quarta-feira, 24 de abril de 2024

HÁ 50 ANOS...

Há 50 anos, a esta hora, estava eu em Coimbra, ia dentro de 30 minutos dirigir-me à universidade, para tomar posse como assistente da Faculdade de Economia. A posse foi dada pelo Prof Eduardo Correia, o diretor da Faculdade, que dois meses antes me convidara para esse cargo. Tudo era novo, até a Faculdade. O primo Zé Quim estava feliz e conseguiu que um funcionário do Registo Civil me fizesse a alteração de profissão e domicílio nesse mesmo dia: 24 de abril de 1974. Depoi, parti de comboio para Lisboa, pouco antes dos tanques saírem de Santarém... No dia seguinte, às 7.00 da manha, telefonou a Tia Lola a dizer que estava a acontecer uma revolução, que devia ficar em casa, dpois de me abastecer de conservas... Oito dias depois, o Prof Eduardo Correia era Ministro da Educação e eu continuei na Faculdade, como Assistente do Boaventura Sousa Santos. Não por muito tempo. No verão, já eu transitara para a Faculdade de Direito, a convite do Prof Ferrer Correia. Um encontro ocasional desencadeara esse 2º convite universitário... Os meus encontros davam sempre em mudança, movimento

terça-feira, 26 de março de 2024

Maria Eduarda Aguiar da Fonseca faz 79 anos hoje

Go to Geni Página inicial da Árvore Genealógica Mundial Maria Eduarda Aguiar da Fonseca faz 79 anos hoje Olá Docas - estás quase a chegar ao clube dos 80...

sábado, 6 de janeiro de 2024

AR a 18 de janeiro

2024 AUTORRETRATO(S) DE UMA VIDA EM MUITOS MUNDOS 1 - Infância mágica - Quando eu era outra... Olho os meus retratos de menina e dificilmente me reconheço neles. São imensos, em papel brilhante de bordos rendilhados. As primogénitas despertam o impulso dos pais de fotografar, fotografar… Depois de mim, a Maria Madalena, muito mais bonita, com os seus grandes olhos azuis num rosto angelical, já não teve igual sorte. Na primeira imagem apareço em forma de embrulho branco, que um jovem casal partilha nos braços. Estão sentados num banco comprido de jardim, com uma fachada de pedra de cantaria em fundo, e um cão grande, preto e branco, a aproximar-se, cheirando o solo. É verão, a criança protegida pelo abafo talvez esteja a morrer de calor e vai preferir aragem fresca pelo resto dos seus dias…. A partir de tantos instantâneos de época, em cada época, difícil se torna compor um autorretrato. O, ou os, que a câmara fixou e estão alinharam em álbuns, e, mais ainda, os que perfizeram um longo percurso de imprevistos. Não no início, quando era uma daquelas crianças e adolescentes focada num projeto de estudo, sem prescindir de ócio e divertimento – tudo na dose certa. Fiquei sem projeto, ou agenda, no momento em que terminei a licenciatura (Direito, na Universidade de Coimbra, “comme il faut”). O imprevisto passou, desde então, a comandar uma vida errante. Em todo o caso, prosseguia, com a mesma determinação, o que quer que me caísse nas mãos, para fazer. O meu lema era simples: dar o melhor de mim, em qualquer circunstância. Seguindo uma linha diacrónica, direi que não sou daquelas pessoas felizardas que guardam memórias do berço… Não, de todo! Para esse tempo primordial, confio em crónicas alheias. A minha mais remota recordação pessoal foi uma espécie de fuga instintiva para a liberdade. Passeava em Espinho, pela mão da mãe ou do pai, num dia de verão, no vaivém da Avenida 8, que era, então, o centro da vila, conhecida, simplesmente, como “a Avenida”, com A grande. E, de repente, soltei-me da mão que me prendia, e, ainda em passo incerto, avancei sozinha, arrostando obstáculos, na forma de pernas de uma multidão de adultos, em lenta caminhada. O gozo da libertação logo cedeu ao medo dos encontrões. Na memória, persiste a imagem claustrofóbica e surrealista de uma floresta de pernas muito altas, entre as quais procurava, desesperadamente, os pais… A lembrança ficou presa no momento de angústia, da procura, não na felicidade do reencontro, e, depois disso, não reteve episódios de impacto semelhante. Todos os dias foram aprazíveis e indistintos. Sei do que mais gostava: de saltos e correrias, de gatos, cães, flores, ursos de peluche, triciclos e carros de pedais. E do que abominava: os monstruosos laços de seda presos de lado num cabelo loiro, liso e curto, e os vestidos cor de rosa. Portista de nascença, queria o azul/FCP, que estava sempre reservado para a minha irmã Maria Madalena (Lecas), cujos olhos eram precisamente dessa cor. As reminiscências são, sobretudo, de lugares, coisas e pessoas – os familiares mais próximos, as suas casas, muito em especial a “Vila Maria”, o casarão “de brasileiro” onde nasci, em Gondomar. Retrospetivamente, acho-me uma criança excessivamente turbulenta, irrequieta e precoce. A precocidade é a mais perigosa das virtudes. Eleva expetativas gerais e, em regra, como o meu exemplo comprova, propicia deceções futuras. Disse a primeira palavra aos sete meses. E não foi “mamã” nem “papá”, mas “Jesus” – paciente e hábil ensinamento (“coaching” …) da avó Maria, com certeza. Dei os primeiros passos aos nove meses, segundo consta, em corrida, terminada numa queda contra a esquina de um guarda-vestidos – um susto, nada mais. Com um ano de idade, comecei a articular frases completas e não me calei mais. Metralhava perguntas, relatava factos, invariavelmente inverídicos, e dava largas a inesgotável energia em constantes traquinices. Um dos livrinhos que a avó Maria me ofereceu, mal aprendi a ler, foi “Os desastres de Sofia”. “Os desastres de Manuela” não perdiam por muito, no confronto. O que não era pioneirismo na família Aguiar. Marquei a sua década de quarenta do século XX, bem acompanhada por primos como o António José (Tónio) e a Inês Maria (Inesinha), mas já, antes, nos anos vinte e trinta, toda e qualquer diabrura, que abalasse o quotidiano das escolas e dos clubes de São Cosme de Gondomar, era atribuída aos Aguiares. Vendo a coisa pela positiva, líderes natos! A tradição de excentricidade vinha de trás, de jovens e de menos jovens, com esse e outros apelidos, e não excecionava mulheres, que poderiam ter servido de inspiração ás heroínas de Agustina. Avós extravagantes e formidáveis, também as havia do lado paterno, por exemplo, a bisavó Quitéria Francisca Pinto, que se tornou figura lendária por cantar ao desafio e jogar varapau em dias de festa popular, para além de ser poetisa repentista, fantástica contadora de lendas e histórias e, sobretudo, mulher de grande caráter, bom senso e pragmatismo. Na ascendência tenho gente das duas margens do Douro, na fronteira com a cidade do Porto. A norte, em Gondomar, a família materna. A paterna dividia-se entre o sul, (os Dias Moreira, proprietários de terras ribeirinhas em Avintes, em frente a Gramido, que as invasões napoleónicas puseram no mapa), e o norte, os Castro Mello/Capella, da Quinta dos Órfãos, na Foz do Sousa. Sobre estes antepassados nada sei, para além dessa referência a uma quinta, que parece ter sido um lugar de encontro como a Villa Maria, a Meca familiar. Encontros dos quais o bisavô João Fernandes Capella se afastou de uma vez por todas, cortando laços com os pais, ao que se julga, para casar, contra a vontade paternal, com a bisavó Joaquina Gonçalves da Rocha, a indómita filha de um farmacêutico de Melres. O nosso século XIX abunda em crónicas de paixões proibidas, romances que rivalizam com a ficção, quase todos com um “happy end”, ou, pelo menos, com longa geração. Desconheço discórdias conjugais ou divórcios. As ruturas, cujo eco chegou até hoje, desuniram, sempre, pais e filhas ou filhos rebeldes, irmãos e cunhados. Tanto quanto sei, fui a primeira divorciada neste longo encadeamento geracional. Depois que, pela via digital, alguns primos, portugueses e brasileiros, interessados em genealogia, entraram em contacto comigo, fiquei a saber muito mais sobre as minhas origens, sobre longínquos avós vindos do Minho, da Galiza, de Trás-os-Montes. A maior surpresa foi sobre o ramo Pereira de França, no qual se entrelaçou o Aguiar (oriundo de Montalegre), que tem mais de quatro séculos de permanência em Gondomar, bem documentado pelo primo Hernâni Maia. Várias gerações dos Ferreira Ramos, ascendentes maternos da avó Maria, são, igualmente, desta terra. Já os paternos são mais nortistas (Paredes, Bitarães…). O pai, Joaquim Mendes Barboza, veio de Paredes para São Cosme, onde foi notário durante décadas. Começou por protagonizar um dos tais matrimónios indesejados pelo clã da noiva, a formosíssima e determinadíssima bisavó Carolina. Por intuição ou sorte, a sua escolha revelou-se excelente, como a família e todo o Gondomar depressa haviam de reconhecer. No sentir e dizer das filhas, um verdadeiro santo. Todos estes avoengos se juntam na árvore genealógica para fazer de mim uma “mulher do Norte”. Porém, de qualquer outro ângulo de abordagem desse legado, que não o geográfico, a palavra para o caraterizar é: diversidade! Diversidade de origem, fortuna, mentalidade, e, sobretudo, política e ideológica. Invejo os biografados (ou autobiografados), que se reveem num determinado meio social e escola de pensamento, definido e homogéneo, assim como os que se orgulham de trajetórias ascendentes. O meu caso, como deixei antever, é o inverso. Eu própria fui regredindo, devagarinho, de criança explosiva e cheia de si a adolescente e mulher tímida e cheia de dúvidas (sobre si…). O mesmo se diga do coletivo, ao menos, no plano material. Na geração de bisavós e avós há grandes exemplos de empreendedorismo, de como se fazem ou aumentam honestas fortunas. Fortunas que se esfumaram, sem ninguém as gastar, em gloriosos ou interessantes excessos. Creio que os sucessores dos nossos maiores se limitaram a não acompanhar a mudança dos tempos e das circunstâncias, com a abertura de novos filões, novas áreas e maneiras de engendrar lucros e proveitos em geral. Razão de sobra tinha, pois, o avô Manuel (ele próprio homem com menos queda para negócios do que seu progenitor), quando dizia ao filho e, mais tarde, a cada uma das netas: “A única fortuna que quero deixar-te é um curso universitário”. As terras e as casas herdadas, de facto, parecem servir, essencialmente, para me darem dores de cabeça, enquanto do curso tirei rendimento suficiente para viver placidamente. Tirei e ainda tiro, agora sob forma de pensão de reforma. Com este avô, mais dado às artes do que a rasgos empresariais, ator de teatro amador, melómano e cinéfilo, aprendi a amar o cinema, nas “matinés” do Batalha, do Rivoli e do Trindade, e com a avó Maria as viagens, os passeios, a poesia. Muito antes de ir para a escola, já cativava audiências, declamando “O melro” de Junqueiro, vate favorito da avó, que era monárquica e muito devota, mas tinha o seu fraco pelo poeta republicano e anticlerical. A avó Olívia estimulava a nossa (da Lecas e minha) inata inclinação “animalista”, a partilhada paixão por cães e gatos, e dava-nos as mesadas mais substanciais, frequentemente, em resposta aos apelos da mana, de que eu beneficiava por tabela. Uma das especiais atrações da casa de Avintes, das longas estadas com esses queridos avós, eram as intermináveis ninhadas de gatinhos de uma bela gata francesa, chamada “Tita”. E, assim, pais e avós contribuíram, por igual, para uma infância de boa memória – sem esquecer os tios e uma seleção de primos… Até aos oito anos, vivi, com os pais e a irmã mais nova, Madalena, a Lecas na Villa Maria. A mãe, quando casou, não quis sair de “sua” casa, e o pai, jovem com fama de rico, mas pouco proveito, não enjeitava as vantagens económicas, e não só, de coabitar com a sogra e de conviver com os divertidos cunhados. Nós, as crianças, gozávamos as delícias de um autêntico paraíso terreal, e a avó prezava companhia no casarão, que se fora esvaziando com a partida dos outros filhos. Quase todos, por sorte ou deliberada opção, moravam por perto e visitavam-na, com frequência, em dias e noites de ruidosos convívios, ora com muita música, à volta do velho piano, ora em verdadeiras tertúlias políticas, onde mulheres e homens terçavam argumentos, dissolvendo a agressividade em tiradas irónicas. Ninguém se zangava, nem mudava de campo. Recriavam, em novos contextos, um jogo antigo de confronto entre conservadores e progressistas: monárquicos regeneradores versus republicanos moderados ou revolucionários, a que se sucederam salazaristas contra democratas e, na guerra em que fomos oficialmente neutros, germanófilos e anglófilos. O conflito acabara há anos nos campos de batalha, mas prosseguia nas discussões da Villa Maria O desporto, mais precisamente, o futebol também tinha ali o seu polo de debate, de pendor bastante mais masculino. Eram todos portistas, com a exceção do tio Manuel, que, durante os seus anos de estudo de Medicina em Coimbra, se convertera à Académica. Estava sozinho, mas fazia barulho por uma claque inteira. Nessas buliçosas discussões, fiz a minha iniciação à política e ao futebol, e aprendi a equivalência das virtudes humanas de quem pensava diversamente. Já então era bastante propensa a dar opiniões, de preferência, tal como minha mãe, contracorrente - ela numa direção e eu em outra. As questões feministas não eram abordadas diretamente. Faltavam, ali, teóricos do sufragismo e mulheres com experiência profissional. Nessa geração só uma prima se formou na Universidade de Coimbra. Para minha mãe, talentosa pianista, fazer o curso de Conservatório de Música ou de Arte Dramática, mostrou-se pura utopia. A única cidadã verdadeiramente interventiva e influente no mundo exterior era a mais conservadora de todas: a avó Maria, grande defensora dos estereótipos femininos salazaristas. Era militante da “Obra das mães”, e de outras obras beneficentes, a que se dedicou, depois de perder, subitamente, o marido. À tragédia de se ver sozinha, com sete filhos, entre os doze anos e os dois meses de idade, reagiu, voltando-se para a igreja, dividindo o seu tempo entre os filhos e o voluntariado, e suscitando geral admiração e respeito. Sendo a sua neta preferida, deixei-me, sem dúvida, moldar por ela em quase tudo, da fé católica ao prazer pela leitura de prosa e poesia, mas resisti, tenazmente, à conversão aos seus padrões sexistas do “feminino”. Quando a avó me dizia: “Uma menina não faz isso!” (não trepa às árvores, não anda aos pontapés a uma bola, não entra em briga de rapazes, etc. etc…), eu questionava: “Mas porque não”? Achava-me tão competente como qualquer rapaz da minha idade para executar todos os atos constantes da sua longa lista de tabus… Sem resposta convincente à minha pergunta, o discurso catequético falhava. Involuntariamente, a avó fez de mim uma ativa feminista, aos cinco ou seis anos de idade. Fui incentivada a competir, a romper barreiras, a estudar, sobretudo, pelo pai e pelo avô, que acompanhavam o meu trajeto escolar, esperando que eu fosse, sempre, a melhor da turma. Não posso apontar o dedo às mulheres, dizendo que me desencorajavam, mas não davam à “performance” a mesma importância. Em linguagem futebolística, “não punham pressão”. Sentia-me, assim, muito contente por ter nascido rapariga, e ser capaz de rivalizar com os rapazes, e, pensando sempre no coletivo, como boa sindicalista, arrastava a mana e as primas, para a prática de “desportos radicais”, como acrobacias por cima de telhados e das árvores da Vila Maria. O que, aliás, não nos dava galões de precursoras. Na geração anterior, a mãe e as tias faziam o mesmo. Mais longe terei ido ao saltar para (ou dos) estribos de elétricos em andamento, e ao jogar futebol de rua, com miúdos da minha idade. Não foi fácil entrar no jogo, mas consegui, apoiada pelo primo Ernesto, um verdadeiro “craque”. Não o deixei ficar mal, mostrei serviço, compensando a falta de técnica com imensa energia e velocidade. Varria o campo, com ou sem bola, distribuindo encontrões com fartura. No hóquei em campo, jogado com caules de couves, era ainda mais temível, normalmente, acertava na bola e nas pernas do adversário, em simultâneo. O futebol era a minha paixão, mas só depois da inauguração das Antas, passei a ser, ao lado do pai, uma frequentadora habitual do estádio. Posso testemunhar que meninas na bancada, nessa época, eram raridade. E eu não me importava de ser raridade. Mas nem só o desporto me empolgava. Um dos meus sonhos fora desse domínio era, por exemplo, desfilar nas procissões de São Cosme vestida de anjinho. Meus pais, não sei porquê, mostravam-se pouco recetivos, e, por fim, foi a avó Maria quem me presenteou com um traje de túnica e asas amarelas! E lá fui eu, seráfica e colorida, entre anjos de asas brancas, em passada lenta e solene, pelas ruas atapetadas de flores e de folhagem verde, atrás de pequenos andores…. Muitas fotos documentam a felicidade desses momentos estampados no meu rosto infantil. Um dia em pleno! Antes de sair da Villa Maria para o cerimonial, tinha andado à bofetada com a Inesinha, uma Aguiar não menos terrível do que eu. A iniciativa foi dela, com uma súbita bofetada e eu, em vez de oferecer cristãmente a outra face, persegui-a, correndo com as asas a abanar, e apliquei-lhe dois ou três estalos, perante uma avó Maria petrificada. Tornou-se ali patente a sabedoria do velho ditado: “o hábito não fez o monge” - nem o anjo… Muitos dos alegres episódios da minha primeira idade começam na Vila Maria, que já só existe na lembrança, como mundo perfeito, com as suas fronteiras protetoras de granito, muros altos que nos permitiam, lá dentro, total liberdade de movimentação. Mas há outros de Espinho e de Avintes, de muitos primos simpáticos, o sucedâneo afetivo dos irmãos que meu pai não tinha. Uma dessas primas, a Maria Angélica, que, na altura, fazia criação de “pequinois” e ofereceu-me, aos 7 anos, o meu primeiro cão, uma cachorrinha gorda e fulva, à qual dei o (pouco criativo…) nome de “Chinita”. A maior aventura ligada à casa de Avintes podia ter acabado mal: uma tentativa de pilotar o carro do pai, estacionado à porta, na rua 5 de Outubro, que ali desce, em plano muito inclinado para a ponte sobre o Febros. Sem portas trancadas, como era seu costume. Sorrateiramente, esgueirei-me para junto do carro, entrei para o lugar do condutor e imitei a pose e os gestos paternos, liguei a ignição, baixei o travão, pus as mãos no volante… e eis que o bólide inicia, devagar, a marcha perigosamente descendente… Fora tudo tão rápido que o avô Manuel, ao ver-me lá fora, correu atrás de mim, mas já teve de travar a marcha à mão! Era um atleta, e a adrenalina terá ajudado ao milagre… Ainda hoje sinto a emoção do brevíssimo momento! Daí em diante tive de me contentar com o volante dos carrinhos de feira. Das pistas saía sempre contrariada, achando pouco… Aos cinco, seis anos, conseguia distinguir todas as marcas dos carros em circulação. Os meus tios do Porto divertiam-se imenso a fazer-me o teste, em ruas movimentadas. Nas passeatas de fim de semana, em alegre grupo excursionista de tios e primos, os carros serpenteando, em fila indiana, por estradas rurais do Entre Douro e Minho, escolhia sempre o carro da frente, (o tio David, no seu Citroen “arrastadeira”, era aposta segura…). E pedia sempre para passarmos pela fascinante casa do Zé do Telhado e pela a confeitaria dos bolinhos de amor, que ficava em caminho. As façanhas do Zé do Telhado eram-me contadas, com mal disfarçada simpatia e benevolência, pela respeitáveis avó Maria e tia-avó Rozaura (nome raro, que era o de uma heroína de romance de cavalaria que o pai e meu bisavô Barbosa andava a ler nas vésperas do seu nascimento). Eu própria beneficiava dessa benevolência, em malfeitorias de outra ordem, à medida da minha idade e condição. Quantas vezes, escutando, escondida onde não me viam, a ouvia zurzir os meus jovens progenitores: “Não sabeis lidar com esta menina! Ela obedece facilmente, mas é preciso explicar-lho o porquê das coisas”. Já então, para mim, obedecer ou não obedecer era coisa a avaliar por critérios de extrema exigência pessoal. O mundo da escola Esperei a entrada na escola primária impacientemente -impaciência é um dos meus incorrigíveis defeitos. Por ser nativa de junho, não me matricularam no ano letivo de 1948/49. Recordo a frustração! Tinha pressa de desvendar os mistérios da escrita e leitura… Festejei os meus sete anos, ainda analfabeta, só quatro meses depois, em outubro, pude, enfim, entrar na velha escola do Souto, em São Cosme, eufórica, como se fosse para a escola de bruxaria e magia de Hogwarks... “Entra com o pé direito, para dar sorte” recomendaram-me. E eu, que confundia esquerdas e direitas, (ainda hoje confundo, exceto na política), com o alvoroço de alma, por cima daquele distúrbio, troquei os pés e avancei com o esquerdo… A maldição não se materializaria, o meu esquerdismo compensou. Adorava a escola e a professora, dentro da sala, tinha comportamento irrepreensível. Só no recreio, e em horário pós-escolar, me permitia criar o pandemónio, a meias com a “Arminda do mato”, filha de pequenos larápios. “Arminda do mato” e a “Speedy Manuela“, um dueto temível… Energia e propostas de ação coletiva valeram-me mais tarde outras jocosas alcunhas, como “Calamity Jane” ( em Paris, onde os colegas até me ofereceram o álbum de Lucky Luke), “Catarina de todas as Rússias” (por um ilustre assessor irritado), “Santinha da Ladeira” (pelo José Lello, num programa da RTP, farto de me ouvir a defender Mário Jardel, já na fase sportinguista terminal),“Dom Quixote de saias” (por Cruz Gomes, jornalista de Toronto, e não só)… Como se vê, nomes, que nada tinham a ver comigo ou entre si… Voltando ao ano letivo de 1949/50, em que dei um grande salto em frente, uma etapa de crescimento, convertendo-me numa nova Manuela – apesar de tudo, com mais juízo, ultrapassada a fase das mentirolas criativas, em favor do realismo narrativo da verdade nua e crua. E tornei-me leitora compulsiva da revista “O Mosquito”, dos livros da condessa de Ségur, dos jornais (O 1º de Janeiro, O Comércio do Porto), embora só na secção das notícias desportivas. No ano seguinte, meus pais decidiram prolongar a época de praia, na casa de Espinho e eu frequentei a escola da Rua 23, onde me zanguei com a professora e vice-versa. E logo me desinteressei da escola e doa estudos, e, quanto mais castigos ma caíam em cima, pior. Por sorte, os pais decidiram mandar-me para casa doa avós em Avintes, que o mesmo é dizer, matricular-me na escola mais próxima, que er a do Magarão. Recuperei, automaticamente, o gosto pelas aulas e o estatuto de aluna exemplar. Na 3ª classe, a família reviu a estratágia e decidiu elevar socialmente o meu convívio, com o que me desterraram para um internato de Irmãs Doroteias, a quinta essência do elitismo – o Colégio do Sardão. Eis-me num novo mundo fechado por muros altos, com hectares de parques e de quinta agrícola, e muito boas estruturas desportivas, grande ginásio, “court” de ténis, campos de jogos, rinque de patinagem. E ainda um baloiço com mais de três metros de altura, onde, por felicidade, apesar de quase atingirmos a linha horizontal, nunca ninguém se despenhou no fronteiriço lago de patos. A única que, uma vez, calculou mal o salto de saída, a baixa velocidade, suavemente, aterrou entre os patos, foi a Clarinha Menéres, que viria a ser escultora famosa, mas nunca se distinguiu em exercícios físicos… Nos meus sete anos de Sardão, embora fosse aluna medalhada e de "quadro de honre", é da atividade desportiva que guardo as melhores recordações, do volei e do andebol, com o nosso exigente treinador Edgar Tamegãodos e dos torneios clandestinos de futebol, que eu própria que organizava. Fui "apanhada" uma única vez e imediatamente chamada ao gabinete da Mestra-Geral. Ia de alma em baixo à espera de pesadas sanções, mas ela , nesse dia de excelente humor, surpreendeu-me com uma leve admoestação, reiterando a caráter impróprio do futebol para meninas, mas terminando assim: “Em todo o caso, como sei que gostas muito de futebol, dou-te autorização para jogares. Só a ti, às outras, não!” De semelhante compreensão não beneficiei no campo da liberdade de expressão... Era uma infatigável escrevinhadora de peças de teatro, romances e crónicas, qualquer dos géneros muito apreciado pelas colegas, mas não pela autora, uns anos depois (o destino foi o caixote do lixo, exceção aberta para uma crónica de costumes sobre o reino da Sardão, que, não tendo interesse literário, ganhou valor e significado noutro plano. Ainda incompleto, em plena feitura, foi o texto apreendido por mão censória! Alguém me tinha denunciado… O escândalo foi tremendo, a aluna subversiva suspensa, com uma “guia de marcha” para a casa, em forma de uma carta da Madre Superiora para os pais. Quatros páginas, a acusarem-me de várias malfeitorias, entre elas a de ser “comunista”. Só faltou enviarem cópia para a PIDE. Até onde ia a incultura política daquela senhora.. Como podia uma adolescente que questionava tudo e todos, ser acusada de militar num partido de “obediência”? “Anarquista”, seria bem mais aceitável, e eu teria gostado, aproximava-me do tio-avô António Barboza que, como tal, acabou deportado em São Tomé, durante o mandato do Presidente Sidónio. Esperava-se a expulsão, é claro, desenlace não inédito na tradição familiar: a Tia Glória Doroteia (Lolita), fora banida do Colégio da Esperança por delito de opinião semelhante, (embora ela se focasse mais na ementa gastronómica do que na “praxis” autoritária, moralista e reacionária da instituição) e o Tio José Augusto, (expulso de vários colégios do Porto, com fundamentos diversos, um dos quais ter provocado uma explosão no laboratório do colégio). Não atingi esse patamar de glória! Ao fim de uns escassos dias, em que estudei afincadamente para os exames já muito próximos, fui reintegrada, sem mais explicações e sem devolução da minha peça de ficção realista. A obra, porém, não se perdeu, graças à minha incrível memória juvenil: consegui reescreve-la, em Espinho, nas férias, sem falhar uma virgula! Nunca se sabe como os pais reagem a estas vicissitudes. Por sorte, os meus acabaram felizes com o sucesso da filha nos exames do 5º ano, 9º atual, a dispensa das orais a Letras e a Ciências, e furiosos com a Direção do Colégio, que lhe levantara um injusto processo nas vésperas de provas tão importantes. Quem poupa o inimigo, às mãos lhe morre... e eu aproveitei a ocasião para expulsar o Sardão do meu futuro, Voltar à escola pública! Era a hora de todos mudarmos de vida. Até meus pais se converteram, por fim, à ideia de arrendaram um andar no Porto! Depois de muito procurarem, encontraram um pequeno e simpático apartamento na rua Latino Coelho, a dois passos do Marquês de Pombal e do Colégio da Paz e, “last but not least”, do Estádio das Antas. A Lecas e eu há muito queríamos morar no centro da nossa bem-amada cidade do Porto, perto de cinemas e cafés, livrarias e lojas e tudo o mais. Só os avós estavam inconsoláveis. A avó Maria era a mais inconformada, e, com o humor trocista dos Barbosas, chamava aos prédios de apartamentos as “ilhas verticais do Porto” … A nós, aos 14, 16 anos, encantava-nos a modernidade daquele andar, urbano e “cozy”, e gostávamos dos vizinhos, em especial de um casal que dava ao prédio o seu toque de cosmopolitismo: os Razzini, ela algarvia de Olhão, loira e elegantíssima, parecia uma sósia da Kim Novak, ele um siciliano tranquilo e sociável, e o filho de oito anos, que, em dois tempos, convertemos ao “portismo”. A proximidade do Colégio da Paz, indiciava que os pais esperavam que continuássemos entregues à prestigiada pedagogia das Doroteias, em modalidade de externato… A Lecas aceitou, prontamente, eu não. Insisti em matricular-me no Liceu Rainha Santa Isabel, que ficava a milhas. Não me convenceram nem pelo argumento geográfico, nem pelo aziago precedente paterno. No ano em que trocou os “Carvalhos” pelo liceu Rodrigues de Freitas, o jovem João divertiu-se muito, estudou pouco, chumbou e teve de regressar ao colégio. Eu, pelo contrário, tratei de estudar e de me divertir, na dose certa, e passei dois anos fantásticos no “Rainha”, com ótimas colegas e professoras. E, nos exames finais do liceu, até ganhei o “prémio nacional”. Estávamos em 1960, tempo de comemorações henriquinas, pelo que à distinção académica acrescentaram conteúdo turístico, uma viagem-prémio ao Norte de África, na boa companhia dos vencedores em cada liceu (ou cidade?). Um deles, João Bosco Mota Amaral, que lá está nas fotos de grupo, inconfundível. O prémio, horror dos horrores, implicava viajar de avião. Nunca pensei abdicar, mas, enquanto podia desistir, o medo dominava cada dia, em angustiante contagem decrescente para a partida, como se fosse ser lançada de foguetão de Cap Canaveral. Porém, dentro do aparelho da TAP, um inato pragmatismo logo veio ao de cima, entreguei-me inteiramente ao gozo das fantásticas vistas aérea de nuvens coloridas e de mar, e, depois, de tudo o que me foi dado ver, em Tânger, Ceuta e Alcácer-Kibir. Curiosamente, ou talvez não, mais difícil de aceitar foi o convite e o diploma do Rotary Clube do Porto! Qualquer organização que não girasse na órbita da igreja ou do regime levantava suspeitas. Ninguém queria eu fosse à sessão do Rotary… Como é óbvio, não desisti e foi feita a minha vontade. Guardo memória já vaga dos salões do “Grande Hotel do Porto, dos discursos, da entrega de diplomas, com palavras de elogio e incentivo para cada um de nós, raparigas e rapazes. O presidente lamentava não poder oferecer-nos um prémio pecuniário condigno, mas para mim bastava a bonita homenagem, a primeira no meu “curriculum”. Imagine-se a surpresa de achar no grande envelope, junto ao diploma, um segundo envelope com quinhentos escudos, que geridos, com cuidado, duraram o verão inteiro, em cinemas e livros. Como talvez temessem os opositores da minha presença na cerimónia, fiquei para sempre simpatizante dos Rotários. Mas, bem vistas as coisas, o turismo histórico-cultural em Marrocos e o jantar solene no Grande Hotel, mais do que um passeio e um convívio, foram apostas ganhas na primeira decisão de risco da minha vida, na teimosia em trocar o certo - o prestigiado colégio privado, com lagos de nenúfares e ginásio completo - pelo incerto, o liceu público, num velho edifício tão degradado, que, às vezes, a caliça do teto tombava, como flocos de neve sobre as nossas cabeças. Nas férias grandes de 1959 ousei outra aventura, uma primeira viagem solitária ao estrangeiro! Hoje, as minhas jovens primas só ganham fama de grandes viajantes, em excursões exóticas à Patagónia, ao Perú, à Indonésia, mas no “meu tempo”, aos 16/17 anos, bastava atravessar a fronteira. O meu projeto de passar um verão inteiro na Inglaterra era coisa muito controversa, jamais vista no círculo familiar. A mãe era a principal opositora, os avós, afligindo-se com os mesmos receios do desconhecido, faziam contracorrente mais discreta, mas o pai pôs-se, inesperadamente, do meu lado. Pesaram na sua apreciação do caso, a conhecida anglofilia, o apoio firme do Padre Leão, sempre consultado quando a dúvida campeava nos espíritos, e o facto da Madre King, minha antiga professora de inglês, providenciar acolhimento londrino num lar de religiosas irlandesas. Os avós de Avintes financiaram a expedição – o bilhete de comboio e a estada no lar por duas semanas, durante as quais as freiras me ajudariam arranjar trabalho temporário, “au pair”. E, assim parti, de mochila às costas, numa manhã de junho, em vésperas de aniversário, ainda com 16 anos. Na ida tive a ótima companhia de uma colega do liceu, a Margarida Losa. Os nossos pais ficaram a acenar-nos, a oito mãos, no cais da estação de São Bento, até o comboio desaparecer no grande túnel. Foi uma viagem longa e lenta até Paris, onde fizemos paragem para conhecer a cidade. Tínhamos reserva no “Grand Hotel St Michel”, da Rue Cujas, onde, com um pouco de sorte, nos cruzaríamos com Maria Lamas num corredor - o que, “hélas”, não aconteceu. Em compensação, encontramos sim uns tios alemães da Margarida, que estavam hospedados num hotel cinco estrelas (o nosso, de “grand” só tinha o nome). Os tios eram um gentil casal de meia-idade, com quem demos magníficos passeios e nos alimentamos em muito bons restaurantes. Ao terceiro dia, continuamos a viagem, até Calais, e atravessamos a Mancha, sem grande agitação marítima, como eu teria preferido. Nunca me tinha visto no alto mar. Sensacional… Em Londres, a Margarida e eu separámo-nos. Ela já tinha destino – a casa de duas velhinhas excêntricas, de quem ela haveria de contar coisas divertidíssimas. Eu segui para o St Catherine’s, onde fiquei até conseguir, através das minhas amáveis hospedeiras, emprego por dois meses, a cuidar (ou descuidar) duas filhas pequenas de um jovem casal de judeus abastados, os Balin. Fui substituir uma competentíssima “nanny” suíça, ausente em gozo de férias. Tal como a Margarida, trouxe “estórias” insólitas para animar serões. Resumindo, direi só que, na Inglaterra, a excêntrica era eu, pelos métodos de lidar com as crianças, que, estranhamente, reagiam muito bem. Os Balin, foram, invariavelmente, pacientes e compreensivos, relevando as minhas muitas insuficientes. Ele, brilhante advogado de barra, quando chegava a casa, ficava “de serviço”, coadjuvando-me. A mulher não saía do sofá, a ver televisão. Incomum, por padrões portugueses. Os judeus, mais do que os outros ingleses passaram para o meu topo de admiração! Tudo visto, tive imensa sorte… de Londres, no verão mais quente de que havia memória, rumamos a Hove, junto a Brighton, onde a tarefa principal de que estava incumbida era levar as crianças à praia. O meu inglês era paupérrimo, e melhorou um pouco, pelo menos ao nível da conversação com uma criança de cinco anos, a Lilian, que me fazia lembrar eu mesma, nessa idade. E, também, com as recomendações de leitura do Sr Balin, que apontavam para Agatha Christie e Somerset Maugham, com o seu inglês perfeito e acessível a principiantes. “The body in the library” foi o meu livro de estreia na língua de Shakespeare. Protagonizado pela deliciosa Miss Marple, que sempre preferi a Poirot. Para o Porto voltei, de facto, sozinha e definitivamente adepta de viagens. Entrei no meu último ano do liceu, sem alteração de uma metodologia vencedora – muita atenção nas aulas, estudo pouco, de “manutenção, mas quotidiano, deixando tempo para ler, ouvir música, deambular pelas ruas do Porto (cujas fascinantes belezas descobri muito antes dos turistas do século XXI), ir ao cinema e conversar à mesa dos cafés. Temas não faltavam, multiplicavam-se as causas que abraçava, a abolição universal da pena de morte, das guerras e ditaduras, da intolerância e do racismo. Andei de luto, de negro total, quando Chessman foi executado. Acompanhava de perto a presidência de Kennedy, as lutas cívicas dos negros americanos, a guerra do Vietnam, tal como os genocídios do passado, vivos na escrita de Virgil Gheorghiu, ou Bernanos... Mas também me permitia ligeireza, em livros, no cinema e na música - policiais da Vampiro, comédias de Doris Day ou Audrey Hepburn, rock and roll, nas festas, em que minha irmã, com a sua beleza e “joie de vivre”, era sempre vedeta. O Colégio da Paz revelava-se alfobre de serões dançantes, longe de portas, evidentemente. Eu era, por imposição paternal, obrigada a acompanhar a Lecas, grande colecionadora de pretendentes, todos mantidos a uma certa distância. No meu caso, eram menos os pretendentes, que aceitava, invariavelmente, como bons amigos. Todos, sem exceção, mostravam a sua dedicação a limpar-me as lentes dos óculos, sempre cobertas de pó. Por trás dessa cortina de poeira, estavam olhos, que eles preferiam ver. Acabaria a namorar (e a casar) com o menos ajustado ao meu feitio e aos meus estereótipos juvenis de marido. Por ele perdi a oportunidade de me divertir mais e melhor em Coimbra, assim como de namorar com o homem mais bonito com quem me cruzei na juventude. Um alemão atípico, de ascendência russa e francesa, com imenso “charme”, que em Portugal tinha um sucesso louco com as portuguesas de qualquer idade e, apesar disso, manteve uma simplicidade inata. Nada lhe subiu à cabeça e integrou-se no Porto às mil maravilhas, futebol incluído. Mais um adepto do FCP no mundo . Coimbra, Direito - porquê Coimbra e porquê Direito? O Porto tinha tudo o que eu queria, menos Faculdades de Direito, ou de Letras. As minhas notas de exame a Letras e Ciências eram equivalentes e eu hesitava entre os dois ramos e, depois entre ciências jurídicas e Germânicas e até entre Coimbra e Lisboa. Dois escritores que pouco terão em comum, jogaram um papel crucial na e eu hesitei na minha opção por Direito e Coimbra: Trindade Coelho e Earl Stanley Gardner. A recriação do mundo de capas negras, velhas tradições, e transgressões criativas do seu “In illo tempore”, apelava ao meu lado lúdico. O meu lado sério levava-me para Direito, com o desejo de ganhar causas perdidas, como Perry Mason conseguia nas páginas dos policiais de Gardner. A realidade, é óbvio, ficou à distância do sonho desfez as miragens: o sistema judicial da América e de Portugal não são comparáveis e sobre a academia do tempo de Trindade e do meu, o mesmo se pode dizer… Porém, de dois equívocos, de inspiração literária, nasceu, por sorte, a escolha certa. Gostava em especial das disciplinas de Direito Civil, mas, foi em Direito Penal que recebi o “Prémio Beleza dos Santos”, “ex aequo” com os meus colegas Manuel Porto e o Joaquim Canotilho. Fiz o estágio de advocacia no Porto, como defensora oficiosa de pequenos larápios ou casais desavindos. A melhor recordação que guardo dessa lúgubre experiência é o convívio tertuliano com dois grandes advogados e ainda melhores pessoas e contadores de histórias extraordinárias e verídicas, à altura das de Trindade Coelho: Artur Santos Siva, pai do banqueiro com o mesmo nome, e Fernando Fonseca, amigo e colega de meu pai no Colégio dos Carvalhos. Por pouco não me fixei na advocacia barra, no escritório dele, mas o convite coincidiu com a chamada do Manel Q., já meu marido, e eu troquei uma trepidante carreira pelo mais remansoso trabalho de gabinete, primeiro, e depois, também, pelo ensino em três universidades, para, por fim, desperdiçar o “know-how” adquirido em Coimbra (e Paris), numa trajetória política de quase três décadas, em que só esporadicamente me cruzava com matéria jurídica… O que dizer da minha Coimbra, 1960/65? Coimbra era, simplesmente, um projeto de estudo, de camaradagem, de tertúlias de café, de afirmação feminina num mundo ainda predominantemente masculino, com o objetivo último de regressar a casa munida da carta de curso dentro de um canudo metálico. Mas acabou por ter mais um, indesejado, ingrediente: romance! Um namoro de cinco longos anos, que, olhado retrospetivamente, limitou horizontes, diversão, convivialidade… e, pela certa, outros romances, menos chatos e obsessivos. Tudo acabou num casamento que, em menos de cinco anos, teve o seu epílogo no, (por muitos), pressagiado divórcio. As incompatibilidades estavam lá, desde o princípio, e foram-se acentuando. Não porque, como na canção de Rui Veloso, não gostássemos da mesma canção. E do mesmo filme, do mesmo livro , até da mesma linha política. O problema estava a montante. No otimismo/fantasia, quiçá ligeireza (dele), no pessimismo ou realismo/pragmatismo (meu). Para o Manel, dois e dois podiam ser cinco ou seis e para mim eram quatro. Um boémio sem emenda, um cábula mais interessado nas atividades cineclubista ou na poesia de Reiner Maria Rilke do que na leitura das sebentas. Eu, chata e rigorosa, tentando sempre, com os pés em terra, levá-lo comigo no cumprimento de metas. O curso dele deu-me mais trabalho do que o meu! No nosso livro de finalistas, escrevi a terminar a gozosa contribuição da praxe: “Nunca ninguém conseguiu tanto, com tão reduzido estudo”. O nosso encontro/desencontro estava escrito nas estrelas. Fomos apresentados no 1º dia de ambos em Coimbra, nos “Gerais”, por uma amiga comum, a Maria Emília Castro Solla, que por ele tinha, como logo me confessou, uma secreta paixoneta. Ao longo do ano, formámos inseparável trio de estudo e conversação, nos bares de Letras ou Farmácia, no Mandarim ou no Tropical, nas ruas da baixa, nos comboios da linha do Norte. Rapidamente entrámos num encadeamento de confidências: o rapaz confidenciou à amiga de praia, (sem pressentir o seu “crush on him”), que gostava de mim; ela, prática e conformada, confidenciava-me as confidências, já no meio de risota; e eu, que não amava ninguém, fazia de conta que não sabia de nada… Um triângulo de guião de cinema, em tom de comédia. Mas quem acabou enredada numa relação indesejada, enquanto a Emília passou a outro… E, no fim do ano, abandonou a velha academia. Faltava-lhe a paciência para minudências jurídicas, foi para o Porto fazer, brilhantemente, o “proficiency” no Instituto inglês, onde ficaria a lecionar por muitos anos. Só eu me sentia genuinamente realizada no universo jurídico coimbrão. O Manel VQ, qualquer que fosse a área de estudo, estaria mais interessado em matérias não curriculares… O pior de Coimbra: Exames, praxe e outras prepotências O pior de tudo: os exames. Não que fossem exclusivo de Coimbra. O meu pavor a exames foi uma constante do meu, aliás, sempre bem-sucedido trajeto escolar e académico. Apesar disso, nunca vi nas estatísticas do passado um bom prognóstico de futuro. O único resultado dececionante não foi um chumbo, mas uma passagem “sem distinção” na oral de 4ª classe, numa hostil escola primária de Vila Nova de Gaia. Caiu-me em sorte uma examinadora republicana, ateia e laica, que devia detestar meninas em uniforme de colégio de freiras, e com quem, espantosamente, me envolvi numa querela jurídico constitucional…. À pergunta. “Quem manda mais, o Presidente da República ou o Presidente do Conselho?”, achei rigoroso responder: “Nem um nem outro. Quem manda mais é Deus”. E não se falou de mais nada, para além da autoridade suprema, a decidir entre Deus, o Marechal Carmona e o Doutor Salazar! Saí furiosa, sem “distinção”, mas inabalável na crença teocrática. Fui levada pela mão de uma Doroteia em estado de choque e, no Sardão, fui recebida como uma mártir da cristandade… Nos males de Coimbra, vem em segundo lugar, a praxe, mais exatamente as praxes abusivas. Apesar de incidirem, sobretudo, na metade masculina daquela “quinta dos animais” orwelliana, sentia-me solidária com os colegas. Para raparigas, que não eram ouvidas nem achadas pelos repúblicos, a praxe era coisa minimalista, limitada praticamente às regras do traje académico, de que eu gostava muito, em especial da capa preta, tão prática e elegante. Dividia, assim, as tradições em boas e más. Condescendia com serenatas, festas da Queima ou latadas, forma benigna de gozação, em que os caloiros fazem de palhaços, mas dando sinais de apreciarem o seu número de circo. Era, no entanto, (e ainda sou), militantemente contra tudo o que se assemelhava a “bulling”. Abominava as trupes que atacavam os caloiros, depois do pôr do sol, (tempo de recolhimento obrigatório para eles, salvo se estivessem sob proteção de uma senhora, que podia bem ser uma caloira...). O castigo mais comum consistia em tesouradas no cabelo, que obrigavam a vítima a rapar o crânio com máquina zero. A proteção era andar de braço dado com uma rapariga. Quantas cabeleiras salvei! Sabia onde os trupistas se escondiam, para o assalto e, com os meus reflexos rápidos, metia o braço no acompanhante. Se fossem vários, optava pelo mais próximo. Não ignorava o rigor do cânone – era o rapaz que devia dar o braço – mas olhava-os salteadores com tal ferocidade, que nunca discutiram o detalhe comigo. Só duas vezes agi em causa própria. Primeiro no Lar das Dominicanas, onde as “doutoras” se arrogavam privilégios de “república” feminina, e onde o jogo de dominação era idêntico,, menos as tesouradas nas cabeleiras. Aguentei uns minutos… quando interpelada, ripostei com um dichote, de igual para igual. Fui mandada calar, rudemente, e saí pela porta fora. Estava expulsa da “república”! Degredo sem conteúdo prático, porque o lar não era mais do que um dormitório, o dia era vivido na faculdade, nas ruas, nos cafés, em ambiente saudavelmente misto. A segunda e última batalha praxística aconteceu “no baile dos finalistas”, a propósito do “dress code”. As fitas dos finalistas só podem ser usadas com traje académico, mas estava, há muito, aberta uma exceção para as “doutoras” poderem levar ao baile a sua pasta de fitas largas, em vestido de gala. Nesse ano, porém, o “Conselho de Veteranos”, um bando de boémios marialvas, impôs o rigor antigo: insígnias só com capa e batina! Com isso pretendiam reservar o uso das insígnias aos machos primitivos! Não hesitei: fui para o baile de capa e o fato preto, com a pasta de fitas vermelhas debaixo do braço. Á entrada, a trupe odiosa trupe de veteranos. quis barrar-me o caminho, tornando óbvio que a guerra dos trajes escondia a guerra dos sexos. Limitei-me a gritar-lhes: “Saiam da frente. Estou trajada a rigor, tenho o direito de entrar com as insígnias”. A muralha de veteranos resistiu, e eu persisti, a minha argumentação jurídica foi ganhando seguidores e dividindo, irremediavelmente, aqueles “polícias de costumes”. O impasse jogava contra eles, ameaçava azedar o ambiente. Era evidente que não ia embora nem me calava. Finalmente, entrei e fui muito felicitada pela teimosia. Estava uma temperatura “de ananases”, como diria Eça, o meu saia e casaco era quente, a saia travada atrapalhava os passes de dança, mas dancei a noite inteira, a brandir as fitas rubras como troféu de guerra… Ser minoria Em Direito, éramos uma minoria de pouco mais de 10% de mulheres, mas reinava a camaradagem, tanto nas salas de aulas, como nas mesas de café. Basta-me folhear o meu livro de curso para o constatar. Dele constam 63 homens e 12 mulheres! Ao desnível estatístico viria a acrescer a diferença de oportunidades que tiveram na vida… Entre elas havia excelentes juristas, mas, das 12 (como os apóstolos), quantas tiveram um papel de mais ou menos relevo nas suas instituições públicas? Já dos 63 foram muitos os que se distinguiram na governação da República (Daniel Proença de Carvalho, Laborinho Lúcio, António Campos, Luís Fontoura, João Padrão…), ou como vozes autorizadas no domínio em que se cruza o Direito com a Política, (Gomes Canotilho, Manuel Porto…), ou nas Letras, (Mário Cláudio ou José Carlos Vasconcelos...). E há, ainda Juízes do Supremo, Procuradores da República, Embaixadores, (caso de João Quintela, meu assíduo parceiro de estudo nas mesas do Tropical). Às mulheres, no setor público, apenas se abriam as carreiras do notariado e das conservatórias No entanto é verdade que convivíamos fraternalmente, juntos estudávamos, discutíamos política, a guerra, o regime, as leis, os costumes. Os costumes iam mudando devagar, mas não as leis, nem o regime, com perseguições cá dentro e, lá longe, as guerras de África. Na política, coisas boas só aconteciam no plano internacional. O meu político mais do que “perfeito” era JF Kennedy, empossado em de 61, quando eu acabava de chegar a Coimbra. Dois anos depois, recebi a notícia do seu assassinato, como se fosse um dileto amigo e mais “Kennedista” me tornei. Acreditava que Bob seria o próximo presidente em sem o segundo assassinato na família, teria sido. Somente o nosso ditador parecia eterno, como o código de Seabra, que consagrava a “capitis diminutio" da mulher em geral e, mais ainda, da mulher casada. Napoleão deu-se mal com a invasão do nosso território, mas não com a invasão do nosso Direito pelos seus códigos reacionários. Se não fosse feminista de infância, teria passado a sê-lo, na faculdade. Estava, porém, em restrita e seleta companhia - a Helena Vaz e poucas mais... Alguns homens, entre eles, o meu namorado, que chegara ao feminismo pela via da literatura, com o seu Ibsen, a sua Heda Gabler…. Nessa década de sessenta portuguesa, era difícil levantar a questão da igualdade de sexos, não estava na ordem do dia. O meu discurso soava a radicalismo e excentricidade, até em meios mais abertos, como o “Graal de teresa Santa Clara Gomes e Maria de Lourdes Pintasilgo. Na década seguinte, foi o que me arrastou para a política, no governo de independentes do Doutor Mota Pinto, que lançou mão de um argumento de peso: “Manuela, se não aceitar o desafio, fica responsável por não haver mulheres neste Governo”. Sendo praticante das minhas convicções, vi-me “subjetivamente obrigada” a aceita em domínio para o qual não me sentia fadada, antes pelo contrário. Embora não pertencesse a nenhum grupo ou clube, exceto o FCP, tinha sido uma vez candidata, pelo Conselho de Repúblicas, a um cargo, que, por inerência, levava à direção da Associação Académica. Já nem da designação exata me recordo. Só me lembro de que o colégio eleitoral era 100% feminino e a derrota provável, porque, em regra, as mulheres votavam à direita (na LIA). De qualquer modo, a derrota deixou-me a convicção de ser uma perdedora nata. Esse não foi, nem de longe o meu pior momento em Coimbra, apenas um incidente sem importância. Tragédia foi, em novembro de 64, a inesperada morte da minha irmã mais nova, tão bonita, alegre e despreocupada. Não se ralava com nada do que me atormentava, testes, exames, notas, doenças (no meu caso, hipotéticas). Chegava do colégio, entrava em casa a cantar com uma voz que se confundia com a de Gal Costa. Adorava dança, música, Adamo, Modugno, Marino Marini, a quem uma tarde, no Porto, pediu um autógrafo, não se ofendendo por ele lhe dirigir um piropo. Vestia-se pelo último figurino, permitia-se um toque de extravagância. Parecia saída de um filme, como o personagem da rosa púrpura do Cairo. À sua passagem nas ruas havia quem parasse a admirar a visão ali materializada. Talvez por ela encarnar a imagem da “joie de vivre”, ninguém acreditava nos diagnósticos médicos de leucemia grave. O súbito desenlace foi um choque tremendo. A mãe atravessou um largo período depressivo, vestida de preto rigoroso por anos. Eu, por meu lado, perdi a fé em todos os mundos –o outro, e este em que vivemos fugazmente. Passei a viver um dia de cada vez,, fazendo o possível, o melhor possível, apenas por feitio, hábito, teimosia - uma dessas coisas ou todas. E sem perder velhas crenças - as terrenas. Alguns anos depois, um dos maravilhosos chefes com quem trabalhei, o brilhante e enciclopédico Doutor António da Silva Leal, haveria de me dizer: “A Manuela é a pessoa menos ambiciosa que eu conheço”. E nem sequer o disse num tom crítico. A fé religiosa perdida foi parcialmente recuperada, muitos anos depois, numa conversa com o Prof. Barbosa de Melo, o único que conseguiu convencer-me de que a fé é compatível com a dúvida, uma constelação de dúvidas. O que não recuperei mais foi a ambição pessoa. Outra coisa me terá mantido na política, não sei bem o quê. Teimosia de mulher a fazer coisas que a tradição reservava a homens? A feminista infantil ainda dentro de mim? A 2 de novembro de 1965, dei por finda a tarefa que ocupara 16 dos meus anos de uma vida: tirar um curso! Era o dia de finados, algumas colegas queriam adiar para o 3 de novembro – o dia do 1º aniversário da morte de Madalena. Não podia suportar a coincidência. Nas fotos da formatura, nos Gerais, ou com a torre em fundo, estamos todos de preto vestidos. Aos rapazes mandava a praxe que lhes estraçalhassem a batina, camisa e mais vestuário, às raparigas, cortavam apenas a gravata. Foi a Helena quem se encarregou do corte simbólico. Já estava casada com o incontornável MVQ – casamento em Agosto, mês azarento, dizia a supersticiosa dona da casa (do quarto) onde morávamos. À despedida deu-me, de presente, um gato amarelo fenomenal. Chamámos-lhe Mandarim, como o café dos nossos estudos. De gato ao colo disse adeus a Coimbra.

segunda-feira, 1 de janeiro de 2024

AUTORETRATO (S) início a de janeiro de 2024

EU… EM BONS BELOS TEMPOS AUTORRETRATO(S) de uma vida em movimento 1 - Infância feliz, quando eu era outra... Olho os meus retratos (muitos!) de menina e dificilmente me reconheço neles. O gosto pelo retrato vem de longe, de tetravós, ao menos na família materna. Meus pais parecem ter passado a juventude de máquina a tiracolo, e, por isso, não faltam imagens de mim, em papel brilhante de bordos rendilhados, na primeira dos quais apareço em forma de embrulho branco, que um casal enlevado partilha nos braços. Estão sentados num banco comprido de jardim, com uma fachada de pedra de cantaria em fundo, e um cão grande, preto e branco, a aproximar-se. É verão, a criança protegida pelo abafo talvez esteja a morrer de calor e vai preferir aragem fresca pelo resto dos meus dias…. Difícil é, de qualquer modo, compor o autorretrato a partir de um sem número de retratos de época, de cada época. Não os que a câmara fixou e estão alinharam em álbuns, mas os que perfizeram um longo percurso de imprevistos. Na verdade, a partir do momento em que terminei a licenciatura de Direito em Coimbra, único plano que tracei e prossegui com determinação, o imprevisto passou a comandar uma vida errante. A minha mais remota recordação é de uma fuga para a liberdade. Passeava em Espinho, entre a multidão estival do vaivém da Avenida 8, que era, então, o centro da vila, conhecida simplesmente como “a avenida”. Ainda em passo incerto, soltei-me da mão que me prendia, e segui sozinha em frente…mas logo o gozo da libertação cedeu ao medo do desconhecido. Guardo na memória imagens surrealistas de uma floresta de pernas muito altas, entre as quais procurava, desesperadamente, os pais… e a lembrança ficou presa nesse momento de angústia, não na felicidade do reencontro. Depois disso, não consigo estabelecer uma cronologia de eventos impactantes. Todos os dias foram iguais, aprazíveis e indistintos. As reminiscências são de lugares e de pessoas – os familiares mais próximos, as suas casas, em especial a “Vila Maria”, o casarão “de brasileiro” onde nasci, em Gondomar. Sei do que mais gostava: de saltos e correrias, de gatos, cães e flores. E do que abominava: os monstruosos laços de seda presos de lado num cabelo loiro, liso e curto e as colheradas de óleo de fígado de bacalhau. Retrospetivamente, acho-me detestável – uma criança turbulenta, irrequieta, precoce. A precocidade é uma perigosa virtude, porque eleva expetativas gerais e, em regra, como o meu caso evidencia, é terreno propício a deceções futuras. Disse a primeira palavra aos sete meses – e não foi “mamã” nem “papá”, mas “Jesus” – “coaching”, paciente e hábil ensinamento da avó Maria. Dei os primeiros passos aos nove meses, ao que consta em corrida, terminada numa queda contra a esquina de um guarda-vestidos – um susto, nada mais. Com um ano de idade comecei a palrar e não me calei mais! Metralhava perguntas, contava histórias invariavelmente inverídicas, e dava largas a inesgotável energia nas mais imaginativas traquinices. Um dos livrinhos que a avó Maria me ofereceu, mal aprendi a ler, foi “Os desastres de Sofia” … “Os desastres de Manuela” não ficavam muito atrás. Nada de novo, na família Aguiar. Marquei a sua década de quarenta do século XX, mas já nos anos vinte e trinta toda e qualquer diabrura acontecida nas escolas e nos clubes de São Cosme de Gondomar era atribuída aos Aguiares. Líderes natos de tropelias que acabavam mal… A tradição de excentricidade vinha de trás, de jovens e de menos jovens, com esse e outros apelidos, e não excecionava mulheres, que poderiam ter servido de inspiração a heroínas de Agustina. Avós extravagantes e formidáveis, também havia do lado paterno, com destaque para a bisavó Quitéria Francisca Pinto, que se tornou figura lendária por cantar ao desafio e jogar varapau em dias de festa popular – poetisa repentista, sempre, e, na velhice, fantástica contadora de histórias antigas. Tenho na ascendência gente das duas margens do Douro, na fronteira com a cidade do Porto, a minha cidade. A norte, a família materna, em Gondomar. A paterna dividia-se entre o sul, (os Dias Moreira, proprietários de terras ribeirinhas em Avintes, rigorosamente em frente a Gramido), e o norte, os Castro Mello/Capella, da Quinta dos Órfãos, na Foz do Sousa. Sobre estes antepassados nada sei. O bisavô João Capella cortou, em definitivo, laços com a família, ao que consta para casar, contrariando a vontade dos pais, com a indómita bisavó Joaquina Gonçalves da Rocha, filha de um boticário de Melres. O século XIX familiar abunda em crónicas de paixões proibidas, romances que parecem ultrapassar a ficção. Quase todos com um “happy end”. Há longínquos avós vindos do Minho, da Galiza, de Trás-os-Montes, e alguns emigrantes de torna-viagem, um trisavô no ramo paterno, um avô no materno, ambos “empresários de sucesso”, como se dizia na era cavaquista. Outros ramos, porém, como o Pereira de França, no qual se entrelaçou o Aguiar (oriundo de Montalegre), tem mais de três séculos de permanência em São Cosme. Também os Ferreira Ramos, ascendentes maternos da avó Maria, são desta terra, com ascendência no reino da Galiza. O pai, Joaquim Mendes Barboza, veio de Paredes para São Cosme, onde foi notário, e onde protagonizou um desses casamentos indesejados pela família da noiva, a indomável e formosíssima Carolina. Razão tinha ela, como a família e todo o Gondomar depressa haviam de reconhecer. Todos estes avoengos se juntam para fazer de mim uma mulher do Norte. No entanto, de qualquer outro ângulo de abordagem deste legado, que não o geográfico, a palavra para o caraterizar é: diversidade! Diversidade de origem, fortuna, mentalidade, ou posições políticas e ideológicas. Invejo os biografados (ou autobiografados), que se reveem num determinado meio social e político, definido e homogéneo. E mais ainda os que se orgulham de trajetórias ascendentes. O meu caso, já o deixei antever, é o inverso. Eu própria fui regredindo, devagarinho, de criança explosiva e cheia de si a adolescente e mulher cheia de dúvidas (sobre si…). O mesmo se diga da família, ao menos, no plano material. Os bisavós, os avós eram empreendedores, fizeram ou aumentaram a fortuna. Depois, as fortunas decaíram, sem ninguém as gastar, em excessos. As gerações seguintes limitaram-se a não acompanhar a mudança dos tempos e das novas maneiras de engendrar lucros e proveitos. Razão de sobra tinha o avô Manuel quando dizia ao filho e, mais tarde, a cada uma das netas: “A única fortuna que quero deixar-te é um curso universitário”. De facto, as terras e as casas herdadas só me dão dores de cabeça, enquanto do curso tirei rendimento suficiente para a vida que quis levar. E ainda tiro, agora sob forma de pensão de reforma. Com este avô, mais dado às artes do que a aventuras empresariais, ator de teatro amador, melómano e cinéfilo, aprendi a amar o cinema, nas “matinés” do Batalha, do Rivoli e do Trindade, e com a avó Maria as viagens, os passeios, o gosto pela poesia. Muito antes de ir para a escola, já cativava audiências, declamando “O melro” de Junqueiro, vate favorito da avó, que era monárquica e muito devota, mas tinha o seu fraco pelo poeta republicano e anticlerical. Pais e avós contribuíram, por igual, para uma infância de boa memória. E, também, os tios e os numerosos primos. Até aos oito anos, vivi, com os pais e a irmã mais nova, Madalena, a Lecas na Villa Maria. Minha mãe, quando casou, não quis sair de “sua” casa, e o pai, jovem com fama de rico, mas pouco proveito, apreciava a economia e o conforto de coabitar com a sogra, de conviver com os divertidos cunhados. Nós, as crianças, gozávamos as delícias de um autêntico paraíso terreal, e a avó prezava companhia no casarão que se fora esvaziando com a partida dos outros filhos. Quase todos moravam por perto. Visitavam-na, assiduamente, em dias e noites de animados convívios, verdadeiras tertúlias políticas, onde mulheres e homens elas terçavam argumentos revestidos de uma camada protetora de fino gozo ou ironia. Ninguém se zangava, nem mudava de campo. Recriavam, em novos contextos, um jogo antigo, num continuado desentendimento entre conservadores e progressistas: monárquicos regeneradores versus republicanos moderados ou revolucionários, a que se sucederam salazaristas contra democratas e, na guerra em que fomos oficialmente neutros, germanófilos e anglófilos. O conflito acabara há anos nos campos de batalha, mas prosseguia nas discussões de Gondomar, que eu olhava como uma partida de ping-pong – modalidade, diga-se, em que minha mãe se distinguia nos campeonatos do colégio, e eu era uma “aselha”. O desporto, ou, mais precisamente, o futebol também tinha ali o seu quinhão de debate, mais na metade masculina, apenas dividida na análise dos lances, porque eram todos portistas, com a exceção única de um tio (o tio Manuel), que, durante os seus estudos de Medicina em Coimbra, se convertera à Académica. Nessas buliçosas discussões, fiz a minha iniciação à política, ao futebol. e à aprendizagem da equivalência das virtudes humanas de quem pensava diversamente. Já então era bastante propensa a dar opiniões, de preferência, tal como minha mãe, contracorrente - ela numa direção e eu em outra. As questões feministas não eram abordadas diretamente. Faltavam ali teóricos do sufragismo, e mulheres em luta por um estatuto profissional (nessa geração só uma prima se formou na Universidade de Coimbra). A única cidadã verdadeiramente interventiva e influente na comunidade era a mais conservadora de todas: a avó Maria, grande defensora dos estereótipos salazaristas da “fada do lar”, militante da “Obra das mães”, e de outras obras beneficentes, a que se dedicou, depois de perder, subitamente, o marido. À tragédia de se ver sozinha, com sete filhos, entre os doze anos e os dois meses de idade, reagiu, voltando-se para a igreja, pelo envolvimento nas atividades da paróquia e da comunidade, e suscitando geral admiração e respeito. Sendo a sua neta preferida, deixei-me, sem dúvida, moldar por ela em quase tudo, da fé católica ao prazer pela leitura de prosa e poesia, mas resisti, eficazmente, à conversão aos seus padrões sexistas do “feminino”. Quando a avó me dizia: “Uma menina não faz isso!” (não trepa às árvores, não anda aos pontapés a uma bola, não entra em briga de rapazes, etc. etc…), eu questionava: “Mas porque não”? Achava-me tão capaz como os meninos de executar todos os atos constantes da sua longa lista de tabus… Sem resposta convincente à minha pergunta, o discurso catequético falhava. Involuntariamente, a avó fez de mim uma ativa feminista, aos cinco ou seis anos de idade. Não perdia uma oportunidade de demonstrar as minhas habilidades no terreno do masculino, e tinha por inesperados aliados os primos, bons companheiros de brincadeiras, e os outros homens da família, pai, avô, tios… Fui incentivada a estudar, sobretudo pelos homens, que acompanhavam os meus passos na escola, com um exagerado entusiasmo, esperando que eu fosse, sempre, a melhor da turma. As mulheres não me desencorajavam, mas não davam à “performance” mesma importância. Eu sentia-me contente por ter nascido rapariga, e ser capaz de rivalizar com os rapazes da mesma idade. E arrastava a irmã e as primas, para a prática de “desportos radicais”, como acrobacias por cima de telhados e das árvores da Vila Maria. O que, aliás, não nos dava galões de precursoras. Na geração anterior, a mãe e as tias faziam o mesmo. Mais longe terei ido ao saltar para (ou dos) estribos de elétricos em andamento, e ao praticar futebol de rua, com garotos da minha idade. É claro que não fui aceite pacificamente, mas consegui entrar em cena, graças à mediação do primo Ernesto, que gozava de invulgar prestígio como goleador. Não o deixei ficar mal…mostrava serviço, compensando a falta de técnica com imensa energia e velocidade. Varria o campo, com ou sem bola, distribuindo encontrões com fartura. No hóquei em campo, jogado com caules de couves, era ainda mais temível, normalmente, acertava na bola e nas pernas do adversário, em simultâneo. O futebol era a minha paixão, mas só aos 9 anos, depois da inauguração das Antas, passei a ser, pela mão do pai, uma frequentadora habitual do estádio. Meninas na bancada, nessa época, eram raridade… Quando digo que não havia feministas na família, quero apenas dizer que não havia teóricas da igualdade de sexos, mas é claro que havia “praticantes” de longa data, ou seja, mulheres mais dadas a mandar do que a obedecer. Antepassadas, que deixaram, mais ainda do que os homens, o seu rasto em histórias insólitas, e aquelas com quem convivia no quotidiano, levaram-me a acreditar, desde criança, na igualdade natural entre os sexos. Do mesmo modo, o meio benigno e convivial em que cresci, a assistir a confrontos civilizados de posições contrastantes, gozando de liberdade de trato com os adultos/aliados, mulheres e homens, sem verdadeiro confinamento no reduto das crianças, terá grandemente influído na forma como, nas outras idades da vida, fui interagindo com amigos e adversários no campo da política, qualquer que fosse o seu lugar na pirâmide hierárquica. Outra certeza é a de que, esse meu passado matricial, fez de mim uma feminista em luta contra preconceitos, mas não contra o outro sexo…

terça-feira, 12 de dezembro de 2023

LECAS OS 80 ANOS

O ANO DE 1964

LECAS - os 80 anos

OS ÚLTIMOS CINCO ANOS - o fim da década de 60, início de 60 Ninguém diria que estava doente (leucemia, então, incurável). Na verdade, o ânimo e o otimismo permitiram-lhe levar uma vida normal até ao último dia, em que já não pode ir ao cinema com a Maria Emília Castro Solla.A Emília que ficou à porta do Batalha, à sua espera. A essa hora já não estava connosco. Sentiu-se mal, ao fim da manhá de 4 de novembro de 1954. Foi e levada pelos bombeiros para a Ordem da Trindade, onde nada puderam fazer. As fotos dão perfeito testemunho de uma vida plenamente vivida.

segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

LECAS - OS 80 ANOS

A Lecas deixou-nos aos 21 anos...já lá vão quase seis décadas. Hoje, 12 de dezembro, faria 80. Não consigo imaginar como seria. Bonita ainda, certamente. Alegre e despreocupada, como sempre foi. E a cantar, com uma voz assombrosa. A guiar, velozmente, um carro grande. Sempre chique e moderníssima. Pronta para toda e qualquer festa, que animaria com as suas gargalhadas ou com as suas canções... Já somos tão poucos, os que nos lembramos dela! Eternamente jovem, com os seus 20 anos... OS anos 40 e 50 - Villa Maria/Gondomar, Espinho. Avintes/Gaia