terça-feira, 15 de outubro de 2019

POSTAIS Tios Alberto e José Barbosa e José da Silva Maia


Hernani Maia

segunda, 14/10, 19:13 (há 19 horas)
para mim
Bom dia, Manuela,

Também muito aprecio a coragem de Joacine Katar Moreira. Espero que ela e as demais deputada mulheres e negras contrabalancem a entrada da extrema direita no Parlamento. Li que a melhor resposta às previsíveis investidas desafiadores de André Ventura na AR será a não resposta, o silêncio, alguma ironia mas não respostas à letra para não dar razões de contra-resposta do outro lado. Penso que sim, que será a melhor estratégia. Espero, tenho a certeza, que Joacine Katar Moreira, Beatriz Gomes Dias e Romualda Fernandes mantenham a sua compostura e a compostura do Parlamento quando forem alvo dalgum comentário ou interpelação da extrema direita. Como o teu, o meu Pai foi gago, uma gaguez que ele própiro foi vencendo ao longo dos anos. 

Aos dois anos o meu Pai embarcou para o Rio de Janeiro com a sua Mãe, em 1890, um ano depois da implantação da república no Brasil. Iam viver com um irmão da Avó, solteiro, armador de navios, creio, uma tradição de família em que ele nascera rico mas em que veio a conhecer a pobreza. O Tio Júlio pertencia à maçonaria, tinha uma empresa e vivia bem. O meu Pai cresceu num chalé na Rua Chaves Faria, junto ao Largo da Cancela, por detrás do Palácio Imperial em São Cristóvão. Desde pequeno se mostrou uma criança irrequieta, dir-se-ia hoje que era caracterizado por TDAH (transtorno de deficit de atenção e hiperactividade). Na sua sua infância o ambiente de euforia revolucionária pós independência deveria ter sido qualquer coisa parecida com o pós 25 de Abril em Portugal, mas à escala brasileira. O Tio Júlio optou por meter o sobrinho no Colégio Militar, que era relativamente próximo do lugar onde viviam e, quando se tornava mais irrequieto ou distraído, ameaçava-o de chicote — creio mesmo que algumas vezes teria ido a vias de facto. Até aos 12 anos de idade, o Pai terá vivido sob o terror dos castigos do tio e a incontornável tendência para ser como era, que ninguém entenderia: seria capaz de fazer as mais variadas coisas, mas não estudar, pelo que tinha maus resultados no colégio, onde era colega de nomes conhecidos na política e na Revolução, como foi o caso de Floriano Peixoto, filho de pai do mesmo nome que, na qualidade de general e depois marechal, fora um dos presidentes de curta duração da nova república, fundador de Florianópolis (que já existia no Rio Grande do Sul, mas com outro nome: Desterro). Aos 12 anos quando o Tio Júlio morreu, o Pai ficou sendo o “homem da casa” e, sob a passividade e fraqueza da Avó, passou a ajudar a gastar a fortuna que o tio deixara: compra uma boa "câmara fotográfica”, carabina para ir à caça grossa na floresta, bicicleta, piano (que estuda por conta própria para impressionar o seu público — não sabia ler a pauta, mas dedilhava com imensa destreza e tocava de ouvido, sempre música clássica, tocou até a artrose nos dedos lho impedirem). E fazia natação, patinagem  e canoagem… Um dia o sócio do Tio Júlio propôs à Avó que investisse num negócio de lavandaria a vapor as acções que herdara do irmão e não terá tardado que a lavandaria falisse, era luxo demasiado para a época e não resultou. Então, o Pai acordou para a vida e decidiu-se pela carreira da Marinha, mas já tinha passado a idade para entrar no respectivo curso. Não tinha importância, naturalizou-se brasileiro com menos um ano na sua idade e atirou-se ao estudo como um louco, para conseguir passar o exame de acesso. Quando chegou ao fim do ano perdeu repentinamente a fala: stress pelo excesso de trabalho e de ansiedade (aconteceu-me uma coisa semelhante no no meu 7.º ano, passei de pior aluno para aluno de média de 14 mas, por stress e excesso de trabalho, ganhei uma agorafobia que durou muitos anos). Não pôde apresentar-se a exame e no ano seguinte já teria ultrapassado a nova idade para poder entrar. Sem estudos qualificados e sem dinheiro, regressaram a Portugal em 1905, ia o Pai fazer 18 anos (terá, assim, co-habitado no Rio de Janeiro com o teu Avô António aproximadamente entre 1896 e 1905). Com perseverança e alguns exercícios de autodomínio foi vencendo, muito lentamente, a gaguez. Ainda lhe conheci alguma gaguez, mas apenas quando se irritava; de resto não era perceptível, mas quando nasci o Pai já tinha 46 anos. Não imaginava que o teu Pai também sofreu do mesmo.

Agora um pequeno parêntesis a propósito duma interrupção em conversa com a Raquel. O rei Vítor Emanuel II de Itália teve duas filhas (Maria Clotilde, que casou em 1859 com Napoleão José Bonaparte, e Maria Pia, que casou em 1862 com Luís I de Portugal) e três filhos (Humberto, que foi rei de Itália a partir de 1878, Amadeo, duque de Aosta, e Otón, que faleceu muito jovem). Aos 22 anos, Amadeo veio a casar em 1867 em Turim com Maria Vitória, de 19 anos, contra a vontade dos pais desta, de origem aristocrática do Reino de Sardenha. Após a proclamação da Constituição espanhola de 1869, que restaurou o regime monárquico, em 1870 o Príncipe Amadeo de Aosta foi convidado para assumir o reino de Espanha com o nome de Amadeo I. Posteriormente, em resultado de graves tumultos que tiveram lugar em Madrid a favor da implantação da república (como agora em Barcelona), em 1873 Amadeo abdicou e, com Maria Vitória, refugiou-se em Portugal sob a protecção do cunhado D. Luís I; depois partiram para Turim, onde em 1876 Maria Vitória veio a falecer de tifo. Assim, Amadeo de Aosta decidiu voltar a casar, tendo escolhido a princesa francesa Maria Letícia Bonaparte. O casamento teve lugar em 11 de Setembro de 1888 no Palácio real de Turim. Os reis de Portugal, D. Luís I e D. Maria Pia, partiram entretanto para Itália para assistirem a este casamento. Sem ter nada que ver com isto, o meu pai nasceu em Julho de 1888, quando a família real se preparava para partir, e ficou a chamar-se Amadeu; era duas semanas mais velho do que a tua Avó Maria…

Notei que os primeiros postai que enviaste datavam de 1908 e 1909, quando os teus Avós ainda não tinham casado mas estavam noivos e o teu avô não se encontrava em Portugal. Para em 1908 já estarem noivos, oficialmente, o que lhes permitia a intimidade de tratamento que neles se lê, teriam de ter-se conhecido antes de 1908 e durante uma visita do teu avô a Portugal. Voltando àquela fotografia de 1904 que aqui mais uma vez incluo, nela encontramos as meninas Lopes da Gandra, filhas de José Martins de Almeida Lopes (da Pedreira) e de Violante Pereira Moreira dos Santos (Amélia e o marido, José Lopes Vieira, casados nesse mesmo ano, Antónia, a minha avó materna, ainda solteira, e Flórida, que em 1908 iria casar com Américo Nogueira, seu vizinho na Gandra; entre elas está a prima direita de Quintã, Maria Judith Martins Lopes, filha de Damião Martins de Almeida Lopes (da Pedreira) e de Emília Pereira Ramos — Ramos, seria dos teus Ramos? — que iria casar três anos depois (2-2-1907) com Raúl Ramos Lobão; vê-se também José da Silva Maia, meu avô materno, que viria a casar quatro anos depois com Antónia dos Santos Lopes, aqui na fila da frente (já namoravam e junto uma carta de 21 de Outubro desse mesmo ano de 1904 assinada pela minha Avó Antónia). Retomando a fotografia, temos as meninas Barbosa Ramos (Maria e Glória) e os seus manos Mendes Barbosa (António e Alexandre) e, finalmente, António Lobão, possivelmente o namorado da tua Tia Avó Glória. E sobra uma Florinda… Seria Gracinda (Pereira Aguiar, um ano mais velha do que a minha Avó Antónia, ao seu lado), a tua Tia Avó (depois Saraiva) por quem o teu Tio Avô Alexandre teria tido uma paixoneta?

Que se pode deduzir daqui? Todas as senhoras desta fotografia de 1904 estavam casadas em 1910. Se em 1904 a tua Avó Maria já tinha encontrada e estava comprometida com o teu Avô António, provavelmente ele estaria ausente no Brasil e por isso não poderia estar na fotografia. Se ainda não se tivessem encontrado e conhecido, há nesta fotografia um mancebo que conhecia ambos, o meu Avô José da Silva Maia. De facto, ele namorava uma das meninas da Gandra e era assíduo frequentador daquela casa, pois era afilhado da minha bisavó Violante (quer dizer que veio a casar com uma filha da madrinha). Como a Avó Violante era tão próxima da sua meia irmã Ana Pereira, então José da Silva Maia também teria de conhecer, muito bem, os filhos e filhas de Ana Pereira; ele era um ano mais novo do que Alfredo Pereira Aguiar, dois anos mais velho do que Doroteia Pereira Aguiar e seis anos mais velho do que o teu Avô António. Mas, o que é mais interessante e completa a história, é que ele era igualmente amigo dos teus Tios Avós Alberto Mendes Barbosa e José Barbosa Ramos, com quem dez anos antes desta fotografia (1894 e 1895) trocava os postais que aqui reproduzo (foi o meuTio Guilherme que fez o favor de digitalizar estes postais e a carta da minha Avó, mas infelizmente a resolução é fraca). Nesse tempo o meu Avô José, com cerca de 20 anos (nascera em em 1874), estudava no Colégio de São Gonçalo, em Amarante, como se pode ver nos endereços.

Do livro que há dez anos escrevi sobre o meu Pai, respiguei o seguinte parágrafo, que se referia ao padre Augusto da Silva Maia (que era primo direito do meu Pai):
“Não é de estranhar que em 1906 fizesse parte da Mesa Administrativa da Irmandade de Santo Isidro e da Nossa Senhora da Lapa do Monte de Crasto (Fig. 2.43). Dela faziam também parte José, seu irmão, e o sempre presente farmacêutico e fotógrafo Agostinho Cardoso. De resto, tanto José como Augusto eram populares em S. Cosme, onde reuniam um considerável número de amigos (Fig. 2.44). Entre eles contavam-se também José Silvestre Cardoso (Fig. 2.45), irmão de Agostinho Cardoso, José Barbosa Ramos (Fig. 2.46) e os irmãos Alberto (Fig. 2.47) e Alexandre Mendes Barbosa. Alguns destes amigos provinham de famílias razoavelmente abastadas, o que lhes permitiu ir frequentar Direito em Coimbra. Foi o caso  de Silvestre Cardoso e o de Barbosa Ramos, que vieram a ser, respectivamente, juiz desembargador e juiz conselheiro. E mais tarde Augusto iria casar muitos deles.” Se eles eram amigos dos teus tios avós, certamente também seriam amigos da tua Avó Maria, aqui na foto de 1904 (esta foto é um portento de revelações!), um mensageiro entre Quintã (em solteira a tua Avó Maria vivia ema Quintã?) e a Gandra.

Proponho, portanto, Manuela, que o meu Avô José da Silva Maia tenha sido um verdadeiro fio condutor para o encontro entre os teus Avós Maria e António. Se nada mais encontrares sobre eles anterior a 1908, então é bem provável que este pic-nic de 1904 no Monte de Crasto tenha sido anterior, mas não muito, a eles se encontrarem.

Com um abraço de acrescida amizade, enraizada desde 1894 também do lado Mendes Barbosa,
Hernâni


Carta assinada por Antónia dos Santos Lopes em 21 de Outubro de 1904, em que leio:
“José / Se a tua única aspiração nesta vida é conseguir a minha companhia, e sendo isto tão fácil, imagina meu sempre querido, como sinto um inefável prazer, uma verdadeira felicidade, deixando-me viver sob a dulcíssima esperança que hei-de chegar a pertencer-te; mas é incalculável a dor agudíssima a que […] o meu […] quando penso se terei de sofrer a tua ausência por largo espaço de tempo. / Crê, meu sempre querido, que espero ansiosa o dia felicíssimo em que entregar-me toda a ti e tendo a certeza firme de que só a mim pertences, poderei então considerar-me a mais virtuosa entre todas as mulheres. / Finalizo esta, pedindo-te, meu querido, que não mais te esqueças de mim e aceites, acompanhado duma viva saudade, o mais puro, sincero e eterno da tua, sempre tua, Antónia”.


Postal para José da Silva Maya assinado por José Barbosa Ramos em 10 de Maio de 1894


 Postal para José da Silva Maya assinado por Alberto Mendes Barbosa em 14 de Junho de 1895

Postal para José da Silva Maya assinado por Alberto Mendes Barbosa em 25 de Junho de 1895

quarta-feira, 9 de outubro de 2019

MEMÓRIAS DA MÃE - VILLA MARIA E COLÉGIO DA ESPERANÇA (a 23 de julho)



II - Apesar da tragédia da morte do pai, a vida no espaço privilegiado que ele criara, pensando nos filhos, continuou, do modo que ele quereria para eles, Com a viúva sempre vestida de preto (só na velhice passou a usar, também, o cinzento e o roxo, uma das suas cores preferidas), repartindo a sua missão de mãe, severa (muito mais do que fora, na vida de casada) , e os deveres religiosos e cívicos, que passaria a assumir, crescentemente, e a  tornariam personalidade influente, por si, não por ser a filha, a irmã ou a esposa de homens importantes na vila... A Senhora Dona Maria Aguiar, nome grande, líder respeitada por todos. A  presença constante amiga e complacente dos tios, Alexandre e Hermínia, Rozaura e Manuel compensava, largamente, as suas ausências por uma boa causa. Os mais velhos sentiam mais o vazio que, para os outros tios, sobretudo o Tio Alexandre, ocupavam. Carolina era mais próxima do pai, a menina a quem ele nada recusava, quando os seus lindíssimos olhos verdes, tão parecidos com os dele, se enchiam de lágrimas. Com os argumentos de choros e lamentos, Carolina conseguiu, até, que ele a retirasse do colégio, de onde lhe escrevia cartas pungentes, pintando o ambiente  do internato de excelência, com a cores de  um inferno, ou de um campo de concentração de meninas abandonadas.... Pouco antes dele desaparecer, já estava ela de volta a São Cosme, dedicada ao piano, às obras pias (a única a seguir o exemplo materno) e desfrutando, sem mais compromissos, as alegrias dos jardins da Vila Maria...  Talvez para além dessa prosa infantil, delirantemente excessiva, dirigida ao pai tenha escrito sobre ele poemas, como os do irmão António Maria. Só os deste, porém, se conservaram, único testemunho sentido e surpreendentemente realista de um quotidiano sofrido, que só o tempo foi suavizando. Não faltaram a uma bonita e virtuosa mulher de 36 anos, os pretendentes. Não vacilou, por um momento sequer. na decisão de se manter só. O que, por sinal, os filhos unanimemente lamentavam, sobretudo no que respeita a um de que  todos gostavam - o melhor amigo e associado, em negócios de bolsa, um banqueiro chamado Cunha, com quem, em 1926, estava prestes a avançar para uma sociedade financeira. Segundo diziam, até fisicamente era parecido com António Aguiar. Conviveu muito com o casal e os meninos, era padrinho da Lolita,  gostava de todos e todos gostavam dele. Um ou dois anos, depois da morte do marido parecia solução caída do céu -  um segundo pai  aceite e desejado, um marido gentil. Já todos de meia idade, quando o assunto vinha à conversa, ainda se interrogavam: "Porque é que a Mamã não casou com o banqueiro?" e logo concordavam que fizera muito mal. A mãe, nessa altura também já avó, quando inquirida, uma vez ao serão, abriu o véu do mistério, ou se não mistério, pelo menos facto, facto consumado, decisão definitiva: "Ele era solteiro, mas tinha uma mulher, brasileira". Nada de inesperado e, se estava disposto a deixa-la, não parecia obstáculo de monta... De qualquer modo, a dúvida persistiu e jogou, forte, contra ele... Ou o que contou mesmo foi um amor perdido, mas insubstituível... Na recordação do pais, cúmplices e felizes o relato de qualquer um dos filhos, acabava sempre a realçar mesma tónica: "o Papá. não sabia o que mais fazer por ela. Adorava-a, não queria que se incomodasse com nada. Insistia em que aceitasse mais uma empregada  - no Brasil eram aos montes, e, em São Cosme, pelo menos três, mais o criado, que dormia fora, na chamada "casa do forno", que era ampla. Ao tempo da sua morte o criado era um João Pereira, certamente muito dedicado, pois é referido numa notícia de jornal como sendo um dos homens que teve a honra de transportar a urna funerária em um dos vários turnos do percurso até à Igreja.
 Mariazinha e Lolita, foram, pela pouca idade, naturalmente, as mais alheias ao peso da perda, que os demais suportaram tão dramaticamente. Apesar da diferença de dois anos, eram inseparáveis, comportavam-se como se fossem gémeas. E até aos 10 anos, pareciam gémeas, quase da mesma altura, a mais  velha a deixar antever a sua pequena estatura -  nunca havia de ultrapassar um metro e meio, que, em adulta, compensaria usando sapatos elegantes, com saltos enormes. Quando fizeram a comunhão solene, juntas, uma esperando pela outra, já Lolita a começava a ultrapassar a mana. Contudo, em energia, ginástica e espírito de aventura eram iguais. Dividiam, entre si, o terreno da quinta e as árvores, que passavam o dia a trepar, apenas por diversão ou para comerem os frutos, em quantidades astronómicas e, por vezes, ainda verdes. Quando queriam saborear os frutos da árvore da outra, pediam licença, que era sempre dada. E não subiam somente pelos troncos das árvores, também ousavam muros e telhados, os da casa do forno ou da casa da eira, de onde tinham acesso aos deliciosos araçás no alto de ramos demasiado frágeis para porem o pé. Às vezes, eram descobertas pela Tia Hermínia que das janelas do 1º andar de sua vivenda, avistava grande parte da metade norte dos jardins e da área de hortas e vinhas e lhes gritava. de longe, que descessem , de imediato. Elas obedeciam, prontamente,  mas só enquanto a tia se mantinha no "posto de observação". Enfim, meninas terríveis, rivalizavam em proezas atléticas, das quais escaparam ilesas, com um pouco de sorte, com os rapazes, como é óbvio, não eram menos aventureiros e muito piores no campo fértil de asneiras, desordens e partidas de mau gosto, que os tornaram famosos desde a escola primária aos dos colégios. O mais imaginativo e empreendedor era o mais velho, Manuel Joaquim. Tudo o que de insólito acontecia no estabelecimento de ensino lhe era atribuído, ou mais genericamente aos "Aguiar" ,e a mãe, a cidadã exemplar, passava pelo suplício de ter de reconhecer os agravos, indemnizar as vítimas, quando era caso disso, e castigar os infratores. Os desatinos eram de natureza muito variável - urinar nos tinteiros, defecar nos trombones da banda de música, partir vidros de janelas à fisga (campeão de pontaria era o só aparentemente pacato António Maria), fazer explodir laboratórios de química (o Jo´se Augusto, que detinha o record de expulsões de um colégio a seguir ao outro). Das meninas apenas a Lolita beneficiou de uma expulsão do Colégio da Esperança. já com 16 ou 17 anos, ficando em casa, de vez, como queria...
Na verdade, era em casa que todos gostavam de estar. A mãe impunha disciplina rígida, mas estava fora. entregue às obras de caridade. durante uma boa parte do dia e não deixava substituto com o mesmo pulso e intransigência. Os tios eram mais benevolentes e as criadas invariavelmente cúmplices das meninas. Aliás, a principal preocupação materna terá sido o não as deixar sair da "zona de segurança" (ou vigilância), dentro dos limites da propriedade. Daí, quase só saiam para a missa ou visitas à família. Contudo, a Vila Maria era como uma ilha auto suficiente onde não lhes faltava nada e onde podiam receber primos e amigas (selecionadas) constantemente, ou seja, uma festa! Prisão era o colégio... De resto, a mãe, ultrapassada a fase inicial e mais traumática da viuvez, recuperou a vivacidade, o gosto pela música, canto, piano, pelo convívio e movimento, ainda que muito centrado no ativismo católico, na salazarista "Obra das Mães, nos peditórios para a Liga dos Combatentes ou para os bombeiros, ou quaisquer formas de benemerência", Organizava excursões a Fátima, a Celorico, à campa de Frei Bernardo, ao encontro de bondosa Sílvia Cardoso... Comprou um piano (Riese), que veio da Alemanha numa gigantesca caixa de madeira, que foi desmantelada, com verdadeiro "suspense" e aparato, no jardim, no largo amplo entre os roseirais simétricos. Pelo visto, não abundavam pianos na vila e aquele era, com frequência emprestado ao teatro da Ala Nuno Álvares para espetáculos (no tal insólito transporte de carro de bois, que exigia afinação do pesado aparelho em cada uma dessas operações...). Teatro amador era. assim, outra das escapatórias permitidas ás meninas, que tocavam, cantavam e representavam primorosamente. Algumas peças saíram da pena do polivalente Manuel Aguiar, que para além de desordeiro imaginativo, era também poeta, dramaturgo satírico e brilhante aluno (do liceu e, depois, da Faculdade de medicina). Uma das suas peças célebres, foi "o Nabo", um dos ex-libris rurais de São Cosme... Noutros casos eram simplesmente atores, contracenando com os melhores amigos, nomes que nos habituámos a ouvir nas rememorações desses bons velhos tempos ou que vieram a ser parte da família, pelo casamento. Assim, vemos num programa extenso que começava por uma paródia à " ceia dos cardeais" (onde atuava Maria Ernestina da Ascenção Fonseca), continuava com "O pavão depenado"", onde Manuel Barbosa de Aguiar e Eduardo da Ascensão Fonseca, futuros cunhados) desempenhavam o papel de estudantes. que, de facto, eram. Na 3ª parte, "Acto de Variedades", entravam também em cena os manos António e José Aguiar e, na 4ª parte "Senhoras e Criadas" vamos encontrar a lindíssima Clara Pereira de Sousa, outra futura cunhada, que, talvez, já fosse namorada  e iria ser a Mulher de Manuel... A música,"Viúva Alegre" e outras alegres sonoridades . foi executada pela "Tuna União de Gondomar" que se apresentava em público pela primeira vez. As manas "gémeas" ainda eram, nesta época, jovens demais para os papéis disponíveis - brilhariam, também, em palco, alguns anos mais tarde. Maria Antónia sempre sonhou ser atriz, porém não teria, nunca, autorização para ir além do palco da "Ala"... Ambição não lhe faltava. Como pianista há indícios seguros de que poderia ter feito carreira. Um namorado (não oficialmente namorado, mas, por algum tempo, quase a sê-lo), o  compositor e maestro Fernando Marques Ribeiro, chegou a convidá-la para dar um concerto com ele no Rivoli do Porto, considerava-a uma intérprete talentosa... Um sonho impossível....

O Colégio da Esperança
Foi, de certo modo, o contrário do título, um lugar de alguma desesperança... Maria Antónia tinha estado dois anos num internato de freiras e só entrou no Esperança, juntamente com a Lolita, quando esta terminou a primária. Ambas, lá dentro, se sentiam confinadas, presas e frustradas, elas criadas na liberdade de saltar sobre telhados e árvores, de correr velozmente pelas veredas do jardim  e pelos carreiros da quinta, de brincar, sem regra nem horários, por recantos da casa, mirantes, esconderijos. À solta, como se estivessem num micro  sertão... 
Não é de admirar que a reação de ambas fosse idêntica. choravam noites inteiras, até caírem no sono profunda da infância. Ficavam em camas seguidas, Planeavam fugas que nunca levaram a cabo, (talvez por saberem que seriam recambiadas de volta, depois de castigadas, sem dó nem piedade (já não tinham o pai para se comover com os seus tormentos e lamentos. Uma via de escape era a escalada dos muros da quinta. outra a capela que dava acesso à liberdade, por uma sólida porta com grades, fechada por uma enorme chave de ferro. Era o meio mais prática e, uma vez, quase o iam fazendo, e foi a colega Maria Laura Horta que as convenceu a desistir... Não se sabe como tencionavam chegar a Gondomar, se a pé, fazendo uns dez ou doze quilómetros, se utilizando,o elétrico. Seria o mais fácil, não lhes faltava dinheiro para pequenas extravagâncias. Sempre que partiam o Tio Alexandre dava 20 escudos a cada uma, Servia-lhes , sobretudo, para encomendas de chocolates, feitas a uma intermediária autorizada.. Outro plano de deserção, mais discreto, mas igualmente inviável, era engendrarem uma doença, uma constipação, para o que andavam de meias e soquetes molhados. Eram demasiadamente resistentes...
Da Esperança, no centro do Porto, a poucos quilómetros de São Cosme, só iam a casa nas férias, Páscoa, verão, Natal, só recebiam vistas à quinta-feira, a mãe, o Tio Alexandre. Nos últimos anos, depois do tio autêntico, também o namorado da Lolita, o Eduardo Fonseca, que era mais velho e parecia ainda mais velho, e se fazia passar por tio, sendo admitido na sala de vistas, nessa venerável qualidade, com natural permissão para dar um beijo na face à falsa sobrinha, qua aparecia, juvelimente, de lacinho vermelhos no cabelo e soquetes ou meias pelo joelho - vermelho era a sua cor preferida, como o amarelo era a da irmã...)  Numa dessas quinta.feiras, a mãe não pode visitá-las, porque estava doente e mandou em seu lugar o Manuel Joaquim com os presentinhos do costume (queijo, marmelada, bolachas chocolates...). A certa altura, subiu a um banco, desatarrachou uma lâmpada e meteu-a no bolso, deixando as manas apavoradas. Mas não o conseguiram arrancar-lha. Não se sabe a razão daquele insólito gesto - talvez uma aposta.
Todavia, no novo habitat, não lhes faltavam amigas, entre colegas e professoras. De qualquer modo, o serem chamadas "os galos doidos" pode dar a ideia precisa e concisa da fama que, com proveito, por lá grangearam. Entre as colega Cavalier (uma das poucas alunas dessa época que faria carreira como médica distinta), Renia Finkelstein (que veio muito pequena da Polónia, de onde trouxe muitos "pins", que lhe oferecia) a Zita Seabra (muito bonita, loira, de olhos azuis, mãe da Zita Seabra, antiga deputada do PCP), Fernanda Málen (que haveria de professar como religiosa), a Olímpia e a Julieta (com quem continuaria a conviver, já depois de casada, em Espinho, onde elas tinham casa de praia), a sensata Maria Laura, que lhes impediu uma fuga destinada a fracasso final,  Manuela Abrantes (aluna externa, que as convidava para festas, numa belíssima casa, ali bem perto . ocasião para saírem da prisão por umas horas, com autorização da mãe, primorosamente falsificada). Curiosa a quantidade de nomes estrangeiros, a dar o toque cosmopolita a um colégio bem conceituado e bem situado, onde as filhas da burguesia se misturavam com meninas orfãs, de qualquer classe sócio-económica. Muitas eram do litoral, havia um importante contingente de Ílhavo, outras de vários pontos do norte e nordeste português. Olímpia e a irmã mais nova, Julieta, por exemplo, eram transmontanas, que veraneavam em Espinho, Não era desse tempo o convívio à beira-mar com as Aguiar, que sempre arrendavam casa na Foz velha, em agosto.
De todo o vasto edifício colegial, as melhores recordações da Mariazinha vão para a sala de piano (as de Lolita, certamente, para a sala de visitas, onde namorava, disfarçadamente, com Eduardo, o futuro marido). O piano, e Chopin, não ainda os rapazes do seu tempo, eram a sua paixão.. A Profª Margarida Portela uma extraordinária executante e pedagoga faz parte desse mundo de memórias. Considerava-a uma aluna muito especial, uma grande pianista em prespetiva. Ofereceu-lhe as valsas de Chopin, com dedicatória. Muitas décadas depois, deu-as à única música da família da nova geração, a Sameiro (que terminou, em simultâneo, os cursos de Medicina e do Conservatório de Música), mas esqueceu-se de copiar a dedicatória, e sempre lamentava o esquecimento. Em programas de festas, as pianistas eram sempre a Maria Antónia Aguiar e a Amélia, uma colega de Avintes - até chegaram a tocar a quatro mãos, Amélia morreu jovem (mais uma vítima da tuberculose, como a inesquecível Tia Glorinha). Nas temporadas que passava em Avintes, depois de casada, a Maria Antónia recorria a uma boa costureira da terra, muito engraçada e bisbilhoteira, que conhecia meio mundo e logo descobriu, em conversa, como descobria tudo o mais, que tendo a nova cliente andado no Esperança fora contemporânea da saudosa Amélia, para cuja mãe fazia os arranjos da roupa e a quem prontamente transmitiu a novidade. Foi a mediadora de um primeiro convite para a Maria Antónia a visitar, seguido de vários outros. Morava, por acaso, muito perto dos seus sogros, Para ela, abria o piano de Amélia, que mais ninguém tinha tocado desde a sua morte,   e ficava a ouvi-la, encantada... 
A professora Margarida era muito bonita e tal como aluna gondomarense, muito míope. Esta, além de míope, condenada a óculos de lentes grossas, (que, por vaidade, tirava sempre que podia, sem risco de tropeçar e cair) era praticamente cega do olho esquerdo, o mais azul, contrastando o direito, esverdeado. Nada que a incomodasse, bem pelo contrário. Chamava mesmo a atenção dos pretendentes (no plural, desde cedo) para a singularidade. Prezava essa diferença, que, contudo tanto incomodara o pai, quando primeiro a detetou, dizendo à mulher, atónito: "Maria, a menina tem um olho de cada cor!". Não era só questão de cor, era também de visão, e grave. A anomalia foi descoberta só na escola e já era tarde para recuperar o olho azulado, que piorara gradualmente, até deixar que o nervo ótico sofresse atrofia irreversível, sem qualquer sinal exterior de declínio, tão brilhante e expressivo como o outro, o verde, que lhe deu, com lentes uma visão completamente  normal.... 
Desastre  no colégio, houve-os. Nem todas as meninas era apenas mal comportadas,  como os "galos doidos", algumas entravam no mundo da criminalidade - ladras. Há sempre uma ou outra ladra, nos melhores ambientes. Imprudência materna, deixar as meninas levar consigo, jóias de valor estimativo.  E, assim, lhe roubaram-lhe uns brincos lindíssimos que tinham sido da Tia Glorinha, dados pela Tia Rozaura. E ela até viu, a rapariga a mexer nas suas gavetas. Mas hesitou - mais expedita a escalar telhados do que a denunciar colegas. Depois, a Miriam Cavaliere (futura médica), que também era amiga da vigarista, pediu-lhe que se calasse. E, com acedeu, nunca mais recuperou os brincos, nem os esqueceu...A ladra não parou por aí e acabou por ser chamada a capítulo, e expulsa, mas sem devolver os famosos brincos. Tinha sido uma espécie de ave de arribação que passou pelo colégio apenas no 3º ano do Liceu, durante o qual ficou no dormitório ao lado da Mariazinha - foi-lhe fácil observar os seus movimentos, saber onde guardava os pertences, em gavetas sem chave. Do outro, estava uma grande amiga a Fernanda Málen futuramente freira)
Anos mais tarde, numa reunião de antigas alunas, olhou em volta e reconheceu a ladra. Talvez tenha sido nessa ocasião, décadas depois do facto consumado, que a Miriam lhe pediu que fizesse silêncio sobre esse escândalo do passado distante... faz mais sentido, pois Miriam era exigente e frontal, não uma "passa culpas", mas mais pragmática do que a vítima do delito..Poucas vezes a Maria  Antónia is a essas reuniões, que achava depressivas. Perguntava por esta ou aquela amiga e respondiam-lhe "morreu", "morreu". Com poucas exceções, como a Miriam, estavam todas irreconhecíveis, pareciam mais muito mais velha do que elas, que aos 90, ainda tinha a vitalidade dos 60, sem rugas, sem doenças visíveis e sem peso a mais...
Os dois dormitórios, o das pequenas e o das veteranas, eram vigiados por uma encarregada, de nome Beatriz,estavam separados pela sala de piano, aquele completamente aberto, sem divisórias, este  com a privacidade relativa de cortinas que podiam fechar-se. A convidativa sala de piano, onde se imaginava num salão de concertos, sonhando a sua utopia .Os únicos palcos que a mãe lhe permitiu pisar foram os do Teatro Nuno Álvares  e os do colégio, mas, pelos anos fora, atraiu com as suas canções, as suas histórias e  benignas excentricidades, toda a família, um grande número de sobrinhos netos e bisnetos. Curioso é que até o seu dentista, o Dr Morris, um dia, sem saber das suas ambições secretas. lhe disse: "Devia ter sido atriz. Vê-se que tem jeito!" Até mesmo na cadeira do dentista representava bem a sua personagem. "tem a certeza de que isto está limpo?  Não usou essa agulha nos dentes do doente anterior?"
"Claro que sim, serve para todos, nunca é limpa" - respondia ele a rir-se. Simpático e bonito. A Maria Antónia gostava de médicos bonitos. E foi tendo vários, ao longo da vida, o antecessor do Dr Morris, o Dr Ferreira Mendes, o Dr Figueiredo, parceiro de brincadeiras de infância na farmácia do Tio Homero, o Dr Guimarães.. ..Até no hospital de Gaia, um mês antes de morrer, o neuro cirurgião era um homem alto, muito nórdico, de expressivos olhos azuis, com quem teve uma conversa surreal. Nessa noite, em que todos os desastres se resolveram bem (depois de uma queda aparatosa na casa de banho), até o motorista do táxi, que a trouxe para Espinho, era,  também, um bonito rapaz, como ela não deixou de reparar.
Ao Doutor, tratou-o por tu, começando com uma interrogação: "És meu sobrinho?", e continuando, depois, no mesmo tom.
Quando ele veio falar comigo, para lhe dar alta, tranquilizou-me quanto ao TAC, e acrescentou: "Está muito bem. Só a achei um bocadinho confusa, porque julgou que eu era um sobrinho".
Esclareci que não era assim tanto anormal, pois era senhora de muitos sobrinhos, alguns médicos. Não adiantei mais - que, provavelmente nem sequer estava confusa. aquela foi uma maneira "teatral" de iniciar conversa com um jovem interessante, que poderia ser, mas não era da família.
No tempos de estudante, era considerada de saúde frágil (fragilidade que não se confirmaria na idade adulta, até muito depois dos noventa), o que lhe dava direito a uma dieta especial, com doses reforçadas de bifes, comendo, muitas vezes, na mesa da Diretora, um modelo de sofisticação e simpatia. Nos estudos, tinha inteira liberdade de escolha de matérias e de ritmos de aprendizagem. Os diplomas não lhe eram exigidos. Era boa aluna nas disciplinas que selecionava - português, francês, inglês, geografia e história, desenho. Fez o 9º ano, "singulares" , ou seja, com avaliação final apenas nessas cadeiras. Excelente no piano, executou o programa completo até ao 6º ano, mas sem fazer exames oficiais. No desporto, era a campeã de ping-pong. nas férias gostava de nadar e de andar de bicicleta. Pequena, magra e ágil foi sempre (no dia dos seus 88 anos, ainda se exibiu, deslizando suavemente por sobre o curto e sólido corrimão da sua casa de Espinho, deixando a gente nova boquiaberta).    
E compunha poemas, saudosa da sua terra ali tão perto do desterro em que se achava...

Oh, meu Gondomar, minha linda terra
Tu que embalaste o meu 1º amor
Porque não levar-te presa nos meus braços
oh, meu Gondomat, para onde eu for?

Encantamento que nunca esqueci
roseiral em flor desse meu jardim
tanta rosa murcha pelo chão caída.
mas tanto botão a abrir para mim...

Gondomar, meu berço, capital do mundo
És a minha casa, és o meu jardim
Foste tu que viste os meus primeiros passos
E irás guardar-me, ao chegar ao fim. 
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Procuro-me e não me encontro
E fico parada assim
A chorar, meu Deus, porquê?
Por ter saudades de mim!
 Lolita escrevia muito bem, com uma letra firme e bem desenhada, decidida e bonita como ela, e também sobre sentimentos profundos despertados pela vivência no Esperança, mas sempre em prosa. As ementas dos repastos, a falta de maneiras de uma nova diretora do colégio (punha os cotovelos em cima da mesa, medíocre sucessora de uma senhora distintíssima ( a estimada e compreensiva Senhora Dona Maria Luísa) eram temas muito inspiradores e sobre os quais teve muito a detalhar. Apreendido o caderno de crónicas, não houve uma serena aceitação da liberdade de expressão e de crítica pela parte da visada e a autora foi expulsa, juntamente com a Tina Ramalheira e a Gracinda Andrade, certamente discípulas da mesma opinião. Não seria o único delito grave, ao que parece todas elas encontraram expediente de namorarem, em conversa romântica,  por um postigo que dava para a rua lateral... Um pouco tarde, já sem a companhia da irmã quase gémea (que terminara, auspiciosamente, o 5º ano por disciplinas singulares (correspondente ao 9.º do curriculum atual), ela acabava de descobrir uma solução da categoria"ovo de Colombo" para regressar à Villa Maria!  E a mãe achou por bem, não sei se por solidariedade com a filha, uma mera solidariedade de clã, retirar de lá a mais nova, Maria Madalena) ainda no início do segundo ciclo do liceu, A opção foi o Colégio Liverpool, na Rua dos Bragas. 
Maria Antónia continuava os seus estudos de piano, com a prima Nucha, tão simpática quanto excêntrica. No inverno usava dois sobretudos um a apertar atrás, outro virado para a frente, como é normal

NAS RUAS DO PORTO
A mãe era um visitante frequente do comércio portuense. O elétrico de São Cosme ao Bolhão, o nº 10, com dois traços, tinha paragem em frente ao portão da Villa Maria e a viagem era demorada mas muito agradável. E o Bolhão estava rodeado de lojas de toda a espécie, e de algumas das suas confeitarias preferidas, como a Villares, a dois passos de Santa Catarina e Santo António. O Grande Hotel do Porto era, também, lugar de boas recordações, o escolhido pelo marido quando, de longe a longe, decidiam passar uma noite na cidade, para jantar e ir ao teatro.
Levava com ela as filhas, quando estavam de  férias, para provarem vestidos na modista, para fazerem compras, para lanchar na Villares. Eram excursões animadas, mas não tanto como quando eram convidadas para programas semelhantes pelo Tio Alexandre, mais liberal e complacente. Tratava-as como filhas, comprava-lhes vestidos, sapatos, livros... A Lolita era sempre rápida nas escolhas. A Mariazinha não gostava de nada. Corriam ruas inteiras das lojas da "baixa", sobretudo sapatarias, antes que ela decidisse o que queria. O tio, muito paciente, sugeria: : "Vai olhando e quando vires uma menina com uns sapatos de que gostes, diz.me e eu pergunto à mãe onde os comprou e levo-te lá".
Menina complicativa... 
Não sei como a caraterizariam, então, os irmãos, as amigas, a mãe, os tios., mas ela própria se descreveria assim, anos mais tarde: 
"Não sou bonita, nem feia, sou simpática, fui sempre muito simpática (isto não é narcisismo...). É verdade. E fui em tempos, há muitos anos, uma rapariga 
interessante, pequena, bastante pequena, mas cheia de saúde, extuante de vida, vida e alegria, que transbordava por todos os poros do meu corpo. Diziam até que eu tinha muita graça, aquela graça natural de uma rapariga que da vida só queria a vida e nada mais. E o fulcro da vida era o amor. De uma sensibilidade doentia, muito sincera, expansiva e nada egoísta."
. Na verdade, o auto-retrato, pelo menos no que respeita à beleza física,  pecará por excessiva modestia. A Tia Rozaura dizia que era a rapariga mais bonita da sua geração, na sociedade gondomarense, o tio Alexandre achava-a parecida com uma irmã do futuro cunhado António Aguiar, segundo ele, lindíssima, por quem fora apaixonado na juventude (Florinda?), João, o futuro marido, quando a conheceu, notou as suas semelhanças com a famosa atriz Paulette Godard.   

OS "HOBBIES" DE SUA MÃE


FOZ e VIZELA
Ao longo dos anos de rebeldia e de "inconseguimento" de libertação, as férias, sobretudo as longas férias de verão levavam-nas ao triângulo São Cosme, Foz e Vizela.
A  partida para a Foz era antecedida pelas excitantes tarefas da compra de vestidos novos, chapéus e fatos de banho. Não no "pronto a vestir",  a que a mãe seria avessa toda a vida, mas começando pela compra dos tecidos no Porto, depois pelas provas na modista, também do Porto, evidentemente, pois em São Cosme não havia alta costura, só costureiras para tarefas mais modestas. A decisão da mãe preponderava invariavelmente, ao contrário do que acontecia quando das expedições de compras nos Clérigos a convite do complacente Tio Alexandre,
Nas palavras da própria Maria Antónia " a Mamã gostava de imaginar os modelos dos nossos chapéus de praia, cortava os moldes, com muita habilidade e mandava-os  à Maria Folhelha para cozer e enformar as abas, que ficavam impecáveis. Abas largas, para proteger do sol.  Era igualmente uma artista a tricotar (perfeccionista e perfeita em tudo, reconheciam as filhas - dos bordados, em ponto de pé de flores, rendas de bilros, às maravilhosas compotas de cereja e de chila, que abundava nos seus terrenos ou até, também, na poda das rosas, herdadas do marido, nas quais nenhum jardineiro era autorizado a tocar....).  Pelo visto, perdeu-se, igualmente, uma talentosa estilista, que se limitava a trabalhar para as filhas, que ainda recordam os seus chapéus de ráfia, muito engraçados, a condizer com as cores dos trajes de praia. Os fatos de banho eram de malha, comprada a metro e feitos numa competente modista portuense. Curtos, mas sem exageros, pelo meia da coxa, alças largas e decote pequeno, sempre de cores neutras. Por baixo, usávamos calções justos à perna". Agosto era o mês do mar, de passeios, de lanches nas confeitarias qua a mãe não dispensava, aí mais à vontade do que sobre a areia, com os seus vestidos invariavelmente escuros - impensável a austera viúva em fato de banho. Arrendavam sempre a mesma casa grande, onde tudo já era familiar
Setembro era sinónimo de Vizela, para onde a mãe partia só com as filhas, mais novas, uma corte feminina. Deixava os rapazes em Gondomar com o tio Alexandre - eram mais velhos e talvez não apreciassem as termas. E quase sempre ficava na mesma pensão, que pertencia a um casal muito acolhedor, o Sr João  e a Senhora Mariquinhas, pais da Aurora, a quem achava graça, Coisa de admirar pois era uma bonita ruiva, divorciada. O divórcio era, então, raridade e, ao menos na mulher, razão de ostracismo. Aurora, não, por qualquer motivo era bem vista, possivelmente na medida em que o ex-marido o não seria. Situação insólita a ficar na memória só, num dos anos, a história de um rapaz tolinho (há sempre um , em cada aldeia) que veio contar que vira uma mulher nua nas águas da Mourisca. Mulher nua, porém, não identificada, e descrita só pelo pateta, não tirando a Vizela a sua fama de terra virtuosa.


De Vizela para o rio Douro.
O Tio Eduardo era um excelente nadador e praticante de vários desporto nauticos. Era dono de uma canoa para duas pessoas, que fazia sucesso entre os amigos. Até que o amigo Licínio caiu ao rio e morreu afogado. No funeral, o Tio chorava e dizia. "Foi no men barco!"
De seguida, vendeu a canoa...


Sonhos meus, audaciosos, inquietantes, insatisfeitos - como eu, uma insatisfeita - sonhos belso de um amor quase perfeito. Mais de uma vez desci o Crasto num voo pleno de graça e leveza. Senti mesmo os pés a levantarem-se do solo e voei acima daqueles queridos pinheirais, eucaliptos e mimosas, voava em direção a minha casa...
Mas fiquei diferente, sim, depois que perdia minha querida filha. Ela era a minha alegria e a minha vida, era minha e roubaram-ma. Fique perdida num deserto, fiquei sozinha, Que me perdoem todos os que ficaram comigo, ficaram muitos, ficámos todos , menos ela. Que me perdoem, mas eu fiquei sozinha.
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Não sou bonita, nem feia, sou simpática, fui sempre muito simpática (isto não é narcisismo...). É verdade. E fui em tempos, há muitos anos, uma rapariga 

interessante, pequena, bastante pequena, mas cheia de saúde, extuante de vida, vida e alegria, que transbordava por todos os poros do meu corpo. Diziam até que eu tinha muita graça, aquela graça natural de uma rapariga que da vida só queria a vida e nada mais. E o fulcro da vida era o amor. De uma sensibilidade doentia, muito sincera, expansiva e nada egoísta.
VILLA MARIA
Ao longo da divisória com  o terreno do Monteiro ficavam as ramadas com suporte  em bardos,  ocupando metade da quinta agrícola, desde a casa da eira ao mirante do fundo do terreno. Entre as vinhas, havia americano preto e, junto à eira, americano branco (nunca foram cortadas, escaparam ao massacre imposto por lei) e à esquerda, o "Chance la rose", que era reservado para a Avó Maria, grande apreciadora,
Os primeiros bardos eram de moscatel de Hamburgo.
O piso térreo da casa era ocupado por lojas, garrafeira e adega. Do interior, descendo a escada víamos, em frente, a garrafeira, e, passando uma porta verde, a enorme adega, com o lagar e as pipas de vinho.  A Mãe recordava os homens a pisar as uvas, e, no fim do trabalho,  a comer na cozinha, enormes pratos de bacalhau e carne de porco.
A mais famosa história ligada à garrafeira, aconteceu numa visita Pascal, quando era Pároco o Abade Andrade, pessoa muito discreta e cerimoniosa. Foi o Tio Serafim quem abriu as garrafas de vinho branco e de champanhe recém chegadas da garrafeira.  A primeira não saiu com o estrondo habitual, parecia ter perdido força. Outras foram circulando, mas ninguém parecia ter a habitual vontade de beber. Alguém comentou "É fraquinho, perdeu a força". Quando já os hóspedes se haviam retirado, a Avó Maria decidiu fazer a prova dos vinhos e descobriu que em quase todos a percentagem de pura água era elevada - adicionada pelos filhos para substituir o original, que tinham partilhado em noites de paródia secreta com amigos...
Imagine-se o sermão materno que se seguiu - dirigido mais a uns do que a outros, conforme o grau de suspeição. O Tio Zé batia de longe os demais...
Uma prole sempre difícil de controlar.  Eles e elas. Assim, por exemplo, das filhas só a Tia Lina a acompanhava na visitação dos doentes. A Mãe recusava-se, firmemente e não consta que as Tias Lola e Lena fossem muito assíduas

PARTE II A FAMÍLIA PATERNA - PEREIRA DE AGUIAR


4 - OS PEREIRA DE AGUIAR  -  SOB O SIGNO DA DIVERSIDADE
De diversidade se pode falar, a seu propósito, em diversos sentidos. Antes de mais, num confronto com o outro lado da família. Enquanto nos Barboza e nos Ferreira Ramos há uma memória que os traz até nós, com a marca de uma acentuada homogeneidade  não só de classe social, de fortuna ou profissão (com predominância de comerciantes, empresários, funcionários públicos, professores, médicos, advogados, que se irá acentuando nas novas gerações), como de intervenção cívica, para além das fissuras ideológicas, nos Aguiar encontramos precisamente o oposto.




A TRISAVÓ ANNA PEREIRA DE FRANÇA
De Anna Pereira absolutamente nada se saberia se seu trineto Hernâni Maia não tivesse escrito sobre ela, baseando-se num fidedigno relato da prima Beatriz Lobão. E, assim, uma avó de tantas gerações revive, num perfil enobrecido de coragem e de bondade, recompensadas numa vida de início árduo e de fim feliz.
Nasceu em 1813, a quinta dos onze filhos de Pedro Pereira de França e de Maria Fernandes de Jesus, de Pevidém, Seus avós paternos eram Manuel Pereira e Custódia de França, originária de uma antiga família de São Cosme - de apelido  França, descendentes remotos de gente muito abastada, os Tomé, de Bouça Cova, e os Moura, da Cónega, ligados. desde 1616, pela união de Catarina Tomé e Domingos de Moura.
Anna casou, no dia 1 de julho de 1834, com José Pinto dos Santos Garrido, de Penafiel. Ficaram a morar na Gandra  e esperaram seis anos por uma filha única, Rosa. Ele morreu logo depois, deixando-as, mãe e filha, em muito má situação financeira. A fortuna dos antepassados há muito se perdera, sucessivamente dividida entre membros de famílias extremamente numerosas 
A viúva, mulher destemida, sem poder contar com ajuda de ninguém, tratou de se estabelecer, ali mesmo, na Gandra, com um pequeno comércio, que lhe permitiu subsistir e criar a menina. Na sua venda veio a conhecer João Moreira dos Santos, filho de gente rica, da Foz do Sousa, negociante de ourivesaria que ali passava, de vez em quando, quando, terminados os afazeres, regressava a casa.
 Num fim de dia de temporal, quando se pôs a caminho da Foz, foi surpreendido por fortes chuvadas, e chegou à loja de Anna completamente encharcado. Condoída, ela teve o gesto gentil de lhe emprestar roupa do falecido marido, guardando o fato sujo e molhado para o limpar e devolver, quando ele voltasse. Encantado com a sua postura, João  Moreira não tardou muito  em a pedir em casamento. Um pedido que a surpreendeu, porque já ia nos 38 anos, e ele, também viúvo, após um casamento efémero e sem descendência, era um jovem de 25. Pôs uma só condição: teria de tratar Rosa como se fosse sua própria filha, pedido ao qual um homem de bom caráter não teve dificuldade em aceder, nem em cumprir. 
O matrimónio foi celebrado em 28 de junho de 1851. No ano seguinte, nasceu Violante Pereira Moreira dos Santos,  em 16 de junho de 1852, e seguidamente, em 21 de fevereiro de 1854, já a mãe ultrapassara a barreira dos quarenta, um rapaz, João Moreira.
 Rosa foi madrinha da irmã e seriam íntimas ao longo de toda a vida.
Anna formou com João Moreira dos Santos e os três filhos uma  família mais pequena do que a dos pais, (tinha 10 irmãos), ou do que a sua primogénita (com os 15 Pereira de Aguiar)), mas perfeitamente harmoniosa. O marido tornara-se o ourives mais abastado de Gondomar. Morreu novo, com 49 anos, em 1874, mas, desta feita, os herdeiros puderam manter intacto o seu nível de vida. 
De Anna existe uma só imagem, guardada num album dos netos António e Maria Aguiar. Um retrato de estúdio, que a mostra em idade avançada (faleceu com 73 anos), possivelmente já viúva, vestida de preto, com uma jóia  sóbria. Já os filhos aparecem juntos em muitas fotografias de passeios e festas de família, a testemunhar a amizade que sempre mantiveram.

Do marido se conhece também, apenas, uma foto pertencente a seu trineto Hernâni Maia. 


OS BISAVÓS ROSA PEREIRA (de FRANÇA) E MANUEL PEREIRA DE AGUIAR

 Rosa Pereira e Manuel de Aguiar, tiveram 15 filhos, que chegaram à idade adulta (não havendo notícia de que outros tenham desaparecido em crianças, como então era comum). Ao que parece, distinguiam-se mais pelas diferenças do que pelas parecenças e tiveram destinos também muito variáveis. Maria, a mãe de Maria Antónia, dizia que nunca vira família que, nesse aspeto, se comparasse àquela! Havia loiros e morenos, os muito bonitos e os que não o eram, os  altos e os baixos, os ricos e os pobres, os muito trabalhadores e os boémios, os que que fizeram história da família e os que caíram no mais completo anonimato.... De Manuel de Aguiar, a longa lista de avoengos está por investigar. O pai, Miguel Aguiar e as gerações imediatamente anteriores eram, provavelmente do concelho de Gondomar.  
Já ascendência de Rosa Pereira está estudada, ao longo de mais de 300 anos, graças por Hernâni Maia, professor catedrático e especialista de genealogia, descendente direto de um segundo matrimónio de Anna Pereira de França, a mãe de Rosa. São, surpreendentemente, 300 anos de enraizamento em Gondomar. Deles, todavia, só se conhecem o grau de parentesco, nomes, apelidos diversos, como França. Moura, Castro. Alguns desses antepassados ter-se-iam dedicado à arte que põe no mapa a vila de Gondomar .Numa imprecisa crónica oral destaca-se a vaga memória de uma parente, Joaquina, que foi a primeira mulher de Camilo Castelo Branco (a pesquisa do primo Maia permitiu confirma-la), e de um Bispo, figura ainda mais nebulosa, ainda não encontrada e, que, se existiu, será do lado Aguiar.



OS IRMÃOS DE ROSA

VIOLANTE PEREIRA MOREIRA DOS SANTOS

Violante casou com um jovem ourives, empregado de seu pai, José Martins de Almeida Lopes, pouco depois daquele falecer, em 1834, Em dez anos de casamento, tiveram sete filhos, e mais não foram provavelmente, porque ele decidiu tentar a sua sorte no Brasil, onde foi pouco afortunado e onde acabou por falecer. 
Violante, com a meação na herança do pai, criou cinco raparigas e um rapaz (uma das meninas desaparecera prematuramente), continuando ligada ao ramo da ourivesaria  Todas as filhas casaram bem e ela teve um vida confortável , na sua casa da Gandra, falecendo aos 81 anos




JOÃO MOREIRA 
João Pereira Moreira dos Santos, conhecido como João Moreira, foi casado em primeiras núpcias, com a abastada proprietária de uma joalharia da Rua das Flores, de quem não teve descendência, unindo-se, depois de viúvo, a uma criada, de nome Rosa. Era um tio que Maria Aguiar visitava, muitas vezes
JOÃO MOREIRA
João Moreira era um jovem de 20 anos, quando perdeu seu pai, com quem, ainda adolescente, aparece num formal retrato de fotógrafo. Coube-lhe continuar os negócios de família e, também dele se pode dizer que casou bem, com a proprietária de uma grande joalharia da Rua das Flores. Levou sempre um vida de alto nível, foi um dos primeiros gondomarenses a ter carros de luxo e motorista.
Desaparecida,a mulher, tomou por companheira uma criada, Rosa, com quem terá oficializado a união.Julgava-se que não teria filhos de qualquer dos matrimónios, mas à Madalena Aguiar (Maria Madalena do Amaral Barbosa Aguiar Ribeiro, filha do Tio António e uma das primas que ainda vive em São Cosme), que ele teve um filho da companheira e, depois, mulher Rosa, que em vida não perfilhou, mas reconheceu no testamento, deixando-lhe a metade da sua grande fortuna, que incluía quarteirões de prédios na rua do Heroísmo, no Porto. Um apesquisa do primo Hernâni sobre essa informação da Madalena, permitiu desvendar mais uma pequena história, que parece ficção literária, mas é real, já em pleno século XX. Não sabemos se pai (ou pais) e filho sigilosamente conviviam. Certo é que o segredo só foi descoberto no século XXI.
O Tio Moreira foi sempre muito especialmente estimado pelos sobrinhos António e Maria Aguiar, e pelos sobrinhos netos, que o visitavam, com frequência, na sua casa de Quintã, e o convidavam para a Vila Maria.
Fotos de um piquenique, em que está em primeiro plano, à direita, entre a segunda mulher e mãe desse filho secreto. e a irmã Rosa Pereira, de um passeio de automóvel, em que é acompanhado pelas irmãs, Rosa e Violante. e de um convívio na casa da Gandra



ROSA E VIOLANTE - IRMÃS INSEPARÁVEIS
Rosa e Violante moravam ambas na Gandra,
 Rosa e Manuel Aguiar, num casarão de pedra, à face da estrada, com extenso terreno nas traseiras. Manuel era ourives, não se sabe precisamente se fabricante (hipótese mais provável), se dono de estabelecimento comercial. Também não é seguro que os canteiros de rosas, que mais tarde, ocupavam uma área grande do jardim, existissem já no seu tempo. Mas  ali brincou, com certeza, uma numerosa prole, crianças alegres e engraçadas, pois a extroversão e a vivacidade são as qualidades mais comuns aos Aguiar, ao menos aos que se mantiveram no círculo de convivência na Vila Maria, levando a supor que os demais não fossem  nesse aspeto tão diferentes como eram em tudo o resto.







 Solidariedade foi também valor que parece ter predominado em família tão propensa a clivagens de fortuna e infortúnio, levando uns a valerem, fraternalmente, aos outros. Conhecem-se muitos exemplos: o de Augusto que, ao ficar, em partilhas, com a casa da Gândra, manteve a irmã solteira Guiomar e uma outra, casada com um jovem chamado Camilo, no amplo rés do chão da sua casa, ocupando ele o primeiro andar, que, num mesmo plano, dava acesso direto  ao jardim.
De igual modo, João e António, no Rio, tentaram, em vão, dar modo de vida ao aventureiro e estroina Alberto (Alberto, talvez, nem o nome pode ser tido por exato...). Na geração seguinte, são é exemplar a atitude dos sete Aguiar Saraiva, que, tendo ficado órfãos e empobrecidos, quando uns eram muito jovens, uns, e outros ainda crianças, se uniram, os mais velhos ajudando a bem educar os pequenos, recuperando, todos, assim, todos, o estatuto social e o nível de vida que fora o dos pais.
Se é certo, que sempre procuraram ajudar-se mutuamente, não pode, porém, negar-se que a história da  família se fez e transmitiu com acento tónico nos mais bem sucedidos, e que dos fracos praticamente  não reza... Aqueles criaram, entre si, um círculo mais íntimo de convivência:
João e Augusto, António Carlos, e uma das raparigas, Amélia. os favorecidos com o "toque de Midas".
Gracinda Aguiar (Saraiva), casou com homem rico, ainda que, depois, o casal tenha conhecido oscilações de fortuna.
Os filhos continuariam sempre próximos dos Barbosa Aguiar, quase como irmãos. António, o mais velho era afilhado do tio António Carlos
Dos outros, Pereira de Aguiar ficaram quase só imagens em retratos coletivos..


.JOÃO PEREIRA DE AGUIAR

Foi, na última década do século XIX, o primeiro da sua geração a partir para o Brasil, o país para onde, então, quase todos os portugueses emigravam. Ignora-se a data exata em que deixou Gondomar, se foi ao encontro de parentes ou conterrâneos e como decorreu a adaptação ao novo país. Pode, sim, dizer-se que rapidamente se integrou e alcançou um elevado patamar social e económico, como joalheiro, pois em 1896 chamou para junto de si, António, o irmão mais novo e ajudou-o no início de uma ascensão meteórica, Era um homem muito elegante e bem relacionado, introduzi-o nos círculos que frequentava na sociedade, incentivou-o a valorizar-se pela cultura, pois ele mesmo prezava esse lado do seu percurso brasileiro, não a limitando aos aspetos materiais, com que muitos dos emigrantes dessa época se contentava. Era assíduo conviva nos meios portugueses, o seu nome consta, pelo menos, entre os associados do Real Gabinete de Leitura do Rio de Janeiro, uma instituição já florescente e prestigiada, que acolhera, até a Academia Brasileira de Letras na sua sede, e possui, ainda hoje, uma extraordinária biblioteca, atualmente a segunda maior do país, e uma das mais belas do mundo..  Em 1902, casou com Judith Andrade da Cruz Ferreira, uma jovem encantadora, da burguesia carioca, que viria a ser, a partir de 1910, a melhor amiga da cunhada Maria. Se algum dia João alimentara um projeto de retorno às origens, o amor por uma brasileira radicou-o lá, definitivamente lá. Foi no Rio que construiu a sua imponente mansão na Rua de Payssandú. À família de São Cosme, enviou a fotografia da casa, onde se destaca o detalhe simbólico de uma águia grande escura na frontaria branca. Também António Carlos, mais tarde, colocou na Vila Maria, bem alto, na cercadura de painéis de azulejos a toda a volta do torreão, o desenho de águias castanhas, de asas abertas, segurando um "R" no bico. 
No Rio, viveu sempre em casas arrendadas, como quem estava de passagem, no centro da cidade ou em Santa Teresa, onde os filhos de Judith e João aparecem em muitas fotografias com os tios e primos portugueses.
Depois que estes regressaram a Gondomar, em 1920 e que António Carlos realizou a sua última viagem ao Rio em 1926, o ano em que veio a falecer, os contactos foram mantidos, durante várias décadas através da correspondência das cunhadas Judith e Maria. Todas essas cartas se perderam e só pelas memórias, não muito precisas, de Maria Antónia se sabe que entre os seus descendentes houve aqueles que continuaram os negócios da família, outros enveredaram pela diplomacia ou por carreiras políticas. Com Portugal não conservaram ligações, perdidas que foram os contactos entre os promos, apenas retomadas por José Augusto, na década de cinquenta, quando viveu, por poucos anos, no seu Rio de Janeiro natal. Há algumas fotos dele com as primas, todas muito bonitas, com aqueles traços que, por generalização (excessiva), se atribuem à maioria dos Aguiar, a tez morena e os grandes olhos claros.
Não se conhecem, sequer os seus nomes, apenas se sabendo que o mais velho, João, como o pai, nasceu em 1903 e veio a casar com Mariette Veronese, dando origem ao ramo Veronese de Aguiar










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AUGUSTO PEREIRA DE AGUIAR

Augusto Pereira de Aguiar teria  quase a mesma idade de João. Era alto e, talvez, o mais parecido com o pai, um belo homem loiro, com olhos azuis. sorriso fácil, invariavelmente bem disposto. Como João e António, era dono de uma joalharia - a dele na emblemática Rua das Flores, as dos dois expatriados na não menos emblemática Rua do Ouvidor no Rio de Janeiro.
O negócio prosperou e ele podia e gostava de viver bem. Sempre impecavelmente vestido, (usava, frequentemente, rosas frescas na lapela), frequentava tertúlias e teatros portuenses. Melómano, quis que as filhas, Lucinda  e Leonor estudassem nos melhores colégios e no Conservatório de Música. Uma quarta menina morreu tuberculosa. Maria Antónia não se lembrava dela, e nem sequer do nome, só de ouvir dizer que era linda. A Tia Leonor Sá era de Avintes e aí, na casa de família, que ainda existe na Rua 5 de Outubro, nasceu a filha Lucinda, que seria a madrinha da Maria António, mais uma prova da sua proximidade com os Barbosa Aguiar.
Leonor (Nucha) terminou brilhantemente o curso do Conservatório, mas não fez carreira artística. Casou cedo, passou a dar aulas particulares de piano e foi professora das primas, Maria Antónia, Glória (Lolita) e Madalena, todas bastantes mais novas. 
 Maria Antónia guardava do Tio Augusto as melhores recordações. Visitavam-no amiúde na casa da Gandra, que ele tinha remodelado e mobilado. Do jardim há uma única fotografia em que vê a mãe Rosa Pereira com três pequenos netos não identificados e, em primeiro plano, o filho António à conversa com um irmão, (não Augusto, que era muito alto) ou um amigo. O jardim teria sido, tal como a edificação antiga, modificado ou o roseiral já existiria? A sua paixão por rosas, partilhada pelo irmão António Carlos, pode ter sido, ou não, inspirada pelos pais. Sabe-se que ganhou, pelo menos, um prémio importante, em 1903. Seu bisneto, Homero Aguiar Figueiredo, é hoje, em São Paulo, o guardião desse troféu. Por esse primo se soube que Lucinda casou com Homero Figueiredo, quando ele era proprietário de uma farmácia no centro do Porto (perto do antigo Governo Civil e da Praça da Batalha), e, muitos anos depois, acompanhou o marido, nas suas andanças pelo mundo. Ele montou uma farmácia em São Paulo, e, de seguida, mais duas no Perú. A aventura peruana levou, por fim, à sua separação de Lucinda, para se casar, pela segunda vez. A vida, porém, não lhe correu favoravelmente -  ao que consta, não foi um gestor. prudente... Tarde demais chamou o filho, que, em vão, tentou salvar esses negócios. Lucinda, que passara alguns anos no Porto, à frente da Joalharia da Rua das Flores, uma mulher corajosa, decidida, sempre lembrada pela afilhada pela cordialidade e alegria de viver, não hesitou em partir para São Paulo, e ajudar a família, quando Homero os deixou, para se lançar em negócio no Perú, e, depois, na América. Por lá ficou, e, a partir dos anos cinquenta, cessou as vindas a Portugal, perdendo-se, desde então, o contacto com ela - até que, em 2019,  as novas tecnologias nos trouxeram notícias, através de um bisneto. Até então era, sobretudo, uma boa recordação de infância da afilhada das tardes passadas na farmácia de Homero  "naquela rua que vai da Sé para a Batalha, passando pelo antigo Governo Civil", a comer enormes quantidades de doçarias,por vezes na companhia de um sobrinho de Homero, Fernando Figueiredo, que viria a ser seu médico e grande amigo. 




Ainda segundo Maria Antónia, em idade avançada, o Tio Augusto engordou, tornou-se verdadeiramente figura larga e imponente, acentuando pareceças com o Rei Dom Carlos. Os seus olhos claros eram espantosos, sombreados por pestanas muito longas, que impressionavam as sobrinhas no meio das quais era imensamente popular..
Ao que se julga, manteve negócios com o Brasil, para onde exportaria jóias, por intermédio dos irmãos emigrados, sem nunca se deixar atrair pelo sonho da fortuna brasileira - ganhou a sua sem sair do Porto. Das filhas só Lucinda emigrou, e não para o Rio, mas para São Paulo, levada pelas aventuras e desventuras do marido, Depois de se ver só, já o Pai tinha falecido, conseguiu reerguer-se com os filhos e viver as alegrias da chegada de netos e bisnetos. Uma história com fim feliz
Maria Antónia nunca mais conviveu de perto com ela, as visitas foram poucas e breves, e nem sequer sabia exatamente de onde vinham os seus laços de amizade com a muito falada Tia Arminda, de Avintes - falada porque por seu intermédio conheceu o  futuro marido, João Dias Moreira,  no Monte da Virgem, O encontro, que terá sido engendrado para os aproximar, no cenário convenientemente místico de uma "missa nova" de um padre ordenado no Porto. Encontro bem sucedido, numa sequência de tentativa imediata de corte masculina,  em prosa e verso, com poucas reticências femininas, namoro sério e casamento. Arminda Sá era, afinal, irmã de Leonor Sá. Ou seja, a tia avintense de Lucinda, visitante habitual da  mana, na casa da Gandra, e amiga tanto da cunhada de sua irmã, Maria Aguiar, como da mãe de João, Olívia Capela. Homero Aguiar Figueiredo, um dos bisnetos do Tio Augusto veio preencher uma lacuna de informação lacuna e, também, dar a esta crónica familiar os únicos retratos que passamos ter da Tia Leonor e do Tio Augusto, assim com uma mostra da sua bonita caligrafia, (por sinal semelhante à do Irmão António), num postal escrito, em 1930, a um sobrinho Armando Pereira d' Aguiar.  Resta desvendar quem seria Armando (hipótese mais provável: um dos filhos de Judith e João Aguiar). Na verdade, só se conhece um outro irmão que viveu e morreu no Brasil, Alberto, que terá emigrado com ou logo depois de João, pois era, como ele, dos mais velhos. Personagem enigmática!.Não se ficou pela cidade, sumia no interior, com paradeiro incerto. Ele próprio, e tudo em seu redor, é um mistério. Casado ou não, teve vários filhos, um dos quais foi recolhido e educado pelos irmãos, frequentando bons colégios. tal como os primos ricos. Ele, o pai, nunca se fixou em lado nenhum. Aparecia, de longe a longe, com aspeto que desgostava a família e ficava por pouco tempo. Perdida a paciência, João e António desistiram da missão de salvamento.... A mais persistente protetora foi a cunhada Maria. Por sua intercessão, António mandava-o comprar fatos apresentáveis e alojava-o em casa. Um dia, disse adeus e não voltou mais. Um dos filhos educados no Rio, foi empregado de confiança do Tio António que, quando começou a preparar o regresso a Portugal, com ausências prolongadas, o deixou a gerir todos os empreendimentos, com as mais inesperadas e dramáticas consequências. Seria, então, um homem de vinte e muitos anos, quando a primogénita dos Barbosa Aguiar, Carolina, andava pelos sete ou oito anos. Esse sobrinho ingrato não pode ser o Armando a quem o postal é dirigido 1930, pois fala da saúde de seu pai - que será João, pois Alberto desaparecera no início dos anos 20.



AMÉLIA PEREIRA DE AGUIAR

A única mulher empresária que se conhece nas gerações passadas, em qualquer dos ramos da família. Talvez em parceria com o marido, que terá sido, em qualquer caso, de muito mais baixo perfil.. A harmonia no casal parece ter imperado sempre, pois deixou à posteridade uma mensagem de felicidade, de pleno contentamento com a vida que Deus lhe deu, numa frase célebre:"Deus castigou-me com muita saúde, muitos filhos e dinheiro" 









Amélia permanece como figura lendária, pela força de caráter e por riqueza ganha em domínios onde nenhum antepassado se terá aventurado antes: estaleiros de barcos, frota pesqueira...  E uma frase, a única que ficou para a posteridade, revela, em sínteses perfeita, um percurso feminino extraordinário "Deus castigou-me com saúde, filhos e dinheiro" Tudo teve em abundância!.Supõe-se que nos favores divinos incluiria um marido discreto, cujo nome se conseguiu desvendar numa pequena notícia da imprensa - o Sr Oliveira Aguiar. Seria um primo ou parente ou uma coincidência num apelido não muito comum, mas nem por isso propriamente raro? Mais provável é o parentesco, mas não está provado.
Uma fotografia do espólio de Maria Aguiar, amarelada e riscada (estrago atribuído a um dos seus imparáveis meninos, que espalhavam terror infantil e destruição à sua volta...), tem no centro uma senhora alta e forte, de escuro vestida e de rosto determinado, rodeada de adolescentes e crianças, que se supõe ser ela...). É a matriarca dos Aguiar de Matosinhos, com os quais se perderam laços de relacionamento familiar. A migração de Amélia para Matosinhos, embora interna e próxima, produziu, neste aspeto, efeitos não muito diferentes dos da à emigração brasileira de João e Alberto.