segunda-feira, 13 de agosto de 2018

AS NOSSAS MEMÓRIAS DO MEU PAI a 16 agosto

I- A PARTIR DE UM SONETO (transcrever) Os meus pais conheceram-se num domingo de outubro de 1940, na "missa nova" de um amigo comum. No dia seguinte, ele partiu para Lisboa com o primo António, para uma visita a "Exposição do Mundo Português". De lá lhe enviou uma carta, acompanhada de um primeiro soneto, em que lhe fazia uma discreta, mas não demasiado subtil, declaração de amor. Para dois quase desconhecidos, impunham os bons costumes de época, discrição, mas a excessiva subtileza poderia, afinal, por em risco a mensagem. Embora a menina de Gondomar, com o seu 1.50 de altura, bonita e elegante num conjunto rosa pálido, vestido e casaco comprido, longos cabelos ondulados e olhos expressivos, muito claros, de cores diversas, mais verde o direito, azulado o esquerdo (singularidade para o qual gostava de chamar a atenção), parecesse intuitiva e vivaz, convinha não exagerar. Os encontros entre os dois, já não ocasionais, embora alguns se destinassem a parece-lo, haveriam de continuar e os sonetos, que os assinalavam, também. Ele sempre escrevera, com facilidade ao correr da pena. Era um poeta repentista, como a mítica avó Quitéria Francisca, grande contadora de histórias, que, nas festas e nos serões da aldeia, também cantava ao desafio, com rara acutilância e rima certa. E, assim como a avó dizia os versos irónicos, o neto escrevia os poemas de amor, por vezes à mesa do café, para si e para os amigos, desejosos de impressionar as namoradas, como poetas, que não eram, inspirados por uma paixão que, talvez, não o fosse... Não a julgava poesia que valesse a pena guardar, toda desapareceu, menos os sonetos que dedicou à mulher e ela, sim, conservou. Uma colecionadora nata - de cartas, postais, fotografias, e de outras coisas, igualmente ligadas a memórias, jarras, terços, caixinhas, serviços de chá, colchas, vestidos antigos de seda, a desfazer-se, coisas com história, que tinham passado pelas mãos de várias gerações. Apesar de muitas andanças, de terra em terra, de casa em casa, uma ameaça à salvaguarda deste tipo de espólio familiar, quase tudo chegou, com ela, ao século XXI, dentro das mesmas gavetas, das mesmas caixas, dos velhos albums, do imenso guarda-louça da bisavó Carolina . Fui achar os sonetos, manuscritos numa letra bonita e intemporal, em papel amarelecido, impecavelmente conservados, num fundo gavetão de guarda-vestidos. Levei-os ao poeta, para que os relesse, meio século depois. Com uma proposta de publicação. que inesperadamente,aceitou e até deu título ao futuro livro: "Íntimo". Epígrafe de um dos seus sonetos bem guardados. Estávamos na década de 90, tinha ele mais de setenta anos. Dividimos tarefas. Cabia-lhe fazer a revisão do texto, acrescentar ou cortar vírgulas, no que era muito bom. Costumava submeter ao seu superior conhecimento dos segredos da língua os meus textos - prosa, naturalmente, e sobre questões pouco poéticas, mas para efeitos de vírgulas, a mesma coisa. Na divisão de tarefas acordada, das restantes - capa, imagens, tipografia, edição - eu me encarregaria. Todavia, o poeta foi adiando, adiando... Reuniu as folhas soltas, uma para cada soneto, numa pasta de cartolina preta. Às vezes, até saía com a pasta debaixo do braço, a caminho do Café Palácio, sua segunda casa em Espinho. A intenção era ir trabalhando a pontuação, enquanto esperava os amigos, depois da leitura vagarosa do jornal (estava sempre atualizado, acompanhava, de perto, as vicissitudes da política - bem mais do que ea filha, então sempre de partida para as reuniões do Conselho da Europa ou para visitas às nossas comunidades transoceânicas). Em geral, os amigos não tardavam. ou encontrava-os já sentados nas mesas redondas do novo Palácio ou, mais raramente, no bar do Casino. O tempo, para os mais velhos, corre depressa, esgotava-se nas conversas, nos passeios à beira-mar, diante do ecrã de televisão (horas...), na leitura pela noite fora - ultimamente biografias, os policiais de Sara Paretsky, Ruth Rendel, Amanda Cross (que eu providenciava), os seus eternos favoritos Jerome K Jerome, Guareschi, Umberto Eco. E havia, ainda, os encontros em Gondomar, com os sobrinhos, os alegres sete filhos do António e da Xaninha. Mais os quatro do Mário e da Sameiro, onde nunca falhava nas tardes de sábado, não esquecendo as missa e novenas na capela da Senhora da Ajuda. A revisão dos versos não tinha, obviamente, prioridade nesta preenchida agenda de reformado, em terra de tertúlias, esplanadas, praias e mar, de que tanto gostava, desde menino. Não havia pressa - até que a morte veio subitamente, num domingo de Páscoa. O seu coração parou. Parou mesmo, coisa absurda, enquanto conversava connosco, ao jantar, a meio de uma frase... Bem disposto, a comentar um artigo de Marcelo (Rebelo de Sousa), uma próxima peregrinação a Fátima e a festa em casa do Mário, onde nunca falhávamos o "compasso". Uma tradição bonita, que andava perdida em Espinho, há muito, em Espinho, e se mantinha, religiosa e etnograficamente intacta, em São Cosme de Gondomar Já não sei qual foi a crónica de Marcelo, que, na altura, recortei, talvez do " Expresso". Incondicional admirador do cronista, decerto apreciaria agora o seu estilo na presidência. Dou por mim, muitas vezes, a pensar nos diálogos que teríamos sobre vagas de acontecimentos que se sucederam na sua ausência - vitórias do Porto, derrotas do Porto, Lopetegui e Sérgio Conceição, a "troika", a "geringonça", o perigo Trump, o "Brexit", o bom Papa Francisco... A coletânea dos sonetos, publiquei-a prontamente, sem mais revisões, com a ajuda de um dos mais jovens participantes da tertúlia do Café Palácio, o Fernando, que tratou da parte gráfica, numa tipografia dos Carvalhos Esta ligação aos Carvalhos, lugar onde viveu 11 anos felizes no famoso colégio, ter-lhe-ia agradado, com certeza 2 -

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