domingo, 24 de junho de 2018

DO PAI - QUADRAS DE SÃO JOÃO

D O Pai participou anos a fio nos concursos de quadras de S João do JN. Ganhou alguns prémios e menções honrosas. embora ganhar não fosse o mais importante. E nunca se esquecia de comprar o JN neste dia! O concurso continua, louvavelmente, mas a poesia já não é, como antigamente, o grande tema de primeira página. É pena. Aqui deixo uma das quadras premiadas: NA FOGUEIRA DOS TEUS OLHOS/ JÁ FUI LUZ. SOU CINZA MORTA/ MAS SE NA SOMBRA DOS MEUS/ TE SINTO MINHA, QUE IMPORTA? Outra, cuja sorte no concurso desconheço. mas de que eu gosto especialmente: ENCANTAMENTO. PERFUME./ FOGO A ARDER - CINZA DORIDA... UM TREVO, ÀS VEZES, RESUME/ EM QUATRO FOLHAS, A VIDA

PAI outra versão mais completa sobre a FAMÍLIA ANTIGA

VERSÃO JOVEM E POETA

 É um bonito homem, com o seu ar britânico, na fase do namoro com a minha mãe (que nunca permitiu a sobrevivência de fotos de outros namoros e, ainda menos, de um primeiro casamento romântico que terminou com a lindíssima noiva a morrer aos 20 anos de tuberculose) e, depois, connosco, as duas filhas, e a família da mulher, bem mais numerosa do que a sua, onde foi prontamente adotado, Mas as imagens que mais me encantam são as do velho senhor amável e comunicativo dos últimos retratos. Envelhecer bem, física e mentalmente, eis uma arte, ou, talvez, uma recompensa que mereceu numa caminhada de 78 anos, Ninguém o definiu melhor do que o nosso amigo Padre Manuel Leão. Em Espinho, na Capela de Nossa Senhora da Ajuda, em 14 Abril de 1996. Dois minutos bastaram. Nunca vi pessoa capaz de dizer tanto em tão pouco tempo... Foi na chamada "missa de 7º dia" - o primeiro momento bom, depois da súbita morte do Pai no domingo de Páscoa. Pelas palavras do Padre Leão (que pena não as ter gravado, embora no essencial permaneçam em memória) - mas também pelo encontro com uma comunidade de igreja, a que o pai pertencia, naquela capela, e que, tanto a Mãe como eu, só conhecíamos de vista, pois em Espinho toda a gente se conhece, pelo menos assim - de vista... (situação atípica, as mulheres católicas bem menos praticante, só o homem, no dia a dia, 3 vezes ao dia, ou mais, se recolhia, em meditação, nos bancos da Capela). Ali mesmo, em frente ao altar de Nossa Senhora da Ajuda, onde rezava, a fila de cumprimentos, geralmente cerimonial lúgubre, de adensar tristezas, foi o contrário. Mulheres e homens que com ele tinham partilhado a missa de Páscoa, a comunhão, falavam da sua alegria, do seu sorriso. De um homem feliz. Gente de fé, exatamente como ele. Ficaram no quadro global da cerimónia, já sem rostos definidos. Sensação da abertura à transcendência, da visão de outros reinos e destinos, que invadiu, por momentos, todo o nosso espaço, cheio da emoção pesada de muitas dúvidas e de uma perda definitiva. E ficou a imagem daquele seu amigo, já emaranhado ou desprendido de qualquer identidade sua ou alheia, definitivamente senil, que perguntava onde estava o João, que o queria dar-lhe um abraço, antes de ir embora. E ficou, sobretudo, uma síntese de 78 anos de vida ou de uma escolha de vida, na palavra breve e definitiva do Padre Leão. - um homem culto, inteligente e justo, que sempre preferiu apagar-se, muito pensadamente, e nunca quis fazer o que podia ter feito ou ser o que poderia ter sido. E que nunca, também, e antes do mais, exibiu o que realmente foi realizando, à sua maneira discreta, com competência e com humor e simpatia. 20 anos mais tarde, por acaso, em Fânzeres, no Centro Republicano, um ourives, que com ele conviveu no "Grémio" da sua profissão (onde o Pai era secretário-geral), fechou, a seu modo, com uma simples frase, aquele desenho do perfil , em dois traços, rigorosamente esboçado num elogio fúnebre. "O seu Pai era excessivamente honesto!" (e mais não disse, mas repetiu várias vezes, com a força que lhe dava ter bebido uns copos - o Pai que gostava do seu latim, e raramente bebia, teria dito "in vino veritas"...), Aqui estava o fio condutor para o meu completo entendimento do que deixara antever o Padre Leão. Demasiadamente honesto e demasiadamente inteligente…




 RAÍZES


 A família Dias Moreira é grande, mas não o nosso ramo. Desde o bisavô João, ao longo de mais de dois séculos, os nascidos em cada geração não passam de um ou dois. Há os que não tiveram filhos ou cujos filhos não sobreviveram até à idade adulta. No século XXI, apenas uma trineta de 20 anos, fazendo, com distinção, um curso na McGill em Montreal - brilho não raro entre os parentes que chegaram à universidade ou fizeram carreira académica. Chloe Randle-Reis, é canadiana, nada e criada em Toronto, tão longe das águas matriciais do Douro. Ela tem hoje nas suas mãos, talvez sem o saber, como eu o sei, todo o nosso futuro... Não o nome, que já não chegou a ela, mas o resto, que conta mais. O pai, esse recebeu o nome completo do Avô mítico - João Dias Moreira (com um apelido materno de permeio que só usava no BI). O Avô imenso - imenso na estatura, avolumada pelos seus capotes largos de inverno, como o descrevia um dos seus antigos caseiros, que encontrei emigrado no Transval, nos anos 80 do século passado. Imenso na sagacidade de homem de bem, de bens e de negócios É em traje do dia e dia na sua casa, e não numa pose solene de estúdio, com um dos seus fatos completos, que o vemos nos únicos retratos, em que aparece. Sozinho ou com a mulher. Esperemos que algum parente, um dia, nos surpreenda com alguns outros). A bisavó, Quitéria Francisca Pinto, era do centro de Avintes. A casa dos seus pais era discreta e airosa, ni início da Rua 5 de Outubro, (mais tarde pertenceu a duas gerações de artistas, o pai e o avô do Primo Francisco (Chico) Marques). Os Marques são escultores, entalhadores, desenhadores, arquitetos (na geração do meu Pai, o último, foi o Corinto, que casou com uma prima dele e nossa, a Maria Angélica). Parece que o trisavô Pinto foi emigrante no Brasil, e, no regresso, investiu num pequeno estaleiro de barcos do rio. Não creio que fosse muito rico, não o suficiente para o padrão dos Dias Moreira… Arrastou-se o namoro de Francisca e João até ao dia em que ela lhe lançou um ultimato: ou casavam em vida da mãe dele, ou não casavam nunca, porque não queria que todos julgassem que tinha estado à espera da morte da velhinha… Não queria facilidades, exigia dele a capacidade de afrontamento que ela tinha. Mas não reclamava a vida em comum. Dava-lhe a liberdade de continuar em casa da mãe. Cada qual em seu sítio, se preciso fosse, mas casados na igreja, perante Deus e o mundo. E assim foi, até que a sogra adoeceu e lhe pediu auxílio. E a partir daí todos se entenderam surpreendentemente bem. Está tudo dito sobre o carácter da pequena e enérgica bisavó, a grande contadora de histórias, a protagonista de infindáveis horas de cantigas ao desafio… E, diz -se mais: que em menina se vestia de homem e ia para as feiras jogar varapau. Atendendo a que era muito pequena (1,50…) magra e franzina, é de espantar… Mas ela era de espantar – todos os relatos que chegaram até hoje vão no mesmo sentido João Dias Moreira e Francisca Pinto eram os avós de meu pai que moravam ao lado, aqueles com os quais foi criado. Não na mesma casa - cada um apreciava demais a sua independência - nem na quinta do Pena, ali em frente e , então, desabitada, mas na colina que vai descendo para o Douro e o Araínho e a que chamam precisamente "Outeiro". Não sei com exatidão onde ficava, nem se ainda existe - coisa improvável. Dela ouvi vagamente falar com alguma nostalgia e imagino uma alvura de paredes entre ramagens verdes e uma soberba vista de rio e de vale de espigas douradas (onde agora não há mais do que cimento clandestino...). Enfim, um lugar romântico como os Avós recém casados, num casamento, que, tal como o dos bisavós, foi escolha só deles. Mais contrariado o primeiro do que o segundo (a trisavó era viúva, vivia com aquele filho e queria nora mais rica, se é que não queria, fundamentalmente, nora alguma....) Essa moradia, onde nasceu o primeiro filho, de Olívia e Manuel era com certeza arrendada, pois não consta da lista de bens familiares - e, nesse tempo, gente abastada comprava, não vendia nunca propriedades. Parece que o bisavô fazia a sua contabilidade de novas aquisições, como num jogo, onde ganhava pontos, e essa vertente quantitativa, acabou fazendo o seu curriculum para a posteridade - com o nº auspicioso de 99. Mas vinha sempre junto à estatística um perfil de empresário agrícola, com o seu pioneiro recurso à mecanização e à compra a crédito - tão avessa à mentalidade rural da época... E crédito era o que menos lhe faltava - até sem papel escrito, porque a sua palavra era um seguro contra todos os riscos... Eram, de qualquer modo, os avós que moravam ao lado. Não na mesma casa - cada um prezava demais a sua independência - nem na quinta do Pena, ali em frente e , então, desabitada, mas no Outeiro, a colina verde, que vai descendo para o Douro. Não sei precisamente onde ficava, nem se ainda existe - coisa improvável. Dela ouvi vagamente falar, com alguma nostalgia, e imagino uma alvura de paredes entre pinhais e uma soberba vista de rio e de vale de espigas loiras (onde agora não há mais do que uma aridez de cimento clandestino...). Enfim, um lugar romântico, como os Avós recém casados, num casamento, que, tal como o dos bisavós, foi escolha só deles. Mais contrariado o primeiro (a trisavó era viúva, vivia com aquele filho e queria nora mais rica, se é que não queria, fundamentalmente, nora alguma....) Essa residência, onde nasceu o primeiro filho, era com certeza arrendada, pois não consta da lista de bens familiares - e, nesse tempo, gente abastada comprava, não vendia nunca propriedades. O bisavô parece ter gerido sua contabilidade de novas aquisições, como num jogo, onde marcava pontos, e essa vertente quantitativa, acabou fazendo curriculum - com o número auspicioso de 99 propriedades, muitas compradas a crédito - um perfil de empresário agrícola mais do que de lavrador tradicional. O número sempre presente, tal como o seu pioneiro recurso à mecanização e ao crédito - tão avesso à mentalidade rural da época...Crédito era o que menos lhe faltava e sem papel escrito, porque a sua palavra bastava... Foi um seu antigo empregado, emigrante na África do Sul quem acabou por me dar aquilo de que fiz uma imagem mais precisa desse bisavô: Ele, atravessando os campos, com o seu largo capote de inverno. Ele, presidindo aos almoços, com todo o seu pessoal, numa mesa de pedra retangular, que ainda hoje existe e é motivo de pasmo: talhada numa pedra com mais de 3 metros de comprido e mais de um de largo. Coisa tão rara, que era e é objeto de quase veneração... Mesa rara e mesa farta. Corria o ditado, que o emigrante sabia ainda de cor: Mais vale ser cão em casa do João Patrão do que criado na Quinta de... (a maior de Avintes, mas eu não apontei o nome e agora só poderia inventar...) Era m homem que não receava confraternizar com os seu empregados, que os tratava bem, mas exigindo, com certeza, bom trabalho - tudo o que ainda hoje se exige de um gestor competente. O que os resultados provam que foi... A faceta da generosidade, essa adivinho-o noutro relato de alguém da família, talvez a filha, Tia Francisca: nos seus últimos anos, já não passeava pelo meio das searas. O reumatismo, agravado pela humidade da beira rio, tornou-o praticamente enfermo. preso a uma cadeira. Passava muito tempo à janela do quarto, com vista para as suas terras, que se estendiam no vale do Douro, no caminho do rio para a foz. Daí observava e dirigia ainda os trabalhos, certamente. E, quando passava um mendigo, a pedir esmola, lançava da janela, preso por um longo cordel, um cesto de pão (e o mais que ali tinha para dar), e logo recolhia o cesto, até que viesse o próximo necessitado. Alguns seriam "os do costume"... Mas dele não ficaram palavras concretamente ditas, expressões peculiares, tom de voz, os seus gostos na música, nas cores, nos fatos, cartas suas, escritos... Ficou muito pouco da vida tão cheia do único grande empresário deste ramo da família ...(essa imagem levou o meu primo do Canadá, bisneto como eu, a dizer, quando arriscou um investimento na área de Toronto: "É preciso retomar o espírito empresarial, que anda perdido na família há 3 gerações" Deixou, pois, o Bisavô João um exemplo que ainda agora nos desafia a fazer coisas... Mas que pena tenho de não ter um registo de conversas, ao seu próprio jeito.... De um lado e outro da família é só a palavra das mulheres que resiste....e de uma palavra concreta se faz um retrato mais vivo. Como o da bisavó Francisca, apenas em duas ou três pequenas quadras dos milhares que saíram da sua veia repentista... Ou na decisão que tomou de se opor a um dote excessivo para o casamento da filha Francisca, como exigia a família do noivo e que comunicou ao marido nestes precisos termos: "Não assino, João! Seria o mesmo que deserdar o nosso filho. Não assino, quero ficar de bem com Deus e com a minha consciência". E a escritura não se fez com aquela abundância de bens, mas com o que achou correto. E o casamente foi por diante nas condições que ela impôs. A mulher tem no círculo familiar a força que tem, não a que lhe conferem leis e convenções A esta sobrava coragem e pragmatismo e por isso levava a sua por diante. Coragem e bom senso em partes iguais. O homem. que era um grande homem, começava por lhe ter respeito.... Assim o Avô Manuel contava uma das história da Mãe que tão bem o soubera proteger e que ele admirava mais do que qualquer outra pessoa à face da terra. Outra tirada que sobreviveu foi a que pôs termo a um período de namoro que se arrastava: "Não quero que esta gente diga que estive à espera que a tua mãe morresse, para me casar contigo. Ou é agora ou não é". Sintética e precisa. Neste caso o filho terá ouvido a frase da sua própria boca. A grande anotadora de lendas e de crónicas, também, às vezes, falava de si.... À casa do lugar do Paço chamava "o torrão". A partir do núcleo inicial de uma casa de pedra pequena e antiquíssima (do sec XVI ou XVII), se acrescentara outra bem maior, cujas obras terminaram em 1901. E depois se comprara a vizinha Quinta da Pena, as Nogueiras e muitas das terras da ribeira do Douro, para poente... E há ainda o insuspeito testemunho da minha mãe, que vivia em conflito constante com os sogros e de pouca gente gostava em Avintes, mas simpatizava, incondicionalmente, com aquela velhinha prodigiosa, de olhos grandes e azuis. Só ela mesmo a poderia criticar. "Menina, usas as saias muito curtas. Parece mal....



  DOIS CASAMENTOS

 A vida parecia tê-la favorecido em tudo. Sabia conseguir o que queria, de uma forma sensata e determinada, que os outros aceitavam com a força dos seus argumentos e do seu encanto pessoal, a começar pelo "inner circle" da própria família. Com amável camaradagem, afastava os pretendentes, que eram bastantes, e, por fim, fez a sua escolha - o João. Amor correspondido. Quando casaram, ela tinha 21 anos e ele 19. Por Celina, desistiu do curso Letras em Coimbra. A Faculdade de Letras do Porto, tinha sido encerrada pela ditadura, para correr com todos os vultos (oposicionistas) que tanto a prestigiavam. Ciências que era o que a cidade podia oferecer-lhe e aí se matriculou. Talvez só para satisfazer a vontade do pai. Como era previsível, rapidamente abandonou as aulas, por declarada falta de vocação científica. E procurou emprego por perto - na Câmara de Gaia. Havia uma boa razão para um enlace tão prematuro. A "doença do século", ou do início do século, que era ainda a tuberculose, não poupou aquela fascinante mulher, em plena juventude. Não se deixou vencer pelo medo, não quis esperar pelo veredito incerto sobre a doença, não hesitou, quis viver com o homem que amava, nem que fosse por um breve futuro de felicidade. Ele também não hesitou e ambas as famílias se empenharam, em tornar possível uma verdadeira "love story" de fins da década de 30. Quando vi o filme com esse título, tantos anos depois, lembrei-me daquela história antiga, que eu, ainda criança, fui reconstituindo e recriando na minha imaginação, como um "puzzle", ouvindo comentários daqui e dali, ou discussões ciumentas, por parte da minha Mãe, sem nunca ter questionado diretamente ninguém, e muito menos o meu Pai. Os contornos sociais eram bem diferentes dos da trama "made in USA" - ali tudo e todos giravam à volta dela, como sujeito de admiração universal. Todavia, na ficção americana e numa realidade, onde Celina ocupava graciosamente o centro de cena, o papel principal, a essência era a mesma: a vivência efémera de um sentimento eterno. O casamento durou sete ou oito meses de felicidade. Valeu, certamente, a pena. E a imagem de Celina, que partira, continuava intensa e luminosa na memória da terra. Uma memória venerada contra a injustiça da sorte. Os sogros, que a adoravam, como uma filha querida, conservavam o seu retrato na sala de visitas, numa enorme moldura de prata. Uma foto de meio corpo, cabelos escuros, soltos, compridos, uns olhos expressivos, um sorriso e um luxuoso vestido de seda, sem colares nem adereços. Parecia-me uma princesa, ou uma estrela de Hollywood. Encantava-me a senhora do retrato, queria saber mais sobre a sua vida. Impossível, porque minha Mãe não suportava o que chamava "o culto" de Celina, as fotos expostas na casa, as "romagens" ao seu túmulo, as recordações e os sentimentos os sogros dela guardavam. Pode ter ocupado um lugar igual no coração do marido, mas não no deles! As disputas sobre a exposição do retrato duraram anos, e, por isso, me foi acessível até uma idade, 7 ou 8 anos, em que ficou bem gravado na memória . Mas um dia, a minha ciumenta Mãe levou a melhor, a moldura desapareceu, depois de uma última discussão, e fez-se silêncio. Nunca consegui aceitar, ou melhor, compreender a razão dos ciumes de alguém que já não estava ali - sou e, já em menina era, instintivamente favorável ao absoluto respeito por uma diacronia dos afetos, em que cada tempo tem o seu império - a simultaneidade de relações amorosas é o que não tolero, no que me diz respeito, embora reconheça, racionalmente, que é possível estar dividido entre dois amores atuais. Ainda por cima, a segunda mulher era também elegante e bonita, diziam até que parecida com a primeira. Mais pequena e mais magra, é certo, mas não menos arrebatada e voluntariosa. Só mais de meio século depois destes incidentes, que me desgostavam, mas que não tinha com quem comentar, encontrei um interlocutor inesperado: o primo António Reis, em Toronto, numa das minhas frequentes visitas ao Canadá (para onde ele emigrou a meio dos anos 60, com a Mulher Amélia e o filho pequeno). Quando podia, prolongava a visita e ficava em casa deles, perto do aeroporto. Foi numa dessas ocasiões que o tema surgiu, a propósito da produção poética do meu Pai, que se perdeu, como já disse, quase toda. Os versos dedicados a Celina foram rasgados, durante uma crise de ciúmes. Na verdade "abismus abissum invocat" (espero ter acertado no dito latino, que o Pai saberia aprovar ou corrigir...). São atitudes de fácil contágio - o Pai fez exatamente o mesmo a uma composição musical inédita do pianista Marques Ribeiro dedicado à Mulher, com quem tivera um princípio de romance... Foi então que, na sua casa de Martha Eaton Way, o António "agarrou" o tema de conversa. Primeiro, tentou lembrar-se dos sonetos escritos para Celina, mas só conseguiu recitar um, e incompleto. Depois, falou dela, infindavelmente - de uma jovem moderna, um ícone da última moda, alta, lindíssima, muito divertida, e sempre cercada por uma corte de admiradores. Entre estes, ali o confessava perante uma Amélia complacente, ele próprio! Com dezasseis, dezassete anos, sentia-se perdidamente apaixonado. Os dois primos, cada qual o mais atraente, numa disputa pouco fraternal pela mesma mulher - jamais imaginaria! Celina, obviamente, não levava a sério o mais novo, novo demais. Essas confidências foram uma revelação, trouxeram-na, da distância de um Olimpo, da figura recriada a partir de uma pose teatral, que a fazia parecer mais velha, com um "glamour" de "mulher fatal" para uma jovem extrovertida, com eu própria tinha sido, irreverente, iconoclasta, ágil, desportista. O que mais me ajudou a reconverter o mito na pessoa real, foi o episódio da sua chegada a uma reunião de amigos pelo telhado - estavam, elas e eles, à conversa num sotão e ela surpreendeu-os entrando por um postigo do telhado. Mas que bem! Tão parecida com a minha Mãe, que fazia coisas perigosamente na mesma linha, como subir ao telhado da "casa da eira" e inclinar-se na esquina para apanhar os araçás mais inacessíveis, ou saltar do 1º andar da casa por sobre canteiros de roseiras de pé alto, só para vencer apostas... Na geração seguinte, eu fiz o mesmo. Do primeiro casamento do Pai não existem imagens - deve ter havido muitas, mas perderam-se, nunca as vi, nem mesmo nos álbuns dos Avós - e, assim, tudo quanto sei foi o que o António me contou nessa tarde - foi um casamento de estadão, a noiva de vestido branco, sumptuoso, banquete nos salões da grande mansão dos Viana e uma multidão de convidados. Memorável. O António descrevia a cerimónia com todos os detalhes,inclusive o discurso eufórico e emotivo do Avô Manuel, que parece ter sonhado tanto com aquele casamento como os próprios noivos. Ele próprio não quis participar da festa, sentia-se demasiadamente preterido e infeliz. Mas, como não se falou de outra coisa durante os dias que se seguiram, ficou a par do que se passara, como toda a gente, entre presentes e ausentes. Pouco foram os meses, as semanas, os dias que os noivos viveram "num voo pleno de ansiedade", o "coração vogando nas asas do sonho". O desaparecimento de Celina, uniu as famílias à volta da sua memória - pais. sogros. cunhados, tios e primos conviviam intensamente depois, como antes. O Pai tinha 20 anos, o seu emprego rotineiro, muitos amigos. Faltava-lhe o ânimo para recomeçar estudos, ou para procurar profissão mais interessante. Entre os seus melhores amigos, amigos de infância, estavam dois irmãos, os Padres Eduardo e António. Foi através deles que conheceu, em Outubro de 1940, a família Aguiar, a Maria Antónia, que iria ser a sua segunda mulher. Na capela do Monte da Virgem, no domingo da "missa nova" do Padre António. A Maria Antónia, no colégio, foi colega e grande amiga da Maria Luísa, irmã dos futuros padres, que eram, nessa altura, colegas e grandes amigos do João. E, por isso, uns anos depois, todos estavam presente na primeira missa do mais jovem dos padres - a Avó Maria Aguiar, com as filhas solteiras (difícil já, então, levar os filhos à igreja...) e a Avó Olívia Capela, com o filho viúvo. Conta a Mãe que o bonito rapaz alto e loiro, apesar de muito devoto, se distraiu o suficiente para a olhar, repetidas vezes. E tendo ela sentido esses repetidos olhares, é claro que também não prestou à missa a devida atenção. Cá fora no adro, antes mesmo de serem formalmente apresentados, já ele lhe pedia para aceitar uma lembrança do dia da "missa nova" do amigo comum, comprada numa tendinha, que vendia terços, imagens da Virgem e anjinhos, a par de pequenas peças de artesanato - reduto em que o Pai escolheu a sua simbólica oferta. Presente estava também a Tia Arminda (que não era bem tia, mas sim tia da Nucha Aguiar, professora de piano das primas mais novas), que era de Avintes, íntima da Avó Olívia, e, igualmente, da Avó Maria, que visitava, sempre que passava férias em Gondomar. Foi tempo de saudações e conversa entre as três cristianíssimas senhoras e entre Maria Antónia e João, que estava entusiasmado com a perspetiva de uma excursão a Lisboa, com o primo António, para verem a exposição do "Mundo Português". De lá iria escrever-lhe e mandar-lhe um soneto, o primeiro que discretamente falava de amor que se procura. O que começa assim: "Lancei o meu olhar sobre esse imenso Tejo, À noite semeado de um encanto vago E vi em cada onda uma sombra, um lampejo Dessa história de heróis, que no meu peito trago" Dir-se-ia que toda a inspiração vem da temática da "expo", mas não, na última estrofe o A. sente o irreprimível desejo de lançar às ondas o seu coração em busca de um amor... que, pelo visto, até já estava encontrado. À primeira vista. Seguiu-se uma frequente correspondência, muitos encontros em Gondomar, no Porto, num roteiro de terras, como Santo Tirso, onde, por coincidência, a Maria Luísa dava aulas num colégio de freiras e o António Aguiar, irmão da Maria Antónia, era tesoureiro da Fazenda Pública e morava numa pensão dos tios da rapariga com quem namorava, para casar uma beldade de fulgurantes olhos verdes (Antónia, o seu nome no feminino, que todos chamavam Toninha). A irmã Maria passou a visita-lo, mais vezes, ficava na mesma pensão, encontrava-se com a amiga dos tempos do colégio e com o namorado (que tinha de escolher outra pousada. O irmão era tão severo como a Mãe, embora com agenda mais preenchida, abrandasse a vigilância durante o dia de trabalho. Passeavam por aquela vila linda, sempre acompanhados pela Toninha, naturalmente. Entretanto já era amigo de toda a numerosa, alegre e turbulenta família da namorada. Um rigoroso contraste, com a sua. Não só eram muitos (sete irmãos, mulheres, os mais velhos já com filhos pequenos, namorados e namoradas) como muito diferentes entre si, com uma tradição de confronto e discussão política, que nunca acabava mal, embora ninguém nunca mudasse de campo, ou de opinião. Nas gerações anteriores, uns eram monárquicos, outros republicanos. Nesta, em plena guerra, degladiavam-se, sobretudo, anglófilos/democratas e germanófilos/salazaristas. Mas, felizmente, eram todos também muito dados às artes da música e da dança, e facilmente passavam do modo de "tertúlia - debate" para o de tertúlia musical, tocavam piano as senhoras, cantavam todos em coro, com algumas vozes assombrosas. O Pai era mais um, com o seu belo timbre de voz e os argumentos de fortes convicções, gaguejando, embora, no auge das discussões. De comum, a mãe e à futura sogra, tinham , antes de mais, a religiosidade que governava as suas vidas, e as respetivas casas era frequentadas por inúmeros padres o pároco, os coadjutores, outros padres de fora, seminaristas, freiras, missionários. Ser o João um crente de missa e comunhão quase diárias, tornou-o muito popular, desde a primeira hora, desde o encontro do Monte da Virgem... No verão de 41, as meninas Aguiar não puderam veranear na Foz, como era habitual. Madalena, a mais nova, estava convalescendo de uma "primo infecção" e os médicos aconselhavam os ares da serra, não as nortadas do litoral. Passaram o verão numa quinta cedida por amigos, em Branzelo. Duas primas do João, a Alda e a Maria Helena foram convidadas da Avó. Já o João, nos fins de semana, tinha de procurar um quarto de pensão, convenientemente perto, mas não demais. Eram noivos, sem oposição alguma, (graças ao catolicismo do viúvo, a que acrescia a fama de herdeiro rico), mas sem permitir "liberdades", que tão conservadora senhora acharia impróprias. Costumes da época, levados ao máximo limite do rigor. Todavia, as filhas, sobretudo as mais novas, sabiam achar mil e uma maneiras de contornar proibições. Cumplicidades nunca lhes faltaram, a de umas com as outras, a das amigas e, particularmente importante, a dos vários e sucessivos empregados ao serviço na "Vila Maria" (ou das criadas e criados, como então se usava dizer). Sobre Branzelo há uma carta do Pai, em versos bem humorados, contando uma atribulada viagem de regresso de fim de semana, em que os convivas tinham sido muitos, incluindo o jovem Padre Vitor Hugo, coadjutor na paróquia de São Cosme, autor uma grande reportagem fotográfica dos acontecimentos... Avintes, tantos de tal daqui fulano de tal etc. e tal Maria: Venho escrever-te/porque o ler também diverte/quem nada tem a ocupá-la.../- E enquanto a pena desliza/A gente sente, imprecisa,/ A sensação de que fala!//Começo por te contar/ Que ainda antes de chegar/ Ao Porto- que forte perda/ O camião de Branzelo/ Furou antes do Covelo/ E teve "panne" na Meda/E assim sem mais novidades/ Cheguei cheio de saudades/ Ao café para engraxar;/ Mas aí, nova surpresa/ Sentado em frente a uma mesa- / Me estava a aguardar.../- Espantei que nem Texugo/...Era o Padre Victor Hugo/ Cheio de fotografias./ Tinha ali toda a excursão/- A Maria e o João/ E mai-las outras Marias!/ A Lolita numa delas/ Está tão só que mete pena./Apenas aos pés, deitada,/Uma galinha coitada (esfolada) Tem pena de não ter penas.../ (Diz a má língua que as outras eu/ As comi- tenham juízo -/ Que alguém as comeu, comeu!/ Quanto a mim estou "indeciso" ...)/ Na da Penha vi: que vento!/ Se me rio mais rebento/ De dar tanta gargalhada - / Quanto a ti minha "migalhas",/ Se te ris mais, escangalhas/ Não se te aproveita nada!/ Agora assunto mais grave/ - A Lolita sempre quer/ Fazer anos quarta-feira?/ porventura ela não sabe/ Que isto de envelhecer/ É grande asneira, ui, que asneira?!/ Ela que tenha juízo/ durma bem e ganhe siso/ Um ano a mais... não vem mais/ A graça morre, se passa.../ Recordar é uma desgraça/ Desgraças já há demais!/ Oh abri alas.../ E a Lena como está?/ Sossegue, sim?- que a Tatá/ Um dia faz-lhe a surpresa!/ Lá quando menos o conte/ Inda o "Sole" "male" desponte/ Na manhã! Ei-lo a ele!que surpresa!/ Oh! abri alas!/ E vocês como estão?/ Não estejam com "cem" cerimónias!/ Por aqui andou toupeira/ Já lambeu a capoeira,/ Sou todo vosso/ João Uma narrativa, que podia ter saído da pena, ou melhor, oralmente, da voz da Avó Quitéria Francisca... cheia de pormenores explícitos e sub-entendidos - alguns difíceis de descodificar, mas que nos falam de amizade e boa disposição, de passeios, de casos, de romances de verão e de amores que se revelariam duradouros... Nos versos dedicados às futuras cunhadas Lolita e à Lena, a primeira letra de cada estrofe dá-nos uma pista, o nome dos rapazes da sua predileção, nesse agosto de 41: Eduardo e Esolino. O primeiro, que viria a ser o muito querido e divertido Tio Eduardo, um acabado exemplar "bon vivant", estava na lista negra da Avó por isso mesmo, e por não ser um católico praticante (apesar das famílias pertencerem ao mesmo círculo social da vila de Gondomar...). O Esolino era vizinho do lado, as propriedade confinavam, o pai era músico, compositor, tocava na igreja, (preenchia uma condição "sine qua non"...), parece que gostava da menina, muito bonita e serena (ao contrário das manas, que eram tão bonitas, quanto temperamentais). E talvez ela lhe achasse graça, mas aos 15 anos, era cedo para se pensar em compromissos. A Tatá que levaria o simpático vizinho a Branzelo era a Tia Hermínia, cunhada da Avó Maria e uma segunda mãe da Tia Lena, sempre pronta a fazer-lhe todas as vontades. Mais enigmática é a menção à galinha retratada numa foto, e às galinhas devoradas. Talvez uma forma de auto-crítica, porque o Pai tinha um apetite muito saudável, que manteve até à meia idade, comia quantidades assombrosos de carne de qualquer espécie. Comia imenso e bebia pouco. O gosto dos contrastes - ele tão alto e tão apreciador de boa mesa, ela tão magra, frugal e pequenina... Quanto ao passeio à Penha, havia de repetir-se muitas vezes, afrontando a ventania, com risos e gargalhadas. (Como os jovens de 20 anos, em Portugal, estavam longe de uma guerra tão próxima, que acompanhavam pela imprensa e pela rádio, mas não entrava no seu quotidiano!).
. O casamento civil foi, em Gondomar, a 1 de novembro de 1941. Cada qual continuou em sua casa, pois para as famílias o que contava era a cerimónia religiosa, realizada na Igreja Matriz de Gondomar, duas semanas depois. O "pedido da mão da noiva" tinha sido feito formalmente, à mãe e ao irmão, o Tio Alexandre, o que sempre acompanhou os sobrinhos como um pai, na falta do pai. O Tio defendeu, pois, paternalmente a Maria Antónia, com uma variante de "sermão laico" sobre as suas obrigações como marido (era um republicano anti-clerical - os seus únicos defeitos, do ponto de vista da irmã - e o ser o noivo muito devoto para ele não era virtude que o recomendasse). Lua de mel na bela região do Vouga! Como o noivo ainda não tinha comprado o seu primeiro carro, viajaram no comboio, no famoso "vouguinha", a partir de Espinho, fazendo paragens para pernoitar, aqui e ali, até chegarem a Viseu, cidade onde a minha mãe fez questão de passar uns dias. Era outono, quase inverno, mas o tempo pouco importava. Voltaram a Gondomar - a Avó Maria insistia que ficassem a viver na sua casa enorme, onde já só só moravam com ela dois filhos solteiros, o Zé e a Lena. O Pai tinha encontrado uma nova família, grande e divertida - gostava de todos e todos gostavam dele. A Mãe com os sogros nunca se entendeu muito bem - acho que nunca a viram como a filha que tinham encontrado em Celina, e ela retribuía, interpondo cada vez mais distância - mas adotou e foi adotada, facilmente, pelos tios e primos, e até também pela famosa Avó Quitéria Francisca. Achava-lhe a maior graça, mesmo quando a repreendia por usar saias tão curtas (coisa que não toleraria a mais ninguém, com exceção da sua mãe, naturalmente). A uma e outra respondia que "era a moda", que sempre fez questão de seguir, à sua maneira. Curiosamente, nesse aspeto, o Pai não era diferente - embora muito mais comedido em matéria de compras, o seu lema era "pouco, mas bom" - fazendas inglesas, costureiro famoso do Porto (durante muitos anos, o Arménio). Quando iam para Avintes passar uns dias (a casa dos Avós tinha, também, espaço de sobra), o convívio com os tios e primos Reis e Marques, sobretudo, mas também os Capela era uma festa constante. Mas, onde quer que estivessem, o Porto era um ponto de encontro frequente. Para tomar café (no Guarani, no Imperial, no Paládio), para ir ao cinema nas noites de sábado, para deambular por Santa Catarina e Santo António. Curiosamente, os casais frequentavam juntos esses cafés, com os primos solteiros, o que, naquele tempo, não era coisa habitual (seria influência das vivências de Espinho, onde isso era a regra?). Mas, claro, as senhoras, quando só entre elas, escolhiam as confeitarias tradicionais, como a do Bolhão, ou a Ateneia. A Mãe e a prima Cristina eram as únicas que se aventuravam no Café Ceuta, que talvez oferecesse um ambiente menos sexista do que os congéneres. Nos fins de semana, aos domingos, os cunhados de Gondomar, eram, muitas vezes, desafiados para passeios pelo verde Minho, sempre à descoberta de um novo restaurante, de estradas secundárias, de vistas espetaculares sobre serras e rios. Seguiam em verdadeiros cortejos de carros, com as barulhentas criancinhas. Pelo Minho, e não só - também pelo Douro interior, por Trás-os-Montes (não perdiam as corridas de Vila Real), mais raramente, em direção ao sul. Muitas excursões eram dirigidas, também, a pequenas terras do interior, onde os antigos coadjutores da paróquia de Gondomar eram senhores abades - como o padre Campos ou o Padre Serafim, muito hospitaleiros e muito divertidos - as favoritas da Avó Maria, que, contudo, não faltava a nenhuma, fosse para onde fosse. Em 1942 nasci eu, na Villa Maria, no ano seguinte, em dezembro, a Madalena. Nessa casa, que para nós era paradisíaca, vivemos os primeiros anos, anos muito felizes. nov u

segunda-feira, 11 de junho de 2018

NO FUNERAL DO Miguel UR

Hoje quase tive o privilégio de cumprimentar a Dra. Manuela. Estava a falar com Sarabando, quando olhei, já não a encontrei. Tive pena. A Dra. Manuela “é senhora de Amizades e eu tenho-lhe muita. Não só pelo seu conhecimento eu é muito, mas pela maneira de ser. Uma Grande Mulher, gosto muito da Manuela, tenho-lhe grande Amizade”, foi assim que o Miguel descreveu a Dra. Manuela, depois de um lhe dizer que eu gostava muito da Dra. Pensando eu que o Miguel não a conhecia. Gostei muito de a ver no funeral, se o meu respeito era muito agora não há dúvida que é muito maior. Depois de ter uma vida sempre a correr tirar um tempo para se despedir de um Amigo, comunista é uma atitude muito louvável, bonita e Democrata. Com uma grande comoção, Bj, Guida Rodrigues

quarta-feira, 6 de junho de 2018

O CENTENÁRIO DO PAI

Para comemorar o centenário do Pai, preparo uma reedição do seu livro de poemas, prefaciado com notas biográficas. Trabalho em progresso... POETA, DE VEZ EM QUANDO... (ou INTIMO - as nossas memórias da sua vida) NASCIDO NUMA TERRA ANTIGA "Deixa aqui escrito o seu nome O célebre João de Avintes" (in " Apresentação") Em setembro de 1916, os pais de João, Olívia e Manuel, casaram na Igreja de Avintes. Olívia muito bonita, alta, magra, pálida, olhos grandes e cabelos escuros, sorriso doce. Uma beleza serena e exótica. Tinha dezasseis anos, menos dez do que o loiro e melancólico Manuel, homem bem parecido, herdeiro de um dos lavradores mais ricos de Gaia. Jovem, elegante, que gostava de seguir os cânones da moda, frequentador do Clube Recreativo Avintense e do teatro, ator amador do Grupo Dramático Mérito, melómano e desportista, campeão em atletismo e nas várias modalidades de jogos tradicionais. Olívia não girava nos mesmos círculos. Muito religiosa, tímida e modesta, foi nas missas de domingo que se cruzou com Manuel, católico praticante, naturalmente, numa família conservadora e monárquica, onde não havia ateus.. Foi amor à primeira vista e perfeito entendimento pela vida fora. Até nos traços físicos contrastavam em absoluto, a provar a diversidade de povos que se misturaram na península, Ele poderia ser, e talvez fosse, descendente dos bravos militares ingleses, que andaram por Avintes e Gramido, a combater as tropas napoleónicas. Disso não há prova, para além da aparência, sua e dos ascendentes, /do Pai e do Tio Padre, ambos gigantes com quase dois metros de altura, loiros como ele) e de uma anglofilia que se transmitiu de geração em geração. Nada disso teve qualquer influência no romance e no casamento, que só obedeceram às razões do coração, sem consideração de fortuna e sem oposição. E ele continuaria a frequentar as tertúlias do clube, o teatro e as salas de concertos, onde ela não gostava de o acompanhar, saindo para fazer o que gostava - para visitar a família e amigas ligadas à paróquia, para ir à sua missa diária.
Ser livre para escolher consorte não era, então, regra, era exceção. Tanto os pais de Manuel, como os de Olívia, tinham desafiado a lei dos interesses, os tabús que podiam tê-los separado. Para João Dias Moreira e Quitéria Francisca Pinto, o formidável obstáculo era a mãe dele, viúva de génio difícil, que não queria partilhar o filho e a casa com aquela irreverente mulher de 1,50 de altura, olhos muito azuis, resposta sempre pronta. um nome antigo, Quitéria, e a alcunha de "rendeira" comum à linha feminina da família - era uma das "rendeiras", meninas bonitas e de boa reputação, que viviam confortavelmente, sem serem, porém, herdeiras terratenentes. Havia um outro filho, de um primeiro matrimónio, Manuel Pinto da Silva, mas era padre, andou de paróquia em paróquia, foi o primeiro abade de Espinho, secretário do Bispo do Porto, morou no Paço episcopal e a Avintes só regressaria anos depois da morte da mãe. O tempo ia correndo, num namoro tranquilo, sem pressas e sem pressões, de parte a parte. A família de Quitéria Francisca ( o nome preferido, que era o da mãe e que daria à única filha), mais numerosa, mais liberal, mais alegre, no seu círculo tinha alguns artistas, entalhadores tradicionais, santeiros, a que haviam de suceder, escultores e arquitetos vanguardistas, com estudos feitos na capital cultural da Europa, que, para eles, era Paris. Não seriam ricos, mas viviam bem. O pai de Francisca e de Esperança trouxera do Brasil alguns capitais, que investiu num estaleiro artesanal de barcos do rio. Espírito aberto - se se pode numa aldeia dos arredores do Porto usar o termo "cosmopolita", era cosmopolita (talvez em virtude da emigração , quando jovem aventureiro). Francisca era muito baixinha, magra, ágil, física e mentalmente, gostava de cantar ao desafio nas romarias, onde nunca perdia o fio à meada poética e consta que, na adolescência, se vestia de homem para jogar o varapau nas feiras (feito tanto mais assombroso quanto a estatura não a favorecia). Ousada sem deixar de ser sensata e sempre coerente com as suas crenças e princípios. Assim a via o filho Manuel, para quem foi sempre, mais ainda do que o pai, a grande aliada e grande mestra. É dizer muito, porque o pai era também figura admirável, um homem que punha a honestidade acima de tudo e que fez fortuna, com uma visão moderna da agricultura, usando toda a maquinaria nova que havia no mercado e comprando terras,a dinheiro ou a crédito, que teve em abundância. Consta que comprou, ao longo dos anos, 99 propriedades, umas maiores, outras menores. De qualquer modo, muitas. Contava Manuel que um dia, sem que algum facto concreto o justificasse, Francisca, (deixemos o Quitéria, de que gostava pouco...), acordou com outra ideia sobre o casamento, que quis marcar, de imediato Já com mais de 30 anos, terá sentido, de repente, que o tempo de ter filhos começava a escassear? Terá ouvido algum remoque, que a levou a tomar a decisão?) O argumento invocado foi outro: não tolerava que pudessem pensar que estivera esperando a morte da futura sogra para se tornar em esposa do filho. Sem pedir conselho a ninguém, nem a pais nem a irmã, a belíssima Esperança dos olhos muito verdes, desceu do alto da rua principal onde morava (a que que viria a ser a 5 de outubro, após a implantação da República), até â beira-rio, ao encontro do eterno namorado. - "João, há uma coisa que tenho de te dizer. Só caso contigo, em vida da tua mãe! Ninguém aqui vai dizer que eu esperei pela sua morte para poder ser tua mulher. Não discutas, a minha decisão. está tomada. Agora, tu tens de tomar a tua! Não precisamos de viver juntos. Tu continuas aqui no Paço, a cuidar da tua mãe, e eu com os meus Pais. Mas tens de me dar resposta, imediatamente.. A resposta foi "sim". Conhecia bem aquela mulher franca comunicativa, compreensiva e amável, que sabia ser absolutamente inflexível no que considerava questões da maior importância. João prezou sempre a sua inteligência e pragmatismo, qualidades que também eram suas. Por isso, haveriam de se entender tão bem, sempre. Em poucas palavras, ele aceitou o trato e fizeram precisamente como ela propôs. Trataram dos papéis, acertaram dia e hora com o abade de Avintes e fora, dar o "sim" à igreja, que ficava a meio caminho entre as suas casas . Depois de um almoço simples, a elas voltaram. Por poucas semanas. A sogra adoeceu e chamou Francisca. Consta que foram amigas, desde então, fazendo um improvável, mas fácil percurso de apreciação mútua e tornando João, um filho e um marido feliz. Muito menos conhecida é a história dos amores contrariados de João Capela e Joaquina Gonçalves. Ele era um dos Capelas da Quinta dos Órfãos, nas formosíssimas terras da margens do Sousa, ela era filha de um farmacêutica. A rotura com a família Capela foi definitiva, E desse assunto não se falava. Porque terá Joaquina sido "vetada" , permanece um mistério, Poderá ter sido simples questão de dote. Ou de preconceito, contra o farmacêutico, ou contra a filha, por causa de desavenças recentes e antigas... Certo é que foi coisa grave, de tal forma sentida como injusta pelo jovem Capela, que nunca mais se relacionou com ninguém da família. O mistério persiste até hoje. Esse Avô era um homem interessante, de olhos muito azuis, sempre formal, nos seus fatos escuros, muito bem educado e muito reservado. Da quinta dos Órfãos saiu sem nada, mas tornou-se um próspero homem de negócios, Talvez inicialmente ajudado pelo sogro. A Avó Joaquina terá sido uma bonita jovem, mas o neto só a conheceria numa fase em que a gordura da matriarca já vencera quaisque traços de passada graciosidade Vida na quinta da Pena O neto teria o seu nome João Dias Moreira O nome dificilmente poderia ter sido outro. O Avô materno também era João - João Capela. Um herdeiro robusto, muito branco, loiro, Assim o mostram as fotografias tiradas num estúdio do Porto. Não herdou os olhos azuis do Avô Capela, mas prometia a compleição nórdica do Avô Dias Moreira e do Tio Padre Manuel Pinto da Silva, os gigantes, que pareciam vindos dos "Highlands" da Escócia. Como disse, no começo do século XIX, muitos soldados ingleses, aliados ou francesas, inimigos, connosco ou contra nós se geurrearam nas duas margens do Douro. Em Avintes, no século passado, ainda os naturais pronunciavam o "l" à francesa (em "ca"l, por exemplo, que soava como "cale").... Mas sobre essa possível ascendência nada se sabei de concreto, para além desses traços fisionómicos nórdicos, e de anglofilia declarada, que passou de geração em geração, atravessando as duas guerras europeias do século XX, a que então terminava e a que havia de acontecer duas décadas depois. Sabe-se, sim, que os Dias Moreira eram chamados os "patrões". Descenderiam de antigos donos de estaleiros que existiram na ribeira de Avintes? Foram-se os estaleiros, ficou a alcunha? O menino era o "Joãozinho Patrão", filho do Manuel Patrão e neto do João Patrão. Do lado da Avó materna aa mulheres eram conhecidas como "as rendeiras", a Esperança rendeira, a Francisca rendeira. Virá a alcunha do virtuosismo ou do negócio de rendas e bordados? Provavelmente, porque a alcunha era no feminino. Eles, avós, pais e irmãos não eram "os rendeiros". quarta-feira, 4 de abril de 2018 PAI 7 MARÇO POETA, DE VEZ EM QUANDO... (ou INTIMO - as nossas memórias da sua vida) 1 - Memórias suas na nossa guardadas NASCIDO NUMA TERRA ANTIGA "Deixa aqui escrito o seu nome O célebre João de Avintes" (in " Apresentação") Em setembro de 1916, os pais de João, Olívia e Manuel, casaram na Igreja de Avintes. Olívia muito bonita, alta, magra, pálida, olhos grandes e cabelos negros, sorriso doce. Uma beleza serena e exótica, dir-se-ia oriental, embora se lhe não conhecessem antepassados fora das terras que bordejam o Douro e o Sousa... Tinha dezasseis anos, menos dez do que o loiro e melancólico Manuel, homem bem parecido e bom partido, herdeiro de um dos lavradores mais ricos de Gaia. Um jovem, elegante, que gostava de seguir os cânones da moda, frequentador do Clube Recreativo Avintense e do teatro, ator amador do Grupo Dramático Mérito, melómano e desportista vencedor em atletismo e nas várias modalidades de jogos tradicionais. Olívia não girava nos mesmos círculos sociais Muito religiosa, tímida e modesta, saía sobretudo para celebrações e festas religiosas, com a mãe e a irmã mais velha, Clementina, não tão bonita, mas muito mais "chique" e sociável. Nas missas de domingo se cruzou com Manuel, católico praticante, naturalmente, numa família conservadora e monárquica, onde não havia ateus.. Foi amor à primeira vista e perfeito entendimento pela vida fora. Até nos traços físicos contrastavam em absoluto, a provar a diversidade de povos que se misturaram na península, Ele poderia ser, e talvez fosse, descendente dos bravos militares ingleses, que andaram por Avintes e Gramido, a combater as tropas napoleónicas. Disso não há prova, para além da aparência, sua e dos ascendentes, /do Pai e do Tio Padre, ambos gigantes com quase dois metros de altura, loiros como ele) e de uma anglofilia que se transmitiu de geração em geração. Nada disso teve qualquer influência no romance e no casamento, que só obedeceram às razões do coração, sem consideração de fortuna e sem oposição. E ele continuaria a frequentar as tertúlias do clube, o teatro e as salas de concertos, onde ela não gostava de o acompanhar, saindo para fazer o que gostava - para visitar a família e amigas ligadas à paróquia, para ir à sua missa diária. Ser livre para escolher consorte não era, então, regra, era exceção. Tanto os pais de Manuel, como os de Olívia, tinham desafiado a lei dos interesses, os tabús que podiam tê-los separado. Para João Dias Moreira e Quitéria Francisca Pinto, o formidável obstáculo era a mãe dele, viúva de génio difícil, que não queria partilhar o filho e a casa com aquela irreverente mulher de 1,50 de altura, olhos muito azuis, resposta sempre pronta. um nome antigo, Quitéria, e a alcunha de "rendeira" comum à linha feminina da família - era uma das "rendeiras", meninas bonitas e de boa reputação, que viviam confortavelmente, sem serem, porém, herdeiras terratenentes. Havia um outro filho, de um primeiro matrimónio, Manuel Pinto da Silva, mas era padre, andou de paróquia em paróquia, foi o primeiro abade de Espinho, secretário do Bispo do Porto, morou no Paço episcopal e a Avintes só regressaria anos depois da morte da mãe. O tempo ia correndo, num namoro tranquilo, sem pressas e sem pressões, de parte a parte. A família de Quitéria Francisca ( o nome preferido, que era o da mãe e que daria à única filha), mais numerosa, mais liberal, mais alegre, no seu círculo tinha alguns artistas, entalhadores tradicionais, santeiros, a que haviam de suceder, escultores e arquitetos vanguardistas, com estudos feitos na capital cultural da Europa, que, para eles, era Paris. Não seriam ricos, mas viviam bem. O pai de Francisca e de Esperança trouxera do Brasil alguns capitais, que investiu num estaleiro artesanal de barcos do rio. Espírito aberto - se se pode numa aldeia dos arredores do Porto usar o termo "cosmopolita", era cosmopolita (talvez em virtude da emigração , quando jovem aventureiro). Francisca era muito baixinha, magra, ágil, física e mentalmente, gostava de cantar ao desafio nas romarias, onde nunca perdia o fio à meada poética e consta que, na adolescência, se vestia de homem para jogar o varapau nas feiras (feito tanto mais assombroso quanto a estatura não a favorecia). Ousada sem deixar de ser sensata e sempre coerente com as suas crenças e princípios. Assim a via o filho Manuel, para quem foi sempre, mais ainda do que o pai, a grande aliada e grande mestra. É dizer muito, porque o pai era também figura admirável, um homem que punha a honestidade acima de tudo e que fez fortuna, com uma visão moderna da agricultura, usando toda a maquinaria nova que havia no mercado e comprando terras,a dinheiro ou a crédito, que teve em abundância. Consta que comprou, ao longo dos anos, 99 propriedades, umas maiores, outras menores. De qualquer modo, muitas. Contava Manuel que um dia, sem que algum facto concreto o justificasse, Francisca, (deixemos o Quitéria, de que gostava pouco...), acordou com outra ideia sobre o casamento, que quis marcar, de imediato Já com mais de 30 anos, terá sentido, de repente, que o tempo de ter filhos começava a escassear? Terá ouvido algum remoque, que a levou a tomar a decisão?) O argumento invocado foi outro: não tolerava que pudessem pensar que estivera esperando a morte da futura sogra para se tornar em esposa do filho. Sem pedir conselho a ninguém, nem a pais nem a irmã, a belíssima Esperança dos olhos muito verdes, desceu do alto da rua principal onde morava (a que que viria a ser a 5 de outubro, após a implantação da República), até â beira-rio, ao encontro do eterno namorado. - "João, há uma coisa que tenho de te dizer. Só caso contigo, em vida da tua mãe! Ninguém aqui vai dizer que eu esperei pela sua morte para poder ser tua mulher. Não discutas, a minha decisão. está tomada. Agora, tu tens de tomar a tua! Não precisamos de viver juntos. Tu continuas aqui no Paço, a cuidar da tua mãe, e eu com os meus Pais. Mas tens de me dar resposta, imediatamente.. A resposta foi "sim". Conhecia bem aquela mulher franca comunicativa, compreensiva e amável, que sabia ser absolutamente inflexível no que considerava questões da maior importância. João prezou sempre a sua inteligência e pragmatismo, qualidades que também eram suas. Por isso, haveriam de se entender tão bem, sempre. Em poucas palavras, ele aceitou o trato e fizeram precisamente como ela propôs. Trataram dos papéis, acertaram dia e hora com o abade de Avintes e fora, dar o "sim" à igreja, que ficava a meio caminho entre as suas casas . Depois de um almoço simples, a elas voltaram. Por poucas semanas. A sogra adoeceu e chamou Francisca. Consta que foram amigas, desde então, fazendo um improvável, mas fácil percurso de apreciação mútua e tornando João, um filho e um marido feliz. Muito menos conhecida é a história dos amores contrariados de João Capela e Joaquina Fernandes. Ele era um dos Capelas da Quinta dos Órfãos, nas formosíssimas terras da margens do Sousa, ela era filha de um farmacêutica. A rotura com a família Capela foi definitiva, E desse assunto não se falava. Porque terá Joaquina sido "vetada" , permanece um mistério, Poderá ter sido simples questão de dote. Ou de preconceito, contra o farmacêutico, ou contra a filha, por causa de desavenças recentes e antigas... Certo é que foi coisa grave, de tal forma sentida como injusta pelo jovem Capela, que nunca mais se relacionou com ninguém da família. O mistério persiste até hoje. Esse Avô era um homem interessante, de olhos muito azuis, sempre formal, nos seus fatos escuros, muito bem educado e muito reservado. Da quinta dos Órfãos saiu sem nada, mas tornou-se um próspero homem de negócios, Talvez inicialmente ajudado pelo sogro. A Avó Joaquina terá sido uma bonita jovem, mas o neto só a conheceria numa fase em que a gordura da matriarca já vencera quaisque traços de passada graciosidade Vida na quinta da Pena O neto teria o seu nome João Dias Moreira O nome dificilmente poderia ter sido outro. O Avô materno também era João - João Capela. Um herdeiro robusto, muito branco, loiro, Assim o mostram as fotografias tiradas num estúdio do Porto. Não herdou os olhos azuis do Avô Capela, mas prometia a compleição nórdica do Avô Dias Moreira e do Tio Padre Manuel Pinto da Silva, os gigantes, que pareciam vindos dos "Highlands" da Escócia. Como disse, no começo do século XIX, muitos soldados ingleses, aliados ou francesas, inimigos, connosco ou contra nós se geurrearam nas duas margens do Douro. Em Avintes, no século passado, ainda os naturais pronunciavam o "l" à francesa (em "ca"l, por exemplo, que soava como "cale").... Mas sobre essa possível ascendência nada se sabei de concreto, para além desses traços fisionómicos nórdicos, e de anglofilia declarada, que passou de geração em geração, atravessando as duas guerras europeias do século XX, a que então terminava e a que havia de acontecer duas décadas depois. Sabe-se, sim, que os Dias Moreira eram chamados os "patrões". Descenderiam de antigos donos de estaleiros que existiram na ribeira de Avintes? Foram-se os estaleiros, ficou a alcunha? O menino era o "Joãozinho Patrão", filho do Manuel Patrão e neto do João Patrão. Do lado da Avó materna aa mulheres eram conhecidas como "as rendeiras", a Esperança rendeira, a Francisca rendeira. Virá a alcunha do virtuosismo ou do negócio de rendas e bordados? Provavelmente, porque a alcunha era no feminino, eles, avós, pais e irmãos não eram "os rendeiros". Na primeira imagem, possivelmente de fins de 1918, é um bébé gordo, a olhar em frente, olhos bem abertos, muito sério, entre os pais, Olívia e Manuel. Tem a mesma expressão, um pouco depois, já sozinho, sentado nos veludos de um estúdio, face à câmara, vestindo apenas uma diáfana camisa de cambraia branca, o cabelo escondido numa touca de renda. Era comum, então, fotografar os meninos nus, como os anjinhos do céu, mas imagino que a Mãe o quis poupar a tamanha exposição... O traje escolhido, sumário, leve e gracioso é, em todo o caso, mais etnográfico do que a nudez. Tão religiosa a Avó! Creio que, se pudesse, vestiria até os anjinhos, tanto nas esculturas como nos óleos das igrejas... Quatro ou cinco anos passados, é um rapazinho, que continua a não sorrir para a câmara, de pé, em poses artificiais, ensaiadas pelo retratista; de perfil, com calção curto e "blazer", encostado a uma coluna, ou de frente, com indumentária semelhante, junto a um brinquedo de praia. Praia de Espinho, estúdio da Fotografia Evaristo. O assim retratado não desperta uma grande empatia, não sendo, nessa fase, particularmente bonito ou expressivo, sem sinais da beleza exótica da mãe (dir-se-ia oriental, embora não o fosse) ou da pose natural de um pai bem parecido, que, para além de ator de teatro (no "Grupo Mérito Avintense"), podia bem ter sido ator de cinema. Estaria, talvez, contrariado, desconfortável sob a luz dos holofotes. Ou, talvez, refletisse o ambiente triste, em que terá crescido, depois da morte ainda recente dos irmãos mais novos, os gémeos, Alberto e Manuel e a irmã Maria, os três vítimas de complicações que hoje a medicina resolve facilmente. Saudável e forte só mesmo ele, o primogénito. Foi criado entre adultos, objeto de todas as atenções e de todos os cuidados, mas brincou, com certeza, muitas vezes, com os primos Reis e os primos Marques, nas casas deles, ou na sua, nos campos tranquilos da beira rio e em passeios de barco. Nos meses de verão, encontravam-se em Espinho, onde os avós maternos tinham casa de férias. E a relação fraterna, entre todos, manteve-se ao longo da vida. O Pai não falava muito dessa infância mais remota, nem das pessoas, nem dos lugares - o que é normal, sempre que nada corre particularmente mal. Mas abria uma exceção para a Avó Quitéria Francisca, que era uma fascinante contadora de histórias e declamadora de poesia popular - ela própria, quando jovem, imbatível na arte das "cantigas ao desafio". Grande mulher de pequena estatura, que acumulava bom senso e imaginação, frontalidade e gentileza e tanto sabia, trabalhar, infatigavelmente, como divertir-se. Impressionou o neto mais do qualquer outra figura tutelar, sem sombra de dúvida. Em setembro de 1916, os pais de João, Olívia e Manuel, casaram na Igreja de Avintes, uma das mais encantadoras terras das margens do Douro, que fica numa larga curva do seu curso tranquilo, já perto da foz, com o Porto à vista. Arrendaram uma vivenda, no Outeiro, colina verde e panorâmica, que desce, suavemente para a ribeira, até uma das mais belas propriedades dos pais de Manuel - a quinta da Pena. João haveria de encurtar essa distância, em correria, quase todos os dias da sua infância, A quinta foi o cenário de tempos felizes, o ponto de encontro com os primos, de visita aos Avós, que viviam em frente, numa casa rústica, com altos muros de pedra, que acompanham a estrada até à quinta do Paço - um conjunto de edificações de épocas diferentes, a mais antiga talvez de fins do século XVI, a mais moderna de 1901, data gravada na pedra da que era a entrada principal, todas ligadas em surpreendente harmonia. A casa da quinta, que se supõe ser de oitocentista, era mais pequena e discretamente senhorial, paredes pedra e cal branca, janelas verdes, linhas retas à face da estrada, com toda a sua vida voltada para o pátio das traseiras, para o que restava dos jardins, em redor de uma carranca antiga, incrustada em graciosa "capela" de pedra, lançando um fio de água, sobre um tranquilo lago retângular, também talhado em granito. O lago, simples espelho de água, e a carranca, foram cenário idílico de brincadeiras, onde inventavam histórias e personagens. Sabiam que ali tinha, nos anos da velhice, celebrava missa para a família o tio Padre Manuel Pinto da Silva, o que acrescentava à "capela" um ar de misticismo e magia . O jardim, de grandes árvores e veredas estreitas, perdera terreno para os campos de milho do novo dono e os quartos, com as janelas panorâmicas ladeadas de bancos de pedra, estavam desabitados. Pareceria ser a vivenda perfeita para o jovem casal. Foi-lhes oferecida, com certeza e preterida, provavelmente por ficar longe do centro da vida social da terra. Longe relativo, a perceção da distância em terras pequenas, tem menos a ver com a geografia do que com a sensação de isolamento, que ali ainda hoje persiste, um século depois, exceto nos meses de verão. quando a marginal se transforma em praia fluvial, para uma multidão de turistas . Na altura, não existindo o conceito de praia, que se se ia elaborando, pouco a pouco, à beira-mas, era apenas caminho de passagem para quem atravessava o rio, chamando o barqueiro, ou a barqueira de Gramido. O rio fora caminho fluvial de intenso comércio com o Porto, com dezenas de embarcações, sulcando as suas águas durante o dia inteiro. Avintes tinha tido mesmo os seus prósperos estaleiros, mas em breve, os automóveis e as camionetes iriam aparecer e ganhar o seu espaço, deixando o rio quase deserto, por muitas décadas, até ser redescoberto, em fins do século XX, por barcos de cruzeiro e de desporto.. Aquele era o ambiente em que Manuel crescera, a baixada rural de Avintes , com os campos de milho a bordejar o Douro e as quintas grandes, muradas, fechadas sobre si... Não o de Olívia, criada na alta de Avintes, com a sua elegante face citadina. O Outeiro ficava a meio caminho. Mas João nasceu.no lugar do Paço, em frente da quinta da Pena, casa dos avós, uma casa rústica, cujo muro acompanhava o serpentear da rua, confrontando com a quinta do Paço, que foi dos condes de Avintes e marqueses do Lavradio (e, então, ainda era). Habitação maior e mais antiga do que a da quinta da Pena, embora de diversas épocas, a norte a mais recente, com a data de 1901, gravada na pedra, subindo para sul a mais vetusta, que é, possivelmente, do início do século XVII. Nessa parte, ficavam os empregados solteiros, dormindo em camaratas, ao lado de uma pequena sala de jantar ou de convívio. O lavrador (já então muito abastado) João Dias Moreira, e a família moravam no andar de cima na parte nova, que ele próprio construiía. Em baixo, lojas para máquinas e alfaias e adega, com o seu lagar grande. Num espaço totalmente protegido por altos muros de pedra, erguera um edifício de quatro andares, a acompanhar o declive do terreno. Em baixo, aidos para o gado. Em cima, a eira, o espigueiro. Um conjunto harmonioso, em que, predomina o granito, - nas paredes, nas longas escadarias, até no chão, que a pedra ondulada alterna com a terra batida, A cor é dada pelas flores junto ao miradouro, por dois limoeiros e pelas videiras altas. Um sítio bem propício para um menino correr pelos campos de milho, brincar nas margens do rio, passear nos barcos que faziam a passagem para Gramido. Descer do Outeiro ao Paço era fácil, foi o seu quotidiano durante muitos anos, chamado pelo carisma dos avós do Paço, de quem seria sempre muito próximo. Veio a esse mundo, pequeno e amável, no dia 6 de junho de 1918, pelas 11.00 da manhã. Longe do mundo em querra - a primeira grande guerra ainda fazia vítimas, a meses do seu termo, com o País a chorar o massacre de La Lys.e Sidónio Pais (que fora opositor da desastrada intervenção bélica na Europa e na África), a enfrentar as vagas de contestação, que marcariam o que seria o seu último verão. Em Avintes, as águas do Douro corriam tranquilas, no círculo da família mais próxima do futuro poeta não havia nem soldados caídos em combate, nem conspiradores ou revolucionários republicanos. Eram católicos e conservadores, monárquicos, que aceitavam o sidonismo. como mal menor, ou que a ele estavam convertidos,.Em qualquer caso, de momento, esqueciam os destinos do povo e do Estado e sonhavam, simplesmente o destino de um menino, que era o primeiro filho de Olívia e Manuel e o primeiro netos de ambos os avós. Dias de felicidade perfeita. Na primeira imagem, possivelmente de fins de 1918, é um bébé gordo, a olhar em frente, olhos bem abertos, muito sério, entre os pais, Olívia e Manuel. Tem a mesma expressão, um pouco depois, já sozinho, sentado nos veludos de um estúdio, face à câmara, vestindo apenas uma diáfana camisa de cambraia branca, o cabelo escondido numa touca de renda. Era comum, então, fotografar os meninos nus, como os anjinhos do céu, mas imagino que a Mãe o quis poupar a tamanha exposição... O traje escolhido, sumário, leve e gracioso é, em todo o caso, mais etnográfico do que a nudez. Tão religiosa a Avó! Creio que, se pudesse, vestiria até os anjinhos, tanto nas esculturas como nos óleos das igrejas... Quatro ou cinco anos passados, é um rapazinho, que continua a não sorrir para a câmara, de pé, em poses artificiais, ensaiadas pelo retratista; de perfil, com calção curto e "blazer", encostado a uma coluna, ou de frente, com indumentária semelhante, junto a um brinquedo de praia. Praia de Espinho, estúdio da Fotografia Evaristo. O assim retratado não desperta uma grande empatia, não sendo, nessa fase, particularmente bonito ou expressivo, sem sinais da beleza exótica da mãe (dir-se-ia oriental, embora não o fosse) ou da pose natural de um pai bem parecido, que, para além de ator de teatro (no "Grupo Mérito Avintense"), podia bem ter sido ator de cinema. Estaria, talvez, contrariado, desconfortável sob a luz dos holofotes. Ou, talvez, refletisse o ambiente triste, em que terá crescido, depois da morte ainda recente dos irmãos mais novos, os gémeos, Alberto e Manuel e a irmã Maria, os três vítimas de complicações que hoje a medicina resolve facilmente. Saudável e forte só mesmo ele, o primogénito. Foi criado entre adultos, objeto de todas as atenções e de todos os cuidados, mas brincou, com certeza, muitas vezes, com os primos Reis e os primos Marques, nas casas deles, ou na sua, nos campos tranquilos da beira rio e em passeios de barco. Nos meses de verão, encontravam-se em Espinho, onde os avós maternos tinham casa de férias. E a relação fraterna, entre todos, manteve-se ao longo da vida. O Pai não falava muito dessa infância mais remota, nem das pessoas, nem dos lugares - o que é normal, sempre que nada corre particularmente mal. Mas abria uma exceção para a Avó Quitéria Francisca, que era uma fascinante contadora de histórias e declamadora de poesia popular - ela própria, quando jovem, imbatível na arte das "cantigas ao desafio". Grande mulher de pequena estatura, que acumulava bom senso e imaginação, frontalidade e gentileza e tanto sabia, trabalhar, infatigavelmente, como divertir-se. Impressionou o neto mais do qualquer outra figura tutelar, sem sombra de dúvida. ONZE ANOS FELIZES NUM COLÉGIO Aos 6 anos, grandes mudanças, que o levaram de casa de seus Pais para um colégio interno. Primeiro, a escolinha do Padre Luís, em Oliveira do Douro, e,logo de seguida, o colégio dos Carvalhos. Decisão paterna, pela certa. O Pai valorizava, acima de tudo, uma excelente educação, e o sucesso académico. Tinha as suas razões... Ele próprio, não pode formar-se, em Coimbra, no curso de Direito, porque, como único filho varão, estava destinado a tomar conta das muitas terras que iriam ser suas, Não era o que queria - prezava mais a cultura das Letras do que a agricultura. A mim, lembro-me bem de que me dizia: "a melhor herança que podes ter é um curso universitário". Obviamente, ao filho disse o mesmo, muitas vezes. Não creio que a ideia agradasse à mãe, que, parecendo dócil e serena nos retratos, não era fácil de contrariar no dia a dia. Mas te-la-ão convencido os senhores padres - o Padre Luís, que era um verdadeiro santo, o abade de Avintes, visita assídua da casa e a falta de argumentos, porque em Avintes não havia colégio e porque o filho gostava do internato, que via como um mundo lúdico, cheio de companheiros da sua idade. Na época do Colégio dos Carvalhos, o Pai já tem, enfim, algumas parecenças com a pessoa de que eu me lembro, noutra idade, naturalmente. Já sorri, no meio de muitos amigos, todos irradiando boa disposição. Podia ser fingimento, encenação, "fazer de conta", mas não era! Aquele colégio foi mesmo, para ele, um lugar perfeito. As amizades que aí fez, perduraram. Era um excelente desportista (futebol, atletismo) um aluno despreocupado, que cumpria os mínimos em ciências e se dedicava de bom grado às letras, com uma inclinação para os autores latinos (para meu espanto, contava que lia Virgílio e Ovídio no original, por gosto - exemplo esse que eu não fui, nem de longe, capaz de seguir ). Do ciclo do colégio eram inúmeros os episódios engraçados que recordava - coisas de rapazes, partidas que pregavam uns aos outros, escondiam os pacotes de doce ou os queijos regionais que alguns guardavam nos cacifo, e, também, passeios, excursões, bailes locais em que conseguiam introduzir-se, não sei se quebrando as regras da instituição, ou não. Numa dessas festas, à porta do salão havia um cartaz que dizia: "Pede-se às excelentíssimas damas para virem calçadas". Nas feiras, o pai representava facilmente o papel de um inglês, que como estrangeiro, então uma raridade, recebia as melhores atenções. Os outros faziam de conta que traduziam... Uma vez correu mal, tropeçou, lançou um brado em português e pouco faltou para que todo o grupo, o falso inglês e os falsos tradutores, fossem linchados... Os onze anos de Carvalhos tiveram, contudo, o hiato de uma época, justamente no último ano. Influenciado, certamente, por amigos de Avintes, talvez mesmo pelos primos, quis ir para o liceu Rodrigues de Freitas e os pais fizeram-lhe a vontade. Tomava a camionete para o Porto mesmo à porta de casa, onde havia uma conveniente paragem, e seguia num grupo animado de colegas, Foi um tempo divertido, possivelmente até demais, porque chumbou. Para tudo há uma primeira vez. Queixava-se de perseguição de um dos professores... Parece que partilhavam idêntica atração por uma jovem portuense, que foi fonte potencial de conflitos alheios ao curriculum liceal. Paixões juvenis, devaneios românticos, não não eram mencionadas pelo Pai como matéria de que se fazem histórias para rir ou sorrir - só esta e "en passant", como justificaçãom digamos, um pouco incomum do "insucesso escolar". Ficou a impressão de que era precoce nesse capítulo e que encontrava boa recetividade no sexo feminino. Aos 17, 18 anos era já um rapaz vistoso e comunicativo, alto e loiro e, se isso era fator atendível para algumas meninas, com fama de herdeiro rico. Perante o desastre académico, não hesitou, pediu, sensatamente, aos Pais para voltar ao colégio. No Porto, as coisas não prometiam a correção de trajetória, que facilmente conseguiu na branda e lúdica clausura dos Carvalhos. Não sei se foram desse tempo do Liceu Rodrigues de Freitas, mas devem ter sido, outros divertidos episódios, protagonizados em parceria com o primo António (Reis). O Tio Reis era funcionário superior das Finanças e vinha diariamente de carro para a cidade. O automóvel ficava o dia inteiro estacionado por perto, na rua e quem, secretamente, o utilizava era o filho, Com o seu talento para toda a espécie de engenharias, mesmo sem chaves, conseguia abrir portas e acionar o motor Convidava o primo e alguns amigos para um passeio até à Foz ou outro sítio aprazível e, depois, retornava o veículo ao lugar de estacionamento. Mesmo que não fosse rigorosamente o mesmo lugar, o Pai era um senhor distraído e não notava o desvio. Reparava, sim, no consumo excessivo de gasolina e trocou de carro por causa desse defeito. Não sei se também trocou o seguinte, ou se os rapazes passaram a dar umas voltas mais curtas... Uma vez, apareceu um polícia, quando o António estava se preparava para abrir a porta sem chave... Nada que o embaraçasse. Chamou a autoridade e pediu ajuda, dizendo que tinha perdido a chave. O polícia amavelmente tentou ajudar. O António tinha, definitivamente, ar de dono daquele carro. Não se pode dizer que a sua infância e juventude fossem pontuadas por acontecimentos espetaculares. Foi sempre demasiadamente bem comportado, pois com comedidas e inofensivas transgressões se contentava. Espetacular, bombástico, embora, segundo alegava, não doloso, só o caso de uma experiência laboratorial do António no Colégio João de Deus, contando com a desastrada colaboração do colega José Aguiar, que alguns anos depois, seria cunhado do primo João. Na altura em que ambos fizeram explodir parte do laboratório, nenhum parentesco, nem mesmo por afinidade, os ligava, Os pais pagaram o prejuízo, e parece-me que foram expulsos (a expulsões de colégios portuenses estava o José já habituado, facto agravante que terá pesado na sanção de ambos). De Avintes, as narrativas mais divertidos começam com a chegada dos novos "vizinhos do lado", donos da quinta que confinava com os terrenos da casa dos pais: o Coronel Novais e Silva, a mulher Haydée Genelieu (descendente de um dos engenheiros que acompanharam Eifel na construção da ponte sobre o Douro) e os filhos, Maria Beatriz e António Júlio. Uma família encantadora, da alta burguesia portuense, que trocou a cidade por aquela aldeia milenária e tranquila, numa colina com esplendorosa vista sobre casas rurais, campos de milho e uma larga curva do Douro ao longe. A mesma vista que se desfrutava das janelas do 1º andar da casa do Pai (ou dos seus Pais) na Rua 5 de outubro, a primeira que se encontrava à vinda do Porto ou de Oliveira do Douro, depois de atravessar o Febros, afluente do Douro, no início de uma subida íngreme. As propriedades eram separadas por uns metros de declive, cada vez mais acentuado, à medida que se descia vários lances de escadas da casa da quinta para o interior da quinta. Entre as casas, a divisória era apenas um muro alto, onde colocaram, de ambos os lados, escadas de madeira para um trânsito fácil, quando a relação de vizinhança se transformou em grande amizade. Os três adolescentes, a Maria Beatriz um pouco mais velha e o António Júlio um pouco mais novo do que o João eram tratados como irmãos pelas duas famílias. O Coronel era, naturalmente, mais severo com eles do que com ela e o João tinha de cumprir ali reagars de disciplina, a que não estava nada habituado. Gostando embora do Coronel, o Joãozinho sentia-se bastante intimidado na sua presença, gaguejava mais do que o costume para se justificar, quando era preciso, atrapalhava-se e, por isso, várias vezes as coisas lhe corriam menos bem. Era, de facto, ligeiramente gago, caso que não se explicava pela genética. Constava que teria sido consequência de um grande susto, quando, por brincadeira, uns rapazotes, talvez moços da lavoura das terras dos Avós, fizeram de conta que o deixaram sozinho dentro de um barco, aparentemente à deriva, fugindo da margem do rio. Ninguém tinha certezas, nem os pais nem ele, mas o problema surgiu, de repente, aí por volta dos 3 ou 4 anos. Certo é que não tinha medo da água, nem do mar, nem do rio, nem de correr pelas terras ribeirinhas, onde se lembrava da figura imponente do Avô João, agigantado nos seus capotes alentejanos e da avó de um metro e meio, que o deliciava com histórias, provérbios e lenga -lengas. Os primos diletos (Reis, Capelas e Marques) moravam, todos longe (o "longe" das aldeias pequenas, na outra extremidade da rua 5 de outubro, que é a "avenida de Avintes"), muito mais comprida do que larga, ter, ali, quase em comunidade, aqueles "novos irmãos" foi uma sorte para um filho único, tão sociável e divertido. E a relação havia de manter-se, sempre, mesmo depois dos Novais e Silva se mudarem para o centro do Porto, na Boavista. A quinta foi comprada por um casal minhoto, sem filhos, que manteria as escadas de ligação por sobre o muro e uma relação de vizinhança muito amistosa, mas isso aconteceu vários anos depois. Nos relatos do Pai, rapazes e raparigas do seu círculo eram referidos no mesmo plano, um plano de igualdade, o que nos deixava, a minha irmã e a mim, um pouco surpreendidas. Contava, por exemplo, como conviveu, no colégio dos Carvalhos, no fim do curso do liceu, com colegas raparigas, não sei porque razão, nesse ano, admitidas, a título excecional. Poucas, é claro, uma delas, se não me engano, Virgínia de Moura. Vi-as com simpatia, tal como as primas ou a Maria Beatriz (nunca falou, porém, de namoradas, sendo certo que nós também nunca perguntámos). A mesma atitude parece ter tido o António (Reis), que reagiu, até onde pode, às limitações que eram impostas à irmã, por exemplo à proibição de conduzir carro e tirar carta. Ensinou-lhe a guiar, às escondidas, e deixava-a levar o carro, pelas estradas cheias de curvas perigosas, subidas ou descidas, das saídas de Avintes. E, em compensação, ela deixava-o tocar o seu piano. Para o conservadorismo dos tios Reis, o volante do automóvel era para mãos masculinas, tal como o piano para as femininas. Na verdade, o pianista mais talentoso era mesmo o António, que sem nunca ter tido professor, tocava, de ouvido, excelentemente, música clássica... O João também quis, em vão, aprender piano. O Pai, que era melómano, e até também tocava de ouvido vários instrumentos, ofereceu-lhe um pequeno violino no lugar de um grande piano, como a Jacob, ao qual"em vez de Raquel lhe davam Lia". Ao contrário de Jacob conformou-se. Nunca se converteu em grande executante, mas sentiu a falta do violino depois de o ter, imprudentemente, emprestado a um amigo de um amigo, que lhe deu sumiço... Com ou sem violino, em Avintes, ou ao som do piano, ou com o coro familiar a cantar à capela, os nossos serões eram muitas vezes animados, pela música. (Todos cantavam bem, exceto eu, que em coro tratava de não sobressair). Outras vezes, eram estas histórias de juventude que nos entusiasmavam, mesmo que fossem repetidas, porque havia sempre um novo pormenor. Arrepiante só a tragédia dos saguís do António, que era situada no seu exato contexto, com uma infinidade de detalhes e de protestos de inocência, de facto, credíveis porque os dois primos eram amigos de todos os animais conhecidos. Resumindo: os pequenos macacos engraçados, trazidos do seu habitat por um tio, que era médico de bordo de navios, em longas viagens intercontinentais, estranhavam, naturalmente, o frio dos invernos europeus. O tio, e os macaquinhos, as brincadeiras eram descritos com enorme realismo - e também o desconforto de bichinhos de outras paragens, no comparativamente escuro, frio e confinado horizonte de um casarão de Avintes. Solução, com a marca mais do António do que do João: estágios de alguns minutos numa fornalha, bem temperada para os aquecer, mas não demais. Os saguís davam espetáculo, coitados, saltitando lá dentro, até serem libertados, de novo, para o exterior, à temperatura ambiente. Para surpresa dos rapazes, não resultou, Morreram pouco depois de pneumonia "LOVE STORY" NAS MARGENS DO DOURO Avintes era terra de boa agricultura e de pinhais, de lavradores, uns mais ricos do que outros, de gente pobre também, trabalhadores rurais e operários, e de elites intelectuais - um grupo alargado de artistas, académicos, gente de profissões liberais, empresários, quase todos ligados ao Porto, naturalmente. E, alguns, até ligados ao Brasil, com os seus palacetes ao longo da rua 5 de Outubro. O ciclo era de remanso económico e político, entre duas grandes guerras fratricidas, Cá dentro uma ditadura, aparentemente branda, consolidava-se a olhos vistos e para muitos portugueses, como os pais do António e do João, era uma boa resposta à agitação política e social da 1ª República. Os pais eram mais salazaristas do que os filhos, que, contudo, não andavam pelas trilhas da luta revolucionária. Com prioridades mais ligeiras, para eles, em Avintes, o tempo era de festa. Os jovens estudantes estavam unidos pelo parentesco, ou eram "primos dos primos" e, em qualquer caso, conviviam como família. Para muitos, bastava andar uns metros na mesma rua, para se encontrarem nas casa uns dos outros. Uma maioria morava acima do Cruzeiro, onde a rua que vem da Igreja entronca na 5 de Outubro, à vista da elegante mansão que acolhe o Clube Avintense, na altura um clube luxuoso, fechado, só para alguns, só para homens. (As portas abriam-se às senhoras apenas para bailes de gala). A casa dos Tios Reis (onde está agora instalado o teatro dos "Plebeus Avintenses") era junto à dos primos Marques (herdada de um avô comum do Francisco, do Corinto, do João, do António, da Maria Angélica). Um pouco abaixo, a vivenda da Maria Argentina, prima dos Reis e a da Celina Vi cont A vida parecia tê-la favorecido em tudo. Sabia conseguir o que queria, de uma forma sensata e determinada, que os outros aceitavam com a força dos seus argumentos e do seu encanto pessoal, a começar pelo "inner circle" da própria família. Com amável camaradagem, afastava os pretendentes, que eram bastantes, e, por fim, fez a sua escolha - o João. Amor correspondido. Quando casaram, ela tinha 21 anos e ele 19. Por Celina, desistiu do curso Letras em Coimbra. A Faculdade de Letras do Porto, tinha sido encerrada pela ditadura, para correr com todos os vultos (oposicionistas) que tanto a prestigiavam. Ciências que era o que a cidade podia oferecer-lhe e aí se matriculou. Talvez só para satisfazer a vontade do pai. Como era previsível, rapidamente abandonou as aulas, por declarada falta de vocação científica. E procurou emprego por perto - na Câmara de Gaia. Havia uma boa razão para um enlace tão prematuro. A "doença do século", ou do início do século, que era ainda a tuberculose, não poupou aquela fascinante mulher, em plena juventude. Não se deixou vencer pelo medo, não quis esperar pelo veredito incerto sobre a doença, não hesitou, quis viver com o homem que amava, nem que fosse por um breve futuro de felicidade. Ele também não hesitou e ambas as famílias se empenharam, em tornar possível uma verdadeira "love story" de fins da década de 30. Quando vi o filme com esse título, tantos anos depois, lembrei-me daquela história antiga, que eu, ainda criança, fui reconstituindo e recriando na minha imaginação, como um "puzzle", ouvindo comentários daqui e dali, ou discussões ciumentas, por parte da minha Mãe, sem nunca ter questionado diretamente ninguém, e muito menos o meu Pai. Os contornos sociais eram bem diferentes dos da trama "made in USA" - ali tudo e todos giravam à volta dela, como sujeito de admiração universal. Todavia, na ficção americana e numa realidade, onde Celina ocupava graciosamente o centro de cena, o papel principal, a essência era a mesma: a vivência efémera de um sentimento eterno. O casamento durou sete ou oito meses de felicidade. Valeu, certamente, a pena. E a imagem de Celina, que partira, continuava intensa e luminosa na memória da terra. Uma memória venerada contra a injustiça da sorte. Os sogros, que a adoravam, como uma filha querida, conservavam o seu retrato na sala de visitas, numa enorme moldura de prata. Uma foto de meio corpo, cabelos escuros, soltos, compridos, uns olhos expressivos, um sorriso e um luxuoso vestido de seda, sem colares nem adereços. Parecia-me uma princesa, ou uma estrela de Hollywood. Encantava-me a senhora do retrato, queria saber mais sobre a sua vida. Impossível, porque minha Mãe não suportava o que chamava "o culto" de Celina, as fotos expostas na casa, as "romagens" ao seu túmulo, as recordações e os sentimentos os sogros dela guardavam. Pode ter ocupado um lugar igual no coração do marido, mas não no deles! As disputas sobre a exposição do retrato duraram anos, e, por isso, me foi acessível até uma idade, 7 ou 8 anos, em que ficou bem gravado na memória . Mas um dia, a minha ciumenta Mãe levou a melhor, a moldura desapareceu, depois de uma última discussão, e fez-se silêncio. Nunca consegui aceitar, ou melhor, compreender a razão dos ciumes de alguém que já não estava ali - sou e, já em menina era, instintivamente favorável ao absoluto respeito por uma diacronia dos afetos, em que cada tempo tem o seu império - a simultaneidade de relações amorosas é o que não tolero, no que me diz respeito, embora reconheça, racionalmente, que é possível estar dividido entre dois amores atuais. Ainda por cima, a segunda mulher era também elegante e bonita, diziam até que parecida com a primeira. Mais pequena e mais magra, é certo, mas não menos arrebatada e voluntariosa. Só mais de meio século depois destes incidentes, que me desgostavam, mas que não tinha com quem comentar, encontrei um interlocutor inesperado: o primo António Reis, em Toronto, numa das minhas frequentes visitas ao Canadá (para onde ele emigrou a meio dos anos 60, com a Mulher Amélia e o filho pequeno). Quando podia, prolongava a visita e ficava em casa deles, perto do aeroporto. Foi numa dessas ocasiões que o tema surgiu, a propósito da produção poética do meu Pai, que se perdeu, como já disse, quase toda. Os versos dedicados a Celina foram rasgados, durante uma crise de ciúmes. Na verdade "abismus abissum invocat" (espero ter acertado no dito latino, que o Pai saberia aprovar ou corrigir...). São atitudes de fácil contágio - o Pai fez exatamente o mesmo a uma composição musical inédita do pianista Marques Ribeiro dedicado à Mulher, com quem tivera um princípio de romance... Foi então que, na sua casa de Martha Eaton Way, o António "agarrou" o tema de conversa. Primeiro, tentou lembrar-se dos sonetos escritos para Celina, mas só conseguiu recitar um, e incompleto. Depois, falou dela, infindavelmente - de uma jovem moderna, um ícone da última moda, alta, lindíssima, muito divertida, e sempre cercada por uma corte de admiradores. Entre estes, ali o confessava perante uma Amélia complacente, ele próprio! Com dezasseis, dezassete anos, sentia-se perdidamente apaixonado. Os dois primos, cada qual o mais atraente, numa disputa pouco fraternal pela mesma mulher - jamais imaginaria! Celina, obviamente, não levava a sério o mais novo, novo demais. Essas confidências foram uma revelação, trouxeram-na, da distância de um Olimpo, da figura recriada a partir de uma pose teatral, que a fazia parecer mais velha, com um "glamour" de "mulher fatal" para uma jovem extrovertida, com eu própria tinha sido, irreverente, iconoclasta, ágil, desportista. O que mais me ajudou a reconverter o mito na pessoa real, foi o episódio da sua chegada a uma reunião de amigos pelo telhado - estavam, elas e eles, à conversa num sotão e ela surpreendeu-os entrando por um postigo do telhado. Mas que bem! Tão parecida com a minha Mãe, que fazia coisas perigosamente na mesma linha, como subir ao telhado da "casa da eira" e inclinar-se na esquina para apanhar os araçás mais inacessíveis, ou saltar do 1º andar da casa por sobre canteiros de roseiras de pé alto, só para vencer apostas... Na geração seguinte, eu fiz o mesmo. Do primeiro casamento do Pai não existem imagens - deve ter havido muitas, mas perderam-se, nunca as vi, nem mesmo nos álbuns dos Avós - e, assim, tudo quanto sei foi o que o António me contou nessa tarde - foi um casamento de estadão, a noiva de vestido branco, sumptuoso, banquete nos salões da grande mansão dos Viana e uma multidão de convidados. Memorável. O António descrevia a cerimónia com todos os detalhes,inclusive o discurso eufórico e emotivo do Avô Manuel, que parece ter sonhado tanto com aquele casamento como os próprios noivos. Ele próprio não quis participar da festa, sentia-se demasiadamente preterido e infeliz. Mas, como não se falou de outra coisa durante os dias que se seguiram, ficou a par do que se passara, como toda a gente, entre presentes e ausentes. Pouco foram os meses, as semanas, os dias que os noivos viveram "num voo pleno de ansiedade", o "coração vogando nas asas do sonho". O desaparecimento de Celina, uniu as famílias à volta da sua memória - pais. sogros. cunhados, tios e primos conviviam intensamente depois, como antes. O Pai tinha 20 anos, o seu emprego rotineiro, muitos amigos. Faltava-lhe o ânimo para recomeçar estudos, ou para procurar profissão mais interessante. Entre os seus melhores amigos, amigos de infância, estavam dois irmãos, os Padres Eduardo e António. Foi através deles que conheceu, em Outubro de 1940, a família Aguiar, a Maria Antónia, que iria ser a sua segunda mulher. Na capela do Monte da Virgem, no domingo da "missa nova" do Padre António. A Maria Antónia, no colégio, foi colega e grande amiga da Maria Luísa, irmã dos futuros padres, que eram, nessa altura, colegas e grandes amigos do João. E, por isso, uns anos depois, todos estavam presente na primeira missa do mais jovem dos padres - a Avó Maria Aguiar, com as filhas solteiras (difícil já, então, levar os filhos à igreja...) e a Avó Olívia Capela, com o filho viúvo. Conta a Mãe que o bonito rapaz alto e loiro, apesar de muito devoto, se distraiu o suficiente para a olhar, repetidas vezes. E tendo ela sentido esses repetidos olhares, é claro que também não prestou à missa a devida atenção. Cá fora no adro, antes mesmo de serem formalmente apresentados, já ele lhe pedia para aceitar uma lembrança do dia da "missa nova" do amigo comum, comprada numa tendinha, que vendia terços, imagens da Virgem e anjinhos, a par de pequenas peças de artesanato - reduto em que o Pai escolheu a sua simbólica oferta. Presente estava também a Tia Arminda (que não era bem tia, mas sim tia da Nucha Aguiar, professora de piano das primas mais novas), que era de Avintes, íntima da Avó Olívia, e, igualmente, da Avó Maria, que visitava, sempre que passava férias em Gondomar. Foi tempo de saudações e conversa entre as três cristianíssimas senhoras e entre Maria Antónia e João, que estava entusiasmado com a perspetiva de uma excursão a Lisboa, com o primo António, para verem a exposição do "Mundo Português". De lá iria escrever-lhe e mandar-lhe um soneto, o primeiro que discretamente falava de amor que se procura. O que começa assim: "Lancei o meu olhar sobre esse imenso Tejo, À noite semeado de um encanto vago E vi em cada onda uma sombra, um lampejo Dessa história de heróis, que no meu peito trago" Dir-se-ia que toda a inspiração vem da temática da "expo", mas não, na última estrofe o A. sente o irreprimível desejo de lançar às ondas o seu coração em busca de um amor... que, pelo visto, até já estava encontrado. À primeira vista. Seguiu-se uma frequente correspondência, muitos encontros em Gondomar, no Porto, num roteiro de terras, como Santo Tirso, onde, por coincidência, a Maria Luísa dava aulas num colégio de freiras e o António Aguiar, irmão da Maria Antónia, era tesoureiro da Fazenda Pública e morava numa pensão dos tios da rapariga com quem namorava, para casar uma beldade de fulgurantes olhos verdes (Antónia, o seu nome no feminino, que todos chamavam Toninha). A irmã Maria passou a visita-lo, mais vezes, ficava na mesma pensão, encontrava-se com a amiga dos tempos do colégio e com o namorado (que tinha de escolher outra pousada. O irmão era tão severo como a Mãe, embora com agenda mais preenchida, abrandasse a vigilância durante o dia de trabalho. Passeavam por aquela vila linda, sempre acompanhados pela Toninha, naturalmente. Entretanto já era amigo de toda a numerosa, alegre e turbulenta família da namorada. Um rigoroso contraste, com a sua. Não só eram muitos (sete irmãos, mulheres, os mais velhos já com filhos pequenos, namorados e namoradas) como muito diferentes entre si, com uma tradição de confronto e discussão política, que nunca acabava mal, embora ninguém nunca mudasse de campo, ou de opinião. Nas gerações anteriores, uns eram monárquicos, outros republicanos. Nesta, em plena guerra, degladiavam-se, sobretudo, anglófilos/democratas e germanófilos/salazaristas. Mas, felizmente, eram todos também muito dados às artes da música e da dança, e facilmente passavam do modo de "tertúlia - debate" para o de tertúlia musical, tocavam piano as senhoras, cantavam todos em coro, com algumas vozes assombrosas. O Pai era mais um, com o seu belo timbre de voz e os argumentos de fortes convicções, gaguejando, embora, no auge das discussões. De comum, a mãe e à futura sogra, tinham , antes de mais, a religiosidade que governava as suas vidas, e as respetivas casas era frequentadas por inúmeros padres o pároco, os coadjutores, outros padres de fora, seminaristas, freiras, missionários. Ser o João um crente de missa e comunhão quase diárias, tornou-o muito popular, desde a primeira hora, desde o encontro do Monte da Virgem... No verão de 41, as meninas Aguiar não puderam veranear na Foz, como era habitual. Madalena, a mais nova, estava convalescendo de uma "primo infecção" e os médicos aconselhavam os ares da serra, não as nortadas do litoral. Passaram o verão numa quinta cedida por amigos, em Branzelo. Duas primas do João, a Alda e a Maria Helena foram convidadas da Avó. Já o João, nos fins de semana, tinha de procurar um quarto de pensão, convenientemente perto, mas não demais. Eram noivos, sem oposição alguma, (graças ao catolicismo do viúvo, a que acrescia a fama de herdeiro rico), mas sem permitir "liberdades", que tão conservadora senhora acharia impróprias. Costumes da época, levados ao máximo limite do rigor. Todavia, as filhas, sobretudo as mais novas, sabiam achar mil e uma maneiras de contornar proibições. Cumplicidades nunca lhes faltaram, a de umas com as outras, a das amigas e, particularmente importante, a dos vários e sucessivos empregados ao serviço na "Vila Maria" (ou das criadas e criados, como então se usava dizer). Sobre Branzelo há uma carta do Pai, em versos bem humorados, contando uma atribulada viagem de regresso de fim de semana, em que os convivas tinham sido muitos, incluindo o jovem Padre Vitor Hugo, coadjutor na paróquia de São Cosme, autor uma grande reportagem fotográfica dos acontecimentos... Avintes, tantos de tal daqui fulano de tal etc. e tal Maria: Venho escrever-te/porque o ler também diverte/quem nada tem a ocupá-la.../- E enquanto a pena desliza/A gente sente, imprecisa,/ A sensação de que fala!//Começo por te contar/ Que ainda antes de chegar/ Ao Porto- que forte perda/ O camião de Branzelo/ Furou antes do Covelo/ E teve "panne" na Meda/E assim sem mais novidades/ Cheguei cheio de saudades/ Ao café para engraxar;/ Mas aí, nova surpresa/ Sentado em frente a uma mesa- / Me estava a aguardar.../- Espantei que nem Texugo/...Era o Padre Victor Hugo/ Cheio de fotografias./ Tinha ali toda a excursão/- A Maria e o João/ E mai-las outras Marias!/ A Lolita numa delas/ Está tão só que mete pena./Apenas aos pés, deitada,/Uma galinha coitada (esfolada) Tem pena de não ter penas.../ (Diz a má língua que as outras eu/ As comi- tenham juízo -/ Que alguém as comeu, comeu!/ Quanto a mim estou "indeciso" ...)/ Na da Penha vi: que vento!/ Se me rio mais rebento/ De dar tanta gargalhada - / Quanto a ti minha "migalhas",/ Se te ris mais, escangalhas/ Não se te aproveita nada!/ Agora assunto mais grave/ - A Lolita sempre quer/ Fazer anos quarta-feira?/ porventura ela não sabe/ Que isto de envelhecer/ É grande asneira, ui, que asneira?!/ Ela que tenha juízo/ durma bem e ganhe siso/ Um ano a mais... não vem mais/ A graça morre, se passa.../ Recordar é uma desgraça/ Desgraças já há demais!/ Oh abri alas.../ E a Lena como está?/ Sossegue, sim?- que a Tatá/ Um dia faz-lhe a surpresa!/ Lá quando menos o conte/ Inda o "Sole" "male" desponte/ Na manhã! Ei-lo a ele!que surpresa!/ Oh! abri alas!/ E vocês como estão?/ Não estejam com "cem" cerimónias!/ Por aqui andou toupeira/ Já lambeu a capoeira,/ Sou todo vosso/ João Uma narrativa, que podia ter saído da pena, ou melhor, oralmente, da voz da Avó Quitéria Francisca... cheia de pormenores explícitos e sub-entendidos - alguns difíceis de descodificar, mas que nos falam de amizade e boa disposição, de passeios, de casos, de romances de verão e de amores que se revelariam duradouros... Nos versos dedicados às futuras cunhadas Lolita e à Lena, a primeira letra de cada estrofe dá-nos uma pista, o nome dos rapazes da sua predileção, nesse agosto de 41: Eduardo e Esolino. O primeiro, que viria a ser o muito querido e divertido Tio Eduardo, um acabado exemplar "bon vivant", estava na lista negra da Avó por isso mesmo, e por não ser um católico praticante (apesar das famílias pertencerem ao mesmo círculo social da vila de Gondomar...). O Esolino era vizinho do lado, as propriedade confinavam, o pai era músico, compositor, tocava na igreja, (preenchia uma condição "sine qua non"...), parece que gostava da menina, muito bonita e serena (ao contrário das manas, que eram tão bonitas, quanto temperamentais). E talvez ela lhe achasse graça, mas aos 15 anos, era cedo para se pensar em compromissos. A Tatá que levaria o simpático vizinho a Branzelo era a Tia Hermínia, cunhada da Avó Maria e uma segunda mãe da Tia Lena, sempre pronta a fazer-lhe todas as vontades. Mais enigmática é a menção à galinha retratada numa foto, e às galinhas devoradas. Talvez uma forma de auto-crítica, porque o Pai tinha um apetite muito saudável, que manteve até à meia idade, comia quantidades assombrosos de carne de qualquer espécie. Comia imenso e bebia pouco. O gosto dos contrastes - ele tão alto e tão apreciador de boa mesa, ela tão magra, frugal e pequenina... Quanto ao passeio à Penha, havia de repetir-se muitas vezes, afrontando a ventania, com risos e gargalhadas. (Como os jovens de 20 anos, em Portugal, estavam longe de uma guerra tão próxima, que acompanhavam pela imprensa e pela rádio, mas não entrava no seu quotidiano!).
. O casamento civil foi, em Gondomar, a 1 de novembro de 1941. Cada qual continuou em sua casa, pois para as famílias o que contava era a cerimónia religiosa, realizada na Igreja Matriz de Gondomar, duas semanas depois. O "pedido da mão da noiva" tinha sido feito formalmente, à mãe e ao irmão, o Tio Alexandre, o que sempre acompanhou os sobrinhos como um pai, na falta do pai. O Tio defendeu, pois, paternalmente a Maria Antónia, com uma variante de "sermão laico" sobre as suas obrigações como marido (era um republicano anti-clerical - os seus únicos defeitos, do ponto de vista da irmã - e o ser o noivo muito devoto para ele não era virtude que o recomendasse). Lua de mel na bela região do Vouga! Como o noivo ainda não tinha comprado o seu primeiro carro, viajaram no comboio, no famoso "vouguinha", a partir de Espinho, fazendo paragens para pernoitar, aqui e ali, até chegarem a Viseu, cidade onde a minha mãe fez questão de passar uns dias. Era outono, quase inverno, mas o tempo pouco importava. Voltaram a Gondomar - a Avó Maria insistia que ficassem a viver na sua casa enorme, onde já só só moravam com ela dois filhos solteiros, o Zé e a Lena. O Pai tinha encontrado uma nova família, grande e divertida - gostava de todos e todos gostavam dele. A Mãe com os sogros nunca se entendeu muito bem - acho que nunca a viram como a filha que tinham encontrado em Celina, e ela retribuía, interpondo cada vez mais distância - mas adotou e foi adotada, facilmente, pelos tios e primos, e até também pela famosa Avó Quitéria Francisca. Achava-lhe a maior graça, mesmo quando a repreendia por usar saias tão curtas (coisa que não toleraria a mais ninguém, com exceção da sua mãe, naturalmente). A uma e outra respondia que "era a moda", que sempre fez questão de seguir, à sua maneira. Curiosamente, nesse aspeto, o Pai não era diferente - embora muito mais comedido em matéria de compras, o seu lema era "pouco, mas bom" - fazendas inglesas, costureiro famoso do Porto (durante muitos anos, o Arménio). Quando iam para Avintes passar uns dias (a casa dos Avós tinha, também, espaço de sobra), o convívio com os tios e primos Reis e Marques, sobretudo, mas também os Capela era uma festa constante. Mas, onde quer que estivessem, o Porto era um ponto de encontro frequente. Para tomar café (no Guarani, no Imperial, no Paládio), para ir ao cinema nas noites de sábado, para deambular por Santa Catarina e Santo António. Curiosamente, os casais frequentavam juntos esses cafés, com os primos solteiros, o que, naquele tempo, não era coisa habitual (seria influência das vivências de Espinho, onde isso era a regra?). Mas, claro, as senhoras, quando só entre elas, escolhiam as confeitarias tradicionais, como a do Bolhão, ou a Ateneia. A Mãe e a prima Cristina eram as únicas que se aventuravam no Café Ceuta, que talvez oferecesse um ambiente menos sexista do que os congéneres. Nos fins de semana, aos domingos, os cunhados de Gondomar, eram, muitas vezes, desafiados para passeios pelo verde Minho, sempre à descoberta de um novo restaurante, de vistas espetaculares sobre serras e rios. Seguiam, por caminhos antigos, em verdadeiros cortejos de carros, pelos quais distribuiam as barulhentas criancinhas. Pelo Minho, e também pelo Douro interior, por Trás-os-Montes (não perdiam as corridas de Vila Real), mais raramente, em direção ao sul. Muitas excursões demandavam pequenas terras do interior, onde os antigos coadjutores da paróquia de Gondomar eram senhores abades - como o padre Campos ou o Padre Serafim. Muito hospitaleiros e muito divertidos.Eram as viagens favoritas da sogra Maria Aguiar, que, contudo, não faltava a nenhuma, fosse para onde fosse. Em 1942 nasceu, no "quarto grande" da Villa Maria, a primeira filha, que esteve para se chamar Maria João e acabou registada como Maria Manuela. No ano seguinte, em dezembro, foi a vez da Maria Madalena, menina muito loira, de olhos muito azuis. Nessa casa grande, rodeada de jardins ainda maiores, cercada de árvores e muros altos, viveram durante mais de sete anos. Para as crianças aquele espaço era como uma ilha paradisíaca. Estavam nela quase sem olhar o exterior, porque adentro havia tudo quanto as fazia felizes.