para o Monte Crasto, cercada por jardins simétricos de rosas, que nas traseiras se continuavam por pomares e vinhas, a perder de vista. Não havia palmeiras…nada que especialmente nos falasse dos trópicos, á exceção um diospireiro gigante, junto ao mirante quadrangular, à face da rua (que foi a Rua Oliveira Salazar e é agora a Rua 25 de Abril) e dois pequenos araçazeiros, um de araçás vermelhos e outro de amarelos. O mítico avô António Carlos Pereira de Aguiar, que fizera fortuna no Rio de Janeiro, morrera, há muito, subitamente, de angina de peito, com apenas 46 anos, deixando uma ainda jovem viúva, e sete filhos, dos quais os últimos guardavam dele poucas ou nenhumas recordações diretas. Mas vivia nas memórias que a matriarca fazia questão de partilhar com os seus numerosos descendentes. O Brasil estava, assim, muito presente no nosso quotidiano, nas histórias, na música, até na gastronomia, da farofa do peru de natal ao chá mate quotidiano. Estes avós tinham sido grandes viajantes, sempre prontos para mais uma travessia do oceano. Alguns dos filhos, a começar pela primogénita Carolina, eram “cariocas”, outros gondomarenses. Até minha mãe, dada à luz em São Cosme, mas concebida no Rio, se considerava brasileira, por ter atravessado o mar Atlântico no ventre materno… A Avó Maria Aguiar tornara-se pessoa muito influente na vila, uma líder no feminino. Foi a viuvez que produziu a cidadã interventiva, desde que procurou na Igreja, e no voluntariado, formas de mitigar a perda de um amável marido com quem fora feliz, em dois continentes. Pertencia às organizações da paróquia, à “Obra das Mães” e outras obras Promovia peregrinações religiosas, serões musicais e o teatro amador no Cine- teatro Nun´Alvares, visitava os presos, tratava da sua reabilitação - a alguns chegava a dar emprego como jardineiros... Não menor influência nos meus anos iniciais teve o Avô paterno, Manuel Dias Moreira, cuja profissão os documentos oficiais identificavam como “proprietário”. Eu prefiro descrevê-lo como grande melómano, cinéfilo e ator de teatro amador (do Grupo Mérito Avintense). Com ele, desde os cinco ou seis ano, aprendi a gostar de teatro, de cinema (operetas, westerns, comédias, nunca filmes infantis…), e do ambiente dos cafés do Porto. A Avó Olívia era tão devota como a Avó Maria. Com ela, não escapávamos da reza quotidiana do terço. Era uma senhora generosa (da sua mão recebíamos a nossa mesada), hospitaleira. e as visitas de senhores padres eram, na sua casa, tão frequentes como na Vila Maria. Uma casa muito diferente, também grande, mas de desenho duvidoso, dando a impressão de que a o núcleo original de dois andares discretos, à face da Rua 5 de Outubro, haviam sido acrescentadas, nas traseiras, divisões de um só piso, ao sabor de passadas necessidades ou fantasias. Nestas duas casas, vivemos, meus pais, minha irmã Madalena (Lecas) e eu até aos meus 8 anos – mais centrados na Vila Maria, mas passando temporadas, férias e fins de semana na margem sul do rio, onde o nosso quarto tinha janelas rasgadas sobre larga curva que percorre, mansamente, entre Avintes e Oliveira do Douro. Uma vista de cartão postal… O verão era passado em Espinho, ora numa pequena casa de praia dos meus bisavós, na rua 7, (que meu pai partilhava com os primos Capelas), ora em andares arrendados, ali por perto, porque éramos fieis à Praia Azul. Meu pai nunca mostrou interesse em ter o seu próprio pequeno lar e a mãe ainda menos. Ele era, desde o início de cinquenta, funcionário do Grémio dos Ourives – adjunto do Secretário Geral, a quem havia de suceder, quando este se reformou, muitos anos depois. Até então o seu vencimento não era esplêndido… Partilhar os casarões da família, coisa desejada por todas as partes, resolvia a questão financeira, significava ter quem cuidasse de tarefas domésticas e, também, das crianças – um trabalhão, pelo menos, no meu caso. Também moramos, depois, uns anos, com a Tia Rosaura, irmã da Avó Maria e, como ela, viúva solitária com amplas divisões ao seu dispor, jardim, criada antiga e um gato preto e branco chamado Lulu. Tornou-se a nossa terceira avó, e no fim da vida, (a meses de celebrar 100 anos, depois de sobreviver a uma tuberculose, curada nos sanatórios da Serra da Estrela), morou connosco no Porto e em Espinho. O renitente casal só arrendou o seu próprio apartamento, por forte pressão nossa. As meninas queriam mudar para a cidade grande... O Porto era a nossa paixão, a nossa cidade, o nosso clube – o estádio das Antas, o cinema Batalha, o Café Guarani, o Imperial, o o Douro, visto das pontes das pontes de ferro rendado, com a marca de Eifel …. Nada contra São Cosme, nesse tempo, terra lindíssima, com o se famoso Monte Castro, que da varanda maior da Vila Maria se via esplendorosamente perto, como num filme em cinemascópio, das primeiras filas da sala… Ou Avintes, a casa da rua 5 de outubro, e a beleza rural das propriedades ribeirinhas do Avô Manuel, que tanto gostava de visitar pela sua mão. E a Avó Olívia e os seus gatos franceses, enormes e peludos. Adorávamos os Avós, os tios, um viver muito convivial, com gatos e cães, e muitas passeatas. Resumindo, numa frase batida: “tive uma infância feliz”! Era a favorita da Avó Maria e do Avô Manuel. Com cada um deles, fora de portas, portava-me bastante bem, porque me levavam ao Porto, para espetáculos (o Avô) ou para fazer compras e lanchar na Pastelaria Villares (a Avó Maria). Fora deste contexto, testava a paciência dos adultos - criança irrequieta turbulenta - na linha dos tios Aguiares, que granjearam tal fama nos bancos da escola, que tudo o que acontecia de pior ou mais insólito na terra lhes era assacado, em regra, justamente. Mantinha-me em contínuo movimento, saltos e correrias, com larga margem de liberdade na Vila Maria, que era totalmente cercada de muros altos. A Avó tentava moderar-me, ensinar-me o recato e as boas maneiras, femininas. Dizia-me, vezes sem conta, "as meninas não fazem isso" - "isso" sendo por exemplo, subir às árvores, saltar dos elétricos em andamento ou jogar futebol com os primos e os vizinhos... Eu gostava imenso da Avó, mas não seguia esses bons conselhos. O plural: "as meninas", levava-me a reagir, espontaneamente, a mostrar que as "meninas" eram tão capazes como os rapazes de "fazer isso". Assim, aos seis ou sete anos me converti em feminista praticante, com a emergente consciência da existência das questões de género .... Paradoxalmente, os homens, o Pai e o Avó Manuel eram fãs das minhas proezas desportivas ou escolares, por igual. Incentivaram-me ao estudo. A sonhar com um futuro profissional. Estávamos nas lúgubres décadas de quarenta e cinquenta, mas nunca o paradigma salazarista da "fada do lar" esteve nos meus horizontes - ou nos deles. Teria sido, certamente, uma fada falhada - desastrada de mãos, impaciente e rebelde de espírito, e, de longe, a mais feia criança de uma família de gente invulgarmente bonita. Contudo, plena de autoconfiança, exuberante, fantasista, tagarela (uma chata…), dotada de prodigiosa memória - muito antes de ir para a escola, recitava, com perfeita dicção “O Melro” de Junqueiro e todas as lengalengas que a Avó Maria me ensinava. Não me identifico com a criança que fui – nas antípodas do que penso que sou, desde a adolescência, ou da infância tardia, onde começo a reconhecer-me. Todos punham em mim exageradas expectativas, a que não havia de corresponder. Fui “normalizando” com o passar dos anos entrei num gradual declínio, que se foi continuando. Um amigo disse-me um dia, em jeito de consolação: “Não te lamentes. Se fosses igual a essa menina espertalhaça eras insuportável”. Os homens, (não todos, mas os melhores) sempre me compreenderam. E assim, graças a eles, o meu feminismo esteve, desde o início, na linha de pensamento de uma Ana de Castro Osório, mesmo que, nesse tempo, não conhecesse o seu nome (como Mr. Jourdain, que fazia prosa sem saber...). Os homens foram, assim, aliados - muitos, incluindo numerosos tios e primos, e, mais tarde, professores de Coimbra (Barbosa de Melo, Eduardo Correia, Ferrer Correia…), os meus” legítimos superiores”, de António da Siva Leal e José Magalhães Godinho a Mota Pinto e Sá Carneiro.

quarta-feira, 9 de novembro de 2022

NESTÓ - OS 79

Há dois dias, o Nestó festejou os 79 - uma data ainda refrescante... Dei-lhe os PARABÉNS! O pior é fazer 80. Já o preveni...

terça-feira, 6 de setembro de 2022

LELÉ OS 60 ANOS

GONDOMAR, 4 DE SETEMBRO DE 2022 UMA BELA FESTA DE FAMÍLIA, CHEZ LELÉ! (ficou adiada a festa no salão da Ordem dos Médicos ou em outro - no pós Covid está tudo ocupadíssimo... a recuperar "le temps perdu"), Imagens só tenho estas, tiradas pelo meu telemóvel...

domingo, 28 de agosto de 2022

MÃE - 102 ANOS

Que pena, não pudermos já contar com a sua alegria de viver, a sua impetuosidade, a sua assumida extravagância. Única e inimitável!

segunda-feira, 6 de junho de 2022

PAI 102 ANOS

Li um dos seus sonetos, em voz alta...