sábado, 25 de agosto de 2018

...PARIS 1968



...no pós Maio de 1968

1 – A minha relação com os acontecimentos de Maio de 1968, em Paris, é a história de um “rendez-vous manqué”.
Cheguei tarde, nos últimos meses do ano. Ou cedo, para avaliar o seu impacto no futuro da instituição “universidade” e da sociedade francesa – ou o seu significado profético, revelação de um mundo emergente de novos conflitos e tensões sociais, de formas novas de manipulação ou de “opressão”, não num quadro de exploração de classes e de pauperização, mas em economias prósperas, de sedimentação de “classes médias”, e enriquecimento generalizado, ainda que desigual…
Para Paris parti, numa segunda-feira, 28 de Outubro de 1968, no wagon-lit do Sud-Espresso – já na sua fase de declínio, sobrevivência do gosto de viajar sem pressa e com conforto. Até Hendaye, o Sud avançava com um vagar próximo da indolência.
Parava aqui e ali. E ficava estacionado o tempo suficiente para entrarem e saírem das carruagens famílias inteiras, na despedida do passageiro (assim foi comigo, na Pampilhosa…). Havia tempo para tudo: para ler, passear nos corredores, gozar o exclusivo de um restaurante quase vazio e dormir num beliche, entre lençóis bem engomados, uma noite longa. Na fronteira francesa, era obrigatório mudar de comboio – porque até nos carris a Península divergia do resto da Europa! – um comboio velho, “vulgar”, superlotado, mas bastante mais rápido. Deixou-me, sem um minuto de atraso, terça-feira à tarde, na Gare de Austerlitz.
Um sem número de emigrantes portugueses – em número largamente superados por sacos e por enorme malas - desembarcaram também. Foi tarefa difícil arranjar um táxi, no meio de uma multidão desordenadas de portugueses e não só, com os seus pertences espalhados extensivamente pelos passeios, a dar à primeira imagem de Paris revisitada, um ar de arraial, de desfazer de feira muito pouco cosmopolita…
Havia apenas o escape do “metro”, mas não ousei aventurar-me na sua rede densa, a caminho de um “quartier” desconhecido, algures na direcção da “Porte d’Orleans”, da Cidade Universitária e, dentro do seu perímetro vasto, da “Casa de Portugal”.
Com o motorista cheguei, sem mais problemas, ao edifício, que, aliás não tinha nada de caracteristicamente português. Aí fui conduzida a um pequeno quarto, onde não cabia muito mais do que um divã estreito (como o beliche do Sud) e uma secretária de trabalho. Deixei a mala pousada num canto, olhei de relance a janela com vista para a Igreja de Gentilly (que seria, anos depois, a primeira grande paróquia dos nossos emigrantes) e saí. No momento da despedida tinha, pouco avisadamente, prometido telefonar a minha mãe, logo que possível. Mas não foi possível… Não havia linha exterior disponível para os residentes, nem mesmo na recepção (um retrocesso até em comparação com o provinciano lar de freiras, do meu primeiro ano em Coimbra…)
O porteiro deu-me instruções para demandar a estação de correio, junto à entrada principal da “Cité”, no Boulevard Jourdan, Mas, perante a minha perplexidade, traçou, numa folha, um mapa improvisado útil! Fui direita à estação em poucos metros. Depois esperei numa comprida fila a minha vez, para receber apenas a informação de que teria de aguardar até à hora de encerramento de serviços. Só então fariam o favor de discar o número de minha casa. Faltavam ainda duas horas! Mandei um telegrama sintético e económico.
Senti-me só e longe. Nunca o Porto me parecera tão remoto.
À medida que outros episódios semelhantes foram despertando a minha combatividade, habituei-me a reagir à má vontade ou má disposição de alguns parisienses, nos correios, nas lojas, nos cafés, com mais determinação – chegando, se preciso, à agressividade verbal controlada – e obtive, regra geral, melhores resultados.
Na altura, atribuía tanta sobranceira (se assim era comigo, como seria com os emigrantes, sem o mesmo domínio da língua?) à maneira de ser e de estar do povo local. Mas mais tarde achando-os bem mais comunicativos e amáveis – como ainda são – conclui que sofriam, de uma irritabilidade conjuntural, que era apenas uma das sequelas dos traumas de Maio de 68 (a primeira com a qual tive de lidar…).

2 – No início de 1968, enquanto os estudantes ensaiavam as primeiras formas de contestação, em Caen e Nanterre, faziam a greve geral, em Itália, ou se manifestavam, contra a guerra do Vietnam, nas ruas de Berlim, eu estava em Genebra. Geograficamente perto, mas distante, em termos de percepção do fenómeno…
Se alguma erupção de descontentamento estudantil ocorreu na Suíça, nós, no “Instituto Internacional de Estudos de Trabalho”, não demos por isso. Éramos um grupo de investigadores, professores, sindicalistas, funcionários públicos e até alguns políticos – todos vistos como promissores, embora nem todos nos tivéssemos revelado, como previsto, nas décadas seguintes – e no centro das nossas atenções não estava Nanterre, nem a França, mas regiões do mundo onde residiam maiores desafios ao desenvolvimento (o chamado “terceiro-mundo”) e à paz (Vietnam, Cuba, Checoslováquia…).
Quase todos púnhamos moderadas esperanças na “primavera política” de DubceK, que foi quase contemporânea da portuguesa, mas ainda mais breve e com epílogo mais trágico, logo em Agosto de 68…
Quando a chama do Maio francês já praticamente se apagara, os tanques do exército soviético mostravam, em Praga, como se reprime e extingue uma vivência curta de liberdade condicionada.
Dubcek era o meu tipo de “herói” e Cohn-Bendit não era (por muito atraente que (mais as suas circunstâncias do que a sua pessoa) o tivessem tornado e, a meu ver, por erros alheios, efectivamente tornaram!
À falta de “posters” de Dubcek na colecção da “Librairie Gibert” de St. Michel, seriam os Kennedys, John e Bob, a ocupar vários metros quadrados nas paredes brancas do meu quarto no Boulevard Jourdan. Alguns dos meus amigos portugueses escolhiam, por veneração ou talvez por provocação, à distância, ao regime que nos aguardava no regresso a casa (para os que podiam regressar…), retratos gigantes de “Che”, que estava na moda e era decorativo.
De qualquer modo, acho que naquele tempo o paradigma português das “greves académicas” do início dessa década, que pouco incomodaram o regime, e também, as expectativas que se abriam – embora não muito… com as “conversas em família” de Marcelo e, nas eleições de 69,com a criação da “ala liberal” - contribuíam para que eu, jovem recém-licenciada em Direito, e politicamente reformista, desvalorizasse à época, o alcance e simbolismo de Maio de 68. Pesava negativamente o facto de saber que as consequências para os paladinos do “movimento” e até para os seus simples seguidores seriam fatais em Lisboa, ou em Moscovo, com perseguições e chacinas, que, apesar de tudo – da violência e até de algumas mortes, que mancharam o balanço final – não aconteceram na França “Gaullista”.
Não deixava, contudo, de sentir atracção, não ideológica, pela espontaneidade e pela bravura com que os jovens e os “citoyens”, em geral, mesmo na periferia do movimento, ajudaram ao crescimento de uma fantástica vaga contestária.
Mas o “Poder” – o poder político e os poderes no interior daquela sociedade em concreto, como as organizações partidárias ou sindicais – era-me simpático em comparação com o que imperava no meu país. Como pôr-lhe, à data, os defeitos que, hoje, no do Portugal de hoje, lhe reconheço? (pondo em causa a lógica aparelhística, e o carreirismo nos nossos partidos políticos e falando de partidocracia, ou olhando, por exemplo, os próprios sindicatos com não menor distanciamento afectivo…).
Mas em verdade, durante Maio de 68, já de volta ao “Centro de Estudos” na Praça de Londres, em Lisboa, acho agora que visionava então, aquele filme de peripécias alucinantes, sem realmente compreender as suas motivações (que obviamente faziam mais sentido para quem respirava o ar de uma democracia estabilizada - embora em crise momentânea de destabilização…), para uma parte da “inteligentzia” europeia e universal (muitos professores e investigadores apoiaram o “protesto” dos jovens, tal como vários “Prémios Nobel” - esse clube restrito). Mas, estranhamente, assim não aconteceu com a maioria dos políticos franceses,. Também eles não souberam fazer a correcta e atempada leitura da situação….

3 – Tal como a via, a revolta de Maio era um “happening”!
Maior, em si, no movimento que passava, na dimensão que ocupava, do que em consequências futuras – isto é, em rupturas portadoras de mutações para uma instituição (a universitária) ou para um país (a França). E a verdade é que, pelo menos no curto prazo, o reformismo a que deu azo, era o oposto dos objectivos – dispares, aliás – dos heterogéneos protagonistas principais do “movimento”. Absolutamente indesejável para qualquer revolucionário. E de menos, face aos meios envolvidos na luta.
A mim, nos dois anos lectivos que passei no território da revolta, no imediato futuro do movimento de Maio, o movimento parecia-me mais sem futuro, e sobretudo, mais inútil do que na minha perspectiva actual…
Frequentei, com curiosidade, os seus locais de culto” (a Sorbonne, Nanterre) e ainda, Vincennes, nascida por causa de Maio. Por aí vagueei em cursos de frequência livre, (quando quis inscrever-me em sociologia, na Sorbonne, já as inscrições tinham encerrado por excesso de procura e tive de contentar-me com a matrícula no “Centro Universitário Experimental de Vincennes, que fazia jus ao seu carácter experimental, para além da École Pratique des Hautes Études, onde pude escolher como director de estudos, Alain Touraine).
Como “case study”, Maio era obsessivamente estudado, analisado e comentado pelos grandes nomes da Paris académica (Poulantzas, Althusser, Friedman, Chombart, Aron, Bourdieu…). Via-os de perto, ouvia-os com a fascinação com que no Olympia ou no Bobinno, assistia aos espectáculos de Léo Ferré, ou Serge Reggiani,
Porém, a dissecação da “revolta”, ou da revolução (que não o chegou a ser) operada, com inexcedível brilhantismo, nas suas lições e palestras, parecia-me sempre, aquém ou além das intenções de qualquer deles, uma autópsia ou um requiem pelo Maio próximo passado...
Ao meu sentimento de perda – perda do espectáculo, já em análise póstuma… – subjazia a convicção de que ele era irrepetível e estava definitivamente encerrado. Passara da rua para as salas de conferências, as páginas dos livros.
É certo que uma de infinitos ensinamentos.
Em primeiro lugar para o poder ou poderes: desafiados, desacreditados, vencidos, no tempo efémero da aventura, e logo reinstalados. Os políticos que se haviam convertido em actores principais pela ausência, pelo imobilismo, pela inépcia, pela incompreensão da forma e direcção que o curso daquela história ia tomando. Permitindo, com isso, alianças impossíveis e um efeito “bola de neve” (no caso, mais “bola de fogo”…) dos descontentamentos e dos conflitos , a que a repressão da polícia de choque deu um voo de asa – e a adesão popular. Do povo em estado de indignação! Solidário, contra a máscara bélica de uma democracia desfigurada…
Nesta base de emoções e de reacções se construiu um império da palavra, da imaginação, da acção pela acção, a unir indiferentes, ou opositores, numa festa de protestos: manifestações, desfiles, ocupações, greves – de estudantes, de operários – a reunião magna do Champs de Mars, as barricadas do “Quartier Latin e da Bastilha, a brutalidade policial, detonador de uma explosão de fraternidades… Por uns dias – ou semanas – foi como se a democracia francesa tivesse sumido do mapa, deixando em seu lugar, omnipresente e omnipotente, um regime policial.
Por fim, até De Gaulle seria dado como desaparecido, num interregno táctico, para reaparecer, vindo da plácida Colombey, a dissolver o parlamento e a convocar eleições legislativas – solução última em democracia.
E, assim, mudando o campo de batalha (ou melhor: a batalha de campo…) ganhou força, com outras armas…
Os resultados eleitorais só terão surpreendido os que se equivocaram nas razões da complacência popular com o “movimento” (que eram apenas as do coração, de simpatia pelos combatentes, mais do que pelas razões do seu combate). Na hora de votar, venceram as razões da razão… Venceu De Gaulle, que proclamara “La réforme, oui, la chienlit non”.
Na primeira volta, a 23 de Junho, o gaullismo ressurgiu, na segunda, uma semana depois, a sua vitória foi esmagadora. O velho general reocupava o comando (por pouco tempo, é certo…). E o reformismo, o espaço da contestação, dando a Maio 68, enquanto “happening”, um lugar no álbum de recordações.

4 – Como escreveu Touraine, num livro de leitura obrigatória ( (Le mouvement de Mai ou le communisme utopique), Maio foi “um movimento revolucionário sem revolução…” E o alvo não fora De Gaulle, mas a sociedade francesa, as forças de controlo e manipulação da sua vida, postas em causa por um núcleo minoritário, que mobilizou massas gigantescas à sua volta, beneficiando, fundamentalmente, de dois erros alheios, que em análise retrospectiva, pareceriam fáceis de evitar: primeiramente, o encerramento da Faculdade de Nanterre, que transporta a contestação de uma espécie de “laboratório experimental”, isolado nos subúrbios, para o palco aberto e central do “Quartier Latina” em redor da Sorbonne, a “alma mater”. E, depois, no auge dos tumultos, o eclipse total do poder político, deixando, como sucedâneo, a polarizar indignação e antipatia, o aparelho policial e, com ele, a violência à solta. Touraine dixit... por outras palavras. Ouvi-o dize-lo, de viva voz, em Nanterre, ou na “École Pratique”, nunca achei argumentos para discordar…

5 – Propendo, 40 anos depois, a valorizar Maio de 68. (vulcão extinto ou,na perspectiva de então, simplesmente dormente?), enquanto factor determinante da decisão de aceitar uma bolsa de estudos para fazer a pós-graduação de sociologia em Paris.
A meio do ano, ainda a minha prioridade era: Northwestern, Illinois, onde tinha matrículas e direcção de estudos meticulosamente organizada (e uma bolsa melhor!)
Em Paris era a improvisação que me aguardava. Parti quando pude, retida por várias peias burocrática - e, em pleno Novembro, tive de encontrar “in loco” as soluções possíveis. A École Pratique dês Hautes Études – um dos objectivos iniciais - o departamento de sociologia de Vincennes e a “Catho” (Universitai Catholica Parisiensis), onde coleccionei certificados de cursos.
Sentia-me no quotidiano, a transitar entre mundos universitários colocados nas antípodas uns dos outros.
Os reflexos do “movimento” eram mínimos na “Católica” (indiciados no pormenor do uso de gravata por professores e alunos…) e máximo na novíssima Vincennes: um aquartelamento universitário acabado à pressa - implantado nas lonjuras de um bosque, sem nada mais do que belezas naturais à vista. Aí o dia podia ou não ou não ser tumultuoso, sem qualquer risco de intervenção dos CRS (ainda visíveis e frequentemente actuantes em incidentes menores no “Quartier Latin”). Em Vincenne ocorreria, de vez em quando, sem periodicidade previsível, ma batalha campal entre clãs rivais (comunistas versus “gauchistes”). Partiam vidros e cadeiras. Pouco mais! Nada que perturbasse (excepto durante o desenrolar das escaramuças) a normal frequência das aulas, algumas das quais de excelente nível. De Vincennes, herança de Maio 68, ficou-me uma boa impressão. Como um “self-service”, lá encontrávamos o que queríamos – da lição tradicional, ao “comício” dos grandes profetas do tempo ou a “bagarre”.

6 – Quarenta anos depois, aquela bastante impulsiva e muito enigmática e questionável (do meu ponto de vista…) preferência por “Paris” = dispersão de esforços e incertezas, em vez de “Northwestern, Evanston” = perfeita organização e perspectivas de progressão segura, só não são motivo de maior arrependimento e de lamentação, porque acabou por se revelar uma aprendizagem inesperadamente adequada, para o que viria a ser, o trabalho da maior parte da minha vida profissional (ou política). De facto, não estava destinada, como queria, a passa-la no interior de gabinetes de estudo, ou em em salas de aula, mas em incessantes viagens para contacto e colaboração com comunidades de expatriados!
Ora em Evanston, ter-me-ia faltado não só o conhecimento de “experiência feito” da realidade da emigração portuguesa no seu período heróico na França, mas também e, sobretudo, a vivência em pequena e coesa comunidade no estrangeiro – comunidade de estudantes, com as suas semelhanças e diferenças face às comunidades de trabalhadores imigrantes.
Illinois nunca foi terra de acolhimento da nossa gente nos Estados Unidos da América (que, como é sabido, se fica, tradicionalmente pelo litora,l a Leste e a Oeste).
Aí teria, pois, estado entre estrangeiros, certamente bem integrada a dar curso ao meu velho sonho americano. Em Paris, pelo contrário, permaneci entre portugueses, num espaço extra-territorial português (em 68/69) ou entre portugueses e argentinos (em 69/70), quando, involuntariamente, fui transferida da Casa de Portugal para a Fundação Argentina, dentro da “Cite” – e em boa hora: lá pude fazer amigos para sempre, entre jovens de um dos países mais europeístas e cosmopolitas e, para mim, dos mais atraentes de todo o universo…
Esta pertença a uma comunidade de emigração (ou melhor, a duas) não a teria tido no Illinois com americanos, ainda que americanos de origens diversas.
Como sabemos, a nossa emigração atingiu, em França, nesse período, o seu máximo de sempre – superando a emigração “delirante” de que falava Emygdio da Silva, abismado perante os números do êxodo de 1911 – 1913.
De 1968 a 1970, os expatriados foram mais de 500.000, na maioria clandestinos (a que se somavam os que partiam em direcção aos chamados novos destinos, como o Canadá e a Venezuela, constituindo um movimento quase da mesma ordem de grandeza, ainda que com muito menor visibilidade - talvez pela sua componente maioritariamente insular, dos açoreanos para Norte e dos madeirenses para a América Latina).
A França atravessava um “boom económico” – e, por isso, é óbvio que Maio de 68 não teve a ver com a crise neste sector… - e precisava destes portugueses tanto quanto eles precisavam de buscar, em França, trabalho ou refúgio contra perseguições políticas ou recrutamento forçado para as guerras de África.
Estes trabalhadores fazem parte das minhas memórias do pós-Maio 68, não porque tivesse com eles um relacionamento próximo (o que só aconteceu com um ou outro exilado político), mas porque eram símbolos sempre presentes de um Portugal que não queríamos que fosse como era.
Com eles me cruzava, no dia-a-dia, nas ruas de Paris. Reconhecia-os, mesmo que não falássemos. Quando falávamos - se os via em dificuldade de comunicação - era para servir de interprete. Espantavam-se com a minha fluência na língua local, como se fosse coisa impossível para um compatriota…
Uma das recordações mais pungentes que guardo dessa minha expatriação temporária é a dos passeios de domingo a Versalhes. Não porque lá fosse muitas vezes, com os amigos, mas porque, sempre que ia, lá estavam dezenas de portugueses, só homens – e homens sós… - de fato completo e chapéu preto, espalhados em pequenos núcleos pelos jardins geométricos do palácio real, assim como que colocado no lugar do átrio de uma igreja paroquial minhota… Eram o retrato perfeito dos sentimentos de inadaptação e de nostalgia.
O movimento associativo não tardaria a recriar um espaço, de cultura popular portuguesa, com os seus bares, cafés, restaurantes, ranchos folclóricos, bandas de música, grupos desportivos, escolas – a transplantação de uma aldeia portuguesa .bem organizada em todo o seu pitoresco e modos de estar (como se costuma dizer…)
Também na “Cité” a “Casa de Portugal” nos oferecia o factor proximidade num círculo fechado, se o soubéssemos aproveitar com laços de amizade – e soubemos !
Éramos um grupo unido, coeso, com um “projecto de convívio” nos tempos livres, embora sem comando, sem “chefes”, como iguais. Não incluíamos todos os portugueses da “Casa” – longe disso! – nem excluíamos, à partida, os estrangeiros (um dos nossos amigos, jovem exilado pelo regime dos coronéis, viria a ser, muito mais tarde, Embaixador da Grécia em Lisboa!).
Apenas “uma trintena de residentes”, como fomos chamados num momento de “confronto” com a direcção da Casa, logo no início do ano lectivo.
Terá esse “incidente”estado na origem do espírito de grupo? Talvez sim, talvez não… Tudo começou assim: alguns de nós – nem sequer me lembro quantos… - resolveram lançar mão de um dos direitos que o Maio de 68 conquistara: o “droit d’affichage”. O direito de expor cartazes, anúncios, sem autorização do director da residência.
Usamos esse direito para convocar eleições para os órgãos dirigentes da Casa. Apresentámos uma lista de candidatos e proponentes (no conjunto, a tal “trintena”). Ganhámos as eleições e logo o processo foi posto em causa… A administração não reconhecia – a “uma trintena de residentes” a legitimidade para afixar convocatórias sem a chancela da Autoridade.
Mostrámos, então, que nos faltava, em absoluto, o impulso revolucionário, na tradição de Nanterre 68. Não contestámos. Reconvertemos o projecto cívico de intervenção nos destinos da “Casa” em projecto lúdico de convívio dentro da “Casa” e da “Cité”, Em inúmeras reuniões, ao longo do ano, sempre pedíamos e obtínhamos autorização, para usar cozinhas e salões de festas à maneira de um clube ou de uma tertúlia.
Os contactos com a França, limitavam-se ao local de trabalho (ou estudo!), do qual voltávamos para casa: familiar.
A residência da Fundação Gulbenkian estava assim, para nós, integrada em dois mundos: o do nosso País, com as marcas da sua mentalidade, das suas cisões, dos seus “fantasmas” (também das expectativas geradas pelo “marcelismo”…) e o da Cidade Universitária, que fora um dos palcos de Maio 68 – embora palco do segundo plano - com outros “fantasmas”, as imagens da destruição no seu interior e o encerramento violento das residências “representativas” de regimes ditatoriais, Espanha, Argentina, Portugal… Pouco importara que a nossa não fosse do Estado, mas de uma Fundação privada, com sede em Lisboa.
A “trintena de residentes” não escapara, neste contexto, a uma conotação política: de “católicos progressistas”. Na verdade, uns eram católicos outros não – o mesmo podendo dizer dos progressistas. Talvez fossemos todos democratas. Admito que sim. Mas não éramos os únicos nem essa qualidade podia justificar um tão forte ímpeto a uma cooperação que não passava por preocupações políticas.
Tenho uma certeza: foram insignificantes as afinidades e as divergências políticas sobre o evoluir da situação em Portugal ou em França, no nosso relacionamento.
E no pós 25 de Abril de 1974, uns manter-se-iam independentes – a maioria – outros adeririam a formações partidárias variadas, entre as muitas que então floresciam. Raros foram os intervenientes na cena política.
Dali saíram, sim, professores, investigadores, académicos em várias áreas, como seria previsível face aos seus “curricula” e aos interesses que os norteavam em vários ramos do saber.
Recordo-me, por exemplo, dos nossos três bolseiros de engenharia nuclear, que num curso extremamente elitista de uma vintena de franceses e estrangeiros, ficaram classificados em primeiro, segundo e quinto lugar… Ou de um outro que, nesse ano, se doutorou na Sorbonne com vinte valores - o primeiro não francês a alcançar tal distinção na sua especialidade…

7 – Como disse, em 1969, o Maio do ano anterior estava já pouco presente no quotidiano da “Cité”, (o “droit d’affichage” e outros direitos eram já apenas vestígios da “utopia autogestionária”…
Nesse ano, houvera um terramoto em Portugal (que divertido foi, sabendo o seu epílogo, receber em simultâneo, dois dias depois, uma vintena de cartas, a contar pormenores hilariantes de reacções muito individualizadas ao susto colectivo…). O Homem fora à lua (e nós aguardáramos pelo momento alto ao longo de uma noite inteira de conversa, na sala de televisão da residência…). Eddie MercKx ganhara, de forma indescutível e galvanizante o primeiro dos seus cinco “Tours de France” que igualmente acompanhámos diante do grande ecrã de televisão, torcendo pelo belga, naturalmente…
De Gaulle retirou-se, de vez, por iniciativa própria, para Colombey, a pretexto de um contratempo menor.
Spínola era um “habitue” da televisão francesa (o mais mediático dos portugueses), impressionando com o seu monóculo e a sua serena heterodoxia, sempre em directo confronto com o sereno ortodoxo Amílcar Cabral.
Estávamos atentos à França e ao mundo exterior, mas vivíamos intensamente Portugal – como é característico de uma comunidade imersa em terra alheia
O regresso à Pátria iria significar a dispersão, a incapacidade de vencer os obstáculos postos pela grande cidade dissolvente à nossa vontade de continuar a realidade do grupo.
Permanecem memórias (mais do que é possível contar) desse tempo eminentemente feliz, repartido na transposição quotidiana da fronteira entre o território do estudo ou do trabalho e o da convivialidade e do lazer, entre dois países em movimento descompassado: a “França pós Maio” e o futuro “Portugal de Abril”.
Quarenta anos depois, (mais de 30 passados sobre a nossa “revolução”, torna-se mais fácil acompanhar, sentimentalmente, a insatisfação e os impulsos de rebeldia que sacodem, a espaços, as águas mornas dos “paraísos democráticos”.
A aversão aos aparelhos partidários, ás cooperações ou a uma classe política, como a de Maio de 68, pouco sensível à expressão de novas formas de dominância e dependência cultural e não só económica.
E por isso me é mais fácil equacionar no presente o sentido da acção desse Maio passado.

Janeiro de 2008
Maria Manuela Aguiar

segunda-feira, 20 de agosto de 2018

A partir de um soneto - IMPORTANTE MAIS COMPLETO PARTE I e II

I- A PARTIR DE UM SONETO (transcrever) Maria Antónia e João, meus pais, conheceram-se num domingo de outubro de 1940, na "missa nova" de um amigo comum, o Padre António Pinheiro. No dia seguinte, ele partiu para Lisboa com o primo António, para uma visita à "Exposição do Mundo Português". De lá lhe enviou uma carta, acompanhada de um primeiro soneto, em que fazia uma discreta, mas não demasiado subtil, declaração de amor. Para dois quase desconhecidos, impunham os bons costumes de época, discrição, mas não excessiva subtileza que poderia, afinal, tornar hermética a mensagem. O tempo de conversa não fora além de uns três quartos de hora, à saída da capelinha do Monte da Virgem. A menina de Gondomar, bonita e elegante num conjunto rosa pálido, vestido e casaco comprido, longos cabelos ondulados, e olhos expressivos, muito claros, de cores diversas, mais verde o direito, azulado o esquerdo (singularidade para o qual gostava de chamar a atenção), franzina (1.50 de altura), parecera um paradigma de graça e vivacidade, mas não tinha ainda certezas de nada. Só a de que a achava atraente, com o seus ares de Paulette Godard. E, pormenor não de somenos, também ela mostrara interesse no breve convívio a dois - breve, mas promissor. Se não amor à primeira vista, foi coisa afim, ainda que de menor ordem de grandeza. Os dois, mais tarde, confessavam que foram prioridade recíproca, sem excluir alternativas. Para ela, o jovem Fontes, o moreno companheiro do loiro João, para ele as irmãs da Maria Antónia, a do cabelo negro, negro, e imensos olhos verdes (que logo viria a descobrir já ter um noivado firme, daqueles contrariados, à antiga portuguesa) e a mais nova, de serena mirada azul.Todas diferentes, todas belíssimas. "Olhos de Aguiar" dizia-se, em São Cosme quando alguém tinha olhos assim, grandes e intensamente claros, como veio a saber depois, quando se familiarizou com a sociedade da terra. Os encontros entre Mariazinha e João, já não ocasionais, embora alguns se destinassem a dar essa impressão, haveriam de continuar, e os sonetos, que os foram assinalando, também. Ele sempre escrevera com facilidade, ao correr da pena. Era um poeta repentista, como a mítica avó Quitéria Francisca, a contadora de histórias, que, nas festas e nos serões da aldeia, também cantava ao desafio, com rara acutilância e rima sempre certa. E, assim como a avó dizia os seus versos precisos e mordazes, o neto escrevia poemas românticos, por vezes à mesa do café, para si ou para alguns amigos, desejosos de impressionar as namoradas, como poetas, (que não eram), inspirados por uma paixão(que, talvez, não o fosse...). Não julgava a sua poesia digna do esforço de a guardar. Perdeu-se toda, menos os sonetos que dedicou à mulher e ela, sim, conservou como preciosidade. Uma colecionadora nata! De cartas, postais, fotografias, e de outras coisas, igualmente ligadas a boas memórias, jarras, terços, caixinhas, chavenas de de chá, colchas, vestidos antigos de seda, a desfazer-se, objetos com história, que tinham passado pelas mãos de várias gerações. Apesar de muitas andanças, de terra em terra, de casa em casa, ameaça, por vezes, fatal à salvaguarda deste tipo de espólio familiar, trouxe-o, consigo, ao século XXI, dentro das mesmas gavetas, das mesmas caixas, dos velhos albums, do imenso guarda-louça da bisavó Carolina. Os sonetos, foram achados, meio século depois, manuscritos numa letra bonita e intemporal, em papel amarelecido, mas impecavelmente conservados, num fundo gavetão de cómoda. Achado meu. Levei-os ao autor, para que relesse, ao fim de tanto tempo. E com uma proposta de publicação. que inesperadamente, aceitou. Até deu título ao futuro livro: "Íntimo". Epígrafe de um dos seus sonetos bem guardados. Fiquei com a convicção de que tão pronta aquiescência se deveu a considerá-los como que obra do Outro, do jovem que já não era e de quem sentia saudades.. Estávamos na década de 90, tinha ele mais de setenta anos. Um dia, num passeio à beira mar confessou-me que tinha pena de ser velho. Estranhei, mas hoje compreendo, Talvez seja preciso atingir essa idade para compreender. Dividimos tarefas. Cabia-lhe fazer a revisão do texto, acrescentar ou cortar vírgulas, no que era muito bom. Eu própria, costumava submeter os meus escritos ao seu superior conhecimento dos segredos e meandros da língua - prosa, naturalmente, sobre questões, aliás, pouco poéticas, mas para efeitos de vírgulas, empreendimento da mesma natureza. Na divisão de trabalho acordada, das restantes - capa, imagens, tipografia, edição - eu me encarregaria . Todavia, o poeta foi adiando, adiando... Reuniu as folhas soltas, uma para cada soneto, numa pasta de cartolina preta. Às vezes, chegava a sair, com a pasta, virtuosamente, debaixo do braço, a caminho do Café Palácio, sua segunda casa em Espinho. A intenção era ir burilando a pontuação, uma ou outra palavra, aqui e ali, enquanto esperava os amigos. Porém, percorria, primeiro, vagarosamente, as páginas do seu jornal, quando era criança,, "O Comércio", depois "O Janeiro" e, finalmente, o "JN (acompanhava, de perto, as vicissitudes da política - bem mais do que a filha, então sempre de partida para as reuniões do Conselho da Europa ou para visitas à "Diáspora"). E, entretanto, chegavam os amigos O tempo, para os mais velhos, passa depressa. O dele, esgotava-se em conversas, passeios à beira-mar, diante do ecrã de televisão (horas e horas...), em leitura pela noite fora - ultimamente biografias, os policiais de Sara Paretsky, Ruth Rendel, Amanda Cross (que eu providenciava), os seus eternos favorito, os divertidíssimos Jerome K Jerome e Guareschi, por vezes, um Umberto Eco, ou um autor brasileiro da coleção da mãe,como Amado, ou Eça de Queiroz (curiosa a ausência de poesia, talvez como se pertencesse, mesmo o gosto pela poesia dos mestres, a um período findo).... E havia, ainda, os encontros em Gondomar, com os sobrinhos, os alegres sete filhos do António e da Xaninha, e quatro do Mário e da Sameiro. Mais as missa e novenas e orações diárias na capela da Senhora da Ajuda. O que me levou a dizer-lhe, uma vez, irreverentemente que cumpria as horas canónicas como um frade, de fora do convento. A revisão dos versos não tinha, obviamente, prioridade nesta preenchida agenda de reformado, em terra de tertúlias, esplanadas, praias e mar. Não havia pressa - até que a morte veio, subitamente, num domingo de Páscoa. O seu coração parou. Parou mesmo, coisa absurda, enquanto conversava, ao jantar, a meio de uma frase... Tão cheio de vida, a comentar um artigo de Marcelo (Rebelo de Sousa), a próxima peregrinação a Fátima, a festa em casa do Mário, onde nunca faltávamos ao "compasso", tradição bonita, que andava perdida em Espinho, há muito, e permanecia, religiosa e etnograficamente intacta, em São Cosme de Gondomar Já não sei qual foi a crónica de Marcelo. Lembro-me de a ter recortado, talvez do " Expresso", mas logo a perdi, como é meu lamentável costume. Incondicional admirador desse cronista, decerto apreciaria agora o seu estilo na presidência. Dou por mim, muitas vezes, a pensar nos diálogos que teríamos sobre vagas de acontecimentos que se sucederam na sua ausência - vitórias do Porto, derrotas do Porto, Lopetegui e Sérgio Conceição, a "troika", a "geringonça", o tenebroso Trump, o "Brexit", o bom Papa Francisco... A coletânea dos sonetos foi prontamente publicada, sem revisão alguma. O Fernando, o mais jovem dos participantes da tertúlia do Café Palácio,( que, às vezes, reunia no bar do Casino, ou no "Nosso Café), tratou da parte gráfica, numa tipografia dos Carvalhos.Feliz coincidência. A ligação aos Carvalhos, lugar onde viveu onze anos de boas memórias, no famoso colégio, ter-lhe-ia agradado. 2 - Dir-se-ia que o Porto é uma aldeia pequena, onde todos se conhecem. O Porto e arredores. Há quem o possa afirmar do país inteiro. A minha experiência de Montreux é bom exemplo. Era Páscoa e decorria a final do torneio internacional de óquei em patins. O pavilhão, onde estava na primeira fila, com a prima Eduarda (Docas), abundava em compatriotas. Durante os festejos de vitória portuguesa, num cafezinho pacato - pacatamente suiço até à nossa chegada - em cinco minutos de diálogo, logo descobrimos, sem esforço, um vasto leque de amigos comuns, do liceu, da faculdade, do emprego, da praia, da missa... Podia a população global ascender a milhões, mas o círculo em que nos movíamos era uma espécie aldeia global portuguesa, com muito pouca gente cheia de afinidades.. Foi este fenómeno, concretamente a rede de amizades tecidas em colégios privados, que esteve na origem do primeiro face a face de meus pais, nascidos a poucos quilómetros de distância, ela norte do Douro, no centro de São Cosme, ele a sul, na ribeira de Avintes. Onde o rio separava geograficamente, uniu a comunidade escolar. .O jovem padre António e o irmão Eduardo, também padre, tinham sido colegas do João, no colégio dos Carvalhos, tal como a Maria Luisa Pinheiro e a Maria Antónia no Colégio das Águas Férreas, dirigido por freiras francesas - uma amizade que se manteve, mesmo depois que as meninas Aguiar se foram para o Colégio da Esperança, junto ao Jardim de São Lázaro, no Porto. E, assim, inevitavelmente, ambos estiveram presentes na capela do Monte da Virgem para assistir à "missa nova" do Padre Pinheiro, consigo levando as catolicíssimas mães, Maria e Olívia e outras pessoas da família. Dentro do templo, o protocolo separou as gerações: as respeitáveis senhoras quinquagenárias mais perto do altar, os jovens, cá atrás, nas últimas filas. Conta a mãe que se viu, com as irmãs, junto a dois rapazes, que, durante a missa inteira, mais do que para o altar,a olhavam para elas - ou, mais precisamente, para ela. É a sua versão e não há mais ninguém, lúcido e vivo, para a contrariar . Dois rapazes bonitos, um moreno, o outro loiro. Não sabia bem qual preferia. Pensando bem, tanto lhe conviria, para namorar, um como o outro. Em regra, preferia os morenos, ao contrário dos homens, que, segunda consta, em diversos países do mundo, preferem as loiras. Naquele dia, contudo, quem se antecipou, mal saíram para o adro, foi o rapaz das melenas claras...Faziam parte de um mesmo círculo de amizades da família Pinheiro, podiam prescindir de uma apresentação formal, Disseram os nomes um ao outro, ele perguntou-lhe a idade, mas ela preferiu que ele tentasse adivinhar. - "15 anos? - " foi o desastrado vaticínio, em forma de interrogação. Com um franzino 1.50, ela prestava-se a esse equívoco, mas não tanto... - "Tenho 20", foi a resposta, logo seguida de um comentário cortante : - "A, si, dou-lhe 35 ou 36 anos! " (do alto do seu atlético 1.77, tinha apenas 22). Não se dando por achado, precisou a idade e pediu licença para lhe oferecer uma pequena lembrança, comprada ali ao lado, num bazar - uma miniatura de artesanato, uns socos de couro, ligados por um fio de prata. A música foi o terreno onde logo encontraram afinidades. Ela pianista, com o 6º ano do Conservatório, e uma paixão obsessiva por Chopin. Ele tocava violino. Contou que também preferia o piano, mas os pais preferiram que começasse pelo violino, instrumento mais portátil e menos dispendioso, talvez para testar a sua vocação. Como ela viria a descobrir na conversa seguinte, não era assim tão evidente, pois o seu repertório se limitava à execução da "valsa da meia-noite"... Entretanto, alargara-se a roda de apresentações e cumprimentos, formado à porta da capela, onde pontificava, como elo de ligação, a tia Arminda, senhora que morava em Avintes e ia, assiduamente, a Gondomar, sendo amiga tanto da avó Olívia, como da avó Maria. A tia Arminda era, mais exatamente, tia da Nucha Aguiar (prima e professora de piano da Mariazinha, Lolita e Leninha), visitava, com regul a família na casa da Gândara, berço dos Aguiar, que, nessa altura, pertencia ao pai da Nucha, o tio Augusto, que a mãe lembra, sobretudo, pelos seus cintilantes olhos azuis, pelos fatos muito chiques e pela joalharia da rua das Flores. Mas os dois jovens mantinham-se lado a lado. Ele contava-lhe que ia no dia seguinte, uma 2ª feira, para Lisboa, com o primo António, passar uma semana de férias e ver a famosa Exposição do mundo português. Não era coisa que acontecesse todos os meses, mas dava-lhe, ali e então, por sortel, uma aura de rapaz viajado, um quase explorador das vastidões do Império, ainda que só revisitado à beira Tejo. De lá, lhe escreveu uma carta, com um um soneto, em que, discretamente, falava de um coração em busca de uma amor. Começava por se focar, patrioticamente, na história pátria, mas deixava adivinhar uma intenção, muito individual de futuro...: : Lancei o meu olhar sobre esse imenso Tejo, À noite semeado de um encanto vago E vi em cada onda uma sombra, um lampejo Dessa história de heróis, que no meu peito trago Dir-se-ia que toda a inspiração vinha da "expo", de uma imersão nas suas temáticas Todavia,na última estrofe o Autor sente o irreprimível desejo de lançar às ondas do Tejo o seu coração "em busca de um amor". No que não tardaria a ter sucesso,. A correspondência continuaria, depois, os encontros em Gondomar, no Porto, num roteiro de terras, como Branzelo ou Santo Tirso. Santo Tirso, onde, por coincidência, a Maria Luísa (Pinheiro) dava aulas num colégio e o António, irmão da Mariazinha, como lhe chamavam, era tesoureiro da Fazenda Pública. Morava numa pensão e namorava a sobrinha dos donos, uma beldade de olhos verdes (Antónia ou Toninha, com quem viria a casar). A mana passou a visitar o irmão, repetidamente. Havia sempre um quarto para ele na mesma pensão, e encontrava-se com a amiga dos tempos do colégio, assim como com o namorado - evidentemente. alojado em outra pousada, como exigiam os requisitos de época. O tio António pretendia tão severo como a própria mãe, embora com agenda mais preenchida, abrandasse a vigilância durante o horário de trabalho. Passeavam os jovens pelas ruas, pelo parque, sempre escoltados pela Toninha ou pela Luísa.. Entretanto, já o pai era companheiro aceite pelos divertidos e turbulentos sete irmãos Aguiar! Os mais velhos casados e com filhos pequenos. Muito diferentes entre si, com uma tradição de confronto e discussões políticas, que jamais acabavam mal, embora raramente alguém mudasse de opinião e menos ainda de campo (nunca isso terá acontecido). Nas gerações anteriores, uns eram monárquicos regeneradores, outros republicanos. Em plena guerra, ou no pós-guerra, na década de quarenta, degladiavam-se, infindavelmente, anglófilos/democratas versus germanófilos/salazaristas. Providencialmente, sendo também muito dados ao cultivo da música e da dança, facilmente passavam do modo de "tertúlia - debate" para o de tertúlia musical. Tocavam piano as senhoras, cantavam todos em coro, alguns, como o Tio Serafim, solista do coror da Igreja, e as manas Carolina, Lólita e Mariazinha, esplendidamente (só Lena era melhor como pianista) . O pai com o seu belo timbre de voz, era uma mais valia - e não gaguejava a cantar, ao contrário do que acontecia no auge de qualquer debate. A futura sogra, embora preferisse ouvir as meninas a cantarem a "Avé Maria " de Schubert, gostava de toda a música e abria a "Vila Maria" a serões, muito frequentados pelo clero, abade, coadjutores, seminaristas, freiras, missionários... Ser o João um católico de missa e comunhão quase diárias, tornou-o muito popular na sua casa. No verão de 41, a família Aguiar não pode ir a banhos para a Foz, como era habitual. Madalena, a mais nova, estava a convalescer de uma "primo infecção" e os médicos aconselhavam os ares da serra, não as nortadas do litoral, pelo que passaram o verão numa quinta de amigos, em Branzelo, talvez uma espécie de "turismo rural" ou simplesmente cedida, não se sabe. Duas primas do João, Alda e Maria Helena foram convidadas da avó. O João vinha, nos fins de semana, procurando quarto numa pensão. o mais perto possível. Eram noivos, sem oposição, (graças ao catolicismo do viúvo, a que acrescia a fama de herdeiro rico), mas fora de questão estava e permitir "liberdades" impróprias, segundo os seus cânones rigidamente conservadores. Todavia, as filhas, sobretudo a dupla Mariazinha/Lolita, sabiam achar mil e uma maneiras de contornar proibições. Cumplicidades nunca lhes faltaram, a de uma com as outra, a das amigas e, particularmente importante, a dos vários e sucessivos empregados ao serviço na "Vila Maria" (ou das criadas e criados, como então se usava dizer). Sobre Branzelo há uma carta, contando, em verso, uma atribulada viagem de regresso de fim de semana, em que os convivas tinham sido muitos, incluindo o jovem Padre Vitor Hugo, coadjutor na paróquia de São Cosme, autor uma grande reportagem fotográfica dos acontecimentos... Avintes, tantos de tal daqui fulano de tal etc. e tal Maria: Venho escrever-te/porque o ler também diverte/quem nada tem a ocupá-la.../- E enquanto a pena desliza/A gente sente, imprecisa,/ A sensação de que fala!//Começo por te contar/ Que ainda antes de chegar/ Ao Porto- que forte perda/ O camião de Branzelo/ Furou antes do Covelo/ E teve "panne" na Meda/E assim sem mais novidades/ Cheguei cheio de saudades/ Ao café para engraxar;/ Mas aí, nova surpresa/ Sentado em frente a uma mesa- / Me estava a aguardar.../- Espantei que nem Texugo/...Era o Padre Victor Hugo/ Cheio de fotografias./ Tinha ali toda a excursão/- A Maria e o João/ E mai-las outras Marias!/ A Lolita numa delas/ Está tão só que mete pena./Apenas aos pés, deitada,/Uma galinha coitada (esfolada) Tem pena de não ter penas.../ (Diz a má língua que as outras eu/ As comi- tenham juízo -/ Que alguém as comeu, comeu!/ Quanto a mim estou "indeciso" ...)/ Na da Penha vi: que vento!/ Se me rio mais rebento/ De dar tanta gargalhada - / Quanto a ti minha "migalhas",/ Se te ris mais, escangalhas/ Não se te aproveita nada!/ Agora assunto mais grave/ - A Lolita sempre quer/ Fazer anos quarta-feira?/ porventura ela não sabe/ Que isto de envelhecer/ É grande asneira, ui, que asneira?!/ Ela que tenha juízo/ durma bem e ganhe siso/ Um ano a mais... não vem mais/ A graça morre, se passa.../ Recordar é uma desgraça/ Desgraças já há demais!/ Oh abri alas.../ E a Lena como está?/ Sossegue, sim?- que a Tatá/ Um dia faz-lhe a surpresa!/ Lá quando menos o conte/ Inda o "Sole" "male" desponte/ Na manhã! Ei-lo a ele!que surpresa!/ Oh! abri alas!/ E vocês como estão?/ Não estejam com "cem" cerimónias!/ Por aqui andou toupeira/ Já lambeu a capoeira,/ Sou todo vosso/ João Narrativa, que podia ter saído da pena, ou melhor, da voz da avó Quitéria Francisca, mestra da oralidade... cheia de pormenores explícitos e sub-entendidos, alguns difíceis de descodificar, mas que, no seu todo, resume uma crónica de amizade e boa disposição, dispersa por passeios, romances de verão e amores, que se revelariam duradouros. Nos versos dedicados às futuras cunhadas Lolita e à Lena, a primeira letra de cada estrofe dá-nos uma pista, o nome dos rapazes que as cortejavam, nesse agosto de 41: Eduardo e Esolino. O primeiro, que viria a ser o nosso divertido tio Eduardo, acabado paradigma de "bon vivant", estava na "lista negra" da futura sogra por isso mesmo - classificado como católico pouco praticante, pouco importando que as famílias pertencessem ao mesmo círculo social da vila de Gondomar,( onde o pai de Eduardo, o Dr Ernesto Fonseca, sucedera ao pai da avó Maria, como tabelião). O Esolino foi caso passageiro. Era vizinho do lado, as propriedade confinavam, o pai era músico, compositor, tocava na igreja, (preenchia uma condição "sine qua non"...). Gostava da menina, muito bonita e serena, ao contrário das manas, que eram tão bonitas, quanto temperamentais. E talvez ela correspondesse, mas aos 15 anos, era cedo para compromissos e, depois, do Porto veio amor de uma vida inteira. A Tatá que levaria o simpático vizinho a Branzelo era a Tia Hermínia, cunhada da avó Maria e uma segunda mãe da tia Lena, sempre pronta a satisfazer-lhe todas as vontades. Mais enigmática é a menção à galinha retratada numa foto, e às galinhas devoradas. Talvez uma forma de auto-crítica - tinha um apetite saudável, que manteve até à meia idade, comia quantidades assombrosos de carne de qualquer espécie. Comia imenso e bebia pouco. O gosto dos contrastes - ele tão alto e tão apreciador de boa mesa, ela tão magra, frugal e pequenina... Quanto ao passeio à Penha, havia de repetir-se muitas vezes, afrontando a ventania, com risos e gargalhadas. (Como os jovens de 20 anos, em Portugal, estavam longe de uma guerra tão próxima, que acompanhavam pela imprensa e pela rádio, como um folhetim trágico da vida real).
. O casamento civil foi a 1 de novembro de 1941, em Gondomar. Cada qual voltou para sua casa, pois o que contava era o compromisso assumido face a Deus, não perante um funcionário da República (a Concordata seria celebrado no ano seguinte). E o Conservador, Dr Ezequiel, marcou o ato para o dia em que, em São Cosme, se evoca a memória dos mortos. A noiva, de casaco debruado a azul marinho, carteira e sapatos da mesma cor, seguiu de táxi, com a mãe, para a Conservatória, cruzando-se com dezenas de conterrâneos de coroas de flores na mão, na direção contrária, a caminho do cemitério, O "casamento a valer", realizou-se na Igreja Matriz de Gondomar, duas semanas depois. O "pedido da mão da noiva" tinha sido feito formalmente, à mãe e ao irmão, o tio Alexandre, o que mais apoiou os sobrinhos, na falta do pai. O tio defendeu, mais uma vez, paternalmente, a Mariazinha, com uma variante de "sermão laico", pregado ao noivo, sobre as suas obrigações como marido. Era um republicano anti-clerical - os seus únicos defeitos, do ponto de vista da irmã - e o ser o noivo muito devoto para ele não era recomendação. A região centro foi a escolhida para a lua de mel. O noivo ainda não tinha comprado o seu primeiro carro. Viajaram no comboio, o famoso "vouguinha", a partir de Espinho, fazendo paragens para pernoitar, aqui e ali, até ao fim de linha, Viseu, cidade onde a mãe fazia questão de passar uns dias. Era outono, quase inverno, o tempo pouco importava. No regresso instalaram-se em Gondomar, a convite muito insistente da avó Maria. No seu enorme casarão, com ela já só moravam os filhos solteiros, o Zé e a Lena. O pai tinha encontrado uma nova família, mais extensa e festiva do que a sua. Gostava de todos e todos gostavam dele. E a mãe podia dizer o mesmo, na sua relação com todos os parentes dele, exceção feita aos sogros, de quem sempre manteve distância. Não sei, ninguém sabe porquê.Talvez por razões muito subjetivas, para tcontrastar com a primeira mulher do marido, que para eles fora muito mais filha do que nora. Na Villa Maria ficaram por mais de oito anos, lá nasceram as duas filhas, Todavia, sempre num vaivém de curtas viagens, entre São Cosme e Avintes, onde passavam muitos fins de semana. No verão, o destino de férias era era Espinho, por um ou dois meses - às vezes, mais. Depois de um primeiro emprego na Câmara de Gaia, o Porto foi. para o pai, o lugar de trabalho e, desde fins da década de sessenta, também de residência, num andar pequeno e simpático, na Rua Latino Coelho, perto do Colégio da Paz e do Marquês de Pombal. E, por fim, ainda antes do tempo de reforma, uma última mudança para Espinho. A geografia da sua vida, incluí, ainda, incontáveis excursões pelo norte, até à Galiza, mais algumas, poucas, a sul de Lisboa, vários títulos académicos de estudos seguidos em Lisboa (como aluno voluntário)... O estrangeiro limitava-se, para além da Galiza, que é difícil considerar estrangeiro, à Espanha, da Estremadura e Castela ao País Basco e ao sul de França. Nunca ninguém conseguiu convencê-lo a entrar num avião..POETA NASCIDO NUMA TERRA ANTIGA
Homem de várias terras, dois casamentos, duas filhas, muitas amizades.  A sua história começou há 100 anos. Nasceu, em Avintes, a 6 de junho de 1918, uma quinta-feira. Eram. precisamente, 11.00 da manhã. Dia inesquecível para a família reunida na casa da Rua do Paço. Ali, a muito poucas centenas de metros, as águas do Douro corriam tranquilas, longe, muito longe das terras que a grande guerra, a meses do seu termo, ainda devastava. A mais terrível epidemia de gripe, a espanhola, era a ameaça muito concreta, o País chorava os mortos do massacre de La Lys e Sidónio Pais, que fora opositor da nossa desastrada intervenção militar na Europa e na África, enfrentava vagas de contestação, no que seria o seu último verão. Tempos de incerteza e de angústia. Católicos, conservadores, monárquicos, os pais, Olívia e Manuel, de quem era o primeiro filho, e os avós paternos, Quitéria Francisca e João Dias Moreira, e maternos, Joaquina e João Fernandes Capela, de quem era o primeiro neto, aceitavam Sidónio como "presidente - rei", ou como mal menor, mas, de momento, todos esqueciam os destinos de Portugal e do mundo. Sonhavam, simplesmente, o destino de um menino forte e perfeito. Nome já tinha. O de ambos os avós: João.

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 O menino já tardava. Os pais tinham casado, na Igreja de Avintes, dois anos antes, a 24 de setembro de 1916. Casamento simples, apenas com a presença de famíliares  e amigos íntimos. A mãe, Olívia, ia muito bonita no seu vestido branco, alta, magra, pálida, olhos grandes e cabelos  negros, sorriso doce, e apenas dezasseis anos, menos dez do que o loiro e melancólico Manuel, homem bem parecido e elegante. Seguia  os cânones da moda, era frequentador do Clube Recreativo Avintense, desportista, melómano, ator amador do Grupo Dramático Mérito. A noiva não girava nos mesmos círculos. Tímida e recatada, muito religiosa, quase se limitava a ir de casa para a igreja, com a mãe e a irmã mais velha, Clementina, que haveria de ser sempre bem mais "chique" e mais dada à vida social. 
Nas missas de domingo se cruzaram Olívia e Manuel. Um caso de amor "à primeira vista", que durou pela vida fora. Ele continuaria a frequentar as tertúlias, as salas de concertos e os cinemas, onde ela raramente o acompanhava. Saía para fazer o que verdadeiramente lhe agradava -  para a missa diária, para visitar a mãe e as amigas, quase todas senhoras mais velhas, e para os convívios de família. Dentro de sua casa, era uma anfitriã natural, sempre pronta a receber convidados, em grandes almoços e jantares, onde, geralmente, pontificavam senhores abades, mas todos eram bem-vindos. A culinária era o seu domínio de elleição, cozinhava por gosto. As criadas, moças rudes vindas do interior, nunca passavam do estatuto de ajudantes, para tarefas marginais, não lhes dava ensinamentos nem oportunidades.

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João aparece na sua fotografia mais antiga, possivelmente de fins de 1918, sereno e confiante perante as câmaras, entre os pais. Olha em frente, sem sorrir. Com a mesma expressão o vemos meses depois, sozinho, sentado, vestindo uma diáfana camisa de cambraia branca, o cabelo claro escondido numa touca de renda. Fotos de época, de fotógrafo profissional, que nos falam apenas de um casal burguês, orgulhoso do seu pequeno sucessor. 
Note-se, pormenor sem importância, mas revelador da faceta puritana da mãe, em matéria de modas e costumes, que o infante está vestido... Era comum, então, retratar os bebés nus, como os anjinhos do céu, mas ela não admitia tamanha exposição. Se pudesse, vestiria até o menino Jesus nos presépios e os anjinhos nas esculturas e nas telas das igrejas. Nunca perderia essa faceta, embora fosse, em tudo o mais, um paradigma de tolerância. Em qualquer caso, o traje escolhido para a foto, sumário e leve, é certamente mais etnográfico do que a mera nudez.
Do batizado, a 21 de junho desse ano, não há imagens. No livro de apontamentos de capa de capa de seda vermelha, o feliz pai, apenas regista a data e o nome dos padrinhos, João Dias Moreira e João Fernandes Capela, os dois avós, sem referência a madrinhas.


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Cinco ou seis anos passados, o rapazinho, que viria a ser um homem tão jovial, de sorriso fácil, continua de semblante fechado para a câmara, nas poses artificiais ensaiadas pelo esforçado retratista profissional. De perfil, com calção e "blazer", encostado a uma coluna, ou de frente, junto a um brinquedo de praia. Recordação do verão em Espinho. Foto Evaristo.

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Nesse ano, (1924, provavelmente) já não existiriam os seus três irmãos, Maria, nascida a 28 de janeiro,  em 1922, e os gémeos, Alberto e Manuel, tão auspiciosamente vindos ao mundo, na data de aniversário de seu pai, em 9 de outubro de 1923  - todos desaparecidos com poucos meses de vida, de doenças, então fatais, agora facilmente combatidas com antibióticos. Deixaram saudades, e o Joãozinho regressado à condição de filho único. Com o sucedâneo de seis primos-irmãos. Do lado paterno, da tia Maria Francisca Reis, o António e a Maria Angélica, dois e três anos mais novos, e da tia materna, Clementina, o Alberto (1922), a Alda (1923), o Manuel (1924) e a Maria Helena (1925).

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 Todos os seus "quase irmãos" moravam por perto, em Avintes. Davam-se bem, sem rixas nem rivalidades, num circulo que abrangia outros primos. o Francisco e o Corinto Marques e os primos desses primos,como a Maria Argentina, o Carlos e o Fernando Reis. Crianças saudáveis e alegres, suficientemente bem comportadas para não deixarem um rasto de histórias extravagantes para a posteridade.  Decerto a razão porque, desse tempo de infância, recordava mais  ambientes do que episódios. Falava de Avintes, como de um paraíso terreal. E Avintes podia, então, candidaatr-se ao título de uma das mais encantadoras terras percorridas pelo Douro, situada numa das largas curvas do seu curso mais tranquilo, já perto do Porto e da foz. Era a vista que se lhe oferecia contemplar da janela do quarto. Os pais moraram, nos primeiros tempos de casados, no Outeiro, colina verde, que descia suavemente para a ribeira, até uma das mais belas propriedades dos seus avós paternos, que chamavam a quinta da Pena. Ele encurtou muitas vezes essa distância, correndo, rua abaixo. A quinta era ponto de encontro com os primos Reis, nas visitas aos avós, que viviam em frente, numa casa rústica, com altos muros de pedra, ao longo da estrada, na subida até à casa da quinta do Paço. Um conjunto edificado em épocas diferentes, a mais antiga, talvez, dos inícios do século XVII, a mais moderna terminada em 1901, data gravada na pedra da entrada principal.

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Na quinta da Pena, a casa estava vazia.Tinha pertencido a um famoso advogado do Porto, que morreu sem herdeiros diretos, deixando-a a um coletivo de muitos sobrinhos, a quem a comprou o avô Moreira, interessado, sobretudo, nas terras de cultivo. A casa teria sido construída, inicialmente, para os feitores da Quinta do Paço, e, depois, sucessivamente remodelada. Era pequena  pequena e discretamente senhorial, com as paredes de pedra caiadas de branco, janelas verdes, linhas retas à face da rua do Paço, a entrada principal e a vivência voltadass para o pátio das traseiras, para o que restava dos jardins, em redor da carranca antiga, incrustada num conjunto de pedra, que ás crianças parecia um altar de capela. A enigmática carranca lançava um fio de água sobre um lago retângular talhado no granito. Um simples espelho de água,que  foi cenário de muitas aventuras infantis e de piqueniques da família inteira. Ali tinha, nos seus últimos anos, algumas vezes, celebrado missa campal, para família e vizinhos, o tio Padre Manuel Pinto da Silva. O eco dessas reminiscências dos mais velhos acrescentava à "capela" uma aura de misticismo e magia, propício à invenção de enredos e de personagens por rapazes cheios de Imaginação e energia (as meninas eram mais novas, e a diferença de idades parecia, então, considerável.
 O jardim, sombreado pelo arvoredo, perdera muito terreno para os campos de milho do novo proprietário, que desciam até às margens do Douro. Os milheirais quase entravam pela água adentro. Antes do abandono da agricultura tradicional e da invasão do cimento clandestino sobre essas terras baixas e fertilíssimas, a ribeira de Avintes não tinha rival, na singularidade desse encontro entre o rio e as searas, que nele deixavam, ao sabor da brisa, o seu reflexo ondulante. Searas altas, onde os meninos se escondiam, como numa floresta... Na zona de transição entre as searas e as matas, a casa desocupada era, livremente, usada por eles (esconderijo ideal, à vista de todos os que deviam vigia-los). Sentavam-se nos bancos de pedra que ladeavam as janelas, arrumavam os brinquedos nos fogões de sala dos quartos, vazios de qualquer outro mobiliário. A privacidade desse espaço só deles, contrastava com o movimento da casa dos avós, do outro lado da passagem estreita. Eles habitavam no andar de cima da parte nova, o pessoal contratado para os trabalhos dos campos - ao menos, os rapazes solteiros -  ficava na ala antiga, com a sua entrada separada pelas portas, que davam para o terreiro. Em baixo, lojas para máquinas e alfaias e a adega, o lagar grande. No terreiro, protegido por altos muros de pedra, erguera o avô João um edifício de quatro andares, a acompanhar os desníveis do terreno - em baixo, aidos para o gado, em cima, a eira, o espigueiro. O granito predominava nas paredes, nos muros, nas escadarias, e até no chão, onde a pedra irregular alternava com a terra batida. O exterior da casa fora rebocada numa cor beige, pouco contrastastando com a pedra. 
O pai sempre teve predileção pela quinta, com a moldura verde das suas árvores, a sua frente sem muros, aberta para o rio. Era o sítio dos seus sonhos e não sabia a razão porque os  pais a preteriram, procurando vivenda no Outeiro.Talvez não tenham querido ficar tão longe do centro urbano de Avintes. Era um longe relativo... A perceção da distância em pequenas urbes, tem menos a ver com a geografia do que com  a sensação de isolamento, que ali ainda hoje persiste, um século depois - salvo nos meses de verão, quando a baixada se transforma em praia fluvial, para multidões de turistas. O conceito de praia fazia ainda, pouco a pouco, o seu percurso, e não ali, mas à beira-mar, O rio era apenas caminho para o comércio  com o Porto, que já fora mais intenso, quando dezenas de embarcações, cruzavam as suas águas durante o dia inteiro. Avintes tinha até tido os seus prósperos estaleiros, mas em  breve, os automóveis e as camionetes  iriam aparecer e ganhar o seu espaço, deixando o rio quase deserto, por muitas décadas, até ser redescoberto, em fins  do século XX, por barcos de cruzeiro e de desporto.
Por isso, para o pai e os seus primos, a diversão fluvial limitava-se à travessia do Douro, de vez em quando. Viagem curta, mas nem por isso menos excitante. O barqueiro estava estacionado em Gramido, chamava-se de Avintes, gritando e gesticulando. E ele vinha logo, a remar, compassadamente. Nesse vaivém tranquilo, há uma exceção, envolta em tão nebulosa narrativa, que se pode duvidar da sua existência. Tem por protagonista o menino João aos três anos de idade. Alguém o terá deixado, por momentos, sozinho, dentro do grande barco, rodeado de água. Partida estúpida, de um miúdo mais velho? Só poderá ter acontecido, se aconteceu, numa breve ausência do barqueiro. O susto, diz a narrativa, foi tal que o menino voltou para casa, gaguejando. E, daí em diante, não mais se livrou da gaguez, que se acentuava em situações de nervosismo e quase desaparecia, quando descontraído. Ele próprio não se lembrava de nada, apenas de ouvir dizer, imprecisamente. Certo é que era o único gago da família. A hereditariedade não fazia parte desta história, que, aliás, não deixara outros traumas, a envolver barcos e águas fluviais ou marítimas. O pai um experiente mergulhador nas ondas batidas do mar de Espinho. 
Espinho era a sua segunda terra. A terra no verão, dos longos dias de sol e férias, com a atração do mar de vagas altas, dos cinemas e cafés, onde tinha a companhia de muitos colegas dos Carvalhos, Ficava sempre na rua 7, numa casa de praia que os avós Capela  compraram, nos começos do século, e que foi servindo para o veraneio das filhas, dos netos, e que eles ocupavam apenas durante umas semanas em fim de "saison". Espinho era uma estância de praia em ascensão, estava na moda, ficava perto. O primeiro pároco de Espinho tinha sido o Padre Manuel Pinto da Silva, tio-avô do neto João. Não sei se esse dado teve importância na escolha dos Capela e de muitos outros avintenses. Talvez porque, antes de ser família por afinidade, o Padre Pinto da Silva foi  encarregado da paróquia de Avintes. E, talvez, não só os Capela, mas outros paroquianos o tenham seguido. Muitos mais. Recordo-me que, nos anos 50, quando, seguindo os passos do pai, mergulhava nas ondas da praia azul, pela manhã, gozava as "matinés" nos cinemas, jogava dominó nos cafés, e engrenava, vestida a preceito. no vai-vém das multidões na "Avenida", já não havia vagas de turistas espanhóis. O turismo matricial do estrangeiro, há muito, dera lugar ao nacional e vizinho - dizia-se, com nostálgica ironia, que Espinho estava "cheio de espanhóis de Avintes",,,

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 Quanto ao Padre Pinto da Silva, nos anos em que esteve à frente da paróquia, na última década do século XIX, parece não ter tido a missão facilitada. Por razões políticas, provavelmente. Era monárquico, pouco dado a transigências, sempre pronto a partir para o ataque e a confrontar ideias e posições, numa vila nova, onde o sentimento republicano parecia já enraízado nas elites. Próximo do Bispo do Porto, o Cardeal D Américo Ferreira dos Santos, de quem foi secretário, mantinha distâncias com os poderes ascendentes. Passou os últimos anos retirado no lugar do Paço, junto ao meio-irmão. Podemos imagina-los a passear junto ao rio, dois gigantes, com quase dois metros, o padre de batina preta, o empresário não menos impressionante no seu comprido capote alentejano. Concordantes na condenação dos novos tempos políticos. O Padre ainda teria a energia para lançar, em 1915, um jornal de combate, "A Aurora". Morreu em 1917, sem conhecer o sobrinho neto.


ONZE ANOS FELIZES NUM COLÉGIO

Os 6 anos de meu pai  foram de grandes mudanças, que "o levaram de casa de seus Pais" para um internato. Ao contrário do que poderia esperar-se, sem lágrimas nem lamentos. O Colégio dos Carvalhos. Aí começou, igualmente, a sua involuntária mas  definitiva rotura com o paraíso rural da ribeira do Douro. Estava  a dar passos irreversíveis no mais mais citadino dos futuros. Os pais iriam, entretanto, estabelecer-se da Rua 5 de outubro, na reta que levava à ponte sobre o Febros, o formosíssimo afluente do Douro, entretanto soterrado em cimento. Ao lugar do Paço voltava em férias, de vez em quando, para os almoços de família. Decisão paterna certamente. O avó Manuel queria para o filho o que tinha idealizado para si, um título académico, uma carreira profissional. Um curso de Direito, de preferência, uma carreira na magistratura ou no notariado. Notário era o seu melhor amigo de mocidade, num percurso que ele acompanhou, com a nostalgia das suas próprias oportunidades perdidas. O pai contrariou esses projetos. Não tinha outro continuador para a sua obra de lavrador moderno e bem sucedido. Diferentes mentalidades, sonhos opostos. Quando chegou a hora de herdar as terras, meu avô entregou-as a caseiros, que nelas fizeram fortuna. Da sua parte, resposta tardia, mas definitiva a uma imposição com a qual nunca  se conformou. Valorizava, acima de tudo a cultura, não a agricultura... Ofereceu ao filho a melhor formação académica que um colégio privado podia assegurar, e, com certeza, lhe disse a frase que lhe ouvi  tantas vezes: "a melhor herança que te posso deixar é um curso na universidade".
 A mãe, que, apesar da aparência amável, não era pessoa fácil de contrariar, deu o seu acordo. O Colégio dos Carvalhos foi uma opção natural. Era próximo, dirigido por padres e tinha uma reputação de excelência. E, sobretudo, terá pesado a aceitação do filho, que, pelo que via, estava talhado para a vida em comunidade, fazia amigos com facilidade. Era alegre e popular   
Nas fotografias desta época já tem parecenças com a pessoa que foi, na idade adulta. Sorri, no meio dos colegas, todos irradiando boa disposição  Foi um bom desportista (futebol, atletismo) e um aluno despreocupado, que cumpria os mínimos em ciências e se dedicava entusiasticamente às letras, com uma inclinação para os autores latinos. Lia Virgílio e Ovídio no original, "por gosto" .na sua própria expressão. O que infundiria respeito às filhas - à Madalena, que nunca estudou latim e a mim, que fiz a disciplina, penosamente, nos dois últimos anos do liceu, sem ter lido uma só frase, no original, por puro gosto.




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Do ciclo do colégio recordava um sem fim de episódios engraçados, coisas de rapazes, partidas que pregavam uns aos outros, como surripiar queijos, alheiras, bolas de carne, doces, que alguns guardavam nos cacifos). E passeios, excursões, bailes locais, em que conseguiam intrometer-se, não sei se quebrando as regras da instituição, ou não. Numa dessas festas, à porta de uma popular associação, o cartaz dizia: "Pede-se às excelentíssimas damas para virem calçadas". Esta é impossível de esquecer, ao contrário de muitas outras, Se me fosse então possível imaginar que, largas décadas volvidas, quereria escrever sobre o pai como personagem central desse enredo, mais atenção teria prestado a pormenores. É também um pouco vaga a memória sobre outras situações, que terão sido frequentes, em cenário variados, feiras, lojas,ou  cafés dos quais o grupo de amigos não fosse cliente habitual, A diversão consistia em o pai fazer de estrangeiro, papel em que, com as suas melenas aloiradas, os "blazers" de "tweed", e um inglês desembaraçado, era muito credível. Num tempo em que os turistas de fora eram raridade, e a nossa gente os idolatrava, aquele número teatral causava sensação. Mas, uma vez, e logo numa feira concorrida, o pai tropeçou, pelos ares ecoou o seu brado em calão português, e pouco faltou para que todos, o falso inglês e os falsos tradutores, fossem sovados.
O pai não era dado a escrever diários, nem a guardar cartas, notas ou mesmo poemas, que com tanta facilidade, compunha desde criança. Do colégio, resta um, quadras de sabor popular, na senda da famosa avó Quitéria Francisca, a repentista, que ganhou fama a cantar ao desafio nos serões de aldeia e nas romarias.
É, afinal, uma espécie mista de auto-retrato/ caricatura:

Sou cá de Avintes... é terra 
de boa gente, afinal
Nasci em mil... já lá vão
dezoitos anos e tal!

Tenho altura regular 
- Mais esperto que um onagro
nariz grande e recurvo
carão vermelho e não magro

Para comer valho por sete
para beber por trinta e um
para escrever uns sete ou oito
como eu não valem um...

Mas, afinal, meus amigos,
sou filho de boa gente
Tenho alma e vou tentar
dizer-vos o que ela sente

Se alguma coisa quiserdes
De mim, meus caros ouvintes, 
deixa aqui escrito o seu nome
o célebre
              João de Avintes


Encontrei, também, no singular, um breve apontamento, escrito no verso de uma fotografia de grupo: "Em horas de alegria, junto a um monumento religioso onde figura o Crucificado". O humor discreto não surpreende quem o conheceu, exceto, talvez, juvenil irreverência - logo ele, sempre católico praticante e homem de fé ortodoxa e  inabalável.... Verdes anos, 14 ou 15.
Houve, contudo, um hiato nos onze anos de colégio, uma época escolar, justamente no sétimo ano do liceu, então, o último. Influenciado, certamente, pelos primos, insistiu em se mudar para o Liceu Rodrigues de Freitas. O pai terá pensado que, assim, melhor o rapaz faria a transição para a universidade. Novas rotinas!Tomava, de manhã, a camionete para o Porto à porta de casa, onde havia uma conveniente paragem, e seguia viagem num grupo de colegas. Foi um belo tempo de liberdade, de deambulações pela cidade grande, de conversas à mesa dos cafés. Sabemos que, muitas vezes, a troco de um café, escrevia um soneto para os amigos, surpreenderem as namoradas por uma veia poética insuspeitada. Também redigia, em prosa, cartas bonitas, ao correr da pena. Mas, por fim, chumbou! Para tudo há uma primeira vez. Queixava-se da sanha persecutória do professor de alemão. Confessava que partilhavam o interesse numa jovem portuense, que se revelou fonte de conflitos de todo alheio ao curriculum liceal. Paixões juvenis, devaneios sentimentais, só mencionava os dos outros, com exceção desse caso que era justificação pouco comum de "insucesso escolar".  Não sei se nos convenceu, inteiramente, à minha irmã e a mim,  conseguiu, sim, deixar-nos a suspeita de que não lhe faltavam namoradas, num vasto plural. Aos 17, 18 anos era um rapaz bem-humorado, desembaraçado, comunicativo, apesar de ligeiramente gago, elegante, um desportista de várias modalidade, "sprinter" nas corridas, extremo no futebol, seu desporto favorito, como praticante ou espetador. E, se isso podia constituir para algumas das meninas do Porto uma mais valia, com fama de rico. 
Face ao desastre académico, não hesitou em fazer "mea culpa", pedindo, avisadamente, aos pais para voltar ao colégio. Na irresistível boémia portuense, reconhecis que não lhe era fácil corrigir a trajetória, como seria, e foi, na branda e protetora clausura dos Carvalhos. Do Liceu Rodrigues de Freitas, nesse ano de 1934/35, ficou-lhe, como uma das melhores recordações, Leonardo Coimbra, o pedagogo, o melhor professores professor que teve na sua vida , e a cujo nível, só colocava Vasco Pulido Valente, que lhe daria aulas em Lisboa, trinta anos depois, no regresso tardio aos bancos da Faculdade. Improvável dueto de vultos que fascinavam meu pai. tendo, ao menos, isso em comum. 
Creio que foram desse tempo do Liceu outras divertidas aventuras partilhadas com o primo António. O tio António Reis era funcionário superior das Finanças e vinha sempre de carro para a cidade. O automóvel ficava o dia inteiro estacionado por perto, na rua e quem, secretamente, o utilizava era Reis filho, exímio em abrir portas e acionar motores, sem chaves. E, evidentemente, em conduzir sem carta de condução. Convidava o primo, e alguns amigos, para passeios até à Foz ou outro destino aprazível. Por fim, retornava o veículo ao lugar de estacionamento. Mesmo que não fosse rigorosamente o mesmo lugar, o pai, muito distraído, (caraterística que o filho herdou), não notava desfasamentos. Reparava, sim, no consumo excessivo de gasolina e trocou de carro por causa desse defeito. Não sei se também trocou o seguinte, ou se os rapazes passaram a dar passeatas mais curtas. Uma vez, apareceu um polícia, quando o António estava se preparava para abrir o carro... Nada que o embaraçasse. Chamou a autoridade e pediu ajuda, dizendo que tinha perdido a chave. O polícia, amavelmente, ajudou. O António tinha, de facto, ar de dono do carro. Outra história, em mais do que um sentido, bombástica, deste primo tão inteligente e empreendedor, na altura aluno do Colégio João de Deus, contou com a colaboração de um colega chamado José  Augusto Aguiar, que quatro ou cinco anos depois, seria cunhado do primo João. Ambos fizeram explodir parte do laboratório, numa experiência em que alguma coisa falhou. Os pais pagaram o prejuízo, e parece que não houve outra espécie de sanções, apesar dos antecedentes do José Augusto que já fora expulso de alguns de colégios da cidade. Do historial disciplinar de João, não consta nada de semelhante...

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De Avintes, as narrativas mais divertidos começam com a chegada dos novos "vizinhos do lado", donos da quinta que confinava com os terrenos da casa dos pais: o Coronel Novais e Silva, a mulher Haydée Genelieu (descendente de um dos engenheiros que acompanharam Eifel na construção da ponte sobre o Douro) e os filhos, Maria Beatriz e António Júlio. Uma família encantadora, da alta burguesia portuense, que trocou a cidade por aquela aldeia milenária e tranquila, numa colina com esplendorosa vista sobre casas rurais, campos de milho e uma larga curva do Douro ao longe. A mesma vista que se desfrutava das janelas do 1º andar da casa do Pai (ou dos seus Pais) na Rua 5 de outubro, a primeira que se encontrava à vinda do Porto ou de Oliveira do Douro, depois de atravessar o Febros, afluente do Douro, no início de uma subida íngreme.  As propriedades eram separadas por uns metros de declive, cada vez mais acentuado, à medida que se descia vários lances de escadas fe pefra,  para o interior da quinta. Entre as casas, a divisória era apenas um muro alto, onde colocaram, de ambos os lados, escadas de madeira para um trânsito fácil,no convívio quotidiano. Os três adolescentes, a Maria Beatriz um pouco mais velha e o António Júlio um pouco mais novo do que o João eram tratados como irmãos pelas duas famílias. O Coronel. naturalmente, mais severo com eles do que com a menina, impunha-lhes regras de disciplina, a que meu pai não estava habituado. Foi esse o contacto mais estreito que manteve com o mundo militar. Apesar da estima pelo Coronel, que sabia ser recíproca, o respeito era mais forte, e sempre se sentia intimidado na sua presença, gaguejava mais do que o costume, sinal de atrapalhação geral e a falta de auto-confiança levava a que as coisas lhe corresses menos bem, muitas vezes.
 A relação de grande amizade entre as famílias havia de manter-se, naturalmente, depois dos Novais e Silva retornaram ao Porto. A quinta foi comprada por um casal minhoto, sem filhos, que manteria as escadas de ligação por sobre o muro e uma relação de vizinhança muito amistosa. Eram mais velhos dos que os meus avós, e, quando se viram demasiado frágeis para sozinhos continuarem a governar a quinta, tentaram, em vão, que a avó Olívia deles cuidasse até ao fim, em compensação lhe doando a quinta e mais património. A avó era uma boa cristã, a tarefa não a assustava e criados não faltavam. Foi porque achava que estariam melhor com os sobrinhos e que não era justo deserdá-los. Quod erat demonstrandum... mas a avó era tão prestável  quanto inflexível nos seus julgamentos morais. Já só conheci a casa vazia, por muitos anos, sempre ao cuidado da minha avó e ao seu inteiro dispôr. Podíamos entrar apenas quando se abriam as janelas e uma das criadas (expressão, ao tempo, ainda socialmente correta) ia fazer limpezas de manutenção. E usávamos a parte social, os salões, muito maiores e elegantes do que os dos avós para festas excecionais. Que me lembre, apenas o banquete da comunhão solene da minha irmã Madalena e a minha.
Ao meu olhar atento de feminista precoce, o que mais me surpreendia nas reminiscências que o pai, aos serões, nos confiava, era o facto de referir rapazes e raparigas do seu círculo no mesmo plano, um plano de igualdade. Um bom exemplo: o indisfarçável agrado com que conviveu, no colégio dos Carvalhos,  com colegas no feminino, não sei porque razão, nesse ano (o último, o antigo 7º ano), admitidas, a título excecional. Poucas, é claro, uma delas, se não me engano, Virgínia de Moura. Com a mesma simpatia, recordava episódios passados com as primas, com a Maria Beatriz, Todavia, outra categoria feminina, as namoradas, sempre foram singularmente omitidas e eu nunca perguntei. Com a  mãe por perto, podia dar aso a polémica, na sua aus~encia, pareceria deslealdade filial, não obstante a mãe alardear, sem complexos, a lista longa dos seus pretéritos  pretendentes.
Curiosamente, nas relações de género, nos anos 20 e 30 do século XX, a mesma atitude parece ter tido o primo António, que reagiu, até onde pode, às limitações que eram impostas à irmã, caso da proibição de conduzir carro e tirar carta. Ensinou-lhe a guiar, às escondidas, deixava-a levar o carro, pelas estradas cheias de curvas perigosas, nas subidas e descidas da estrada de Avintes para Oliveira do Douro. Em compensação, ela deixava-o tocar o "seu" piano. Para o conservadorismo dos tios Reis, o volante do automóvel era para mãos masculinas, tal como o piano para as femininas. Na verdade, o pianista mais talentoso era mesmo o António, que sem nunca ter tido professor, tocava, de ouvido, excelentemente, um vasto repertório de Chopin a Mozart... O pai também quis um piano. O avô, reconhecido melómano, que também tocava de ouvido vários instrumentos, ofereceu-lhe um pequeno violino no lugar de um grande piano, como a Jacob, ao quem "em vez de Raquel lhe davam Lia", no poema camoneano. Ao contrário de Jacob depressa se conformou. Nunca se converteu em exímio executante, mas sentiu a falta do violino depois de o ter, imprudentemente, emprestado ao amigo de um amigo, que lhe deu sumiço...
Ao som do violino, ou do piano, na casa dos tios Reis, ou no coro familiar, a cantar à capela, os nossos serões em Avintes eram muitas vezes animados, pela música. Todos, exceto eu, cantavam bem, tanto em Avintes como em Gondomar, à volta do piano alemão da avó Maria.
Outras vezes, eram essas peripécias de juventude que nos entusiasmavam, por mais que fossem já conhecidas. Verdadeiramente triste só a tragédia dos saguís do António, sobre a qual davam, os dois primos, uma infinidade de detalhes, protestando a sua completa inocência no desenlace final, aliás, credível porque ambos era amigos de todos e quaisquer animais. Resumindo: os pequenos macacos engraçados, trazidos dos trópicos e oferecidos ao António, por um tio, que era médico de bordo de navios, em longas viagens intercontinentais, estranhavam os invernos europeus. O tio, e os macaquinhos, as suas momices e brincadeiras eram descritos com muita graça -  o seu desconforto no confinado horizonte de um casarão de Avintes, cinzento e frio. Solução, com a marca mais do António do que do João, certamente: sessões de alguns minutos numa fornalha, bem temperada para os aquecer, mas não demais. Os saguís davam espetáculo, coitados, saltitando lá dentro, até serem libertados para o exterior, à temperatura ambiente. Para surpresa dos rapazes, não resultou. Adoeceram subitamente e morreram, dias depois. O sobrinho Mário, a quem, numa tarde de conversa, em Gondomar, deu todos esses e mais detalhes, fez o diagnóstico médico, sem hesitações: vítimas de pneumonia, provocada pela alternância de calor sufocante e frio  de enregelar
Estes primos não eram fisicamente parecidos - António mais longuilíneo, alto e magro, umas lindíssimas mãos de pianista, que serviram de modelo a um escultor, de que ouvi falar, mas cujo nome esqueci. Um Gary Grant mais aristocrático do que o de Holliwwod (essa pose, nele tão natural, explica, por exemplo, a boa cooperação do polícia que o ajudou na benigna "tomada de empréstimo" do automóvel do pai). O João, mais entroncado, mais atlético, com um ar menos ousado, mais "terra a terra". Quem era o mais alto? De pé, sem dúvida, o António, com o seu 1, 80, mas sentado o João, que andava por 1,75. Discutir essa curiosa questão, era coisa que os divertia na juventude e de que ainda se riam, anos depois, já eu tinha idade para me lembrar da conversa e para constatar a veracidade do facto.  Muito semelhantes eram numa caraterística, que talvez seja hereditária, pois é partilhada na geração seguinte - a distração. Guarda-chuvas, luvas, chapéus, canetas, pastas, tudo o que não estivesse vestido ou calçado, sem ser de tirar e por, ficava esquecido em comboios ou mesas de café,  precisando de ser constantemente renovado. O pai raras vezes usou, fora de casa, um isqueiro "Ronson" de ouro, uma caneta Monblanc, ou mesmo um guarda-chuva de estimação... O exemplo pior está atribuída ao António,  por uma conversa telefónica com o Coronel Novais e Silva. O pai, que, como disse, sempre se enervava na presença do Coronel, nunca foi além de "gaffes" menores, do género de apertar a mão à criada, que acabava de lhe abrir a porta da casa, ( gesto que hoje poderia passar sem censura, mas não naquele tempo), ou