terça-feira, 24 de março de 2020

ASSIM ERA
COMO VIVE NAS SUAS IMAGENS 
 E com elas contamos a sua história

Maria Antónia, a Mariazinha, nasceu no início dos fascinantes anos 20, e, ao longo de quase um século, haveria de agir e reagir com um ânimo forjado no espírito da época, ainda que a realidade, tantas vezes, teimasse em não corresponder à dimensão de sonhos e ilusões. De qualquer modo, ia mostrar como um olhar subjetivo sobre coisas e lugares, acontecimentos e pessoas e, antes de mais, sobre si própria é uma forma incomparável de vencer obstáculos... Uma pragmática utopista
Nesse dia 28 de agosto era já precisamente o que precisava de ser:um pequeno ser saudável e ruidoso (dois atributos, seus, invariáveis), enchendo de alegria a casa dos avós maternos, Carolina e Joaquim, em Quintã, na vila de Gondomar. Como ela pensaria, quando atingiu a idade para pensar e ter opiniões inabaláveis, o melhor lugar do mundo para nascer!
 Carolina Ferreira Ramos vinha de uma antiga linha genealógica de Gondomar, descendente direta das temíveis "Alexandras" , que, pelas histórias que legaram à posteridade, parecem personagens de romances de Agustina. Não se sabe sequer exatamente como se chamavam pois, até onde houve averiguação, não se descobriu nenhuma Alexandra. O nome foi retomado, no masculino e feminino, em gerações mais recentes. e teria assentado, na perfeição, a esta neta (em não se sabe exatamente qual grau). 
O avó, Joaquim Mendes Barboza, ao longo de décadas, o muito competente e estimado notário do concelho de Gondomar, viera do norte, com raízes numa aristocracia minhota não muito abastada. Foi um casamento  de amor, teve de vencer algumas resistências iniciais da  endinheirada família da noiva, mas rapidamente as qualidades humanas do noivo o tornaram tão bem quisto no círculo dos Ferreira Ramos, como era entre o povo e os notáveis da terra. .
Muitos retratos mostram algumas semelhanças físicas ( e das temperamentais sabe-se por relatos vários) entre a avó Carolina e esta neta, mas entre elas a principal diferença é que a primeira envelheceu, como manda a natureza, e a segunda venceu a fatalidade até quase aos últimos dias, em 2019.

















Por seu lado, o avô, cuja serenidade e gentileza foram suporte de uma longa e feliz união conjugal,  envelheceu bem, de belo rapaz a atraente velhinho lúcido e bem-humorado. Numa das últimas fotografias, saindo da diligência que o trazia, possivelmente, do Porto, vê-se, em fundo,  vive anda, onde a neta passou os seus primeiros dias, tal como era, então, antes de modernizada pelo herdeiro José, o mais novo dos rapazes, e o que fez carreira mais brilhante, como ativista político e, depois, como juiz conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça

   

A Vila Maria, casa grande "de brasileiro", que fez parte da vida de Mariazinha, com estatuto de afetos e pertença, como se fosse um membro da família, estava ainda em atrasado estado de construção. Era coisa imponente, cujo avanço a vila observava com curiosidade, ao passar na rua, que era o eixo principal a ligar o Souto a Quintã. Só os garotos mais afoitos entravam às escondidas, pela tardinha, saltando taipais e trazendo novas, sobre tudo o que mais insólito e sensacional, como a sala de banho, que ocupava a parte traseira do último andar, a norte, sul e poente, com sete janelas panorâmicas sobre o Crasto e o verde, muito verde, dos campos de um São Cosme ainda rural.do ou híbrido, com o seu pequeno círculo citadino.




No casarão, ao gosto da época chamado Vila Maria, só viu a luz do dia, no seu dia primordial, a irmã mais nova, Maria Madalena, mas também Maria Antónia, a Mariazinha, também se consideravam dali. Na sua memória mais remota não ficara rasto de nenhuma outra morada.
 Mariazinha era a sexta filha de Maria da Conceição Barbosa Ramos e de António Carlos Pereira de Aguiar, ambos de Gondomar, por naturalidade e pela tradição forjada no encadeamento de muitas gerações de ancestrais. No início desse ano, morrera no Rio de Janeiro com pouco mais de um ano, o irmão Augusto, de todos o mais bonito, com uns enormes e suaves olhos azuis, como os do mano mais velho Manuel. Dele há duas fotografias, que fazem jus à sua lendária formosura – uma em que fora cumpridos os cânones da moda de mostrar os bebés em nudez total de menino Jesus no presépio, e outra com a família completa em fins de 2019, de vestido rendado e comprido. que leva a supor ter sido tirada no dia do baptizado e depois usada, por conveniência, no passaporte coletivo.

   





Um passaporte destinado a uma próxima deslocação para Portugal, já em preparação. Não seria, aliás, mais uma de muitas travessias, mas a última, a do regresso definitivo a Gondomar. Entre 1920 e 1926, o pai viajaria sozinho, por diversas vezes, para cuidar de negócios, que ia encerrando, gradualmente.

António Aguiar emigrara para o Brasil em 1996, com 16 anos, ao encontro do irmão João, mais velho e quase com idade para ser seu pai, e já então um próspero empresário. Aos 28 anos, quando se apaixonou (perdidamente) pela sua futura mulher, jovem lindíssima, de boas famílias, muito prendada e virtuosa, (uma muito boa escolha, como comprovou ao longo dos 16 felizes anos de casamento) era já milionário, proprietário da Joalharia Aguiar na rua do Ouvidor, grande investidor no mercado financeiro, viajava frequentemente entre a a América do Sul e a Europa - Portugal Espanha, Itália e Inglaterra, como está documentado em fotografias e postais, e talvez outros países, onde não teve o cuidado de se fazer fotografar. Podia ser por puro turismo, mas num dos postais é dada como justificação para a falta de mais notícias os "muito afazeres", sinal claro de que que uma vertente importante da sua actividade era a importação/ exportação, possivelmente em parceria com os irmãos que enriqueceram no mesmo ramo. João no Rio, Augusto no Porto, com a sua "Joalharia Aguiar" da Rua das Flores. Eram filhos de um ourives da Gândra, Manuel Pereira de Aguiar e de Rosa Pereira de França, também ela parte de uma família  ali enraizada desde o século XVI, que da ligação à posse de grandes propriedade foi transitando para outros domínios, entre eles a indústria ou arte que pôs Gondomar no mapa do país -  a ourivesaria.
É ocupação que está, curiosamente, ausente, tanto quanto se sabe, da ascendência materna da Mariazinha. Os Ferreira Ramos de sua avó Carolina, que foram dos donos da Quinta da Bela Vista eram proprietários, comerciantes, funcionários públicos, ou homens de profissões liberais, e, também, alguns políticos, com pendor para a intervenção cívica progressista. E os Mendes Barboza do avô Joaquim, descendiam de antigas famílias minhotas da aristocracia rural, na sua geração já empobrecida. Ele próprio, homem de sólida cultura clássica, e de tendência política conservadora fora aluno de um seminário, professor, secretário da administração local em Paredes e São Cosme e, finalmente, por vária décadas, o muito competente e estimado notário do concelho de Gondomar. Foi com Maria,  a sua filha mais nova, que casou, em 24 de setembro de 1910, António Carlos Aguiar. Para aceitar o namoro que ele lhe propunha,  e que não suscitou, por parte dos pais qualquer oposição. rejeitou ela a corte que lhe fazia um primo Barboza, visconde de Paredes, ou um dos filhos do visconde (ninguém registou, com precisão, os graus de parentesco, os factos que ela contou a filhos e a netos, tantas vezes).
Em retratos dos noivos, dos esposos, antes e durante a sua década de vida em comum na paradisíaca cidade do Rio de Janeiro, adivinhamos modos de ser e estar e, como, mais a mulheres do que os homens, mudaram radicalmente de indumentária e visual.












António Carlos era um "homem de família", extremamente afetivo,  mulher e os filhos sempre no centro das suas preocupações. Custava-lhe qualquer separação, mesmo que fosse de apenas algumas semanas, pelo que os derradeiros anos da sua vida não foram, como esperava, de remansoso convívio e de despreocupada tranquilidade em S Cosme. Na escassa correspondência que, desses períodos, se guarda, a manifestação da saudade e a ternura são invariáveis.Trata a amada esposa com a mesma expressão de intensos sentimentos, que lhe conhecemos dos tempos de noivado, e dos meninos quer saber tudo, a descrição dos mais pequenos gestos ou gracinhas.
O desaparecimento do querido e meigo Augustinho foi para o casal um desgosto, que não teria fim, mas não os separou, rodeados já de quatro crianças, que enchiam de risos e de bulício a mansão do alto de Santa Teresa, onde moravam há alguns anos. Aí passou Augusto todo o ano do seu destino breve.










 Dos três brasileiros de naturalidade– além dele, Carolina, a primogénita, e José Augusto - foi o único a nunca conhecer a terra de seus pais. Gerados no Rio, mas nascidos em Gondomar, eram outros três, Manuel Joaquim, António Maria e Maria Antónia. Depois do retorno, a família voltou a aumentar com duas raparigas. Glória Doroteia e Maria Madalena, que tinha dois meses, à data da morte inesperada e súbita do pai. 
Maria Aguiar, viúva aos 36 anos, ficou com "apenas" os seus sete filhos à sua volta, mais o outro, Augustinho, sempre vivo na sua memória e na dos irmãos, mesmo dos que não o conheceram: A sua imagem anda espalhada nos álbuns da família, a sua história passa de geração em geração. Levou-o uma pneumonia, desfaleceu nos braços da mãe. Olhou-a e disse a sua palavra preferida: “mamã”. Mais de meio século depois, ao narrar esse momento a netos e bisnetos, a mamã não conseguia conter as lágrimas.
Mariazinha, que veio ocupar o quinto lugar vazio na ordem cronológica dos Barbosa Aguiar, cruzou os mares, invisível no ventre materno, e, apesar de nunca ter podido fazer o trajecto de retorno, via-se como luso-brasileira e consumou uma paixão  vitalícia elo paraíso perdido do Brasil na preferência pela leitura de escritores brasileiros como Jorge Amado ou Érico Veríssimo, na música, nas novelas da Globo... - 
O seu nascimento na casa dos avós em Quintã, em 28 de agosto, mitigara dias de luto, luto redobrado por morte, nesse ano, da avó paterna, Rosa Pereira de França, mas o clima revelava-se pouco propício a celebrar aniversários e efemérides nos estúdios serviços da Fotografia Cardozo. Ao contrário do que acontecera com os manos, não há retratos da menina antes de fevereiro de 1922, já a Mariazinha tinha 18 meses. Teve direito a uma foto individual e a uma outra, com a mãe e os irmãos, ocupando o centro de cena, sentada numa mesinha com camilha, de laçarote branco no cabelo curto e claro, olhando de lado, como quem desconfia do teatro em que lhe  davam o papel principal, talvez assustada por holofotes jorrando luz e pela estranha geringonça, a câmara escura colocada  apontando para si. À sua direita, Manuel, à esquerda Carolina e António e, sentado numa cadeirinha, o indomável José,  por alguns minutos aquietado. Todos com uma ilusória aparência de crianças muito bem comportadas

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A mãe vestida de preto, de luto pesado, talvez pela mãe,  falecida em 1921. O marido provavelmente estava ausente no Rio de Janeiro e terá recebido aí as primeiras cópias entregues pela Foto Cardozo..
Nesse ano de 1922 e no seguinte, Mariazinha voltou, várias vezes, ao fotógrafo, no Largo do Souto, em São Cosme, desfilando, gordinha e retraída e relutante, em diversos vestidos, incluindo trajes carnavalescos, possivelmente comprados pelo Papá na Europa central.





O gosto pela exibição de trajes tradicionais fora já evidenciado na geração anterior. A mãe e as tias maternas apareciam fotografadas em trajes minhotos… Não admira, pois, que os filhos se mostrassem entusiasmados em os usar, tanto raparigas como rapazes, caso de José, que, aos 4 ou 5 anos, se transformou, no estúdio, em credível e bonita minhota. Alguns dos fatos envergados por Mariazinha e Carolina são bem mais exóticos, embora não, como se poderia esperar do exotismo tropical. O Carnaval brasileiro, nascido nas favelas, não era o mais inspirador para a burguesia.
Nesta altura, ainda predominavam os rapazes, Carolina e Maria Antónia eram as únicas raparigas e, por isso, se tornaram as principais protagonistas dos Carnavais ou entrudos de São Cosme. Na família, vinha de longe o gosto pelo folclore,  música e indumentária, como está documentado por fotografias do início de novecentos, em que as manas Barbosa Ramos e as amigas parecem constituir um autêntico grupo etnográfico do Alto Minho.



No carnaval de 1923, Carolina sorri, Mariazinha posa, de sobreolho carregado. no seu traje de vianesa, xaile e lenço na cabeça,  só destoando do conjunto os confortáveis sapatinhos de presilha, em vez de socos rústicos, com que não conseguiria dar um passo, sem cair.
Por esta altura, talvez a família estivesse prestes a instalar-se na Vila Maria. No ano seguinte,  fotografias de amador, sem grande definição, mostram-na já  na casa e no  jardim ainda muito despido das flores, árvores e arbustos em que não tardaria a florescer
Na mais melhor foto da casa, tirada do lado norte, mal se distinguem as personagens, ao longe minúsculas face à massa enorme do edifício, e quem mais sobressai é a Mariazinha, graças a um vestido claro e ao obrigatório laço branco no cabelo. Na verdade, mais avulta o laçarote do que o rosto da menina...
 Nos jardins de rosas, simétricos e dispostos em hemiciclo,  ladeando o portão de entrada, começavam a crescer as preciosas espécies, que o pai cultivava, por suas mãos, como “hobby” e levava a exposições. Um entretimento herdado do pai e partilhado com o irmão Augusto, que conquistou, com as suas rosas da casa da Gândra. várias medalhas, reverentemente conservadas, até hoje, pelos seus descendentes. É na ala sul do jardim que o o captam, com as filhas Glória (Lolita) e Mariazinha. Em outra foto, está com a Lolita ao colo, ao lado do cunhado, Manuel Marques, marido de Rosaura e padrinho da Mariazinha, com a afilhada sentada num joelho. Ambas as crianças com laços de seda tão grandes, que mais parecem chapéuzinhos...





A diferença de idade entre Mariazinha e Lolita era de dois anos, mas, na verdade, viam-se e agiam com se fossem gémeas.  A mais velha foi, desde o berço, a mais pequenina, a mais nova aos cinco ou seis anos já era da mesma altura e, aquando da comunhão solene, naturalmente feita em simultâneo, já a tinha ultrapassado. Fisicamente não eram parecidas, a Mariazinha muito branca, de olhos azulados, a Lolita muito morena e de grandes olhos verdes, como o papá.
Desse pai, tão amoroso e condescendente com elas, guardaram ambas poucas lembranças, sendo a principal, precisamente, a da sua gentileza - as bonecas e os lindos vestidos que lhes oferecia, saídos das suas malas, na volta de Paris, as brincadeiras e passeios no jardim e nos recantos da terra de cultivo, a apanha de frutos maduros, cestinhos de morangos, que ele próprio acabava de colher e lavava na torneira do tanque, antes de lhos dar.  Às vezes, a Mariazinha era mandada  a casa dos tios - padrinhos, Rosaura e Manuel,  na companhia de uma criada, a levar, como presente, mais um cesto de morangos.
À Lolita dizia: “És a minha molequinha”. E ela respondia, de imediato: “O papá é o meu molequinho”. E riam , juntos, dessa alusão à tez morena, que era caraterística de muitos dos Aguiares mais bonitos.
Mariazinha não recordava qualquer diálogo com o pai, só a história, contada pela mãe, de ele ter sido o primeiro a descobrir que tinha olhos de cores diferentes. Notou a anomalia, mal a tomou nos braços, pela primeira vez, exclamando, em tom de grande preocupação: "Maria, a menina tem um olho de cada cor!".
A diferença passara despercebida à progenitora e à parteira, porque não era muito evidente, como é quando as cores são fortemente contrastantes. Um dos olhos era azul esverdeado, o outro verde azulado. Eram lindos, luminosos, combinavam, na perfeição a sequência de tonalidades, em "degradé". Maria Antónia teve sempre um desmedido orgulho na singularidade. Usava óculos de miopia muito graduados  e, em criança e adolescente, tirava-os, muito ufana, para chamar a atenção para esse seu traço distintivo. Era, também, a única da numerosa prole a sofrer de miopia, só detetada na escola.  Obrigada a usar, nas aulas, óculos de lentes grossas e aros redondos, como então se usava, achava pouca graça â situação. Raramente se deixava fotografar com eles, e  ao longo da vida, iria privilegiar os óculos escuros e só com eles começa a aparecer na sua iconografia.
O recurso a imagens não permite  visualizar os seus  primeiros meses,  e anos, na Vila Maria. São, estranhamente,  escassas e de fraca qualidade, as que se conhecem, e não ajudam a encontrar pistas sobre as rotinas do quotidiano, e as festas e convívios de um tempo de bonomia e esperança, em que nada permitia adivinhar a tragédia da morte tão próxima de António Carlos Aguiar. 
O oposto se passara nos últimos anos da casa e dos jardins de Santa Teresa,  registados em assinalável número de fotografias tiradas por profissional,  e artisticamente  emolduradas,  embora, infelizmente, pouco resistentes ao desgaste dos anos, hoje todas mais ou menos desvanecidas, em jogos indistintos de luz e sombra, onde vagueiam vultos que mais se distinguem pela postura geral do que pelos rostos e em que  mal resiste o desenho de escadarias, janelas, varandas, arcadas, pátios, e vegetação tropical.  Em qualquer caso, abundam.  Na Vila Maria, a atitude contrária parece ter prevalecido, não havendo um só registo da família completa no novo meio ambiente!







O final de 1924 ou começo de 1925 terá sido o da inauguração da nova casa, mas, antes de terminadas as obras de edificação, de decoração e, por último, de transferência da infinidade de malas e caixotes,  envolvidos na operação, é de supor que estivesse já em fase mais avançada o trabalho de planificação das áreas de jardim e de quinta agrícola e a plantação de árvores, de extensos vinhedos e de flores. (vd sobre a casa relato anterior).
A partir do fatídico 26 de julho, um ataque cardíaco levou o pai da sua companhia, o estado de choque, e, depois, de prolongada prostração em que ficou a viúva, explica a ausência completa de registos fotográficos durante os anos seguintes. Mariazinha só reaparece nos retratos por altura da comunhão solene, possivelmente celebrada em 1930 ou 1931. Talvez sejam anteriores os de Vizela ou da Foz - que revelam a continuação ou o retomar das férias de prais e de termas, em que a mãe sempre dividia as suas férias . Não estão datados e não é tarefa nem óbvia, nem fácil,  determinar uma sequência cronológica 










   A comunhão solene de Carolina e Manuel fora, também celebrada em conjunto apesar da diferença de dois anos. A menina esperara pelo maol, a quem o senhor abade permitiu antecipar o solene ato. 1923 é data manuscrita por baixo da foto de estúdio, que seria a última em que vêem, como os dois filhos, os pais de Mariazinha, ambos de luto rigoroso (pela morte da mãe e sogra, Carolina Ferreira Ramos).  Carolina, ou Lininha, já completara os 11 anos, Manuel tinha 9. O mesmo arranjo foi possível com dupla seguinte



VILA MARIA, UM PEQUENO MUNDO


Foram dramáticos na Vila Maria os últimos anos da extraordinária década de 20. Para aquela que dava o nome à "Vila", Maria Aguiar, a vida não continuou, depois  daquele dia 26 de fevereiro, como se o tempo tivesse parado no momento em que se abraçou ao corpo morto do marido.  Nunca pensara a vida sem ele não sabia como continuar.  Entre lágrimas e desmaios, deixava-se ficar na cama, sem ânimo para cuidar de nada, chamava médicos, que não tinham remédios para lhe dar  Os irmãos, que eram os mais próximos, na geografia e nos afetos, Alexandre e Rosaura acudiram , de imediato.  Ambos casados, sem filhos, tinham completa disponibilidade para se dedicarem à irmã viúva, assim doente, e  aos  órfãos. O bébé de 2 meses, Maria Madalena, a Leninha, ficava com Hermínia e Alexandre, que moravam do outro lado da rua -  uma situação que haveria de tomar caráter permanente, até à idade adulta da menina. Rosaura e Manuel Marques tomaram conta dos outros.
O funeral fora uma cerimónia arrasadora, uma multidão juntou-se para dizer adeus àquele amigo encantador e generoso, de quem todos gostavam. No curto trajeto que liga a Vila Maria à Igreja Matriz , atravessando o Souto, organizaram-se, segundo relatam os jornais de Gondomar, oito turnos para transporte da urna, a fim de que muitos pudessem prestar-lhe essa homenagem, família próxima, as elites da vila,  as direções do Clube Gondomarense, do Clube dos Caçadores e dos Bombeiros Voluntários, dos quais era associado ou benemérito.  Pormenor tocante,  num dos turnos, vem mencionado, no meio dos doutores. dos empresários e dos grandes lavradores da terra,  o nome do seu criado, João Pereira, possivelmente um dos mais diretos beneficiários da sua proverbial simpatia.
Depois, foi o  longo silêncio, por longos meses rompido pelo choro coletivo. O testemunho mais direto e preciso é dado num soneto escrito por  um menino de 11 anos, o filho António Maria:
Meu Pai
Quem te levou, meu Pai?!...Quem te levou
Para esse mundo, assim tão azulado?
Responde...sim. Teu filho, um desgraçado
Para quem a tua ausência já chegou

Para esse mundo sem fim, quem te arrastou?
Partiste!... Fiquei só! Desventurado
Pede a Deus, a quem por ti tenho rogado, 
Embora infeliz... para quem tudo se quebrou

Partiste, morreu tudo neste mundo...
E minha Mãe, oh Pai, sempre a chorar
E eu choro, desde o dis em que, moribundo, 

Te segurei... morreste pai... Agora então
Depois de tudo, me vês, sempre a chorar,
Chorará eternamente, Senhor, meu coração!

Só as mais pequenas  atravessaram os dias mais tétricos, num estado de absoluta incompreensão, e deles não guardaram  memórias. 
Mariazinha, a um mês da fazer seis recorda apenas a imensa estranheza  de ver o pai a dormir numa caixa comprida e estreita. Aproximou-se e tocou as suas mãos, a sua face, sentiu-as geladas, tentou acordá-lo e ele não se moveu. E é tudo, não recorda sequer a cena dramática da saída da urna, quando o irmão Manuel se deitou sobre o caixão fechado, para impedir que o levassem. E foi preciso retirá-lo e afastá-lo e tratar da crise de nervos, ou simplesmente, de desespero em que se via. O mais certo é que estivesse longe, ao cuidado de uma criada de confiança, porque toda a família acompanhou o cortejo fúnebre.
Esse é o único episódio que, mais tarde, foi contado, pelo mais se sabe pelos recortes de imprensa, do que por relatos da família. Da morte do pai não se falava, era quase um tabú, o enfoque era sempre sobre a sua vida extraordinária e a sua personalidade generosa, extrovertida e divertida, sobre o harmonioso ambiente de família, os alegres e constantes convívios com amigos, nas salas e no jardim, à volta da mesa redonda, em bancos e cadeiras de ripinhas de madeira verde escuro, a mesma cor das venezianas, em contraste com o rosa forte das paredes da casa. Sobrevivem, assim, histórias pitorescas, dos hábitos tropicais, que conservou sempre, de tomar um  duche frio pela manhã, seguido de um almoço só de frutas, ou de nadar nas águas gélidas do tanque gigante, que ficava na zona de transição entre os jardins e a quinta agrícola, junto à chamada "casa da eira".  Ou o seu gosto pelas caçadas e pelas partidas inofensivas,  como a de oferecer aos amigos laranjas de aspeto magnífico, misturando umas muito doces, outras muito azedas (de uma laranjeira exótica, que mandara plantar só para esse efeito), e de partir pratos e canecas à bengalada, nas feiras e romarias de São Cosme (a extravagância era popular entre as louceiras, que, mal o viam, o chamavam : "Sr. Aguiar, venha partir a minha louça!". Desejo razoável, porque ele pagava sempre a dobrar...
É pelos jornais que ficamos a saber outros peculiaridades, como a de usar uma linguagem sempre correta, nunca se lhe ouvira um palavrão, o pior que exclamava era: "com os diabos!"... E, como monárquico convicto, ouviam-lhe dizer, muitas vezes: "Talassa, passa, Buíça chiça"....
Foram apenas dois, os anos fee´ricos, que todos com eles passaram na Vila Maria 







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