quarta-feira, 9 de outubro de 2019

MEMÓRIAS DA MÃE - VILLA MARIA E COLÉGIO DA ESPERANÇA (a 23 de julho)



II - Apesar da tragédia da morte do pai, a vida no espaço privilegiado que ele criara, pensando nos filhos, continuou, do modo que ele quereria para eles, Com a viúva sempre vestida de preto (só na velhice passou a usar, também, o cinzento e o roxo, uma das suas cores preferidas), repartindo a sua missão de mãe, severa (muito mais do que fora, na vida de casada) , e os deveres religiosos e cívicos, que passaria a assumir, crescentemente, e a  tornariam personalidade influente, por si, não por ser a filha, a irmã ou a esposa de homens importantes na vila... A Senhora Dona Maria Aguiar, nome grande, líder respeitada por todos. A  presença constante amiga e complacente dos tios, Alexandre e Hermínia, Rozaura e Manuel compensava, largamente, as suas ausências por uma boa causa. Os mais velhos sentiam mais o vazio que, para os outros tios, sobretudo o Tio Alexandre, ocupavam. Carolina era mais próxima do pai, a menina a quem ele nada recusava, quando os seus lindíssimos olhos verdes, tão parecidos com os dele, se enchiam de lágrimas. Com os argumentos de choros e lamentos, Carolina conseguiu, até, que ele a retirasse do colégio, de onde lhe escrevia cartas pungentes, pintando o ambiente  do internato de excelência, com a cores de  um inferno, ou de um campo de concentração de meninas abandonadas.... Pouco antes dele desaparecer, já estava ela de volta a São Cosme, dedicada ao piano, às obras pias (a única a seguir o exemplo materno) e desfrutando, sem mais compromissos, as alegrias dos jardins da Vila Maria...  Talvez para além dessa prosa infantil, delirantemente excessiva, dirigida ao pai tenha escrito sobre ele poemas, como os do irmão António Maria. Só os deste, porém, se conservaram, único testemunho sentido e surpreendentemente realista de um quotidiano sofrido, que só o tempo foi suavizando. Não faltaram a uma bonita e virtuosa mulher de 36 anos, os pretendentes. Não vacilou, por um momento sequer. na decisão de se manter só. O que, por sinal, os filhos unanimemente lamentavam, sobretudo no que respeita a um de que  todos gostavam - o melhor amigo e associado, em negócios de bolsa, um banqueiro chamado Cunha, com quem, em 1926, estava prestes a avançar para uma sociedade financeira. Segundo diziam, até fisicamente era parecido com António Aguiar. Conviveu muito com o casal e os meninos, era padrinho da Lolita,  gostava de todos e todos gostavam dele. Um ou dois anos, depois da morte do marido parecia solução caída do céu -  um segundo pai  aceite e desejado, um marido gentil. Já todos de meia idade, quando o assunto vinha à conversa, ainda se interrogavam: "Porque é que a Mamã não casou com o banqueiro?" e logo concordavam que fizera muito mal. A mãe, nessa altura também já avó, quando inquirida, uma vez ao serão, abriu o véu do mistério, ou se não mistério, pelo menos facto, facto consumado, decisão definitiva: "Ele era solteiro, mas tinha uma mulher, brasileira". Nada de inesperado e, se estava disposto a deixa-la, não parecia obstáculo de monta... De qualquer modo, a dúvida persistiu e jogou, forte, contra ele... Ou o que contou mesmo foi um amor perdido, mas insubstituível... Na recordação do pais, cúmplices e felizes o relato de qualquer um dos filhos, acabava sempre a realçar mesma tónica: "o Papá. não sabia o que mais fazer por ela. Adorava-a, não queria que se incomodasse com nada. Insistia em que aceitasse mais uma empregada  - no Brasil eram aos montes, e, em São Cosme, pelo menos três, mais o criado, que dormia fora, na chamada "casa do forno", que era ampla. Ao tempo da sua morte o criado era um João Pereira, certamente muito dedicado, pois é referido numa notícia de jornal como sendo um dos homens que teve a honra de transportar a urna funerária em um dos vários turnos do percurso até à Igreja.
 Mariazinha e Lolita, foram, pela pouca idade, naturalmente, as mais alheias ao peso da perda, que os demais suportaram tão dramaticamente. Apesar da diferença de dois anos, eram inseparáveis, comportavam-se como se fossem gémeas. E até aos 10 anos, pareciam gémeas, quase da mesma altura, a mais  velha a deixar antever a sua pequena estatura -  nunca havia de ultrapassar um metro e meio, que, em adulta, compensaria usando sapatos elegantes, com saltos enormes. Quando fizeram a comunhão solene, juntas, uma esperando pela outra, já Lolita a começava a ultrapassar a mana. Contudo, em energia, ginástica e espírito de aventura eram iguais. Dividiam, entre si, o terreno da quinta e as árvores, que passavam o dia a trepar, apenas por diversão ou para comerem os frutos, em quantidades astronómicas e, por vezes, ainda verdes. Quando queriam saborear os frutos da árvore da outra, pediam licença, que era sempre dada. E não subiam somente pelos troncos das árvores, também ousavam muros e telhados, os da casa do forno ou da casa da eira, de onde tinham acesso aos deliciosos araçás no alto de ramos demasiado frágeis para porem o pé. Às vezes, eram descobertas pela Tia Hermínia que das janelas do 1º andar de sua vivenda, avistava grande parte da metade norte dos jardins e da área de hortas e vinhas e lhes gritava. de longe, que descessem , de imediato. Elas obedeciam, prontamente,  mas só enquanto a tia se mantinha no "posto de observação". Enfim, meninas terríveis, rivalizavam em proezas atléticas, das quais escaparam ilesas, com um pouco de sorte, com os rapazes, como é óbvio, não eram menos aventureiros e muito piores no campo fértil de asneiras, desordens e partidas de mau gosto, que os tornaram famosos desde a escola primária aos dos colégios. O mais imaginativo e empreendedor era o mais velho, Manuel Joaquim. Tudo o que de insólito acontecia no estabelecimento de ensino lhe era atribuído, ou mais genericamente aos "Aguiar" ,e a mãe, a cidadã exemplar, passava pelo suplício de ter de reconhecer os agravos, indemnizar as vítimas, quando era caso disso, e castigar os infratores. Os desatinos eram de natureza muito variável - urinar nos tinteiros, defecar nos trombones da banda de música, partir vidros de janelas à fisga (campeão de pontaria era o só aparentemente pacato António Maria), fazer explodir laboratórios de química (o Jo´se Augusto, que detinha o record de expulsões de um colégio a seguir ao outro). Das meninas apenas a Lolita beneficiou de uma expulsão do Colégio da Esperança. já com 16 ou 17 anos, ficando em casa, de vez, como queria...
Na verdade, era em casa que todos gostavam de estar. A mãe impunha disciplina rígida, mas estava fora. entregue às obras de caridade. durante uma boa parte do dia e não deixava substituto com o mesmo pulso e intransigência. Os tios eram mais benevolentes e as criadas invariavelmente cúmplices das meninas. Aliás, a principal preocupação materna terá sido o não as deixar sair da "zona de segurança" (ou vigilância), dentro dos limites da propriedade. Daí, quase só saiam para a missa ou visitas à família. Contudo, a Vila Maria era como uma ilha auto suficiente onde não lhes faltava nada e onde podiam receber primos e amigas (selecionadas) constantemente, ou seja, uma festa! Prisão era o colégio... De resto, a mãe, ultrapassada a fase inicial e mais traumática da viuvez, recuperou a vivacidade, o gosto pela música, canto, piano, pelo convívio e movimento, ainda que muito centrado no ativismo católico, na salazarista "Obra das Mães, nos peditórios para a Liga dos Combatentes ou para os bombeiros, ou quaisquer formas de benemerência", Organizava excursões a Fátima, a Celorico, à campa de Frei Bernardo, ao encontro de bondosa Sílvia Cardoso... Comprou um piano (Riese), que veio da Alemanha numa gigantesca caixa de madeira, que foi desmantelada, com verdadeiro "suspense" e aparato, no jardim, no largo amplo entre os roseirais simétricos. Pelo visto, não abundavam pianos na vila e aquele era, com frequência emprestado ao teatro da Ala Nuno Álvares para espetáculos (no tal insólito transporte de carro de bois, que exigia afinação do pesado aparelho em cada uma dessas operações...). Teatro amador era. assim, outra das escapatórias permitidas ás meninas, que tocavam, cantavam e representavam primorosamente. Algumas peças saíram da pena do polivalente Manuel Aguiar, que para além de desordeiro imaginativo, era também poeta, dramaturgo satírico e brilhante aluno (do liceu e, depois, da Faculdade de medicina). Uma das suas peças célebres, foi "o Nabo", um dos ex-libris rurais de São Cosme... Noutros casos eram simplesmente atores, contracenando com os melhores amigos, nomes que nos habituámos a ouvir nas rememorações desses bons velhos tempos ou que vieram a ser parte da família, pelo casamento. Assim, vemos num programa extenso que começava por uma paródia à " ceia dos cardeais" (onde atuava Maria Ernestina da Ascenção Fonseca), continuava com "O pavão depenado"", onde Manuel Barbosa de Aguiar e Eduardo da Ascensão Fonseca, futuros cunhados) desempenhavam o papel de estudantes. que, de facto, eram. Na 3ª parte, "Acto de Variedades", entravam também em cena os manos António e José Aguiar e, na 4ª parte "Senhoras e Criadas" vamos encontrar a lindíssima Clara Pereira de Sousa, outra futura cunhada, que, talvez, já fosse namorada  e iria ser a Mulher de Manuel... A música,"Viúva Alegre" e outras alegres sonoridades . foi executada pela "Tuna União de Gondomar" que se apresentava em público pela primeira vez. As manas "gémeas" ainda eram, nesta época, jovens demais para os papéis disponíveis - brilhariam, também, em palco, alguns anos mais tarde. Maria Antónia sempre sonhou ser atriz, porém não teria, nunca, autorização para ir além do palco da "Ala"... Ambição não lhe faltava. Como pianista há indícios seguros de que poderia ter feito carreira. Um namorado (não oficialmente namorado, mas, por algum tempo, quase a sê-lo), o  compositor e maestro Fernando Marques Ribeiro, chegou a convidá-la para dar um concerto com ele no Rivoli do Porto, considerava-a uma intérprete talentosa... Um sonho impossível....

O Colégio da Esperança
Foi, de certo modo, o contrário do título, um lugar de alguma desesperança... Maria Antónia tinha estado dois anos num internato de freiras e só entrou no Esperança, juntamente com a Lolita, quando esta terminou a primária. Ambas, lá dentro, se sentiam confinadas, presas e frustradas, elas criadas na liberdade de saltar sobre telhados e árvores, de correr velozmente pelas veredas do jardim  e pelos carreiros da quinta, de brincar, sem regra nem horários, por recantos da casa, mirantes, esconderijos. À solta, como se estivessem num micro  sertão... 
Não é de admirar que a reação de ambas fosse idêntica. choravam noites inteiras, até caírem no sono profunda da infância. Ficavam em camas seguidas, Planeavam fugas que nunca levaram a cabo, (talvez por saberem que seriam recambiadas de volta, depois de castigadas, sem dó nem piedade (já não tinham o pai para se comover com os seus tormentos e lamentos. Uma via de escape era a escalada dos muros da quinta. outra a capela que dava acesso à liberdade, por uma sólida porta com grades, fechada por uma enorme chave de ferro. Era o meio mais prática e, uma vez, quase o iam fazendo, e foi a colega Maria Laura Horta que as convenceu a desistir... Não se sabe como tencionavam chegar a Gondomar, se a pé, fazendo uns dez ou doze quilómetros, se utilizando,o elétrico. Seria o mais fácil, não lhes faltava dinheiro para pequenas extravagâncias. Sempre que partiam o Tio Alexandre dava 20 escudos a cada uma, Servia-lhes , sobretudo, para encomendas de chocolates, feitas a uma intermediária autorizada.. Outro plano de deserção, mais discreto, mas igualmente inviável, era engendrarem uma doença, uma constipação, para o que andavam de meias e soquetes molhados. Eram demasiadamente resistentes...
Da Esperança, no centro do Porto, a poucos quilómetros de São Cosme, só iam a casa nas férias, Páscoa, verão, Natal, só recebiam vistas à quinta-feira, a mãe, o Tio Alexandre. Nos últimos anos, depois do tio autêntico, também o namorado da Lolita, o Eduardo Fonseca, que era mais velho e parecia ainda mais velho, e se fazia passar por tio, sendo admitido na sala de vistas, nessa venerável qualidade, com natural permissão para dar um beijo na face à falsa sobrinha, qua aparecia, juvelimente, de lacinho vermelhos no cabelo e soquetes ou meias pelo joelho - vermelho era a sua cor preferida, como o amarelo era a da irmã...)  Numa dessas quinta.feiras, a mãe não pode visitá-las, porque estava doente e mandou em seu lugar o Manuel Joaquim com os presentinhos do costume (queijo, marmelada, bolachas chocolates...). A certa altura, subiu a um banco, desatarrachou uma lâmpada e meteu-a no bolso, deixando as manas apavoradas. Mas não o conseguiram arrancar-lha. Não se sabe a razão daquele insólito gesto - talvez uma aposta.
Todavia, no novo habitat, não lhes faltavam amigas, entre colegas e professoras. De qualquer modo, o serem chamadas "os galos doidos" pode dar a ideia precisa e concisa da fama que, com proveito, por lá grangearam. Entre as colega Cavalier (uma das poucas alunas dessa época que faria carreira como médica distinta), Renia Finkelstein (que veio muito pequena da Polónia, de onde trouxe muitos "pins", que lhe oferecia) a Zita Seabra (muito bonita, loira, de olhos azuis, mãe da Zita Seabra, antiga deputada do PCP), Fernanda Málen (que haveria de professar como religiosa), a Olímpia e a Julieta (com quem continuaria a conviver, já depois de casada, em Espinho, onde elas tinham casa de praia), a sensata Maria Laura, que lhes impediu uma fuga destinada a fracasso final,  Manuela Abrantes (aluna externa, que as convidava para festas, numa belíssima casa, ali bem perto . ocasião para saírem da prisão por umas horas, com autorização da mãe, primorosamente falsificada). Curiosa a quantidade de nomes estrangeiros, a dar o toque cosmopolita a um colégio bem conceituado e bem situado, onde as filhas da burguesia se misturavam com meninas orfãs, de qualquer classe sócio-económica. Muitas eram do litoral, havia um importante contingente de Ílhavo, outras de vários pontos do norte e nordeste português. Olímpia e a irmã mais nova, Julieta, por exemplo, eram transmontanas, que veraneavam em Espinho, Não era desse tempo o convívio à beira-mar com as Aguiar, que sempre arrendavam casa na Foz velha, em agosto.
De todo o vasto edifício colegial, as melhores recordações da Mariazinha vão para a sala de piano (as de Lolita, certamente, para a sala de visitas, onde namorava, disfarçadamente, com Eduardo, o futuro marido). O piano, e Chopin, não ainda os rapazes do seu tempo, eram a sua paixão.. A Profª Margarida Portela uma extraordinária executante e pedagoga faz parte desse mundo de memórias. Considerava-a uma aluna muito especial, uma grande pianista em prespetiva. Ofereceu-lhe as valsas de Chopin, com dedicatória. Muitas décadas depois, deu-as à única música da família da nova geração, a Sameiro (que terminou, em simultâneo, os cursos de Medicina e do Conservatório de Música), mas esqueceu-se de copiar a dedicatória, e sempre lamentava o esquecimento. Em programas de festas, as pianistas eram sempre a Maria Antónia Aguiar e a Amélia, uma colega de Avintes - até chegaram a tocar a quatro mãos, Amélia morreu jovem (mais uma vítima da tuberculose, como a inesquecível Tia Glorinha). Nas temporadas que passava em Avintes, depois de casada, a Maria Antónia recorria a uma boa costureira da terra, muito engraçada e bisbilhoteira, que conhecia meio mundo e logo descobriu, em conversa, como descobria tudo o mais, que tendo a nova cliente andado no Esperança fora contemporânea da saudosa Amélia, para cuja mãe fazia os arranjos da roupa e a quem prontamente transmitiu a novidade. Foi a mediadora de um primeiro convite para a Maria Antónia a visitar, seguido de vários outros. Morava, por acaso, muito perto dos seus sogros, Para ela, abria o piano de Amélia, que mais ninguém tinha tocado desde a sua morte,   e ficava a ouvi-la, encantada... 
A professora Margarida era muito bonita e tal como aluna gondomarense, muito míope. Esta, além de míope, condenada a óculos de lentes grossas, (que, por vaidade, tirava sempre que podia, sem risco de tropeçar e cair) era praticamente cega do olho esquerdo, o mais azul, contrastando o direito, esverdeado. Nada que a incomodasse, bem pelo contrário. Chamava mesmo a atenção dos pretendentes (no plural, desde cedo) para a singularidade. Prezava essa diferença, que, contudo tanto incomodara o pai, quando primeiro a detetou, dizendo à mulher, atónito: "Maria, a menina tem um olho de cada cor!". Não era só questão de cor, era também de visão, e grave. A anomalia foi descoberta só na escola e já era tarde para recuperar o olho azulado, que piorara gradualmente, até deixar que o nervo ótico sofresse atrofia irreversível, sem qualquer sinal exterior de declínio, tão brilhante e expressivo como o outro, o verde, que lhe deu, com lentes uma visão completamente  normal.... 
Desastre  no colégio, houve-os. Nem todas as meninas era apenas mal comportadas,  como os "galos doidos", algumas entravam no mundo da criminalidade - ladras. Há sempre uma ou outra ladra, nos melhores ambientes. Imprudência materna, deixar as meninas levar consigo, jóias de valor estimativo.  E, assim, lhe roubaram-lhe uns brincos lindíssimos que tinham sido da Tia Glorinha, dados pela Tia Rozaura. E ela até viu, a rapariga a mexer nas suas gavetas. Mas hesitou - mais expedita a escalar telhados do que a denunciar colegas. Depois, a Miriam Cavaliere (futura médica), que também era amiga da vigarista, pediu-lhe que se calasse. E, com acedeu, nunca mais recuperou os brincos, nem os esqueceu...A ladra não parou por aí e acabou por ser chamada a capítulo, e expulsa, mas sem devolver os famosos brincos. Tinha sido uma espécie de ave de arribação que passou pelo colégio apenas no 3º ano do Liceu, durante o qual ficou no dormitório ao lado da Mariazinha - foi-lhe fácil observar os seus movimentos, saber onde guardava os pertences, em gavetas sem chave. Do outro, estava uma grande amiga a Fernanda Málen futuramente freira)
Anos mais tarde, numa reunião de antigas alunas, olhou em volta e reconheceu a ladra. Talvez tenha sido nessa ocasião, décadas depois do facto consumado, que a Miriam lhe pediu que fizesse silêncio sobre esse escândalo do passado distante... faz mais sentido, pois Miriam era exigente e frontal, não uma "passa culpas", mas mais pragmática do que a vítima do delito..Poucas vezes a Maria  Antónia is a essas reuniões, que achava depressivas. Perguntava por esta ou aquela amiga e respondiam-lhe "morreu", "morreu". Com poucas exceções, como a Miriam, estavam todas irreconhecíveis, pareciam mais muito mais velha do que elas, que aos 90, ainda tinha a vitalidade dos 60, sem rugas, sem doenças visíveis e sem peso a mais...
Os dois dormitórios, o das pequenas e o das veteranas, eram vigiados por uma encarregada, de nome Beatriz,estavam separados pela sala de piano, aquele completamente aberto, sem divisórias, este  com a privacidade relativa de cortinas que podiam fechar-se. A convidativa sala de piano, onde se imaginava num salão de concertos, sonhando a sua utopia .Os únicos palcos que a mãe lhe permitiu pisar foram os do Teatro Nuno Álvares  e os do colégio, mas, pelos anos fora, atraiu com as suas canções, as suas histórias e  benignas excentricidades, toda a família, um grande número de sobrinhos netos e bisnetos. Curioso é que até o seu dentista, o Dr Morris, um dia, sem saber das suas ambições secretas. lhe disse: "Devia ter sido atriz. Vê-se que tem jeito!" Até mesmo na cadeira do dentista representava bem a sua personagem. "tem a certeza de que isto está limpo?  Não usou essa agulha nos dentes do doente anterior?"
"Claro que sim, serve para todos, nunca é limpa" - respondia ele a rir-se. Simpático e bonito. A Maria Antónia gostava de médicos bonitos. E foi tendo vários, ao longo da vida, o antecessor do Dr Morris, o Dr Ferreira Mendes, o Dr Figueiredo, parceiro de brincadeiras de infância na farmácia do Tio Homero, o Dr Guimarães.. ..Até no hospital de Gaia, um mês antes de morrer, o neuro cirurgião era um homem alto, muito nórdico, de expressivos olhos azuis, com quem teve uma conversa surreal. Nessa noite, em que todos os desastres se resolveram bem (depois de uma queda aparatosa na casa de banho), até o motorista do táxi, que a trouxe para Espinho, era,  também, um bonito rapaz, como ela não deixou de reparar.
Ao Doutor, tratou-o por tu, começando com uma interrogação: "És meu sobrinho?", e continuando, depois, no mesmo tom.
Quando ele veio falar comigo, para lhe dar alta, tranquilizou-me quanto ao TAC, e acrescentou: "Está muito bem. Só a achei um bocadinho confusa, porque julgou que eu era um sobrinho".
Esclareci que não era assim tanto anormal, pois era senhora de muitos sobrinhos, alguns médicos. Não adiantei mais - que, provavelmente nem sequer estava confusa. aquela foi uma maneira "teatral" de iniciar conversa com um jovem interessante, que poderia ser, mas não era da família.
No tempos de estudante, era considerada de saúde frágil (fragilidade que não se confirmaria na idade adulta, até muito depois dos noventa), o que lhe dava direito a uma dieta especial, com doses reforçadas de bifes, comendo, muitas vezes, na mesa da Diretora, um modelo de sofisticação e simpatia. Nos estudos, tinha inteira liberdade de escolha de matérias e de ritmos de aprendizagem. Os diplomas não lhe eram exigidos. Era boa aluna nas disciplinas que selecionava - português, francês, inglês, geografia e história, desenho. Fez o 9º ano, "singulares" , ou seja, com avaliação final apenas nessas cadeiras. Excelente no piano, executou o programa completo até ao 6º ano, mas sem fazer exames oficiais. No desporto, era a campeã de ping-pong. nas férias gostava de nadar e de andar de bicicleta. Pequena, magra e ágil foi sempre (no dia dos seus 88 anos, ainda se exibiu, deslizando suavemente por sobre o curto e sólido corrimão da sua casa de Espinho, deixando a gente nova boquiaberta).    
E compunha poemas, saudosa da sua terra ali tão perto do desterro em que se achava...

Oh, meu Gondomar, minha linda terra
Tu que embalaste o meu 1º amor
Porque não levar-te presa nos meus braços
oh, meu Gondomat, para onde eu for?

Encantamento que nunca esqueci
roseiral em flor desse meu jardim
tanta rosa murcha pelo chão caída.
mas tanto botão a abrir para mim...

Gondomar, meu berço, capital do mundo
És a minha casa, és o meu jardim
Foste tu que viste os meus primeiros passos
E irás guardar-me, ao chegar ao fim. 
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Procuro-me e não me encontro
E fico parada assim
A chorar, meu Deus, porquê?
Por ter saudades de mim!
 Lolita escrevia muito bem, com uma letra firme e bem desenhada, decidida e bonita como ela, e também sobre sentimentos profundos despertados pela vivência no Esperança, mas sempre em prosa. As ementas dos repastos, a falta de maneiras de uma nova diretora do colégio (punha os cotovelos em cima da mesa, medíocre sucessora de uma senhora distintíssima ( a estimada e compreensiva Senhora Dona Maria Luísa) eram temas muito inspiradores e sobre os quais teve muito a detalhar. Apreendido o caderno de crónicas, não houve uma serena aceitação da liberdade de expressão e de crítica pela parte da visada e a autora foi expulsa, juntamente com a Tina Ramalheira e a Gracinda Andrade, certamente discípulas da mesma opinião. Não seria o único delito grave, ao que parece todas elas encontraram expediente de namorarem, em conversa romântica,  por um postigo que dava para a rua lateral... Um pouco tarde, já sem a companhia da irmã quase gémea (que terminara, auspiciosamente, o 5º ano por disciplinas singulares (correspondente ao 9.º do curriculum atual), ela acabava de descobrir uma solução da categoria"ovo de Colombo" para regressar à Villa Maria!  E a mãe achou por bem, não sei se por solidariedade com a filha, uma mera solidariedade de clã, retirar de lá a mais nova, Maria Madalena) ainda no início do segundo ciclo do liceu, A opção foi o Colégio Liverpool, na Rua dos Bragas. 
Maria Antónia continuava os seus estudos de piano, com a prima Nucha, tão simpática quanto excêntrica. No inverno usava dois sobretudos um a apertar atrás, outro virado para a frente, como é normal

NAS RUAS DO PORTO
A mãe era um visitante frequente do comércio portuense. O elétrico de São Cosme ao Bolhão, o nº 10, com dois traços, tinha paragem em frente ao portão da Villa Maria e a viagem era demorada mas muito agradável. E o Bolhão estava rodeado de lojas de toda a espécie, e de algumas das suas confeitarias preferidas, como a Villares, a dois passos de Santa Catarina e Santo António. O Grande Hotel do Porto era, também, lugar de boas recordações, o escolhido pelo marido quando, de longe a longe, decidiam passar uma noite na cidade, para jantar e ir ao teatro.
Levava com ela as filhas, quando estavam de  férias, para provarem vestidos na modista, para fazerem compras, para lanchar na Villares. Eram excursões animadas, mas não tanto como quando eram convidadas para programas semelhantes pelo Tio Alexandre, mais liberal e complacente. Tratava-as como filhas, comprava-lhes vestidos, sapatos, livros... A Lolita era sempre rápida nas escolhas. A Mariazinha não gostava de nada. Corriam ruas inteiras das lojas da "baixa", sobretudo sapatarias, antes que ela decidisse o que queria. O tio, muito paciente, sugeria: : "Vai olhando e quando vires uma menina com uns sapatos de que gostes, diz.me e eu pergunto à mãe onde os comprou e levo-te lá".
Menina complicativa... 
Não sei como a caraterizariam, então, os irmãos, as amigas, a mãe, os tios., mas ela própria se descreveria assim, anos mais tarde: 
"Não sou bonita, nem feia, sou simpática, fui sempre muito simpática (isto não é narcisismo...). É verdade. E fui em tempos, há muitos anos, uma rapariga 
interessante, pequena, bastante pequena, mas cheia de saúde, extuante de vida, vida e alegria, que transbordava por todos os poros do meu corpo. Diziam até que eu tinha muita graça, aquela graça natural de uma rapariga que da vida só queria a vida e nada mais. E o fulcro da vida era o amor. De uma sensibilidade doentia, muito sincera, expansiva e nada egoísta."
. Na verdade, o auto-retrato, pelo menos no que respeita à beleza física,  pecará por excessiva modestia. A Tia Rozaura dizia que era a rapariga mais bonita da sua geração, na sociedade gondomarense, o tio Alexandre achava-a parecida com uma irmã do futuro cunhado António Aguiar, segundo ele, lindíssima, por quem fora apaixonado na juventude (Florinda?), João, o futuro marido, quando a conheceu, notou as suas semelhanças com a famosa atriz Paulette Godard.   

OS "HOBBIES" DE SUA MÃE


FOZ e VIZELA
Ao longo dos anos de rebeldia e de "inconseguimento" de libertação, as férias, sobretudo as longas férias de verão levavam-nas ao triângulo São Cosme, Foz e Vizela.
A  partida para a Foz era antecedida pelas excitantes tarefas da compra de vestidos novos, chapéus e fatos de banho. Não no "pronto a vestir",  a que a mãe seria avessa toda a vida, mas começando pela compra dos tecidos no Porto, depois pelas provas na modista, também do Porto, evidentemente, pois em São Cosme não havia alta costura, só costureiras para tarefas mais modestas. A decisão da mãe preponderava invariavelmente, ao contrário do que acontecia quando das expedições de compras nos Clérigos a convite do complacente Tio Alexandre,
Nas palavras da própria Maria Antónia " a Mamã gostava de imaginar os modelos dos nossos chapéus de praia, cortava os moldes, com muita habilidade e mandava-os  à Maria Folhelha para cozer e enformar as abas, que ficavam impecáveis. Abas largas, para proteger do sol.  Era igualmente uma artista a tricotar (perfeccionista e perfeita em tudo, reconheciam as filhas - dos bordados, em ponto de pé de flores, rendas de bilros, às maravilhosas compotas de cereja e de chila, que abundava nos seus terrenos ou até, também, na poda das rosas, herdadas do marido, nas quais nenhum jardineiro era autorizado a tocar....).  Pelo visto, perdeu-se, igualmente, uma talentosa estilista, que se limitava a trabalhar para as filhas, que ainda recordam os seus chapéus de ráfia, muito engraçados, a condizer com as cores dos trajes de praia. Os fatos de banho eram de malha, comprada a metro e feitos numa competente modista portuense. Curtos, mas sem exageros, pelo meia da coxa, alças largas e decote pequeno, sempre de cores neutras. Por baixo, usávamos calções justos à perna". Agosto era o mês do mar, de passeios, de lanches nas confeitarias qua a mãe não dispensava, aí mais à vontade do que sobre a areia, com os seus vestidos invariavelmente escuros - impensável a austera viúva em fato de banho. Arrendavam sempre a mesma casa grande, onde tudo já era familiar
Setembro era sinónimo de Vizela, para onde a mãe partia só com as filhas, mais novas, uma corte feminina. Deixava os rapazes em Gondomar com o tio Alexandre - eram mais velhos e talvez não apreciassem as termas. E quase sempre ficava na mesma pensão, que pertencia a um casal muito acolhedor, o Sr João  e a Senhora Mariquinhas, pais da Aurora, a quem achava graça, Coisa de admirar pois era uma bonita ruiva, divorciada. O divórcio era, então, raridade e, ao menos na mulher, razão de ostracismo. Aurora, não, por qualquer motivo era bem vista, possivelmente na medida em que o ex-marido o não seria. Situação insólita a ficar na memória só, num dos anos, a história de um rapaz tolinho (há sempre um , em cada aldeia) que veio contar que vira uma mulher nua nas águas da Mourisca. Mulher nua, porém, não identificada, e descrita só pelo pateta, não tirando a Vizela a sua fama de terra virtuosa.


De Vizela para o rio Douro.
O Tio Eduardo era um excelente nadador e praticante de vários desporto nauticos. Era dono de uma canoa para duas pessoas, que fazia sucesso entre os amigos. Até que o amigo Licínio caiu ao rio e morreu afogado. No funeral, o Tio chorava e dizia. "Foi no men barco!"
De seguida, vendeu a canoa...


Sonhos meus, audaciosos, inquietantes, insatisfeitos - como eu, uma insatisfeita - sonhos belso de um amor quase perfeito. Mais de uma vez desci o Crasto num voo pleno de graça e leveza. Senti mesmo os pés a levantarem-se do solo e voei acima daqueles queridos pinheirais, eucaliptos e mimosas, voava em direção a minha casa...
Mas fiquei diferente, sim, depois que perdia minha querida filha. Ela era a minha alegria e a minha vida, era minha e roubaram-ma. Fique perdida num deserto, fiquei sozinha, Que me perdoem todos os que ficaram comigo, ficaram muitos, ficámos todos , menos ela. Que me perdoem, mas eu fiquei sozinha.
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Não sou bonita, nem feia, sou simpática, fui sempre muito simpática (isto não é narcisismo...). É verdade. E fui em tempos, há muitos anos, uma rapariga 

interessante, pequena, bastante pequena, mas cheia de saúde, extuante de vida, vida e alegria, que transbordava por todos os poros do meu corpo. Diziam até que eu tinha muita graça, aquela graça natural de uma rapariga que da vida só queria a vida e nada mais. E o fulcro da vida era o amor. De uma sensibilidade doentia, muito sincera, expansiva e nada egoísta.
VILLA MARIA
Ao longo da divisória com  o terreno do Monteiro ficavam as ramadas com suporte  em bardos,  ocupando metade da quinta agrícola, desde a casa da eira ao mirante do fundo do terreno. Entre as vinhas, havia americano preto e, junto à eira, americano branco (nunca foram cortadas, escaparam ao massacre imposto por lei) e à esquerda, o "Chance la rose", que era reservado para a Avó Maria, grande apreciadora,
Os primeiros bardos eram de moscatel de Hamburgo.
O piso térreo da casa era ocupado por lojas, garrafeira e adega. Do interior, descendo a escada víamos, em frente, a garrafeira, e, passando uma porta verde, a enorme adega, com o lagar e as pipas de vinho.  A Mãe recordava os homens a pisar as uvas, e, no fim do trabalho,  a comer na cozinha, enormes pratos de bacalhau e carne de porco.
A mais famosa história ligada à garrafeira, aconteceu numa visita Pascal, quando era Pároco o Abade Andrade, pessoa muito discreta e cerimoniosa. Foi o Tio Serafim quem abriu as garrafas de vinho branco e de champanhe recém chegadas da garrafeira.  A primeira não saiu com o estrondo habitual, parecia ter perdido força. Outras foram circulando, mas ninguém parecia ter a habitual vontade de beber. Alguém comentou "É fraquinho, perdeu a força". Quando já os hóspedes se haviam retirado, a Avó Maria decidiu fazer a prova dos vinhos e descobriu que em quase todos a percentagem de pura água era elevada - adicionada pelos filhos para substituir o original, que tinham partilhado em noites de paródia secreta com amigos...
Imagine-se o sermão materno que se seguiu - dirigido mais a uns do que a outros, conforme o grau de suspeição. O Tio Zé batia de longe os demais...
Uma prole sempre difícil de controlar.  Eles e elas. Assim, por exemplo, das filhas só a Tia Lina a acompanhava na visitação dos doentes. A Mãe recusava-se, firmemente e não consta que as Tias Lola e Lena fossem muito assíduas

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