terça-feira, 7 de novembro de 2023

quinta-feira, 2 de novembro de 2023

AUTORETRATO 18 DE OUT

AUTO RETRATO (S) Em movimento por diversos mundos O mundo da infância Foram felizes os meus primeiros anos. Nunca gostei tanto de mim, nem me senti tão protagonista do meu destino. As qualidades que exibia, procurando e aproveitando todas as oportunidades, eram bastante sobre valorizadas. Num trajeto vivido em plano inclinado, fui perdendo muitas delas, assim como a vontade de as exibir. Agustina - a grande retratista de mulheres do Norte, com algumas das quais várias antepassadas minhas tiveram gritantes sintonias - dizia que nascera adulta e morrera criança. Não é o meu caso. Nasci simplesmente precoce, o que não é tão bom como parece, quando nos vamos “normalizando”, devagarinho, frustrando expetativas gerais, incluindo as próprias. Disse a primeira palavra aos sete meses – e não foi “mamã” nem “papá”, mas “Jesus”. Um conseguimento mais da avó Maria do que meu, pois suponho que, para tanto, terá feito largo uso das suas artes pedagógicas. Dei os primeiros passos aos nove meses, em corrida, terminada numa queda contra a esquina de um guarda-vestidos, que por sorte, não deixou vestígios físicos ou psíquicos. Com um ano de idade comecei a palrar, amealhei vocabulário, e não me calei mais, reclamando palco e atenção geral. Aquele tipo de criança que fatiga os adultos com perguntas. Adorava tudo o que dissesse respeito a carros. Aos quatro, cinco anos, sabia a marca de todo e qualquer automóvel, Os meus tios Lena e David moravam no Porto, na rua Firmeza, que era bem movimentada e. sempre que os visitava, levavam-me às janelas para me apregoar a marca de cada carro que passavam em baixo. Uma paixão que me levou a entrar à socapa no pesado Hilman de meu pai, a sentar-me no lugar do condutor e a copiar os seus gestos, com precisão, baixando o travão de mão com a direita, e colocando a esquerda no volante. Senti o início do movimento, mas só isso. O avó Manuel, por sorte, apercebeu-se da arriscada manobra e imobilizou o carro, ninguém sabe como, numa descida a pique… era um atleta, ou tinha sido na juventude. Aquela sensação brevíssima, mas poderosa ainda perdura! A partir daí, tive de satisfazer a paixão pelo volante em carrinhos de feira, que, sucedâneo ou não, era sempre m prazer. Anos antes, ainda com passada incerta, tinha consumado uma primeira fuga para a liberdade de andar sozinha. Em Espinho, no vaivém da Avenida 8, por entre uma multidão de gente elegante. Soltei-me da mão adulta, que me prendia, corri em frente, mas logo parei. Um susto ver-me numa verdadeira floresta de pernas altas, como ciprestes movediços. Imagem pictórica, surreal e minha primeira recordação de um facto da vida. E de um estado de alma. Tirando estas duas exceções, portava-me muito bem fora de portas… Caso dos passeios de fim de semana, numa fileira de carros de pais, tios e primos, serpenteando por montes e vales a norte do Douro. Minha irmã ficava em casa, eu era presença invariável. Creio que meus pais receavam correr o risco de me deixar para trás, sob a precária vigilância de uma criada (termo com o seu quê de pejorativo hoje, mas não nessa altura). “In itinere”, eu era impecável, só exigia ir no carro da frente – no Citroen do Tio David, (o que morava na Rua Firmeza) que era um “às do volante”. Igualmente fiável era na exibição de talentos, sobretudo em récitas de poesia. Bem antes de ir para a escola primária já entretinha audiências com “O melro” de Junqueiro, um favorito da avó Maria, que era monárquica e insuspeita de anticlericalismo, mas tinha o seu fraco pelo Poeta. Com tudo isto me tornei bastante popular. Achavam-me graça pelo meu lado bom e pelo lado mau, que me colocava no topo da lista das crianças mais terríveis de sempre, até na família materna, com pergaminhos nesse campo. Na geração antecedente (anos 20 e 30 do século passado) todas as pequenas partidas, patifarias imaginativas ocorridas em São Cosme de Gondomar eram atribuídas aos Aguiares. Raramente as autoridades escolares ou outras se enganavam! A tradição vinha de trás, com esse e outros apelidos, e não excecionava as mulheres - as que poderiam ter servido de inspiração a Agustina. Do lado paterno também as havia, com destaque para a bisavó Quitéria Francisca Pinto, poetisa repentista, que cantava ao desafio e jogava varapau em festas populares, atividade certamente interdita à metade feminina. Disfarçava-se de homem, com certeza… Aos 95 anos, ainda fazia caminhadas de quilómetros e relembrava histórias, lengalengas, ou os seus despiques poéticos de juventude, gravados numa prodigiosa memória. Filha de um “brasileiro de torna viagem”, homem de espírito aberto “sob outro céu, outras estrelas”, que era o orgulhoso progenitor de duas mulheres de armas – ela própria e a irmã Esperança. Ambas sobrevivem na minha admiração, por via de confidências de um admirador masculino - o avô Manuel. Que importância terão tido, na minha cabeça de menina irreverente e subversiva, tantos exemplos de combate à fatalidade da submissão feminina? Exemplos que mulheres me ofereciam no dia a dia, mais outros do passado distante, como o de uma mítica antepassada, Alexandra, que fechou a filha a sete chaves, para impedir um casamento indesejado, com noivo (quase de certeza pobre ou ateu, os defeitos que mais vezes levavam à rejeição. Por fim, a sequestrada noiva lá conseguiu esgueirar-se do lar materno pela madrugada, mancomunada com meio mundo, das criadas ao pároco, e foi dar o “sim” no altar. A mãe tirana, ao dar conta da fuga, pouco depois, marchou, para a igreja, tarde demais para interromper a cerimónia, mas, ainda a tempo de apedrejar, em fúria, o cortejo nupcial… No meu tempo, já de belicismo mais contido, continuava a ser normal as esposas terem a última palavra em grandes decisões, com variantes de temperamento e de estilo - a bem-disposta, magrinha e enérgica bisavó Francisca, da qual, aos 3 anos, guardo vaga imagem, a bisavó Joaquina, volumosa e altaneira matrona, que simpatizava muito mais com minha irmã do que comigo, as avós, a mãe e as três manas, com destaque para a sua quase gémea, Glória Doroteia, com quem, no Colégio da Esperança, fazia um dueto memorável. As colegas chamavam-lhes “os galos doidos”… Cresceram formosas, carismáticas e dominadoras, morreram, há pouco tempo, com quase cem anos, ainda cheios de vida. Em que medida o ter convivido com as mulheres da lenda, mais as da minha “entourage”, todas mais dadas a mandar do que a obedecer, me levou a acreditar numa igualdade natural entre os sexos? E que influência terá tido na minha forma de pensar e interagir o meio benigno e tranquilo em que cresci, com uma liberdade de trato com os adultos/aliados, de ambos os géneros, sem verdadeiro confinamento num reduto das crianças? No mínimo, ter-me-á tornado uma feminista em luta contra preconceitos, mas não contra o outro sexo. Nos serões da Villa Maria, verdadeiras tertúlias políticas, elas terçavam, como eles, argumentos sempre revestidos de uma camada protetora de fino gozo, em que era mestre o tio António ou de troça e de galhofa, à Tio Manuel (as mulheres eram, curiosamente, mais veementes, mas pareciam ter menos sentido de humor, exceção feita à avó Maria, que herdara a “verve” dos tios Mandes Barbosa…). Ninguém se zangava, nem mudava de campo. Jogavam, realmente, um jogo antigo, na eterna dialética entre conservadores e progressistas, revivida em novos contextos. Monárquicos regeneradores versus republicanos moderados ou revolucionários, a que se sucederam salazaristas contra democratas e, na guerra em que fomos oficialmente neutros, os germanófilos e os anglófilos. O conflito acabara há anos nos campos de batalha, mas continuava nas discussões de Gondomar, a que eu assistia como se fosse uma partida de ping-pong (desporto em que minha mãe brilhara nos campeonatos do colégio, e eu era uma “aselha”). O futebol também tinha ali o seu quinhão de interesse, mas mais na metade masculina, dividida apenas na análise dos lances, porque eram todos portistas, salvo o tio Manuel - nos seus tempos de estudante de Coimbra virara fanático da Académica. Nessas buliçosas discussões, fiz a minha iniciação à política e ao futebol. e a aprendizagem da equivalência das virtudes humanas de quem pensava tão diversamente. O gosto da convivência com contrários ia a par com a vontade a ter opiniões – coisa a que fui sempre bastante propensa, de preferência, tal como minha mãe navegando contracorrente, embora não na mesma direção política. Porém, o feminismo não se abordava diretamente, faltavam teóricos do sufragismo em Gondomar, assim como mulheres em luta pela carreira profissional. Nessa geração gondomarense só uma prima, a Tininha (Maria Celestina) se formou na Universidade de Coimbra (em Farmácia), mas, paradoxalmente, era uma das menos contestatárias. São, em muitos casos, as mulheres as principais guardiãs da perpetuação dos papéis femininos. A avó Maria, por exemplo, estava perfeitamente alinhada com o Doutor Salazar e os padres de São Cosme. Defendia “à outrance” os estereótipos da fada do lar! Influenciou-me, sem dúvida, em quase tudo, da fé católica ao gosto pela poesia, mas não conseguiu converter-me aos seus padrões sexistas do “feminino” simplesmente porque os achava contrários à realidade. Dizia-me, constantemente: “Uma menina não faz isso” (não trepa às árvores, “não anda aos pontapés a uma bola”, “não entra em briga de rapazes” etc. etc…). Involuntariamente, a avó fez de mim uma ativa feminista aos cinco ou seis anos de idade…. Na verdade, sentia-me tão capaz como os meninos de executar qualquer das atividades constante da sua longa lista de tabus. Porque havia de me manter inerte? Sem resposta à pergunta, o discurso catequético falhou. Não perdi oportunidade de demonstrar as minhas habilidades no terreno de proezas classificado como masculino. E tive por aliados os homens da família, o pai, o avô, os tios e, também, os primos, bons companheiros de brincadeiras. Fui sempre destinada a um futuro profissional. O avô Manuel sentenciava: “a fortuna que quero deixar-te é um curso universitário”. O pai acompanhava os meus passos na escola, esperando sempre que eu fosse a melhor. É certo que nenhuma antepassada me desencorajou de estudar, mas não me parece que dessem à matéria a mesma importância. Com o pai ia ao futebol, a partir dos nove ou dez anos, depois da inauguração, em 1952, do estádio das Antas. Aí vivi as maiores emoções da minha infância, rodeada de homens por todos os lados… as mulheres eram raridade nas bancadas, e as crianças ainda mais. Estava feliz e contente por ter nascido menina, sentia-me igual aos meninos e fazia o possível por o demonstrar, porventura com algum exagero. Arrastava comigo a irmã e primas, para a prática de “desportos radicais”, acrobacias por cima de telhados e nos ramos das árvores da Vila Maria. O que, note-se, não era inédito. As meninas na geração anterior, em especial a minha mãe, uma hábil ginasta, faziam o mesmo. Mais longe fui, porém, ao saltar para (ou dos) estribos de elétricos em andamento, e ao jogar futebol com garotos da rua. De início, eles não queriam uma rapariga na equipa, com o argumenta de que sairia ao primeiro encontrão, numa choradeira. Valeu-me a intervenção de um primo, grande goleador. E não o deixei ficar mal, mostrei serviço, compensando a falta de técnica com energia e velocidade. Varria o campo, com ou sem bola, distribuindo encontrões com fartura. No hóquei em campo, jogado com caules de couves, ainda era mais temível, pois, de preferência, acertava na bola e nas pernas do adversário ao mesmo tempo. Precisava de mostrar no confronto a igual capacidade das meninas. Naturalmente, os meus ídolos eram homens – o toureiro Manuel dos Santos, (só depois, com a compreensão do que era a faina tauromáquica, veio a repulsa e a cruzada anti…), Dias dos Santos, o ciclista de Fânzeres, que encontrava, às vezes, no elétrico de Gondomar para o Porto, e, como não podia deixar de ser, o campeoníssimo Fângio, e, uns anos mais tarde, Dorival Knippel, Jaburu e Monteiro da Costa… Mas nem só de desporto se faziam os meus sonhos. Também ambicionava, por exemplo, desfilar nas procissões de São Cosme vestida de anjinho. E consegui, depois de uma longa batalha em vários atos. Meus jovens pais foram persistentemente contra, talvez porque achassem a ideia muito “kitsch”. Ou a criança inadequada. Foi, por fim, a avó Maria quem me presenteou com um traje completo, lindíssimo, amarelo! E lá fui eu, seraficamente, de asas coloridas, entre anjos de asas brancas, caminhando atrás de pequenos andores nas ruas atapetadas de flores e de folhagem verde…. Esses momentos estão registados em numerosas imagens. Pai e mãe eram amadores de fotografia, nada escapava às suas objetivas (e deram-me, para lhes seguir as pisadas, a minha primeira máquina quando fiz a 4ª classe). Contudo a minha performance como anjo amarelo, que foi perfeita no cortejo processional, não começou bem. Uma das minhas primas, a Inês, inopinadamente, esbofeteou-me. Como era mais pequena do que eu, pediu-me que me baixasse para me dar um beijinho e, em vez disso, deu-me um tabefe rápido e fugiu. E eu corri em perseguição, com as asas a abanar, agarrei-a e, é claro, retribui em dobro a bofetada. Um choque para a serena avó de tais netas…. Ficou ali patente a sabedoria do velho ditado…o hábito não fez o anjo! A cena bélica passou-se nos jardins da casa onde nasci, uma das chamadas “casas de brasileiro”, a Vila Maria, homenagem do avô materno, que era o mais português dos portugueses, a sua lindíssima mulher. Era prática comum nessa época, a avaliar por tantas “villas” de nome feminino, distribuídas pelo mapa do país … Não podia, então, imaginar que estava destinada a trabalhar no terreno das migrações durante mais quatro décadas. Foi sem qualquer espécie de premonição que vivi os primeiros sete anos no ambiente marcado pela aventura brasileira de um avô. O meu paraíso de infância! Uma propriedade grande, constituída pelo casarão de paredes de um tom cor de rosa mediterrânico e venezianas verdes, rigorosamente ao centro do hemiciclo de jardins, com canteiros de rosas, de todas as cores - rosas bem cuidadas, que o mítico avô António muitas vezes levara a exposições. Nas traseiras da casa, o jardim terminava num muro de pedra baixinho, que podia servir de assento para uma conversa, entre abóboras de gila. Aí começava o pomar, a horta, as vinhas, geometricamente desenhadas sobre um largo e compridíssimo retângulo. Não havia palmeiras, nem vestígios de flora tropical, descontado um diospireiro gigante e dois graciosos araçazeiros, de porte arbustivo, mas a “brasilidade” estava bem presente no dia a dia, nas histórias desse querido antepassado, António Carlos Pereira de Aguiar, nas memórias que a sua viúva guardava de uma década passada nos trópicos, o fascinante Rio de Janeiro, de 1910 a 1920. Ouvíamos falar da Rua do Ouvidor, sede da Joalharia Aguiar, das colinas de Santa Teresa, onde moravam numa mansão tranquila, dos passeios na mata da Tijuca, cenário de muitas fotos, das férias de verão austral em Teresópolis, das frequentes travessias festivas do Atlântico, autênticos cruzeiros de luxo, nos modernos vapores. A avó Maria adorava viajar, várias vezes cruzou o oceano em avançado estado de gravidez, para que os filhos nascessem em Gondomar, e regressou com mais um menino nos braços. Nas suas rememorações a aventura da imigração estava nostalgicamente presente, tal como na música, na poesia, em pormenores gastronómicos, o uso corrente da farinha de pau, a farofa, o chá mate quotidiano. E na nacionalidade de origem de alguns dos filhos, que se orgulhavam de ser brasileiros. Até minha mãe, que veio à luz em São Cosme, assim se considerava por ter sido concebida do lado de lá e cruzado o oceano no seio materno. Sem nunca lá ter ido, reencontrava o país do coração na leitura de um Érico Veríssimo, de um Jorge Amado e, mais tarde, nas telenovelas da Globo. A Vila Maria, já só existe na nossa memória. É o éden perdido de várias gerações, um mundo aparte, com as suas fronteiras de granito, muros altos que a cercavam, e nos permitiam no interior total liberdade de movimentos e imaginativas brincadeiras entre cantos e recantos, casas e casinhas - a do forno, a da eira, as pocilgas, (ao longe, de aspeto muito “clean”), o grande “chalet”, pensado para garagem, e os dois mirantes, o da frente, de onde se olhava o Gondomar urbano, ainda com mais transeuntes do que automóveis na rua atravessada, de longe a longe, pelos vagarosos elétricos amarelos da carreira do Porto) e pelos ainda mais remansosos carros de bois. Na outra extremidade, um mirante mais pequeno oferecia a vista panorâmica do Gondomar rural, de casario disperso e campos de cultivo, a lembrar que aquela terra era quase tão famosa por hortas e nabais, como pela sua filigrana e pelo seu famoso Monte Crasto. A letra do hino de Gondomar é da autoria de meu tio bisavô José (José Barbosa Ramos, um dos tios republicanos, que dá nome a uma rua), celebra o monte matricial: “E o nosso Castro frondoso/Erguendo-se, majestoso/, Da terra que lhe foi mãe (…)” Sobre o Monte, que se erguia ali tão perto, o posto de observação ideal era uma varanda ampla, para a qual abriam as portas exteriores envidraçadas da sala de jantar. Não é, de todo, surpreendente que minha mãe, quando casou, em 1941, quisesse permanecer em “sua” casa, e que a avó Maria insistisse em a partilhar com os noivos, pois eram já muitos os quartos vazios e os dois filhos solteiros, que restavam, estavam prestes a partir. Boa solução também para meu pai, um filho único, com fama de rico sem proveito, tendo por certa a modesta remuneração de funcionário júnior da Câmara de Gaia, e por incertas, ocasionais as ajudas paternas. Dava-se bem com a enérgica sogra e com os cunhados - não era homem para implicações, com o seu temperamento comunicativo e bem-humorado. Em 1942 e 1943, chegámos nós, as duas meninas e a fórmula mostrou-se perfeita para os coabitantes, pequenos e grandes. Os outros avós disputavam, naturalmente, a nossa presença. Madalena (Lecas) e eu éramos as suas únicas netas, mas a minha mãe só a custo condescendia em passar com eles fins de semana e férias. A casa era grande, por padrões atuais, e agradável. Da janela do nosso quarto víamos a animada rua 5 de Outubro de um lado e, do outro, telhados em cascata e a larga curva do Douro em tela de fundo. E não podia ser mais divertido o convívio quotidiano com os tios e primos, os Reis, os Marques, que moravam na outra extremidade da rua 5 de outubro, e os Capelas da Gandra. A nossa mãe, do mal o menos, só implicava com os sogros, não com o resto da família avintense. (suponho que aos sogros, sempre acolhedores, não perdoava o terem sido tão próximos da primeira mulher do marido, a inesquecível Celina, vítima, aos 20 anos, da doença fatal do século, nas vésperas da descoberta da cura). Esta era a minha geografia, habitada pela minha gente, por diversas figuras tutelares. Difícil é avaliar quem mais ajudou a formatar a menina rebelde, irrequieta e fantasista, de que me falam crónicas alheias. Oh, como tudo era tão bonito, nessa minha idade! As festas, vindimas em Avintes, Natal, Páscoa em Gondomar…. Uma casa cheia, cumprindo a sua vocação, fazendo a avó sentir-se feliz e realizada, com filhos e netos - muitos, barulhentos, como que saídos de uma comédia italiana… A nossa relação (da Madalena, minha e dos primos da nossa idade) com os adultos não era intimidante, mas próxima, talvez por força daquela amável e complacente matriarca, que se tornara discípula de Montessori - ela que com as filhas fora quase uma Bernarda de Alba… A mais contestatária das quais, minha mãe, Maria Antónia, a quem chamavam Mariazinha, era pequeníssima (um metro e meio), e compensava o défice de estatura, não só sapatos de salto alto, como com exuberância, magnetismo, excentricidade, qualidades inatas, mas também cultivadas. A força dos genes e das narrativas de uma longa lista de avoengos. O historial da família registava esse pendor, tanto do lado Aguiar, como do lado Barbosa e a Mariazinha prezava a herança e fazia gala de todas as suas singularidades. Por exemplo, ter olhos de cores diferentes, um verde, o outro azulado. Foi menina, moça e mulher pouco menos do que indomável e aluna displicente, que se dedicava, em exclusivo, ao que lhe dava gozo –línguas, história, geografia e música. Acima de tudo, música! Era a pianista, a solista em todas as festas do Colégio da Esperança – colégio que detestava, saudosa da liberdade de cirandar na Vila Maria. Sonhou sempre com concertos em grandes palcos, ou com uma carreira de atriz (uma nova Adelina Abranches, uma outra Mirita Casimiro). Impossível saberemos até onde a poderia ter levado o seu talento, porque nunca houve uma oportunidade de o mostrar publicamente. A mamã educava as filhas para o casamento e limitava as suas aprendizagens ao que considerava imprescindível ou compatível com esse objetivo fundamental. O que incluía, para felicidade da Mariazinha, a arte de tocar piano, que se enquadrava, perfeitamente, nos seus cânones de feminilidade. Ela própria adorava música e, por isso, a título excecional. abria as portas da sala de visitas a um namorado (ou “quase namorado” da minha mãe, que viria a fazer nome como pianista, compositor e maestro, Fernando Marques Ribeiro. Mas quando ele convidou a menina a dar um concerto público com ele, a resposta materna foi um não definitivo. A Mariazinha retaliou a seu modo, recusando o tirocínio em prendas domésticas, muito em especial em tudo o que acontecia dentro de uma cozinha.... Foi uma mãe jovem e alegre, sempre pronta a satisfazer os nossos pedidos, lendo livros de contos ou a cantando os fados de Amália, com uma voz poderosa, que conservou afinadíssima até aos quase 100 anos. Os seus gostos musicais eram ecléticos e estendiam-se da paixão por Chopin e Liszt (Chopin mais do que qualquer outro), ao fado, às bandas de música que tocavam nos coretos da terra, e ao folclore minhoto. Entre os seus passatempos favoritos estavam o cinema, as corridas de automóveis, as touradas, os passeios de carro, as excursões de bicicleta, os banhos de mar e de sol, as tertúlias de cafés e esplanadas, os jogos de casino, as palavras cruzadas. E lia infatigavelmente - Eça, Zweig, Maria Archer, Aurora Jardim, (que conheceu de vista, da hora do chá na confeitaria Ateneia, uma mulher lindíssima e chiquérrima, dizia), os brasileiros (Érico Veríssimo, Jorge Amado), e, mais do que todos os outros, Florbela, que ela e as manas tentavam emular em sonetos de amor louco. Música e poesia foram temas de conversa no primeiro encontro com João, seu futuro marido e meu futuro pai, na capela do Monte da Virgem. Ele atraente rapaz, alto e loiro, poeta repentista, como a sua mítica avó Quitéria Francisca, que cantava ao desafio em feiras e romarias. O neto, mais letrado, lia os poetas clássicos, o seu Virgílio em latim (o que muito me haveria de impressionar, quando no liceu aprendia, a custo, os rudimentos dessa língua morta, que na nossa e em outras vai sobrevivendo), tocava violino, (assim-assim…), praticava desportos. Depois de onze anos felizes no Colégio dos Carvalhos, tinha desistido do curso de Letras na universidade de Coimbra para se casar, aos 18 anos, com a belíssima Celina, de quem já falei. Uma “love story”, nas margens do Douro, ela tinha pela frente poucos meses de vida. Morreu de tuberculose. O jovem viúvo voltou a apaixonar-se, aos 22 anos, por outra mulher de perfil algo semelhantes, e, a seus olhos, parecida, pela graça e pela energia, com uma das mais brilhantes estrelas de Hollywood, Paulette Goddard. Mãe e pai, apesar das sintonias literárias, musicais, e outras, tinham temperamentos pouco menos do que opostos. A mãe otimista, aérea, impulsiva, gastadora, o pai discreto, ponderado, (às vezes, a rondar o indeciso), muito dado a preocupar-se com tudo e mais alguma coisa, poupado, quase “forreta”, muito embora, também, muito sociável, comunicativo, apesar de ser ligeiramente gago. Um sonhador cético… Nessa minha primeira idade, era semelhante o ascendente das duas gerações, a dos pais e a dos avós, com quem, todas as contas feitas, passávamos a maior parte do tempo. Eram incansáveis narradores de histórias e ensinaram-me a gostar de ouvir os mais velhos - velhos bem mais novos do que eu sou agora… A avó Olívia era a menos dada a rememorações, preferia pôr-nos a falar de nós ou sobre animais, e partilhava connosco as graças dos seus fabulosos gatos franceses, crias da “Tita”, cujas ninhadas eram disputadíssimas pela vizinhança. Uma avó especialmente generosa nas mesadas. O avó Manuel, seu marido, nos documentos oficiais identificado como “proprietário”, era, como prefiro considera-lo, cinéfilo, ator de teatro (amador do Grupo Mérito Avintense) e melómano - tocava de ouvido música clássica, adorava Tchaikovsky, os fados de Teresa de Noronha, os tangos de Carlos Gardel. Com ele, aos cinco ou seis anos, me iniciei no “vício” do cinema, que nunca havia de perder - operetas, westerns, comédias, nunca filmes infantis - e no ambiente dos cafés portuenses, como o Águia d’ Ouro, ali mesmo em frente ao cinema Batalha, então recém-inaugurado, e já a nossa sala de espetáculos preferida. Ao que consta, eu própria seria o tema favorito de conversa desse avô. Família e amigos tratavam de debandar, se pudessem, quando pressentissem que se preparava para abordar, com infinitos detalhes, os feitos da neta vivaça. Sendo um apaixonado pela rádio, um dos futuros que achava ao alcance da menina faladora era o de locutora ou repórter. “Hélas”, não aconteceria…Em compensação tirei em Coimbra o curso de Direito, que ele tinha falhado por oposição do pai, cuja vontade de lhe entregar a gestão de terras e negócios colidia com sonhos académicos. A avó Maria era, na metade feminina da família, caso único, personalidade conhecida e reconhecida em Gondomar. Ficou, aos 38 anos, viúva com sete filhos, entre os dois meses e os catorze anos. A tragédia da perda marido deixou-a em profunda depressão, da qual saiu pelo conforto da vida religiosa, e pelocrescente envolvimento nas atividades da paróquia e da comunidade - não na política pura e dura universo fechado e masculino, mas no “nicho de mercado” reservado a senhoras de boa reputação – a “Obra das Mães” e outras obras à espera de patrono no campo da cultura ou da beneficência. A líder adormecida na dona de casa emergiu nesse terreno propício. Deixou de ser a filha, mulher, irmã de homens de renome, ao menos local. Doravante, os seus próprios filhos, netos, parentes passariam a ser vistos na relação com ela: os Aguiares. Ao contrário de tantas antepassadas, em que se contava minha mãe, adotara o apelido do marido, reduzindo um nome comprido a “Maria Aguiar”. Mais um dos tributos de perpétua fidelidade ao querido companheiro, a par de outros, como a vestimenta escura, não necessariamente preta. De vez em quando, permitia-se o roxo, sua cor preferida, ou um discreto cinza. E cuidou sempre de manter viva a imagem encantatória de um homem capaz de pensar e de realizar em grande, de gozar a vida a alegria esfusiante e a extrema generosidade que são apanágio dos Aguiares, pelo menos, dos Aguiares ricos. Pai e marido apaixonado, amável personalidade, capaz de fazer bons amigos em qualquer latitude. Bonito homem, com grandes olhos verdes. Sempre, sempre, impecavelmente vestido. E muito “ilustrado”, na adjetivação antiga da avó Maria. A tia-avó Rozaura é outra personagem incomum, com a sua sabedoria de lendas, crenças e ditos populares e o seu interesse travesso por tudo o que havia de pitoresco ou extravagante na história esquecida da família. O oposto da irmã Maria… Pequenina e roliça, discreta, observadora (nada escapava ao seu olhar penetrante de Miss Marple), e muito capaz de exteriorizar um humor conciso, irreverente e cáustico. Duas vezes viúva, sem filhos, era a nossa avó, “ex-aequo” com as outras duas. Na juventude sobreviveu à tuberculose, curada no sanatório do Caramulo, onde, na convalescença, gozou de trepidante vida social com um bonito romance pelo meio. Quem mais traria tão esplêndidas recordações de um (para muitos sinistro) hospital de montanha? A Vila Maria era frequentemente agitada por lúdicos e ruidosos convívios, autênticas tertúlias de debate político ou de “café concerto”. Quase todos, cantavam bem e não faltavam senhoras para tocar piano. Eu era a exceção, nem cantava nem tocava, mas não perdia um momento destas cenas engraçadas, tão divertida com o som da música como com o fragor de acaloradas discussões. Não eram muito diversas, do ponto de vista lúdico, as reuniões do clã paterno. O pai tinha primos, em vez de irmãos, e com eles os debates eram bastante animados, e notoriamente menos centrados na ordem do dia política. Olhando retrospetivamente essas conversas intermináveis, fica-me a impressão de que continuavam sabatinas de juventude, cada qual puxando o debate para o seu campo: Chico, o cineasta, e grande fã de Chaplin, meu pai, o poeta, Corinto, o cómico da companhia, que profissionalmente era um vanguardista arquiteto, e António, o filósofo, bem-falante, músico autodidata, que tocava os clássicos de ouvido, tal como seu tio e meu avô Manuel. A única rapariga era a irmã do António, Maria Angélica. Como menina tivera direito a educação musical, mas, em contrapartida, estava impedida de tirar a carta de condução. Discriminação de género, a que aquela geração já reagia – a Géli, como lhe chamávamos, emprestava o piano ao mano mais velho, ele iniciava-a, secretamente, na condução do carro do pai… Neste meu círculo humano da infância, estritamente familiar, fechado a estranhos, a avó Maria influenciava-me, muito em especial, pela compreensão e cumplicidade. Quantas vezes, escutando, escondida onde não me viam, atrás de uma porta, debaixo de um móvel, a ouvia bradar: “Não sabeis lidar com esta menina! Ela obedece facilmente, mas é preciso explicar-lho o porquê das coisas”. Já então, para mim, obedecer ou não obedecer era coisa a avaliar por critérios de alguma exigência. O mundo da escola Esperei a entrada na escola primária impacientemente -impaciência é um dos meus mais ostensivos defeitos, ainda hoje não atenuado. Por ser nativa de junho, não me matricularam em setembro de 1948, com quase seis anos e meio. Pais havia que, em casos semelhantes, forçavam uma exceção, mas os meus não tinham pressa. Eu sim, queria desvendar os mistérios da escrita e leitura, ascender a um patamar superior. . Aos 7 anos, ainda analfabeta recebi uma espécie de prémio de consolação, um fabuloso presente: uma cachorrinha “pequinois”, oferecida pela prima Géli, que, nessa altura, fazia criação de cães de raça na sua quinta de Avintes. Meses depois entrei, por fim, com enorme entusiasmo na velha escola do Souto, em São Cosme, como se fosse para a escola de bruxaria e magia de Hogwarks... “Entra com o pé direito” recomendaram-me. Sempre confundi as direções, uma incurável disfunção ou dislexia, e, com tanto alvoroço interior por cima daquele distúrbio, troquei os pés, avancei com o esquerdo - uma nuvem de receios a toldar a luminosidade da manhã. Felizmente, a superstição viria a ser infirmada. “Speedy Manuela! Tornei-me, desde a primeira hora, uma boa aluna da simpática professora Dona Aurora, que era amiga da avó Maria. No fim do ano já me convertera em leitora da revista “O Mosquito” e dos livros da condessa de Ségur. Leitura ainda mais fascinante, embora sigilosa, foi a da Bíblia, o Antigo Testamento. Descobri a preciosa Bíblia ao explorar o sótão da casa dos avós de Avintes, entre muitas velharias de menor interesse. Era uma enorme Bíblia, de capa de couro, cheia de lindas iluminuras e ilustrações, que tinha pertencido a um tio bisavô padre (o Padre Manuel Pinto da Silva). As minhas prolongadas visitas ao sótão, por fim, tornaram-me suspeita. Apanhada em flagrante, aconteceu o pior - a obra de arte foi apreendida pela avó Olívia, e, solução radical, oferecida ao abade de Avintes. Não sei se o avô Manuel estivava de acordo, tanto mais que o sacerdote era um seu muito querido tio, mas uma esposa irada não se contraria. Sete décadas depois, o meu desgosto ainda perdura… Com a avó Maria nada de semelhante aconteceu e até escapei incólume a mais merecidas reprimendas. Ia para as aulas, muitas vezes, pendurada nas grades dos carros elétricos amarelos. Tudo era festa! Dentro da sala o meu comportamento era irrepreensível. Aguardava a hora do recreio para criar o pandemónio, junta com a “Arminda do mato”, filha de pequenos larápios. Um dueto de respeito, a “Arminda do mato” e a “Calamity Jane”, como me alcunhariam, 20 anos depois, em Paris, os amigos da “Cité”, que até o álbum de Lucky Luke me ofereceram... (fui, aliás, décadas mais tarde comparada a várias outras personalidades, que nada tinham a ver comigo ou entre si, desde “Catarina de todas as Rússias”, por um ilustre assessor, a “Santinha da Ladeira” pelo José Lello - num programa sobre futebol em que me acusava de defender, exageradamente, Mário Jardel – e Dom Quixote de saias” por Cruz Gomes, jornalista de Toronto…) O meu pior trimestre escolar foi o de início da 2ª classe. Os meus pais, decidiram prolongar a habitual estada de verão em Espinho até ao Natal e matricularam-me na Escola da Rua 23, onde agora funciona a Junta de Freguesia. Detestava a professora e o sentimento era recíproco. Ficou provada a tese da avó Maria: podem levar-me por bem, com incentivos, não com castigos. Quase todos os dias apanhava palmatoadas e toda a espécie sanções e ameaças. E fui sempre de mal a pior. Às terças e sextas, pela manhã, chegava o comboio, que trazia “O Mosquito”, vendido, de seguida, no quiosque da Avenida 8, ao lado da estação do caminho de ferro. Eu comprava o meu exemplar, e caminhava, devagarinho, junto ao gradeamento da Rua 8, a ler as histórias favoritas e só depois entrava na aula, com “O mosquito bem escondido debaixo da camisola. Esperava-me a palmatória, mas o que me importava isso? Felizmente, no 2º trimestre transitei para a Escola do Magarão, em Avintes, e voltei a ser aluna de “quadro de honra”. Nos anos seguintes, a família decidiu elevar socialmente as minhas amizades e fecharam-me num internato de Irmãs Doroteias, a quinta essência do elitismo – o Colégio do Sardão. Um novo mundo fechado por muros altos, hectares de parques e de quinta agrícola. O melhor de tudo eram as esplêndidas estruturas desportivas, um grande ginásio, “court” de ténis, campos de jogos polivalente, rinque de patinagem. E ainda um baloiço com mais de três metros de altura, onde, por sorte, apesar de quase atingirmos a linha horizontal, nunca ninguém se despenhou no fronteiriço lago de patos. A única que, uma vez, calculou mal o salto de saída e caiu entre os patos, a baixa velocidade, foi a Clarinha Menéres, que viria a ser uma grande escultura, mas nunca se distinguiu em exercícios físicos… O melhor dos meus sete anos de Sardão foram, certamente, esses largos espaços para correrias e passeatas. Eu organizava torneios desportivos, incluindo de futebol clandestino. Só fui descoberta uma vez e fui imediatamente chamada ao gabinete da Mestra-Geral, preparada para pesadas sanções, mas ela surpreendeu-me com uma leve admoestação, reiterando a caráter impróprio do futebol feminino, mas terminando assim. “Em todo o caso, como sei que gostas muito de futebol, dou-te autorização para jogares. Só a ti, às outras, não!” Menos sorte tive no campo da escrita. Escrevia peças de teatro, crónicas e romances, que eram muito apreciados pelas colegas, embora sejam coisa para esquecer. O meu melhor foi uma crónica de humor e maldizer sobre o absurdo das “ordenações”, que nos regiam. A obra foi apreendida, quando eu desenvolvia mais um capítulo durante um retiro espiritual (circunstância agravante). Fui logo suspensa, sujeita a processo disciplinar, recambiada para casa, com uma “guia de marcha” em forma de uma longa carta da Madre Superiora - bizarra “nota de culpa”, em que até de ser “comunista” era acusada! Instilaram a dúvida no espírito de meus pais - muito injustificadamente... Como podia eu, que questionava tudo e todos, ser acusada de militar num quadrante e num partido de “obediência”? Nonsense… Em qualquer caso, esperava uma expulsão. Não faltavam precedentes familiares: a Tia Glória Doroteia banida do Colégio da Esperança por delito de opinião semelhante, e o Tio José Augusto, expulso de vários colégios do Porto, com fundamentos muito diversos (um dos quais ter feito explodir o laboratório do colégio). Não seria o meu caso. Ao fim de uma semana, acabei absolvida e reintegrada, sem saber quaisquer pormenores sobre o processo. Nunca me devolveram a crónica supostamente transgressora, que, graças à minha excelente memória juvenil, reescrevi nas férias, até à última virgula…. Estava em vésperas do exame do antigo 5º ano, o 9º atual, e tratei de me concentrar nos estudos. Apesar da barafunda, dispensei da oral às duas secções, Letras e Ciências. Nunca se sabe como os pais reagem a estas coisas, mas, por sorte, os meus estavam felizes com o bom sucesso escolar e furiosos com o Colégio. E, por isso, consegui que me deixassem voltar à escola pública! Acederam em arrendar um andar no Porto, velho sonho meu e da Madalena. Um apartamento na rua Latino Coelho, a dois passos do Marquês de Pombal e do Colégio da Paz e, “last but not least”, do Estádio das Antas. Estávamos, enfim, na nossa cidade grande, cheias de cinemas e cafés, livrarias e lojas de tudo quanto há. A mais inconformada opositora da mudança, era a avó Maria, que, com o humor trocista dos Barbosas, chamava aos prédios de apartamentos “ilhas verticais” … Injusta caricatura de um simpático condomínio de excelente vizinhos. E, como disse, a um quarteirão de distância do Colégio da Paz. Era uma solução de compromisso congeminada pelos meus pais: as irmãs Doroteias, na modalidade de externato. A Lecas adotou a proposta de alma e coração e acho que se integrou num instante. Eu não desisti do liceu, o Rainha Santa, que ficava a milhas. Não me deixei vencer pelo argumento geográfico, nem pelos maus presságios paternos. Em vão, ele agitou os fantasmas da sua experiência pessoal: depois de 10 anos de Colégio convencera os pais a deixá-lo mudar para o Liceu Rodrigues de Freitas. A experiência correu o pior possível… Quando se viu em liberdade, sucumbiu a várias as tentações. Chumbou, fez “mea culpa” e pediu para regressar aos Carvalhos, onde, sem mais percalços, concluiu o liceu. Essa história não foi a minha. Passei dois anos fantásticos no “Rainha”, com ótimas professoras (outra das profecias falhadas de meu pai, que apostava na inferioridade pedagógica do ensino público…). Fui “adotada”, desde a primeira hora, pelo corpo docente e discente. Não me lembro de rivalidades, nem de sabatinas, em que o jesuítico Sardão abundava. E, no que a classificações respeita, bati, para surpresa geral e minha, todos os recordes pessoais. Ganhei o “prémio nacional” no último ano. E, como estávamos em 1960, tempo de comemorações henriquinas, acrescentaram conteúdo turístico à distinção, com uma viagem ao Norte de África. A oferta obrigava-me a viajar de avião. O Porto Lisboa foi o meu voo inaugural. Antes de entrar na nave, enquanto tinha alternativa de desistir, sentia-me dividida e cheia de medo. Quando não tenho mais opção, fico tranquila. Nem faço esforço para isso. É automática a minha pragmática aceitação do “alea jacta est”. Gozei assim intensamente a paisagem aérea de nuvens e de mar. Um outro prémio não oficial foi mais difícil de aceitar: um diploma do Rotary Clube do Porto. Era um tempo em que qualquer organização que não girasse na órbita da igreja ou do regime levantava suspeitas... Apreensivo, o meu ortodoxo pai decidiu pedir conselho ao Padre Leão, e, para meu espanto, até ele, o espírito mais aberto com quem convivi nos meios católicos, se limitou a reforçar as dúvidas que já pairavam sobre o Rotary! Não me convenceram, quis comparecer e foi feita a minha vontade. O convite era extensivo a um acompanhante e o meu pai foi comigo ao jantar do Grande Hotel do Porto. Guardo vaga memória do luminoso salão, das mesas redondas, do desequilíbrio de género, (muito mais homens do que mulheres), dos discursos solenes, e da entrega de diplomas, com palavras de elogio e incentivo para cada um. Recordo, também, o lamento do presidente por não poder oferecer-nos um prémio pecuniário condigno e da surpresa que tivemos, quando, durante a caminhada na Rua Santa Catarina, um colega, mais curioso, se lembrou de vasculhar o largo envelope que protegia o diploma, e descobriu lá dentro um pequeno envelope com notas de banco - quinhentos escudos! Oh, que agradável! Os meus quinhentos, bem geridos, duraram o verão inteiro, em cinemas e livros. E, na verdade, como temiam os opositores da minha presença na cerimónia, a minha especial simpatia pelo Rotary ainda perdura, tão eterna quanto a vida… O passeio a Marrocos e o jantar do Grande Hotel, foram mais do que um passeio e um jantar. Foram prémios ganhos pela minha primeira decisão de risco. Pela teimosia em trocar o certo, o prestigiado colégio privado, com lagos de nenúfares e ginásio completo pelo incerto, o liceu público. num edifício tão degradado, que, às vezes, a caliça do teto tombava como flocos de neve sobre as nossas cabeças. Nas férias grandes de 1959, dei mais um passo de aventureira: a primeira solitária viagem ao estrangeiro. A Londres, via Paris. Parti numa manhã de junho, nas vésperas do 17º aniversário. Para lá, por feliz coincidência, tive a companhia da minha colega do liceu Margarida Losa, que também ia estrear-se como “au pair”. Os nossos pais ficaram a acenar-nos, a oito mãos, do cais de São Bento, quando o comboio se aproximava, lentamente, do grande túnel. Paramos em Paris, pernoitamos no “Grand Hotel St Michel”, da Rue Cujas, com a esperança de encontrar Maria Lamas num corredor. Não tivemos essa sorte. Encontramos sim, uns tios alemães da Margarida, alojados num hotel de luxo O nosso de “grand” só tinha o nome. Os tios eram um casal de meia-idade, com quem demos belos passeios e frequentamos bons restaurantes. Ao terceiro dia, retomamos a viagem de comboio até Calais e atravessamos a Mancha, sem grande agitação marítima. Por umas horas, senti-me num cruzeiro. Adoro barcos, adoro o mar. Em Londres, a Margarida e eu tivemos de nos separar. Ela já tinha destino – a casa de duas velhinhas, que se revelaram excêntricas e de quem ela contava coisas divertidas. Eu ainda passei duas semanas num lar de freiras irlandesas - o St Catherine’s – até encontrar emprego, a cuidar (ou descuidar) duas filhas pequenas de um jovem casal. Era a substituta temporária de uma competentíssima “nanny” suíça, temporariamente ausente em gozo de férias. Tal como a Margarida, trouxe estórias divertidíssimas para animar serões, que não cabem aqui. Resumindo, direi só que ali a excêntrica era eu. Não tinha a mais leve experiência de cuidar crianças, mas, estranhamente, elas gostavam de mim, da minha maneira estranha de lidar com elas. Os pais, os Balin, foram invariavelmente pacientes e gentis comigo, suprindo deficiências. Eram judeus ortodoxos, prósperos e tolerantes, os primeiros que conhecia. Ele, brilhante advogado de barra, sempre que chegava a casa, ficava “de serviço” comigo, para coadjuvar nas tarefas domésticas, em que eu era invulgarmente lenta, para não partir a loiça. A mulher ficava a ver televisão ou a telefonar às amigas. Incomum à época, por padrões portugueses. Achei muito bem! O meu inglês era paupérrimo e a ele devo ao Sr Balin, o conselho que me levou a progredir, a leitura do bom e acessível inglês de escritores como Somerset Maugham e Agatha Christie. Comecei por “The body in the library” e ainda hoje continuo a devorar policiais nessa língua tão prática e expressiva. As crianças deram, também, um contributo útil, sobretudo a mais velha – irritante, é certo, igualzinha ao que eu fora, aos cinco anos de idade. Tudo visto, tive imensa sorte, pois de Londres parti com eles para o sul, para Hove, junto a Brighton, no verão mais quente do século. A minha missão era levar as crianças à praia! Sem Margarida, fiz a viagem de regresso ao Porto, em setembro, já familiarizada com barcos, comboios e metros, a ler L’ auberge de Jamaíque”, a olhar paisagens que desfilavam à minha janela. Para trás ficava o meu primeiro emprego, ameno, mas mal remunerado. Na Inglaterra era tudo caríssimo, malganhava para cinema, teatro e excursões. Apesar disso, quando, à despedida, a simpática Senhora Balin se preparava para me compensar com um suplemento, declinei. Não sei porquê, não me apetecia aceitar dinheiro. Ela ofereceu-me, em troca, um presente, um conjunto de lenços com cãezinhos, que são uma bonita recordação. E, durante algum tempo, escreveu-me a dizer que a Lilian andava a juntar moedas para me visitar no “portuguese”, que era a sua maneira de dizer Portugal. Estava de volta ao Porto. O nosso apartamento era perto de tudo. Íamos a pé aos cinemas, às livrarias, ao estádio das Antas, passeávamos nas ruas cheias de gente e de montras para ver. A sessões de cinema, quase dia sim, dia não. Ia sozinha, ou com a minha irmã, amigas, pais, avô de Avintes. Tudo era perto, menos o liceu. Aproveitando a minha irritação com a professora de alemão, que, na minha ausência em Londres, me tinha dado uma dissonante negativa – a primeira num currículo imaculado - e o facto da lonjura geográfica, meus pais convenceram-me a experimentar o Colégio da Paz. Fui à secretaria do liceu, pedi transferência, e, no dia seguinte, com uma bata emprestada pela Madalena, vi-me em longos corredores sombrios, percorridos por muitos vultos negros - alunas, freiras, padres. Na aula de literatura, encomendaram-me um trabalho sobre a “menina e moça” de Bernardim… Sentia a nostalgia dos corredores “laicos” do Rainha, das minhas amigas. A despedida fora feita entre protestos das professoras, incluindo a de alemão, a mais insistente de todas. E quando eu justifiquei com o fator distância a opção, logo se ofereceu para me dar boleia quotidianamente. Na Paz, resisti três dias, findos os quais visitei a secretaria do liceu, onde era por demais conhecida, dos tempos em que mudara de alínea da alínea de Direito para Germânicas e vice-versa meia dúzia de vezes. A mesma sorridente funcionária nem me deixou falar: “Então, está de regresso? Eu estava à sua espera, ainda não processei o pedido de transferência”. Uma senhora previdente! A professora de alemão, Maria José Navarro, por seu lado, cumpriu a promessa de transporte, e nunca mais se enganou ao dar-me as boas notas a uma língua de que eu particularmente gostava. É certo que era raro chegar a horas, obrigando-nos, a sua filha Raquel e a mim, a bater recordes de velocidade em corredores e escadarias. Ao lado do nosso liceu feminino ficava o masculino, o Alexandre Herculano, mas os contactos eram rigorosamente interditos. Pela minha parte, não ousei. Mesmo sem eles, a Lecas e eu começamos a conhecer os primeiros rapazes fora do círculo dos primos – alguns, por sinal, alunos do “Herculano”. Minha irmã, com a sua formusura, atraia, na linguagem de época, “montes” de fãs, mas raros foram os que chegaram ao estatuto de namorados, um deles, o preferido, bonito rapaz. Eu, para meu espanto, apesar de ser feinha e sem graça, também fui colecionando pretendentes. Porém, como a prioridade eram os estudos, só os aceitava como bons amigos. Todos, sem exceção, mostravam a sua dedicação a limpar-me as lentes dos óculos, sempre cobertas de pó. Por trás dessa cortina de poeira, estavam olhos verdes, que eles queriam ver. Acabaria a namorar (e a casar!) com o menos ajustado ao meu ideal tipo de marido. Mas antes, tive como grande amigo, embora não namorado, um “pen pal” alemão, que veio morar no Porto. Era o homem mais bonito que conheci em toda a vida. E tão simpático! Esse foi o tempo em que abraçava causas. Muitas! A luta contra a pena de morte, a guerra, a xenofobia. Interessava-me mais a política internacional, da Europa e EUA, do que a caseira, onde nada acontecia - o verdadeiro pântano. Fiz luto, de negro vestida, quando Chessman foi executado, levei as minhas colegas a ver o filme de Robert Wise “Eu quero viver”, um libelo contra a pena de morte, assassínio de Estado. Outros filmes como “O Génio do mal” e a “A pousada da 6ª felicidade” eram tema das nossas conversas. E, também, livros … de Virgil Gheorghiu, Camus, Maurois, Bernanos... Mas também me permitia leviandades ou ligeireza - policiais da Vampiro, comédias de Doris Day e Jerry Lewis/Dean Martin e qualquer película menor com os rostos de Audrey Hepburn, Paul Newman, Charlton Heston, Ingrid Bergman… Ouvia os Everly Brothers, dançava o “rock and rol”. Deambulava pelas ruas do Porto, cidade que já então, contracorrente, achava maravilhosa. Descobri-a, assim, muito antes dos turistas do século XXI. Ia às Antas, ver futebol na bancada central, mas estava em pausa forçada na prática do desporto - o ginásio no Liceu virara espaço de salas de aula. Para quem vinha do Sardão, que mais parecia um colégio inglês, era um penoso retrocesso, mas tudo o resto compensava a perda. O pior foram os exames finais, que eu encarava como um jogo de roleta russa. Foi assim desde a primária ao fim de curso. Quando passei ao outro lado da barreira, como examinadora, privilegiei, sempre que possível, a avaliação contínua. Mas no jogo de exames do 7º ano, a sorte esteve comigo, com uma gama de notas que ia do 16 no latim (classificação que o pai, o leitor de Virgílio no original, nunca atingira) a um 20 a história. Coimbra, Direito - porquê Coimbra e porquê Direito? Estava na hora de deixar o Porto, onde não havia Faculdade de Direito, nem de Letras, esta encerrada pela ditadura, em guerra com “monstros sagrados” como Leonardo Coimbra, que foi professor de meu pai na sua breve passagem pelo Liceu Rodrigues de Freitas e, segundo ele, o melhor e mais fascinante dos seus professores. Na minha inicial hesitação entre Ciências Jurídicas e Germânicas e, depois, entre Coimbra e Lisboa, dois escritores que pouco terão de comum, jogaram um papel crucial na opção por CDireito e por Coimbra: Trindade Coelho e Earl Stanley Gardner. Trindade Coelho, no seu “in illo tempore” levou-me a um mundo de transgressão criativa sob a capa negra de velhas tradições, que apelava ao meu lado lúdico. Claro que, em meados do século XX, já nada seria como dantes, mas o que restava ainda guardava a aura de melhores dias. Já o curso de Direito me atraía pelo lado mais sério: ganhar causas perdidas, como Perry Mason conseguia nas páginas dos policiais de Gardner. A realidade desfez as miragens: a distância entre os tribunais da América e de Portugal era ainda maior do que a das épocas de Trindade e a minha, na evolução da academia… Porém, de dois equívocos, de inspiração literária, nasceu a escolha certa. Gostava em especial das disciplinas de Direito Civil, mas, por acaso, até foi em Direito Penal que ganhei o “Prémio Beleza dos Santos”, “ex aequo” com os meus colegas Manuel Porto e o Joaquim Canotilho. O estágio de advocacia, como defensora oficiosa de pequenos larápios ou casais desavindos não me fixou na advocacia barra, que troquei por trabalho de gabinete, e pelo ensino em três universidades, onde também não me fixei, para, por fim, desperdiçar o “know-how” adquirido em Coimbra (e Paris), numa “indiferenciada” trajetória política de quase três décadas O que dizer da minha Coimbra, 1960/65? Para mim, Coimbra era um projeto de estudo, de camaradagem, de tertúlias de café e de regresso ao Porto com uma carta de curso dentro de um canudo metálico. Acabou por ter mais um indesejado ingrediente: romance! Um namoro chato de cinco longos anos, que, olhado retrospetivamente, limitou horizontes, convívios e diversão. E acabou num casamento que, em menos de cinco anos, teve o seu epílogo no pressagiado divórcio. As incompatibilidades foram-se acentuando. Não tinham a ver, como na canção de Rui Veloso, com não gostarmos da mesma canção, do mesmo filme, do mesmo livro. Também não tínhamos divergências no terreno da política, da ideologia, do feminismo. Onde estava, então, o problema. Talvez no (dele) otimismo/fantasia e no (meu) pessimismo/pragmatismo. Digamos que, para o Manel, dois e dois podiam ser cinco ou seis e para mim eram quatro. Um cábula sem emenda, mais interessado nas atividades cineclubista ou na poesia de Reiner Maria Rilke ou na prosa de Proust do que na leitura das sebentas O curso dele deu-me mais trabalho do que o meu… No nosso livro de finalistas, terminei o meu contributo, escrevendo “Nunca ninguém conseguiu tanto, com tão reduzido estudo”. O encontro onde tudo começou parece saído de um livro de ficção, com “amor à primeira vista” (unilateral…). Ele foi o primeiríssimo colega a quem fui apresentada nos “Gerais”, em dia de exames de aptidão à universidade. Eu estava dispensada da prova, mas acompanhei uma futura colega, a Maria Emília Castro Solla, para fazer juntamente com ela a reserva de quarto no Lar das Dominicanas, junto às escadas monumentais. A Maria Emília conhecia-o da Foz, e, embora ele não imaginasse, era, com aquele ar de galã latino, a sua paixão estival. Moreno, mais baixo do que ela (uma mulher alta), bem-falante, podia ser considerado bonito rapaz, mas não fazia, de todo, o meu género - parecia-me snob e incongruentemente vestido, com uma gravata de seda, talvez italiana, a pedir um “blazer” azul e não o blusão de couro preto que escolhera para o ato solene. Ao longo do ano, formámos um trio de estudo e de convivialidade no Tropical, no Mandarim, nos bares de Letras ou Farmácia, nas ruas da baixa, no comboio para o Porto. Logo de início, o Manel confidenciou à amiga de praia que gostava de mim. Ela confidenciava-me as confidências, que eu, na presença dele fazia, naturalmente, de conta que ignorava… um triângulo de guião de cinema, em tom de comédia: Emília amava (até que deixou de amar) Manuel, que amava Manuela, que não amava ninguém-estava noutra onda. A pragmática Emília gozava com tudo e todos, a começar por si própria. Quanto nos rimos, as duas! Mas quem acabou enredada numa relação indesejada fui eu, enquanto ela alargava o círculo de relacionamento com novos amigos, o mais assíduo era um Miguel, rapaz muito alto e esguio, que, suspeito de ligações ao PCP, foi forçado a exilar-se em Genebra, como vários outros colegas (hoje não usa o Miguel e tem nome grande na política, muito acima da mediocridade geral). No fim desse ano, a Maria Emília abandonou a velha academia e voltou a casa. Faltava-lhe a paciência para minudências jurídicas, fez brilhantemente o “proficiency” no Instituto inglês do Porto. Só eu me sentia genuinamente realizada no universo jurídico coimbrão. O Manel VQ, qualquer que fosse a área de estudo, estaria sempre mais “in” em atividades circum-académicas e, em simultâneo, a armar o cerco sentimental à minha pessoa. Olho para trás, e vejo, com meridiana clareza, quanto isso me impediu de viver mais e melhor os meus vinte anos…e a cidade dos estudantes! “Mea culpa”… Por coincidência, todos os meus “quase namorados”, exceto o encantador alemão, eram Manuéis, e todos apresentavam um notável grau de compatibilidade comigo, sendo, como eu, almas menos conturbadas ou complexos (o povo diria “mais “pão, pão, queijo, queijo”), espíritos menos eruditos, frequentadores de estádios de futebol, que o meu futuro marido, depois ex-marido, abominava, dedicando.se a mais finos desportos, como a vela. E reconheço que tinha outras qualidades que me faltavam – por exemplo, “bom feitio” (assim pensava minha mãe, que sempre engraçou com ele). Conclusão: caminhava para o destino de me tornar a primeira mulher divorciada numa família tradicional, que aguentou bem aquele choque de modernidade (hoje, nas gerações seguintes, são já mais os divórcios do que os casamentos muito duradouros). Eu estava, então, na bela cidade de Paris a fazer uma pós-graduação em Sociologia do Direito. Vivia na Casa da Argentina, na cidade universitária, rodeada de colegas argentinos, portugueses e outros. Lembro-me de que uma alemã, conhecedora do ocaso do meu casamento, comentar, muito surpreendida com a minha descontração e bonomia: “Tu encaras o divórcio como uma mulher alemã!”. Eu preferia dizer como uma mulher dos anos sessenta do século XX. Certo é que empre procurei “viver e deixar viver”, e, por isso, mantenho com o “ex” uma relação de antiga colega de curso. Quando, de longe a longe, trocamos emails os temas são filmes, música, leituras, domínios em que continuamos sintonizados. A praxe e outras prepotências O pior de Coimbra: exames e praxes abusivas. Sobre os meus exames, já falei. De pouco valia os resultados serem, em regra, bons, pois não via as estatísticas como prognóstico de futuro. Insucesso relativo foi apenas o exame de 4ª classe, numa escola primária de Gaia. Passei sem distinção, por causa de uma querela teológico-constitucional havida com a examinadora republicana, ateia e laica, que devia detestar colégios de freiras…. Á pergunta. “Quem manda mais, o Presidente da República ou o Presidente do Conselho?”, respondi: “Nem um nem outro. Quem manda mais é Deus”. E não se falou de mais nada, para além da suprema autoridade, a decidir entre Deus, o Marechal Carmona e o Doutor Salazar! (Saí furiosa, sem a esperada “distinção”, mas inabalável na crença teológica, levada pela mão de uma Doroteia muito emocionada, e, no Colégio, fui recebida como uma mártir da cristandade). Quanto aos excessos da praxe, apesar de incidirem, sobretudo, na metade masculina daquele pequeno mundo, nem por isso me chocavam menos. De facto, a praxe para raparigas era coisa minimalista, limitada quase só às regras do traje académico. E eu, habituada ao uniforme do colégio, no dia a dia, fiz largo uso da minha “farda académica”, com a capa preta, que achava tão prática e elegante. Dividia, assim, as tradições em boas e más. Gostava das serenatas, das festas da Queima, e até das latadas, forma benigna de gozação, com os caloiros feitos palhaços, mas parecendo apreciar serem personagens daquele circo. Mas fui, (e ainda sou), militantemente contra tudo o que se assemelhava a “bulling” – sempre solidária com os colegas que caiam nas garras das trupes, depois do pôr do sol, tempo de recolhimento obrigatório dos caloiros, salvo se estivessem sob proteção, por tal se entendendo andar de braço dado com uma senhora - (que podia bem ser uma caloira...puro marialvismo, é claro. Nem por isso desperdicei as oportunidades para proteger colegas. Sabia onde os trupistas se escondiam, para assaltarem caloiros e, com os meus reflexos rápidos, treinados em vários desportos, metia o braço na vítima mais próxima. Não ignorava o rigor do cânone – era o rapaz que devia dar o braço – mas olhava-os salteadores com tal dureza, que jamais se atreveram a discutir o detalhe comigo. E assim salvei muitas cabeleiras das fatais tesouradas, que obrigavam a vítima a meter a máquina zero no cabelo sobrante. No Lar das Dominicanas, onde as “doutoras” se arrogavam privilégios praxísticos de “república” feminina, pude bater-me em causa própria. O jogo de dominação era o mesmo, menos as tesouradas nas cabeleiras femininas. Aguentei apenas uns escassos minutos… quando interpelada, ripostei com um dichote, de igual para igual, fui mandada calar, rudemente, e saí pela porta fora. Estava expulsa da “república”! Um degredo sem conteúdo prático O lar não era mais do que um dormitório para passar a noite, o dia era vivido na faculdade, nas ruas, nos cafés, em ambiente saudavelmente misto. Ou quase. A segunda e última batalha praxística aconteceu no baile dos fitados, a propósito do “dress code”. As fitas dos finalistas só podem ser usadas com traje académico, mas estava, há muito, aberta uma exceção para as raparigas poderem levar ao baile a sua pasta de fitas largas, com vestido de gala. Nesse ano, o Conselho de Veteranos impôs o rigor antigo: usar insígnias só com capa e batina, com o que pretendiam reservar o uso das insígnias a homens! A exceção feminina fui eu, que me apresentei no baile de capa e o fato preto, com a pasta de fitas vermelhas debaixo do braço. Á entrada, uma trupe de veteranos barrou-me o caminho. Jáa suspeitava e ali se confirmou que guerra dos trajes escondia a guerra dos sexos. Limitei-me a gritar-lhes: “Saiam da frente. Estou trajada a rigor, tenho o direito de entrar com as insígnias. A muralha de veteranos resistia, e eu persistia, com argumentação inatacável. Finalmente, entrei e fui muito felicitada pelos mais progressistas. Estava uma temperatura “de ananases”, como diria Eça, o meu saia e casaco era quente, a saia travada atrapalhava os passes de dança, , mas dancei a noite inteira, a brandir as minhas fitas rubras como um troféu de guerra… Mulheres em minoria Em Direito, éramos uma minoria de pouco mais de 10% de raparigas, mas reinava a boa camaradagem, tanto nas salas de aulas, como nas mesas de café. Estudávamos, discutíamos política, a guerra, o regime, as leis, os costumes. Os costumes iam mudando devagar, mas não as leis, o regime com os seus anacronismos, perseguições cá dentro e, lá longe, as guerras de África. Na política, coisas boas só aconteciam no plano internacional. O meu político mais do que “perfeito” era JF Kennedy, empossado em de 61, no meu primeiro ano em Coimbra. Dois anos depois, recebi a notícia do seu assassinato quando ia entrar na casa, onde então morava, junto à penitenciária. Que choque! Só o nosso ditador parecia eterno como o código de Seabra, que consagrava a “capitis diminutio" da mulher, sobretudo da mulher casada. (os códigos da Roma imperial recuperados pelo código de Napoleão e traduzidos para português). Se não fosse feminista de infância, teria passado a sê-lo, na faculdade. Não estava só, mas em restrita companhia - a Helena Vaz e pouco mais... O Manel VQ, também se reclamava da mesma escola de pensamento, chegara ao feminismo pela via da literatura, com os seu Ibsen…. Talvez houvesse mais alguns, mas não me lembro. A meio caminho, estava o reduto do ”sim , mas”, em que eu colocava o Graal encabeçado por Teresa Santa Clara Gomes e Lurdes Pintasilgo. Eu não pertencia a agremiação alguma, com exceção do FCP, mas frequentava-as reuniões do Graal, os debates no CADC…. Era presença útil, dava a minha opinião e todos aproveitavam para se manifestar em contra. Ficou-me na memória, distintamente, apenas o mais irritante dos dogmas: “homem e mulher iguais perante Deus, mas cada qual com a sua função na terra”. Meio século depois, a divisão de trabalhos segundo o sexo, mesmo em tertúlias conservadoras, já não é bem a mesma e o discurso vai acompanhando a prática (ou vice-versa, depende muito co círculo ou da matéria que consideremos…). Nos anos sessenta, era, sobretudo, mais difícil levantar a questão da igualdade de sexos. Não estava na ordem do dia. O meu discurso soava a radicalismo e excentricidade. Curioso, mas não de todo surpreendente: no pós-revolução vi-me ultrapassada pela esquerda , mas o mais inesperado foi mesmo ter sido arrastada para a política pela minha conhecida faceta feminista. O argumento usado era de peso: “Manuela, se não aceitar o desafio, fica responsável por não haver mulheres neste Governo”. Sendo o mais praticante possível das minhas teorias, impunha-se avançar. Éramos tão poucas em profissões jurídicas (e ainda menos na “res publica” masculina…). Basta folhear o meu livro de curso para o constatar. Dele constam 63 homens e 12 mulheres! Ao desnível estatístico viria a acrescer a diferença de oportunidades que tiveram na vida… Entre elas havia excelentes juristas, mas, das 12 (como os apóstolos), quantas tiveram um papel de mais ou menos relevo nas suas instituições públicas? Já dos 63 foram muitos os que se distinguiram na governação da República (Daniel Proença de Carvalho, Laborinho Lúcio, António Campos, Luís Fontoura, João Padrão…), ou como vozes autorizadas no domínio em que se cruza o Direito com a Política, (Gomes Canotilho, Manuel Porto…), ou nas Letras, (Mário Cláudio ou José Carlos Vasconcelos...). E há, ainda Juízes do Supremo, Procuradores da República, Embaixadores, (caso de João Quintela, meu assíduo parceiro de estudo nas mesas do Tropical). Às mulheres, no setor público, apenas se abriam as carreiras do notariado e das conservatórias. Algumas das minhas colegas, como a Helena Vaz, foram brilhantes advogadas. Só, tendo optado pela consultadoria jurídica ou pelo ensino me vi, por acaso e relutantemente, envolvida nos domínios da política. Em matéria de política do que eu gostava era de debates à mesa de café, onde não me faltava entusiasmo e veemência na defesa das minhas ideias - uma social-democrata de mentalidade nórdica, nada e criada no sul da Europa, que não via como implantar o modelo ideal nas águas paradas da ditadura, de longe a longe agitadas por uma pedrada, como foi a crise académica de 62. Num dos anos seguintes, convenceram-me a candidatar-me pelo Conselho de Repúblicas a um cargo, cuja designação exata já não recordo – sei que o colégio eleitoral era 100% feminino e garantia uma “quota mínima” na direção da Associação Académica. A derrota era provável, as mulheres votavam, em regra, à direita, na lista opositora (da LIA). De qualquer modo, o meu insucesso deixou-me a arreigada convicção de ser uma perdedora nata. Boa razão para me manter a leste dos círculos do poder. Outro fator, e mais poderoso ainda, foi a tragédia que, em novembro de 64, se abateu sobre a família: a inesperada morte da minha irmã mais nova. Madalena, 20 anos, alegres e despreocupados. Não se ralava com nada do que me atormentava, testes, exames, notas, doenças ( no meu caso hipotéticas). Quando ela chegava do colégio, entrava em casa a cantar, com uma voz que se confundia com a de Gal Costa. Adorava festas, danças, música, Adamo, Modugno, Marino Marini, a quem uma tarde, no Porto, pediu um autógrafo, não se ofendendo por ele lhe dirigir um piropo. Vestia-se pelo último figurino, às vezes permitia-se um toque de extravagância. Parecia saída de um filme, como o personagem da rosa púrpura do Cairo e, à sua passagem nas ruas havia gente que parava a admirar a visão ali materializada. Quem vagamente sabia que uma de nós tinha problemas de saúde, julgava sempre que era eu – a menina pálida, malvestida e mal penteada... Talvez por ela encarnar a imagem da “joie de vivre”, ninguém acreditava nos diagnósticos médicos de leucemia grave. O súbito desenlace foi um choque tremendo. A mãe atravessou um largo período depressivo, vestida de preto rigoroso por anos. Desde então, mesmo quando ficou viúva, aos 75 anos, fazia apenas o luto da praxe abreviado, retomando os vermelhos ou amarelos passados uns meses. Eu, por meu lado, perdi a fé em todos os mundos –o outro e este em que vivemos fugazmente. A partir daí, mudança radical, ausência de objetivos ou planos. Passei a viver um dia de cada vez. Navegava à bolina, fazendo o possível o melhor possível. Por feitio, hábito, teimosia - uma dessas coisas ou todas. E sem perder velhas crenças - as terrenas. Alguns anos depois, um dos maravilhosos chefes com quem trabalhei, o brilhante e enciclopédico Doutor António da Silva Leal, haveria de me dizer: “A Manuela é a pessoa menos ambiciosa que eu conheço”. E nem sequer o disse num tom crítico. A fé religiosa perdida, (hélas, com grande tristeza!) foi parcialmente recuperada, muitos anos depois, numa conversa com o Prof. Barbosa de Melo. Só ele conseguiu convencer-me de que a fé é compatível com a dúvida ou uma constelação de dúvidas, num terreno movediço, onde padres e bispos, tinham falhado por completo. Mas não recuperei mais a ambição juvenil. O que me manteve na política foi outra coisa. Teimosia de mulher a fazer coisas que a tradição reservava a homens? A feminista infantil ainda dentro de mim? É a explicação mais fácil. Em 2 de novembro de 1965, dei por finda a tarefa que ocupara 16 anos de uma vida que ia nos 23: tirar um curso! Era o dia de finados, algumas colegas queriam adiar para o 3 de novembro – o dia do 1º aniversário da morte de Madalena. Por isso, não pude dar-lhes o meu acordo, por. Nas fotos da formatura, lá estamos todos de preto vestidos, com a torre em fundo, nos gerais, na porta férrea… Aos rapazes mandava a praxe que lhes estraçalhassem a batina, camisa e mais vestuário, às raparigas, cortavam apenas a gravata. Foi a Helena quem se encarregou do corte simbólico. Já estava casada com o incontornável MVQ – casamento em Agosto (mês azarento, segundo as supersticiosas velhinhas do casarão da alta de Coimbra, onde então coabitava). Nos meus cinco anos de curso, nunca repeti uma morada. Na última, num quarto de casal, deram-me, de presente, um gato amarelo fenomenal. Chamava-se Mandarim, como o café dos nossos estudos. De gato ao colo disse adeus a Coimbra. No desemprego A 2 de novembro findara, com sucesso, um projeto escolar e académico começado 16 anos antes, com o pé esquerdo, na escola do Souto, em Gondomar. E estava sem novo projeto definido. Precisava de fazer alguma coisa, qualquer coisa…. Ver-me sem saída profissional tinha a ver com a circunstância de ser mulher. Para os colegas homens a escolha abundava, desde a magistratura à carreira diplomática, interditas ao sexo feminino, com cobertura constitucional – a igualdade de género era proclamada formalmente, com as exceções decorrentes da “natureza feminina”, que justificava todas as desigualdades impostas e praticadas pelos poderes constituídos. Havia, como é óbvio, tanta igualdade quanto democracia!… Vivia com o antigo colega e então marido em casa dos meus pais na rua Latino Coelho, muito perto da igreja do Marquês, onde nos casamos. Tinha escapado a usar um vestido comprido na noite do baile de fim de curso, mas não no dia do casamento, com um modelo de renda de Bruges, linhas sóbrias, com assinatura da costureira portuense Esmeralda. Recusei, sucessivamente, levar um véu a cobrir a cara, a epístola de São Paulo e a adoção do apelido conjugal. O vestido era esplêndido e revelou-se um bom investimento quinze a vinte e tal anos depois, durante os meus cerca de sete anos de Governo. Recebi, nesses quatro mandatos, uma dezena de condecorações, no grau de Grã-Cruz, e a robusta renda de Bruges foi o perfeito material para enfiar os ganchos dos “crachás”, que em tecidos lisos têm de ser presos em ilhós ou diretamente cozidos sobre o tecido, à direita da faixa larga cruzada sobre o peito… A veste cerimonial fora guardada cuidadosamente, como “souvenir”, dentro da sua caixa de papelão, mas envelhecera mal, com algumas manchas de cor amarelada. Tingi-la era a solução – e de preto, a única cor segura, segundo a tinturaria. A superstição popular diz que tingir de preto dá azar ao marido, mas eu estava definitivamente divorciada e ele casado com a nº 2. Ou seja, ao abrigo de qualquer ato meu. Isso aconteceria só na década de oitenta. Em 1966, fazíamos, ambos, o estágio de advocacia e eu preparava uma dissertação sobre acidentes de trabalho, com uma bolsa da Faculdade. Na dúvida de completar ou não a tese, deixava o banco, intocado, o valor da bolsa… O outro estudante da casa era meu Pai, que, em tempos de juventude, desistira do curso universitário e o retomava aos quase cinquenta anos. O que só lhe fez bem. Rejuvenesceu, entre jovens, e, depois de um bacharelato no Instituto de Estudos Sociais, completou a licenciatura em sociologia no ISCTE. Foi indiretamente através dele que cheguei ao primeiro emprego. Estávamos no átrio do Instituto, num grupo de amigos, a quem eu me queixava de estar no desemprego, apesar da minha alta média, ao contrário dos colegas masculinos, formados com notas rasteiras. Nesse momento atravessava o átrio o Secretário –Geral do Instituto, Dr. Carneiro Leão, que ouviu o improvisado “comício” feminista. Não me conhecia, mas ficou atónito, veio ter comigo e disse-me: “Com essa média de curso garanto-lhe uma colocação em menos de oito dias”. Julgo que foi este o minuto em que o imprevisto começou a comandar o resto da minha vida. Fiquei encantada com a solidariedade daquele senhor tão simpático, mas não creio ter conseguido esconder o ceticismo… Três ou quatro dias depois, telefonou-me, para me transmitir o convite do Diretor do Centro de Estudos do Ministério das Corporações e Previdência Social para um lugar de assistente. “Não decida já, estou a procurar alternativas”, insistia, do lado de lá do telefone o fantástico Dr. Carneiro Leão. Aceitei, sem hesitar, embora já não tivesse dúvida de que havia mais opções - nessa época não se desperdiçavam milhões em “outsourcing”, muitos Ministérios criavam o seu próprio corpo de consultores e investigadores. Não me arrependi. E já estava focada na área do trabalho. Devolvi a bolsa da Faculdade de Direito de Coimbra da qual, como disse, não usara um só escudo…. Era, como um dia comentou um dos meus amigos de juventude “uma ingénua com o pé atrás”. Um gabinete na praça de Londres E assim me vi na Praça de Londres, num emblemático edifício de 17 ou 18 andares, então, o mais alto da capital, isto é, do país. O Ministério do Trabalho, chamado “das Corporações” deveria ser a quinta essência do espírito do regime “corporativo” salazarista, mas não, paradoxalmente, era dos mais “arejados”, nomeadamente no campo da emigração, face ao implacável Ministério do Interior. Ainda por cima, o Centro de Estudos era um universo aparte, onde convivia gente de várias correntes políticas. Depois de 74, a maioria dos assistentes iria distribuir-se pelo PSD, PS e CDS, (entre dirigentes, membros de governos, simpatizantes … Sérvulo Correia, Rui Machete, Branca Amaral, Eduardo Costa, Monteiro Fernandes, Santos Ferreira, Fernanda Agria, Nogueira de Brito, Bernardo Lobo Xavier, Carlos Branco…). Mais à direita ou mais à esquerda, no Centro de Estudos antes, como depois da Revolução no país inteiro, só minorias. Tive sempre imensa sorte com os meus chefes! O primeiro o Dr. Cortez Pinto era amabilíssimo e um exemplo de tolerância - jamais sugeriu que alterássemos uma vírgula dos nossos pareceres ou dos artigos para a revista “Estudos Sociais e Corporativos”. Reuníamos com ele uma vez por semana, para distribuir trabalho e fazer o ponto de situação dos nossos compromissos. Apontava tudo num caderninho, em tinta de uma cor raríssima, acastanhada. Às vezes, falhávamos um prazo, com a invariável desculpa “está a dactilografar”, mas na semana seguinte entregávamos o texto do artigo, ou do projeto de lei, ou do parecer. Éramos razoavelmente bem remunerados, sem estatuto de funcionários públicos, num esquema que hoje diríamos de “recibos verdes”. Não havia, naturalmente, “livro de ponto” – o objetivo não era ter os gabinetes ocupados, mas sim obter resultados. O mesmo aconteceu nas sucessivas funções que exerci. Foi preciso ir para a Assembleia da República para saber o que era assinar um livro de ponto... Na verdade, produzia muito mais e muito melhor em casa do que no Centro de Estudos, onde ia consultar bibliografia, trocar impressão, conviver com os colegas. O 2º chefe foi o Professor Silva Leal. A mesma simpatia, outro perfil: o superespecialista, o sábio! E estava lá todos os dias, com o gabinete de portas abertas, pronto a dar-nos orientações, ideias, ou, simplesmente, a conversar sobre questões jurídicas ou quaisquer outras, sobre livros, cinema… Enciclopédico, alegre, divertido e um “gauchiste”, quando comparado ao antecessor. Tenho imensas saudades das gargalhadas, do sentido de humor, da fulgurante inteligência desse alentejano, de ascendência castelhana. O Centro de Estudos funcionava junto à Biblioteca, no 1ºandar, dispensando utilização dos elevadores que tinham fama de avariar. A Biblioteca era moderníssima, parecia saída de um filme de Jacques Tati e a bibliotecária uma senhora extraordinária, que andava sempre elegantemente vestida de roxo, combinado ou não com outras cores. Detestava duas coisas na vida: que as outras mulheres usassem o roxo e que alguém lhe retirasse livros das estantes… Impossível satisfazer este último desejo, todos nós lhe “desarrumávamos a casa”. A Praça de Londres era a minha Lisboa, a minha Broadway, cheia, não de teatros, mas de cinemas, ótimos cinemas, como o Império, o Roma, o Londres, com as suas fantásticas cadeiras hidráulicas, um pouco adiante o Quarteto, o Apollo 70…. Enquanto houvesse um filme para ver na cidade, lá estava eu, a partir das 6h00 da tarde. O cinema não era, porém, a única atração da Praça, com as suas árvores esguias no espaço jardim, lojas, vendedores de rua, restaurantes, confeitarias e cafés famosos, o Londres, a Roma, a Mexicana… O meu preferido era o Londres, onde ia com os colegas ou sozinha, ler “A Bola”. Hoje há um banco no lugar do café e uma loja chinesa no espaço do fantástico cinema das revolucionárias cadeiras que desciam suavemente sob o peso de cada espectador …. O Centro de Estudos deu-me várias oportunidades de concorrer a bolsas para formação no estrangeiro. A primeira foi uma bolsa de estudos do Instituto Internacional de Estudos do Trabalho (OIT, Genebra) para um curso de três meses sobre economia do desenvolvimento. Portugal nunca se tinha candidatado a esses programas. O mais incrível é que, nesse ano da graça de 1968 eu era a única mulher entre trinta e quatro homens, de diversos países da Europa, África e Ásia/Oceânia! Nem no corpo docente havia mulheres! Guardo a foto de grupo como testemunho da discriminação visível a olho nu. O mais interessante desta iniciativa pedagógica da OIT foi a troca de ideias e experiências entre sindicalistas, funcionários públicos, investigadores, e políticos, (os mais graduados dos quais eram o Vice-Ministro do Paquistão, Dr. Rahman, e o Deputado Jimmy Mancham, das Ilhas Seychelles, que, pouco tempo depois, foi, por pouco tempo, Primeiro-Ministro). Seria esse o objetivo principal do curso da OIT? Se foi, nota 20! De facto, do Japão, Tailândia, Índia, Paquistão, ás ilhas do Pacífico, Austrália, Turquia, Nigéria, à Europa de Leste, do Norte e do Sul, cada participante deixou uma imagem de si, da sua comunidade profissional, do seu país. Fiz muitas amizades, com sinal mais para o checo, para todos os paquistaneses, um dos indianos, o russo, o finlandês… O checo Vaclav, investigador sénior, partilhava connosco as esperanças da “primavera de Praga”. O russo, Yuri, professor de um Instituto Internacional, estava a meu lado nas aulas. Estranhei… até descobrir que falava um português impecável – de princípio com pronuncia brasileira, que foi perdendo ao longo dos três meses. Kauko, o finlandês, alardeava, quotidianamente, o seu bom-humor. O Professor Maeda, o representante japonês, era o protótipo do sábio distraído, e um tenaz colecionador de pequenas pedras (para o seu jardim - imagino que, no voo de regresso, tenha pago um monte de francos suíços por excesso de peso). Os paquistaneses eram três – o Ministro Rahman, um jovem universitário, bastante consciente das suas qualidades mentais e físicas (Nasir) e um funcionário, cujo nome esqueci, tão simpático, quanto desajeitado – parecia a versão asiática de Charlot, a começar pela posição dos pés e pelo estado de conservação dos sapatos. Nas últimas semanas do curso começaram a chegar as esposas, que, ao menos em festas e excursões, ajudaram a feminizar o ambiente. Quaisquer familiares eram convidados para a trepidante vida social do Instituto. Foi também o caso da minha prima Maria Eduarda (Docas), que tinha vindo de Luanda passar férias a Genebra. Sendo morena, bonita e a única mulher solteira viu-se cercada de uma corte de admiradores.... De entre as esposas, a minha predileta era Mrs. Rahman, uma muçulmana da alta burguesia, de meia idade, sempre elegante nos seus maravilhosos e coloridos saris. Descobri, com espanto, que conseguia ser tão feminista como eu. O curso foi, assim, uma caixa de surpresas, quase todas boas. Os trabalhos de grupo, em projetos de desenvolvimento simulados em regiões pouco mais do que desconhecidas, os passeios no lago, sky nos Alpes, o torneio de hóquei em patins em Montreux, que Portugal venceu no fim de semana pascal, as excursões a França, onde eu, por ser a única que falava francês, me elegiam como interprete e guia e intérprete. Sobre as minhas capacidades neste, guardo o testemunho de Nasir, depois de um dia passado em Lyon: “Manuela walked, and walked and walked and tired us all”. Creio que as minhas aptidões linguísticas foram melhor reconhecidas e muito sobrevalorizadas. Ainda hoje alguns dos 34 colegas do curso vivem na convicção de que eu falo russo. Yuri e eu éramos infatigáveis conversadores numa língua aparentemente eslava e ele e eu divertimo-nos a manter o equívoco! Ambos do signo “Gémeos”, igualmente extrovertidos, passávamos as aulas a comentar os brilharetes ou os lapsos dos intervenientes, até que um dos professores nos mandou um bilhete: “Interessante o diálogo, mas o devo ouvi-vos, em vez do orador?”. Adotámos, então, o plano B – trocávamos comentários por escrito, continuamente. Guardei essas divertidas notas que estão algures, não sei onde. Não deito nada fora e nunca encontro nada, salvo por puro acaso. Regressada à Praça de Londres, apresentado um volumoso relatório, retomei as felizes rotinas, mas, meses depois, uma nova bolsa para fazer uma pós-graduação em Sociologia do Direito me levaria de novo para fora. Sociologia fora ciência tabu para o Estado Novo, (tal como a coca-cola), mas, naquela reta final do regime, a minha proposta de me especializar nesse campo foi bem acolhida. Iniciei um processo de candidatura a bolsas de estudo para os EUA, fiz os testes de inglês, respondi a entrevistas e fui selecionada. Propuseram-me Northwestern, Evanston , Illinois, uma proposta que eu, levianamente, subestimei. E optei por uma alternativa europeia – uma bolsa da Gulbenkian para Paris. Ter perdido a oportunidade americana foi um erro grave (o único de que me arrependo…). No Illinois tudo estava preparado para me receber, com o plano de estudos e orientador de tese. Para Paris fui “ao Deus dará” e Deus deu-me umas coisas, mas não outras. Uma bolsa Paris Era outubro de 1968. As matrículas para a Sorbonne estavam fechadas! Inscrevi-me na “École Pratique des Hautes Études” (no curso de Alain Touraine), e na novíssima Universidade de Vincennes (com o Prof Hérpin, especialista em sociologia americana) e, depois, na Faculdade de Direito do Instituto Católico de Paris, onde fiz uma pós-graduação (Diplôme d’ Études Supérieures et de Recherche em Droit). Paris foi muito melhor no plano convivial do que do ponto de vista académico. Satisfiz a curiosidade sobre o fenómeno “Mai 68”, “ex post facto”: Excessivamente… não se falava de outra coisa. Vi e ouvi Althusser Bourdieu, Raymond Aron, Touraine, o visionário da sociedade pós-industrial (e o mais charmoso de todos esses profetas parisienses). E conclui que desistir do “sonho americano”, foi coisa mais grave do que desistir, por essa mesma altura, de um marido tão amável, quanto incompatível. É certo que Paris foi uma festa! Não a Paris de Hemingway, mas a que ainda luzia no rasto deixado pela revolta estudantil. Havia CRS’s na rua, armados para assustar, com as suas carrinhas a pintar esquinas de azul marinho…. O ensino emergia do caos, irregularmente. Frequentei cursos avulsos na Sorbonne, em Nanterre e Vincennes- que era a festa, dentro da festa, com confrontos entre clãs adversos, cadeiras partidas e vidros estilhaçados. Face à cauta ausência da polícia, o Partido Comunista, mantinha a ordem, desbancava “gauchistes. Nas salas de aulas reinava a maior diversidade. Umas eram seguidas por multidões apaixonadas, em grandes auditórios (Althusser, por exemplo), outras em pequenas salas tranquilas, à moda antiga - a sociologia americana, com Nicolas Herpin, de longe, o mais convincente dos meus professores de Paris, que é hoje diretor honorário de investigação no CNRS, em cujo site aparece a sorridente, exatamente como o lembro meio século atrás. Sendo pessoa amante de contrastes, à vontade tanto em organizações como em desorganizações, senti-me bem em Paris. Bem demais, como dizem no Brasil. Morei esses dois anos no paradisíaco gueto que era a Cité Universitaire. Em 1968/69 na “Casa de Portugal”, da Fundação Gulbenkian (du coté de Gentlly), onde da janela do meu quarto via a Igreja, que então acolhia a comunidade portuguesa, e o tráfico incessante do “périfherique”. Em 1969/70, na Fundação Argentina, uma antiga mansão de charme, com um quarto voltado para o Blv Jourdan, e um alegre ambiente sul americano. Por coincidência, duas Casas que tinham sido invadidas em maio de 68, por pertencerem a países sob ditadura…. A nossa reabriu a medo, fechada às “conquistas da revolução”, uma das quais era o “Droit d’ affichage”, pilar da liberdade de expressão e de reunião. Ao abrigo desse direito, avançámos, sem pedir licença ao Senhor Diretor, um processo eleitoral, colocando no “placard” de parede uma convocatória e, em simultâneo, a nossa lista concorrente, encabeçada pelo Luís Galvão Teles. O furioso Diretor veio, de imediato, impugná-lo, invocando a ilegalidade da convocatória feita por “uma trintena de residentes”, e repondo a antiga ordem. Não sei como, tão depressa, fizemos perdurável amizade. A partir desse incidente (anti) democrático, fomos rotulados de “católicos progressistas”. Na verdade, uns eram católicos, incluindo dois padres, outros não. E quanto a progressismo, o mesmo se poderia dizer. O que nos unia era simplesmente a amizade, numa vivência de colégio interno. Ainda hoje, quando nos encontrámos em Lisboa, é como se nos reencontrássemos em Paris e tivéssemos, de novo, 20 anos! Depois da eleição repetida e perdida, deixamos campo livre aos “homens do presidente” e passámos a reunir em grandes jantaradas, no salão da cave, equipado com uma boa cozinha. O maior embaraço para o amedrontado Diretor foi a imediata saída do nosso líder, o cineasta Luís Galvão Teles, filho de um importante ministro do governo. Transferiu-se para a Casa da Suíça, que ficava a dois passos, e nunca mais pôs os pés na nossa conturbada “Maison”. Éramos nós que o íamos visitar, ou combinávamos encontro com ele, na Casa Brasil, para um cafezinho. Os nossos serões, ao longo desse ano, foram gozados sem oposição. Comíamos muitíssimo bem, porque não faltavam experientes cozinheiros, e bebíamos o famoso café arménio do Padre Mário Lages, com o pozinho depositado no fundo da chávena. Os menos dotados, como eu, lavavam os pratos. Seguiam-se horas de debates e jogos de mímica. Às vezes, juntavam-se a nós, vindos de fora, o Padre Januário Torgal Ferreira, hoje bispo, e o não menos notável Alfredo de Sousa, o primeiro português que se doutorou na Sorbonne com 20 valores. Um outro conviva, igualmente genial e o mais excêntrico e divertido de todos, era Nadir Afonso. Que pena não ter gravado as conversas!… No ano seguinte, o Diretor tratou de sanear, com uma ampla panóplia de desculpas, a maioria da “trintena de residentes” …. Claro que continuamos a reunir lá, ao serão, aos fins de semana, a toda a hora… Eu fui “desterrada” para a “Fundação da Argentina”, com uma bela vista para o Boulevard Jourdan, enriquecendo imenso a minha experiência parisiense. De facto, vivi em três países, em três comunidades em simultâneo. Todos os dias atravessava fronteiras invisíveis – passando do meu país, entre portugueses, à Argentina, com novos amigos, (num ambiente cosmopolita, cheio de música e de festas com muito tango e vinho tinto) e, à França, durante as aulas e os passeios por Paris. Curiosamente, dessa altura, não recordo o nome dos colegas franceses (mais tarde sim, sobretudo os do Conselho da Europa), mas adorava Paris! O Maestro António Vitorino de Almeida diz sempre “Viena é a minha cidade, mas a Áustria não é o meu país”. Sinto o mesmo, em relação a Paris e à França. A “Cité” era uma ilha dentro de Paris, onde, aparentemente, os franceses estavam submersos na gigantesca vaga multinacional, dispersa em múltiplas residências pertencentes a não sei quantos países, com estilos arquitetónicos, idades e confortos os mais diversos. A nossa, então pertencente à Gulbenkian, era das mais modernas, mas estava longe de ser das melhores. Os estúdios eram um exemplo de aproveitamento máximo de um espaço pequeno, com um divã encostado à parede e encaixado numa estante, e, no lado oposto, uma mesa de trabalho. Nas paredes afixei posters enormes, comprados em St Michel. Kennedys! John, em frente à secretária, Robert, à entrada, seguido de um terceiro de John e Bob, lado a lado! Há poucos anos, Ani Bettencourt, que foi, na década de noventa, minha colega na Assembleia da República, disse-me: “Achava-te muito original, com os teus posters dos Kennedys, em vez do Che Guevara, como toda a gente” Os estúdios eram agradáveis, mas faltava casa de banho privativa, telefone, sistema de som, televisão…. Havia uma única televisão na sala de estar do rés-do-chão, por sinal, pouco frequentada. Eu era uma exceção, sempre atenta aos noticiários. Vi, muitas vezes, serem entrevistados os mediáticos Spínola, cujo monóculo encantava os franceses, e Amílcar Cabral (em entrevistas separadas, como é óbvio). Também vi, praticamente sem companhia, Neil Armstrong a caminhar sobre a lua, e Eddy Merckx a ganhar o “tour”. (Eddy era, com Brel e Hergé, um dos meus heróis belgas…). Quanto a música (eu não posso viver sem música!), tive, pois, de comprar um gira-discos barato e muito prático, com uma tecla de repetição. Quando me deitava, premia essa tecla até adormecer. Durante meses, só com dois discos, um de Barbara (Il pleuvait sur Brest, sans cesse, ce jour lá) e outro de Reggiani (Les loups sont entrés à Paris…). Não sei se a música se ouvia no apartamento do lado – se sim, a colega devia estar farta da chuva de Brest e dos lobos de Paris. E nunca se queixou… Para compensar a pequenez dos estúdios, havia uma sala de convívio em cada andar, mas a luz fechava às duas da manhã, inclusive aos fins de semana. Os nossos jogos de canasta, que se arrastavam pela madrugada, (porque a Eduarda Cruzeiro e eu, sempre em duos concorrentes, nunca queríamos terminar a sessão com uma derrota…), acabavam, por isso, à luz baça das velas… O grupo dos “católicos progressistas” incluía Mário Lages, um dos fundadores da U Católica de Lisboa, os brilhantes engenheiros nucleares, que, num curso altamente seletivo, espantaram os franceses ao ficaram em 1º, 2º e 5º lugar, a Eduarda Cruzeiro, a Adelaide Brandão, entre outros, matemáticos, economistas, sociólogos… Havia tempo para tudo, para o estudo e para o lazer, onde cabiam conversas sérias e lúdicas, idas aos restaurantes do “Quartier”, ao cinema, ao Bobinno e ao Olympia, e até para jogarmos basquete e futebol no estádio da “Cité” (ideia minha, evidentemente). Não sei o que mais terá contribuído - a impetuosidade no campo de jogo ou no jogo de palavras - para que os meus amigos me oferecessem o álbum de banda desenhada “Calamity Jane”. Surpresa…confesso que não me achava merecedora de comparação. Nem sequer gosto de armas de fogo… No meu 2º ano de Paris, alojada na Fundação Argentina, continuei a frequentar os salões coletivos da Casa, como os outros componentes do nosso grupo, em diáspora pelos quatro cantos da Cité . Eu tive imensa sorte - a residência, apesar de muito mais antiga, tinha mais “charme”, quartos espaçosos (com casa de banho) e um ambiente geral esfusiante, quase todos tocavam violão! Caso da filha do Diretor, Mercedes Covian (Morita), estudante de psicologia, e uma verdadeira animadora cultural da “Casa”. Aos sábados, o salão virava pista de dança e até eu, que danço o tango como o Presidente Obama, (desajeitadamente, mas com boa vontade), nunca ficava sentada. Todos contavam histórias incríveis do país amado, de Buenos Aires, onde, segundo eles, havia avenidas muito mais longas do que os Campos Elísios e parques maiores do que os londrinos. Achava-os encantadores, embora um pouco exagerados. Vivi na Argentina extraterritorial e nunca pensei visitar o país da geografia, mas isso aconteceu precisamente dez anos depois E ao atravessar a 9 de julho constatei que, afinal, eles e elas, ao falarem das suas avenidas, só pecavam por modéstia! Que saudades do meu quarto, com janelas voltadas para o Boulevard Jourdan, tão grande que podia convidar colegas a tomar um café à portuguesa, enquanto alguém tocava violão ou ouvia os meus discos, nessa altura uma seleção alargada a Piaf, Brel, Aznavour, Ferré, Brassens, Joan Baez… O que nunca consegui juntar os meus amigos portugueses e sul-americanos. A Cité era formada por muitos espaços estanques. Eu atravessava fronteiras, constantemente, e sentia-me sempre em casa. Talvez os argentinos que conheci, tão simpáticos, tão divertidos, exorcizassem ali os demónios da ditadura. Muitos, em breve, partiriam para o exílio, entre eles, os meus grandes amigos Covian, que se refugiaram em São Paulo. Se cristãos-democratas, verdadeiramente cristãos e democratas, de centro-direita, à Freitas do Amaral, se exilavam, era sinal de que a ditadura deixara cair a máscara, definitivamente. Reencontrei o casal Covian em 1985, num espetáculo de fados de António Bernardino numa associação portuguesa da Gran Buenos Aires. Fiquei a dever a esplêndida surpresa ao Embaixador de Portugal, que, sabendo da nossa amizade, os convidou. Outro dos meus círculos parisienses foi a “Catho”, em ambiente pré maio 68. Eu gostava dessa espécie de “viagem no tempo”, com o simples transpor de um portão de entrada. O traje situava-me, de imediato – professores e estudantes de fato e gravata ou hábito clerical, num cenário e, no outro, homens sem ademanes burgueses, rigorosamente interditos. O discurso era, também, diferenciador: enfoque primordial sobre o maio 68, sim ou não. O “Diplôme d´ Études Supérieures et de Recherche en Droit” da Faculdade de Direito do Instituto Católico, exigiu a aprovação certificada em três cursos de pós-graduação, livremente escolhidos numa longa lista de matérias. Fui feliz na opção por Sociologia do Direito com o Prof Monconduit, o Herpin da Catho. Éramos poucos, muito assíduos, quase todos padres -cinco polacos, outros tantos franceses, e eu, mulher laica. Acabei com um “trés bien”. Em Filosofia do Direito, havia o dobro de estudantes e métodos tradicionais, (testes, exames escritos e orais), mas lá me mantive-me na linha da frente, com um “bien”. No 3º curso, Sociologia e Política, o titular era um padre “três à la mode”, que atraia uma multidão de alunos, ou “fieis”, e entregava a um assistente as “aulas práticas”. Dei-me bem com o assistente, ao longo do ano, mas menos bem no exame final com o grande sociólogo, cujo nome, “hélas”, esqueci. Passei sem louros e com dores de cabeça. Fui do penoso diálogo diretamente um cinema do “Quartier, que funcionava em sessão contínua, e vi “The graduate”, duas vezes. Um guião louco, música nas vozes deliciosas de Simon e Garfunkel. Comédias e de humoristas fazem o meu género, no cinema como na literatura. Em Paris, descobri PG Wodehouse, que logo se tornou o meu escritor predileto. Quem me introduziu no mundo espalhafatosamente caricatural de PG foi (quem diria?) o ilustre etnólogo Mário Lages, poliglota (até arménio falava), melómano, fotógrafo, cozinheiro, condutor de alta velocidade, animador cultural - o português que sabia de tudo, desde as livrarias que faziam descontos a estudantes até à arte de revelar fotografias - num laboratório da “Citè”, onde ensinou um grupo de entusiastas, entre os quais, eu. Mais de meio século depois, as imagens que, sob a luz vermelha, mergulhei nas tinas e retirei, no tempo certo, mantêm toda a nitidez. Em julho de 1970, regressei à pátria, depois de ter comprado um Peugeot 304, que rodei na Bretanha e Normandia. Nos meus dois anos de Paris, perfizera 12 viagens entre Lisboa ou Porto e Paris – nenhuma de avião… Mais imprevistos Estava de volta à Praça de Londres, onde nada parecia ter mudado, exceto na minha vida doméstica. Com a separação judicial de pessoas e bens decretada, e um marido a menos, tinha um novo carro e uma nova casa, arrendada em Benfica, uma governanta, a Maria Póvoas, (excelente cozinheira, uma daquelas preciosas empregadas antigas, que tinha andado com a minha mãe ao colo) e, como ambas gostávamos de animais, uma cachorrinha Serra d’Aires, que comprei no Rossio, a um vendedor de jornais… Chamava-se Endora, em homenagem à minha tia Glória, a quem o genro chamava assim. Quem via a série “Casei com uma feiticeira” perceberá porquê. Certo é que a Endora, depois de ter roído todo o mobiliário com arestas, sem vestígio de danos ao aparelho digestivo, se tornou uma cadela fenomenal, alegre e mansa, embora turbulenta. Ficou célebre o episódio dos cravos. Foi vista a correr no comprido corredor, com um cravo entre os dentes, no início de maio de 74. A Maria Póvoas, que guardava no quarto um outro cravo trazido do túmulo do Padre Cruz, em Benfica, muito inquieta, foi averiguar de onde viera a flor da Endora e voltou sorridente, a informar: “Não foi o cravo do bondoso Padre Cruz, foi o cravo do 25 de abril!”. Assim perdi um “souvenir” de estimação… Poucos meses depois do regresso de França, continuava mais focada nas matérias jurídicas do quotidiano, mas, de repente, os estudos parisienses abriram-me novos horizontes profissionais, a primeira incursão no ensino, como assistente de Sociologia na Universidade Católica. Não seria surpresa se conhecesse o titular da cadeira, Álvaro Melo e Sousa, sociólogo doutorado por Madrid. Era amigo de um amigo… Carlos Branco, meu colega no Centro. Fora o convidado para a regência, mas rejeitara, firmemente, propondo o nome do Doutor Melo e Sousa, que teria sido o seu assistente. Sem nada me confidenciar, recomendou-me para o cargo. Uma dança de cadeiras, que eu não queria dançar. Recebi o telefonema de uma bela voz masculina, e ao convite disse “não”, mas ele insistiu numa conversa face a face – que é a situação em que mais dificuldade experimento para manter respostas negativas. A conversa foi marcada para um sábado à tarde, 15h00, Café Londres. Carlos Branco estava fora. Sugeri, meio a sério, meio, a clássica identificação pela flor na lapela, solução que não despertou entusiasmo da bela voz na outra extremidade do telefone. A minha segunda proposta foi que descrevêssemos as nossas pessoas e vestimenta. Ele retratou-se como “um senhor forte, moreno, de fato escuro”. Eu pus o acento no meu cabelo comprido, liso e claro (um amigo cinéfilo diria à Veronica Lake”, mas eu não disse), nos óculos retangulares e no saia e casaco castanho”. Cheguei cedo, com “A Bola” debaixo do braço e vi um senhor que correspondia, ponto por ponto, ao autorretrato telefónico, mas, como olhei na sua direção e não o vi reagir, tratei de me sentar, tomar café e ler o jornal. Entre as 15h00 e as 15h30 não entrou ninguém, num amplo salão quase vazio. Estranhei…. Chamei um empregado, pequeno e tímido, para pedir mais um café e um favor: “Importa-se de ir perguntar aquele senhor forte se ele é o Dr. Melo e Sousa?” O jovem empalideceu, positivamente estarrecido, e declinou a incumbência, mas o visado, observando discretamente o desaguisado, levantou-se e veio perguntar-me, diretamente: “É a Dr.ª Manuela Aguiar?” No decurso da nossa longa conversa, descobri que, para um espírito científico, um “tweed” bege e castanho, mesmo que esta cor predomine, não é de considerar castanho! Foi a razão do impasse…. No fim, como era previsível, não segurei o “não”. Estava contratada! E nunca me arrependi O Doutor Melo e Sousa era uma simpatia, a turma estimulante, (para alguns docentes, que não para nós, turbulenta), a leitura e análise ainda recentes dos Merton e Talcott Parsons, e outros ensinamentos de Nicolas Hérpin, revelaram-se utilíssimas. Assim transpus um pouco de Vincennes e até da “Catho” de Paria à de Lisboa…. Fez-me muito bem! Era extremamente tímida. Não ousava falar em público sem papel e as aulas foram como que um tirocínio para improvisos perante uma audiência exigente.... Exigente, sim, embora para comigo amistosa (nem todos se podiam vangloriar do mesmo, não faltaram motins, com outras formas de liderança…). Não me deixei nunca incomodar por um ocasional bruaá. Atalhava, prontamente, com um convite: “Falem mais alto! Partilhem a graça connosco”. E eles partilhavam. Eu compreendia os mais contestatários, porque também não aprecio autoridades rígidas. Descobri a minha faceta não só lúdica, como pragmática, com a consciência de que, se quisesse ir pela via autoritária, não tinha recuo. Foi bem mais seguro e agradável manter a ordem sem a impor demasiado, numa fórmula entre aula tradicional e tertúlia didática No fim do ano académico, o meu “patrão” partiu para outras paisagens e eu estava pronta para o segundo convite, que foi ainda mais excêntrico e inopinado. Encontrei numas jornadas sobre emprego, o insigne criminalista Professor Eduardo Correia. Depois do festivo abraço entre antigo professor e antiga aluna, veio logo a pergunta: “A Manuela quer vir dar aulas na Faculdade de Economia de Coimbra?”. Tremendo desacerto da minha parte, responder com uma pergunta estúpida: “Em Coimbra já há uma Faculdade de Economia?”. “Há, há! Eu sou o Diretor”. Fez-se luz no meu espírito sobre a presença de um penalista num colóquio sobre condicionantes do desenvolvimento económico. Só uma aceitação imediata podia atenuar a gafe. Sem hesitação, dei o meu “sim”! Passaria a dividir a semana entre Lisboa e Coimbra…. Era, também, um regresso à Sociologia, como assistente do Prof Boaventura de Sousa Santos. Tomei posse na véspera de um dia histórico, a 24 de abril de 1974! Na semana seguinte, Eduardo Correia era Ministro da Educação do 1ª Governo Provisório, e o maio de 68 chegava, enfim, a Coimbra, com abolição de exames e classificações, e com saneamentos não só de fascistas “latu sensu”, como dos docentes, que se atravessem a retribuir a “chumbo”a ignorância dos estudantes. Com o Doutor Boaventura, não havia limites à criatividade. Os seus assistentes podiam propor novos cursos em sala e extramuros, utilizando, quando preciso, as carrinhas do MFA, que serviam todas as modalidades de educação para a cidadania. Escolhi duas temáticas – sindicalismo e “estudos femininos”. Não sei se nos subúrbios da cidade nos teriam acolhido de braços abertos ou corrido à pedrada. Como o 1º ano foi substituído pelo 12º ano do Liceu, perdi a oportunidade de viver a situação e de me ter tornado a primeira docente de um curso sobre feminismo em Portugal… (anos depois, no MNE, quando me preveniam contra funcionários que tinham participado em “campanhas de mentalização” nas carrinhas do MFA, nunca vi mal nisso – afinal, só por acaso, é que eu não tinha feito o mesmo. No recomeço do ano, em outubro de 74, já eu zarpara da Faculdade de Economia… Novo acaso me levara para a Faculdade de Direito: um providencial encontro com o Doutor Ferrer Correia, à sombra da torre. Ao saber que estava numa Faculdade sem cinco séculos de tradição, aliciou-me para a de Direito. Aceitei tão depressa, e num tom tão ligeiro, que o ilustre catedrático de Direito Internacional ficou na dúvida: “Manuela, eu não estou a brincar! A minha resposta, já com o ar mais grave que se exigia foi “Eu também não!”. Na verdade, estava encantada! O convite para a minha própria Faculdade chegava com uma década de atraso, mas chegava. Em 1965, as mulheres estavam, na prática, barradas do cargo, embora não por impedimento legal. Isso mudara, mas ainda havia poucas, caso da brilhantíssima Isabel Jalles. Fui assistente de dois insignes juristas, Rui Alarcão e Mota Pinto, integrei uma linha de investigação de Direito de Família de Pereira Coelho. Em 1975/76 dei as teóricas de “Introdução ao Estudo de Direito” a salas cheias de "caloiros" muito bem-comportados, ganhando aos pontos, no aspeto disciplinar, à mais agitada burguesia da Católica dos inícios dessa década. Nas aulas práticas de Teoria Geral do Direito, que eram facultativas, nunca me faltou assistência. Contudo, devo confessar que do que mais gostei foi do relacionamento com os voluntários nas aulas de sábado. “Reinava o espírito de voluntariado, o deles, o meu e, igualmente, o da Faculdade de Letras, dirigida Óscar Lopes, que, nesse mesmo espírito, nos cedia o espaço. Eu sei que o trabalho deve ter remuneração justa, e recebi do Estado aquilo a que fazia jus, mas sempre preferi trabalhar “pro bono” …. Não sei porquê, mas sei que tudo me corria melhor. Entre os colegas com quem fiz equipa em Coimbra não havia mulheres, mas eles eram ótimos - o Proença, o Fernando Nogueira, o Cordeiro Tavares…. Sendo todos dez anos mais novos do que eu, ajudaram-me a rejuvenescer. Na música, por exemplo, trocávamos discos dos Pink Floyd, Moody Blues, Alice Cooper, Fairport Convention… Os tempos politica ou socialmente conturbados são-me favoráveis - dei-me bem em Paris, no pós Maio de 68, e fui feliz em Coimbra, no pós 25 de Abril, com licença para fazer coisas diferente, como dar as tais aulas "extramuros" no Porto, ou aulas práticas no bar de Farmácia, ao ar livre, em dias de sol. Saíamos, em cortejo, dos "Gerais", já a falar das matérias, em modo peripatético. Esclarecia dúvidas, primeiro, e, depois, analisávamos o PREC. Os rapazes (em larga maioria, nas minhas aulas práticas) eram de quadrantes ideológicos, que não o meu, mas isso não obstava ao bom relacionamento. O mesmo poderei dizer co convívio em família, com o meu primo José Joaquim, ou Zé Quim, que era bibliotecário da Biblioteca da Universidade – primo direito de minha mãe. Um Barbosa da estirpe revolucionária! No tempo da ditadura pertenceu ao Partido Comunista, e em 74/75 estava no MDP/CDE. Acolheu-me no grande apartamento, onde vivia com a Janice, americana e leitora de inglês na Faculdade de Letras e os filhos dessa união, assim como os do primeiro casamento. Como na cidade, para além de uma ou outra manifestação (marcha de SUV’s, desavenças violentas entre estudantes esquerdistas), nada se passava, víamos a revolução na TV, em boa harmonia, e, por vezes, convergência. Dominava, talvez, o simples bom senso? Isto passava-se nas noites de domingo e 2ª feira, apesar das distâncias ideológicas. A Janice achava que estavam todos loucos… A minha rotina era movimentada, chegava do Porto de comboio, no domingo à noite, dava aulas à 2ª e 3ª e partia à tarde para Lisboa, epicentro de confrontos e demais acontecimentos. Participei na marcha do 1 de maio de 74, com um cravo cor de rosa na mão, entre bandeiras vermelhas, foices e martelos, dos quais tentava desalinhar-me, e, depois, na de 75, numa pequena vaga cor de laranja, dissolvida à pancadaria na Praça do Arieiro, que agora se chama Sá Carneiro, e, então, ainda se via cercada de pequenas hortas, separadas por muros baixos, para onde escaparam, muitas das bandeiras das setas, teimosamente erguidas. Esteticamente, uma cena magnífica para filmar! Não houve mortos nem feridos. A onda laranja reconstitui-se adiante, atravessou as “avenidas novas”, saudada das janelas por uma média burguesia agradavelmente surpreendida, e terminou na Praça José Fontana, num minicomício improvisado, com Rui Machete a encerrar a improvisada marcha de rua. Lisboa oferecia o espetáculo a que o resto do país assistia sentado, face ao pequeno ecrã. A minha itinerância fez-me falhar eventos grandiosos, como o da Alameda Afonso Henriques ou o do Terreiro do Paço (o do célebre “é só fumaça” de Pinheiro de Azevedo). Em marchas menos históricas, fiz quilómetros de ruas atrás do Dr. Soares, sentindo que a democracia avançava com a nossa passada e o eco dado a palavras de ordem, dos quais só evitava o duvidoso brado “partido socialista, partido marxista”. O Dr. Soares não se me afigurava muito marxista, bem pelo contrário. Marxista talvez ainda fosse o primo Zé Quim, embora pelo aspeto, o não parecesse, sempre elegantemente vestido, fumando um glamoroso cachimbo. Um sentido de humor ácido fazia parte do seu “charme”. Janice dizia-me que se os americanos o conhecessem, perderiam o medo dos comunistas. De facto, o Zé era filho de um Juiz Conselheiro do STJ, e de uma senhora de antiga linhagem, a tia avó Celestina, que apresentava notórias semelhanças físicas com Agustina Bessa Luís. Este primo encantador era da idade dos meus pais, mas falávamos como se fossemos da mesma geração. De Coimbra, 1974/76 apenas queria levar boas recordações, não a fatalidade de mudar de vida, a curtíssimo prazo - o que de ficaria a dever, por um lado, ao reatar de relacionamento com amigos que a conjuntura política transformara em atores da fundação do regime democrático, e, por outro lado, à autoconfiança ganha, sobretudo, na regência do curso de “Introdução”. Do ensino à política dei um passo que, como mais tarde constatei, é coisa bastante comum. Na fase em que fui coordenadora de um informal e vago coletivo, intitulado “Mulheres Sociais-democratas”, a convite do presidente Cavaco Silva, nos anos 90, fiz um levantamento do perfil profissional das militantes ativas do partido e vi que, sobretudo a nível local, predominam as professoras.de vários graus de ensino. Abrindo o parêntesis para focar uma das prioridades da minha futura participação política, direi que aquele convite do Prof Cavaco é um na longa lista de imprevistos que foi determinando um trajeto de nomadismo político. Estava nas antípodas do discurso oficial do partido nessa matéria do que noutras – era feminista, como as republicanas do início de século, defendia a adoção de quotas nas listas eleitorais e a institucionalização do movimento das mulheres dentro do partido, a que nenhum líder do PSD havia dado o seu beneplácito. Não podendo introduzir quotas num partido em que só Leonor Beleza e Marcelo e Júdice apoiavam, optei por um sucedâneo - a denúncia da discriminação, através de um “Observatório” das desigualdades. Em tempos houvera uma rede nacional muito bem interligada pela Maria Amélia Oliveira Martins, logo depois destruída pela sucessora. Em Portugal, a nível dos partidos, como a nível dos governos, as rutura são uma constante, e, a meu ver, é essa a mais poderosa razão do nosso atraso no concerto das nações…. Ciente de que tudo o que fizesse, à frente das MSD, teria poucas probabilidades de me sobreviver no cargo, tratei de combinar o projeto partidário com a criação de ONG’s focadas nas questões da igualdade, fora da órbita partidária - . a Associação Ana de Castro Osório arrancou sob a direção das deputadas Ana Bettencourt (PS), e Margarida Silva Pereira (PSD), a Associação das Mulheres Parlamentares com as deputadas Ana Paula Barros (PSD) e a Julieta Sampaio (PS) e a Associação Mulher Migrante (AMM), com a Dr.ª Rita Andrade Gomes, antiga Presidente do Instituto de Emigração e outras. Aderi a todas, não quis ficar na direção de nenhuma… A Associação Ana de Castro Osório começou fulgurantemente, com a organização de um “Congresso Paritário” de deputados que decorreu no Senado e a publicação de um livro de entrevistas: “As Mulheres e as suas causas” (de Maria Barroso a Maria de Lurdes Pintasilgo). A Associação das Mulheres Parlamentares reunia deputadas de todos os partidos – coisa inédita, então, no panorama europeu. Uma pena não ter tido vida longa… Vida longa só teve a AMM, que está prestes a celebrar o 30º aniversário e na qual colaborei ativamente até à morte de Rita Gomes, em 2018. No PREC, em vários ofícios Mais tarde ou mais cedo tinha de sair, porque na Faculdade de Direito, o doutoramento é obra para uma vida inteira. Incitamentos não me faltaram, incluindo de meu pai, mas não era assim que queria passar a minha. Depois de abril 74, o Centro de Estudos e todos os similares, em outros ministérios, acabaram. O antigo Ministério das Corporações e Segurança Social cindiu-se em dois, o do Trabalho e o dos Assuntos Sociais. Optei por este último, onde mandava uma mulher, Maria de Lurdes Pintasilgo. Em funções de assessoria, passei por vários gabinetes, do de Graça Moura ao de Rui Machete. Continuava a dar pareceres, colaborava em projetos de Lei – lembro-me, distintamente, de um, sobre transplantação de órgãos, em que fui ajudada pela experiência de um primo, Mário Caetano Pereira, pioneiro dos transplantes no Hospital de Santo António. A certa altura, já não sei qual governante incumbiu-me de presidir a um grupo de trabalho para a proteção das vítimas dos acidentes de trabalho – na prática, a cobertura pela segurança social, com pagamento imediato de pensões provisórias pelo Estado, tal como já acontecia no caso das doenças profissionais. Há muito eu defendia essa solução! Era dramático deixar as vítimas (ou as famílias) sujeitas às delongas de processos judiciais. Foi o meu primeiro pequeno momento de fama, pois vários jornais destacaram a importância da iniciativa governamental. A comissão a que presidi, integrava cinco membros: a Dr.ª Salomé Silva, o Sr. António Pernão, um funcionário do Ministério das Finanças, de quem fiquei amiga, e um representante do Grémio dos Seguradores. Ou seja, duas mulheres, a encabeçar a lista, e três homens. O despacho é de 10 de dezembro de 1974. Tínhamos 30 dias para apresentar relatório e cumprimos. Nunca tinha presidido a nada…. Funcionei em mesa redonda e os meus companheiros escolheram-me para relatora. No dia seguinte partilhei um longo documento, que não mereceu reparo – só espanto pela milagrosa rapidez com que o apresentei, dactilografado! Não podia dizer-lhes, que era um texto inédito guardado numa gaveta - um artigo, destinado a uma coletânea sobre o 40º ano da criação do INTP, em preparação quando o 25 de abril ocorreu. Tão atual antes como depois do 25 de abril. Limitei-me a cortar, a traço grosso, as esparsas referências ao INTP, tornando-as totalmente ilegíveis. Os parceiros do lado, mostravam-se intrigados, com os espaços riscados, mas não fizeram perguntas. A unanimidade foi dada de imediato. Unanimidade era o que não havia noutro projeto em que, por essa altura, participava com todo o entusiasmo: a linha de investigação de Direito de Família. Acabar com a “capitis diminutio” da mulher, em particular da mulher casada, era da maior das prioridades. No conjunto das reformas, havia consenso, mas não por exemplo, no que respeita à adoção pela esposa dos apelidos dos maridos. A minha proposta de que não houvesse qualquer alteração do nome dos cônjuges, ou, em alternativa, a adoção de um nome de família. livremente adotado pelo casal, foi recebida jocosamente! O Doutor Pereira Coelho e o Fernando Nogueira eram os mais divertidos, a fazerem composições dos seus apelidos com a das suas esposas… A minha ideia não fez vencimento e, neste aspeto, ficou tudo na mesma: a mulher com a tradicional possibilidade de manter o nome inalterável (como eu fizera e, antes de mim, mãe e muitas antepassadas) e o marido passou a poder adotar o nome da mulher. Na prática, meio século depois, são, ainda, raríssimos os que que ousam essa adoção, muitíssimos os que a impõem às noivas. E, quando o casal vai pela norma igualitária, fica com a ordem dos apelidos invertida. Eu tinha razão!... Apesar de gostar tanto de Coimbra, chegara a hora das segunda e última despedida, no final do 1º semestre, em que regi o curso de “Introdução ao Estudo de Direito”, substituindo o Doutor Rui Alarcão, entregue às suas funções de Diretor da Faculdade de Direito. Preparava-me para começar o novo período como assistente do Doutor Mota Pinto em “Teoria Geral do Direito”, uma das minhas matérias preferidas. Num e noutro caso, fazia equipa com Fernando Nogueira, com quem me entendia “às mil maravilhas”, apesar dos seus jocosos remoques ao meu alegado “feminismo radical”. Fizemos júri de exame juntos, sem uma só divergência. O Doutor Alarcão, tal como Nogueira, tinha muita graça, mas nem sempre víamos as coisas pelo mesmo prisma. Ele consultava as estatísticas diárias e chamava-me a atenção para a baixa média de reprovações. Eu tinha uma linha de aferição invariável e os que ficavam acima do mínimo, passavam. Mas eis que uma tarde, chegámos aos Josés e foi o descalabro total - os cábulas chegaram por junto! No fatídico momento de dar as notas, argumentei que se passássemos estes rapazes, perdíamos a moral para chumbar fosse quem fosse. Fernando concordava. Com muito boa vontade, resgatámos um, que, aqui e ali, dera prova de uns vislumbres de sabedoria jurídica. Foram afixadas as notas - tudo reprovações, vistosamente assinaladas a vermelho, com a pequena exceção. O Prof Alarcão profetizou, com genuína preocupação: “Manuela, vamos ser saneados! ” Respondi, tranquilamente. “Não vamos, não! Aposto que não haverá protestos!”. Ganhei a aposta. Tudo corria, pois, a contento. O mais maçador eram os exames escritos, que eu lia escrupulosamente). D vez em quando divertia-me com calinadas dignas de figurar nos cartazes das antigas latadas… Ao comentar com o Doutor Alarcão que tinha pena de não ter tempo paras as anotar e publicar, ele atalhou: “faça isso se nunca mais quiser dar aulas”. Recordo um examinando que, nas fontes de direito, incluía “os tratados escritos e falados”. A esse achado, o futuro Reitor reagiu, exclamando: “Perfeito! Os tratados falados somos nós, a Manuela e eu!” Porque deixei o meu intenso e grato vaivém Espinhos/Coimbra/Lisboa? Simplesmente porque me lançaram mais um inesperado desafio. Dessa vez foi o Ministro Rui Machete, a perguntar se eu aceitava ir, em regime de requisição, para o recém-criado Serviço do Provedor de Justiça - nome português do Ombudsman nórdico. O ombudsman é o defensor da legalidade, da justiça, da ética, um poder que se impõe pela pura autoridade moral, pragmático e utópico, em simultâneo… Um desafio com o seu “quê” de politicamente romântico! Não era assim que o 1º Provedor, o Coronel Costa Braz, encarava a missão. Na sua cuidosa escolha de assessores, entrevistava, em alongada conversa os candidatos, e, na minha longa recordo que me alertou para o carater rotineiro da maioria das tarefas. Mais ou menos assim: “Com o seu curriculum, receio que ache o trabalho aqui demasiado burocrático, menos interessante do que as atividades em que está envolvida”. Procurei tranquiliza-lo, quanto a isso. Já tinha tido, no princípio de carreira, trabalho jurídico de gabinete e gostara. E gostaria, sobretudo, de participar no nascimento de uma instituição. Talvez me tenha achado um pouco bizarra, mas contratou-me. Pela minha parte, nunca me arrependi. Deixei a Faculdade com antecipadas saudades e bastante resistência por parte dos meus antigos professores, um dos quais, o Doutor Pereira Coelho, observou, pertinentemente: “A Manuela parece um pássaro, sempre a levantar voo”. Um traço que não pode faltar num autorretrato. Pode parecer pomposo dizer que foi uma honra assessorar o Coronel Costa Braz, mas é simplesmente verdade. E durante um tempo irrepetível de estruturação de um serviço sem sombra de tradição entre nós e a criação de um ambiente de trabalho excecional. Éramos poucos, bons amigos, empenhados numa missão pioneira. Como no velho Centro de Estudo, ali, nós, os assessores éramos todos iguais, cada um com a seu setor de especialidade. Ninguém queria o lugar de ninguém, nem o do Provedor, nem o dos coordenadores, que eram, todos, magistrados de grande prestígio e esplêndido trato – o Juiz Sampaio da Nóvoa, o Juiz Vaz Serra Lima, o juiz Guimarães (que tinha sempre histórias divertidíssimas para contar, na pausa café). Em termos de estatuto e remuneração, estávamos no topo da escala da Administração Pública, mas não foi esse, para mim, fator determinante - ganhava mais acumulando ensino e consultadoria. Agradava a natureza das funções, o estatuto igualitário, que traz ao de cima, naturalmente, o melhor de cada um. Não havia horários, nem livro de ponto. Plena liberdade, plena responsabilidade. Quando o trabalho exigia especial concentração ficava em casa, em casa, com a Serra de Aires Endora por companhia, e a Maria Póvoas a trazer-me cafezinhos, de vez em quando. Adoro cães e gatos, desde que me conheço, embora, segundo minha mãe, não saiba disciplina-los. A Endora roeu o mobiliário da casa, metodicamente, ao menos tudo o que tinha esquinas. E também flores - desfazia as jarras bem enfeitadas num minuto. Um dia de maio de 74, veio do corredor abocanhando um cravo já meio desfeito. Alarmada, a Maria, que tinha no quarto flores benzidas na campa do Padre Cruz, foi confirmar se seria uma dessas e voltou sorridente. “Não é o cravo do bondoso Padre Cruz, é o cravo do 25 de abril”! Lá se foi o meu “souvenir” infungível … Mais uma etapa de percurso para recordar com nostalgia. Tantos pareceres jurídicos, tanto cinema - a Provedoria ficava ao lado do Nimas, a dois passos do Monumental, perto do Apollo e de outros… E a política fornecia outra gama de espetáculos e personagens... Eu até no Serviço, discutia política… Não de início, não com o Coronel Costa Braz, mas com o advento de um segundo Provedor, oriundo da sociedade civil, um grande advogado, o Dr. José Magalhães Godinho. De início, nenhum de nós encarou bem a perspetiva de perder o “capitão de abril” para um militante partidário, numa instituição que se quer imune a interferências de diretórios partidários. Foi preciso algum tempo para acreditarmos no Dr. Godinho, à maneira de São Tomé. Ele, sentindo a nossa polida frieza de trato, limitava-se a enviar-nos os processos, do seu gabinete do rés-do-chão, para os nossos, no 1º andar, com instruções numa letra ilegível, que só a secretária, a Maria da Luz, decifrava. Eu própria cheguei a dizer que, no 1º andar, continuávamos “en attendant Godinho” … Até que um dia nos visitou e o degelo aconteceu. De qualquer modo, eu era a única que discutia política com ele, face à “maioria silenciosa” dos meus cautos colegas. Uma verdadeira amizade foi cimentada nas mais turbulentas e contraditórias análises de situação politica e desportiva (ele era benfiquista…). E, embora gostasse de todos os sucessivos “patrões” com quem trabalhei, o meu predileto foi o Dr. Godinho, que me lembrava os lendários tios republicanos que nunca cheguei a conhecer bem. O Dr. Godinho ocupou esse lugar vazio. Era família - não aquela em que se nasce, mas a que, por vezes, raras vezes, se ganha no convívio. E como na família acontece, as discordâncias ideológicas, desportivas ou outras, eram irrelevantes. Discutíamos frequentemente, política e futebol… Poeta repentista, retratou-me assim numa simples quadra: “Se a querem ver satisfeita E com um ar prazenteiro É darem vivas ao Porto E ao Dr. Sá Carneiro”. Todos os colegas foram da mesma forma mimoseados em versos – que pena eu não os ter anotado. Nunca se vira um ambiente assim num serviço público. Havia o tempo de trabalhar, com enorme entusiasmo, e o tempo de conviver, com não menor alegria. Qualquer pequena efeméride era ocasião de festa – a data da inauguração do serviço, a da tomada de posse do Dr. Godinho, aniversários…. Combinava-se o que cada um trazia de casa, petiscos, doçaria, bebidas. E, depois das 18h00, encerrada a jornada laboral, começava a tertúlia… Do Provedor aos motoristas, todos à volta da metafórica mesa redonda! Era a hora em que o prodigioso Dr. Godinho contava histórias, declamava, cantava, versejava. E nós, também - até representámos peças de teatro, com guião da nossa autoria… Uma vez até imitei o Vasco Gonçalves no discurso caótico em que deixou cair ao chão os papéis do seu longo discurso… Em fins de 1978, eu estava no meu 3º ano de Provedoria e acabava de chegar a Lisboa depois de seis semanas passadas em vários países da Europa, com uma bolsa das Nações Unidas, para levar a cabo um estudo comparativo do funcionamento dos serviços de Ombudsman. O périplo começara na Inglaterra, continuara nas várias capitais do Reino Unido, na Suécia, Dinamarca e França, e terminara em Genebra com a apresentação de conclusões ao competente departamento da ONU. Na entrevista, apresentei não apenas conclusões provisórias como o relatório final, pronto e assinado. Disseram-me que foi coisa inédita… Na verdade, fui escrevendo o texto, como um diário, à noite, nos quartos de hotel, enquanto tudo estava bem fresco na memória. O que deu mais trabalho foi, depois, traduzi-lo do original inglês para a minha mais complexa e prolixa língua. Já tinha resolvido esse “berbicacho” e retomado a análise de casos e queixas no terreno fértil da segurança social, quando um telefonema ameaçou nova inflexão de percurso... O General Eanes, após mais uma queda de Executivo minoritário, tomou, por essa altura – outubro ou novembro de 1978 - a decisão de nomear o 2º governo de iniciativa presidencial. Uma decisão que não tumultuou a vida do país, mas sim a minha… De fato, estes governos não partidários abriram um mercado político para independentes. O primeiro foi o de Nobre da Costa, que se situava mais ou menos ao centro, ou centro esquerda, mas não passou no parlamento, onde a metade direita viu com desconfiança o elenco do Ministério do Trabalho. O segundo era encabeçado por Mota Pinto, um dos fundadores e ideólogos do PPD, que deixara o partido após o congresso de Aveiro e fora, depois, ministro de Mário Soares. O programa de IV Governo Constitucional passou incólume na Assembleia da República, e a equipa do Prof Mota Pinto lançou-se ao trabalho com um horizonte de nove meses de duração, e termo nas eleições legislativas de outubro de 1979. Eram tempos de transição para a democracia plena, o poder estava em Belém, nas ruas e no Terreiro do Paço, em partes desiguais. Nas ruas com a polémica sobre unicidade sindical/pluralidade, sindical, em que se digladiavam hostes da CGTP de um lado, e, do outro, os doutores Soares e Salgado Zenha, o IV Governo Constitucional, o PSD e o CDS. Adivinhava-se que um dos ministérios da frente de combate seria o do Trabalho, e foi precisamente aquele para o qual fui convidada. Para mim, o lugar era indesejado, mas não particularmente por isso. A ir para o Governo, antes esse pelouro que me era familiar do que outro qualquer… Quando me perguntam as razões que me levaram à política, não resisto a responder com a verdade, nua e crua: “Foram as razões erradas: o facto de não ter militância partido e de não querer ser política”. Bem vistas as coisas, foi aquele convite do Doutor Eduardo Correio que, tendo-me levado para Coimbra, num primeiro tempo, afinal breve, me levou, depois, num segundo tempo, ao Governo de Lisboa e à intervenção política, duradouramente, por mais de 30 anos... A minha combatividade verbal em defesa de causas como o feminismo estava, pelo visto, ainda bem lembrada pelo Doutor Mota Pinto e foi o argumento usado para me convencer: "Se recusar, não haverá mulheres no meu Governo". Breve incursão política Era-me, assim, dada a oportunidade de passar da conversa de café ou de corredor para o terreno de luta, num cargo visto como eminentemente masculino…. Irrecusável! Fui uma involuntária voluntária… A ousadia da designação valeu ao Professor Mota Pinto um rasgado elogio de Marcelo Rebelo de Sousa num editorial do Expresso, que guardo na minha pasta de recortes especiais. Até a nível europeu a titularidade daquele cargo surpreendia… Em reuniões internacionais, pressupunham que era Secretária de Estado do Trabalho Feminino e, quando eu esclarecia que era mesmo Secretária de Estado do Trabalho, pasmavam: “Lida com os sindicatos?”. E eu, respondia, tranquilamente: “Sim, claro que sim”. E, por sinal, não tive nesse plano temível da negociação sindical especiais agruras pelo facto de ser mulher. Conhecia o ministério, estava familiarizada com as matérias e as pessoas, e, “last but not least” tinha o suporte de funcionários competentíssimos. Uma máquina eficiente e um governo determinado a agir facilitaram imenso a tarefa que, vista de fora, parecia ciclópica… Mais complicado do que lidar com os sindicatos foi, ao menos de início, lidar com o Ministro. O Dr. Eusébio Marques de Carvalho vinha do setor privado, cheio de metas, objetivos, pressa, impaciência. E, mais ainda, de preconceitos sobre a ineficiência fatal da administração pública. Acabou ele convertido à eficiente burocracia que lhe coubera em sorte e eu à sua maneira de trabalhar, num turbilhão de urgências. O que terá despertado uma minha qualidade adormecida no trabalho de gabinete, mas requerida ali: a rapidez. A mesma que me tornava, “sprinter” no atletismo e difícil de travar no futebol, “Speedy Manuela” … Fui sempre bastante impetuosa, ainda que capaz de temperar o ímpeto com uma pequena dose (variável) de prudência. Faceta que um amigo de infância uma vez sintetizou assim: “És uma ingénua de pé atrás”. Naquele meu retorno à Praça de Londres, em nova veste, era aconselhável avançar com algumas cautelas, a primeira das quais foi escolher uma equipa muito experiente e capaz de me travar, se necessário. Para Chefe de Gabinete convidei um dos meus colegas do Serviço do Provedor de Justiça, Manuel Marcelino, grande especialista de Direito Administrativo. Peça chave! Quando assinava um documento, que passara pelo seu crivo, fazia-o com absoluta tranquilidade… Na escolha do gabinete (cinco membros) tive a preocupação de equilíbrio de género: um chefe de gabinete, uma adjunta e um adjunto, funcionários do Ministério, e duas secretárias, diplomadas pelo ISLA. Três mulheres e dois homens, todos com longos “curricula”. Se contasse com o motorista três/três, paridade total. Era o único funcionário que não conhecia, herdei-o do antecessor e a primeira impressão não foi boa – fez uma vénia exagerada, ao abrir-me a porta traseira do carro, e uma pergunta desastrada: “Como é que V. Ex. cia deseja ser tratada, por Senhor Secretário de Estado ou por Senhora Doutora?” Optei, sem hesitação: “Senhora Doutora”! Era um homem pequenino e redondo, de bochechas coradas, ou pelo embaraço, ou por um copito a mais. Uns meses passados, consegui uma troca com a Secretária-Geral do Ministério, e fiquei a ganhar, com um profissional expedito, simpático e mais habituado ao “poder no feminino”. Era o Senhor Caravana, o melhor dos meus motoristas, numa lista longa, englobando governos e parlamento. Era tão rápido, que, às vezes, passava o sinal amarelo a virar vermelho – o que os franceses chamam “bruler les rouges”. Tinha conduzido dirigentes do Ministério pela zona da reforma agrária durante o PREC, considerava-se o meu segurança e andava armado de pistola (suponho que com licença de porte de armas). Contava, sobre as aventuras dessa época irrepetível, saborosas histórias. E andava invariavelmente bem-disposto. Eu detesto armas de fogo. Tinha mais medo da pistola do que de um improvável assalto, mas não fiz reparo, por não querer desapontá-lo. O que mais recordo dos primeiros dias da minha transição do mundo dos governados para o mundo dos governantes? Não muito, mais sensações do que pormenores de conversas ou encontros. Entrei em funções, como para uma sala de exame, com sentimentos de angústia, muito pessimista sobre o meu futuro imediato. A tomada de posse, no salão do Palácio da Ajuda foi particularmente enervante. Tudo! Os poucos passos dados até à mesa onde Presidente e Primeiro Ministro, como estátuas, de pé, nos olhavam, impassíveis. A leitura do compromisso de honra. A assinatura do livro de atas. A leve vénia na direção das mais altas figuras do Estado. E, para cúmulo dos cúmulos, a bateria de jornalistas e fotógrafos, os “flashes” incessantes… Para o Palácio fui de boleia com o Dr. José Magalhães Godinho, e as minhas colegas Camila e Branca Amaral - preferência às mulheres, num carro com a lotação esgotada. Levava um fatinho de “tweed”, comprado de véspera, num saldo da Boutique Ayer e um colar de pérolas de cultura. Quando, na segunda boleia para a Praça de Londres, já aliviada do suplício e em alegre companhia, comentava o ato solene, atirei o colar, descuidadamente, para dentro da carteira, e Camila bradou, horrorizada: “Cuidado! Isso não é maneira de tratar as pérolas!” Escandalizei-a ao justificar-me: “Oh, não tem importância. São falsas”. Na tomada de posse seguinte, não estava menos enervada, porém, à volta do pescoço, as pérolas verdadeiras e, para tranquilidade de Camila, nem as retirei… Do resto desse dia inicial, como disse, não guardo memória muito precisa. Estava de volta ao arranha-céus da Praça de Londres, já não no 1º andar, mas no elitista 16ª andar, num enorme gabinete, entre o do Ministro Eusébio Marques de Carvalho, esse perfeito desconhecido, e o do titular da pasta do Emprego, João Gualberto Coentro Padrão, um caríssimo colega de curso, que foi um apoio constante naqueles meses de aprendizagem. Da reunião de trabalho a três, só sei que recebemos instruções para afastar todos os colaboradores do anterior Executivo naquele Ministério, que, por serem conotados com o PCP, tinham provocado a queda do III Governo Constitucional. O meu plantel ainda não estava completo, faltava-me uma secretária, mas todos os outros eram insuspeitos de serem revolucionários. Contudo, dias depois, recebi um telefonema do Secretário de Estado da Presidência, Doutor Xavier de Basto (meu antigo professor, e excelente professor), a recomendar, com os maiores elogios, precisamente uma das secretárias do gabinete tabu do meu antecessor. Expliquei que, por essa razão, não podia contratar a senhora, mas o Doutor Xavier de Basto tranquilizou-me. A Ana (Pinto de Sousa) era funcionária pública dos quadros da Presidência do Conselho de Ministros, e pessoa da sua inteira confiança. Nomeei-a, de imediato. A minha outra Secretária, a Maria de Lurdes Escudeiro (Milú), juntou-se ao coro de elogios - tinham sido colegas do ISLA. De facto, a Ana era despachada e muito capaz de pôr “os pontos nos is”, com respostas secas e definitivas. Pouco depois, uma das vítimas dessa secura, não sei quem, foi denunciá-la ao Ministro, e ele chamou-me a capítulo. Em vão invoquei a recomendação vinda do SE da Presidência do Conselho. Marques de Carvalho exigia que a demitisse, ponto final. Contra a Ana militava somente a ocasional falta de paciência no trato. Para um despedimento era coisa pouca. Comuniquei ao Ministro que a Ana ficava! Reação dele: “O meu gabinete é de inteira confiança. O do Dr. João Padrão, também. Se houver alguma fuga de informação, é do seu gabinete”. Aceitei o desafio: “Muito bem, Sr. Ministro. Se houver fuga de informação é do meu gabinete”. Fugas não houve, naturalmente… nem sequer sobre algumas discussões mais acesas, que não respeitavam a questões de fundo, mas a interferências com o meu pessoal não por parte do Ministro (salvo o caso da Ana), mas do seu chefe de gabinete, que teimava em dar ordens ao meu. Só “por cima do meu cadáver”…Cheguei a ameaçar demitir-me e, nesses imbróglios intervinha sempre o João Padrão, grande mediador de conflitos. É evidente que nunca me queixei ao Primeiro Ministro, não ia maçá-lo com questões menores. Porém, findo o Governo, num almoço com ele e uma sua colega de curso e minha colega de Ministério, a Maria Luísa Pinto, achei por bem perguntar, mal entramos nos “hors d’oeuvres”: “Onde é que o Senhor Doutor foi desencantar aquele seu Ministro do Trabalho?”.O Doutor Mota Pinto mostrou-se espantado: “Não sabia que se desentenderam. Ele disse-me sempre tão bem da Manuela!” Foi a minha vez de ficar atónita, e, mais ainda, atrapalhada…Murmurei “Nada de importância, realmente” e mudei o rumo da conversa para assuntos mais divertidos. Mota Pinto era, sempre, um brilhante conviva com um humor incisivo, mas benigno. De todos os políticos que conheci nenhum correspondia menos à imagem que os “media” davam dele! Apresentavam-no como o professor de Coimbra rígido e conservador. Não era uma coisa nem outra, mas um exemplo de abertura de espírito e de simplicidade de trato. Todos os alunos dirão o mesmo. Era unanimemente admirado, consensual em Coimbra, e não em Lisboa. Sabe-se lá porquê… Em 1978/79 chefiou um Governo de independentes, corajoso e de qualidade, com tantos académicos que chegaram a comparar o seu Conselho de Ministros a um Senado universitário. Um Governo de viragem, com que se desfez o mito de que, em Portugal, não era possível enfrentar o poder da rua, a fação esquerdista do MFA e o PCP. Antes dele, julgava-se que o PS era a fronteira da governação possível. Depois de ele ter provado a governabilidade do País num outro quadrante, a AD pode ganhar com maioria absoluta…Um Governo tão curto e tão decisivo na caminhada democrática, pois a democracia exige alternância. Por isso, à despedida, disse ao Prof Mota Pinto que sentia imenso orgulho em ter participado naquela aventura governativa, embora tivesse sido, apenas “uma pequena peça do todo”. Já estávamos cá fora, a caminhar para o parque de estacionamento. O Professor estacou, olhou-me, muito sério, com a Maria Luísa, ao lado, a sorrir, e exclamou: “Como pode dizer isso? Foi Secretária de Estado do meu governo, num cargo de grande responsabilidade! Fomos todos colegas no mesmo Governo!” Eu não me via, de todo, como colega do Doutor Pinto, quer na sua qualidade de professor, quer de político, mas relato o episódio, porque o retrata, humanamente. Que outro Primeiro-Ministro, em Portugal, na Europa, no mundo, diria outro tanto a um membro júnior da sua equipa? Gosto de quem fale assim, e, pessoalmente, gosto de trabalhar assim, em equipa, valorizando as pessoas antes das hierarquias. Quando, num dos governos seguintes, no pelouro da Emigração, instituí uma medalha de mérito, a primeira pessoa a quem o entreguei, no país, foi ao motorista da Delegação do Porto, em vésperas de se aposentar – um merecido prémio de carreira. Contudo, sei que não era nada fácil trabalhar comigo, pela pressa que via em tudo, pelo constante encadeamento de ideias e iniciativas, (sempre consideradas urgentes), a linguagem direta e concisa, igual na avaliação positiva e na negativa, sem complacência... O que eu não sei é se já seria assim ou se me tornei assim durante a aprendizagem da arte da governança com o Ministro do Trabalho… Com ele fui mantendo, depois, as melhores relações e, olhando retrospetivamente os breves meses do IV Governo, devo reconhecer que me apoiou em tudo o que de mais interessante pude levar a efeito, com grande margem de manobra, quer as iniciativas estivessem sua lista de prioridades ou as achasse um pouco exóticas. O caso da jovem secretária suspeita de ser a “Mata-Hari” da Praça de Londres foi exceção. Para o poupar a mais ralações, nunca lhe contamos a história toda: ela tinha pertencido ao gabinete do Primeiro-Ministro Vasco Gonçalves no verão quente de 1975 – apenas porque era uma qualificada funcionária do quadro da presidência e a única perfeitamente bilingue, em inglês. Imaginar a reação do Ministro, se soubesse isso, era assunto que comentávamos, em tom de comédia, na sala das secretárias, que eu frequentava muito para tomar café. Estar rodeada de amigos, o Manel Marcelino, a Fernanda Agria, a a Milú, a Ana, amenizou o enorme desconforto que me causava a entrada naquelas funções. E depressa cheguei à conclusão que, afinal, tão agradável era dar um parecer, como receber um parecer e passar à sua execução. E até comecei a ver-me como uma “mulher de ação”, fora de uma torre de marfim. A reger, como uma maestrina, orquestra afinada - os quatro departamentos sob minha superintendência, a Direção-Geral do Trabalho, a Direção-Geral das Relações Coletivas do Trabalho, a Inspeção do Trabalho e a Direção-Geral de Higiene e Segurança do Trabalho. O Ministério do Trabalho estava no “olho do furacão”, com o combate contra a unicidade sindical, que, do nosso lado, tinha o socialista Salgado Zenha por paladino, perguntava a mim própria se os meus predecessores, homens, naquela conjuntura teriam agido diversamente. Estaria eu a dar provas de uma visão feminina das coisas? Ou apenas da visão de quem vem de fora das rotinas da política? Parecia-me tinha, pelo menos, prioridades que não haviam sido as deles, por exemplo, a de construir, passo a passo, uma democracia realmente inclusiva do sexo feminino. Introduzi a preocupação de mais igualdade nos recrutamentos e promoções de carreira. Os quatro diretores-gerais reagiram bem à ideia, e, assim, em 1979, foram nomeadas as primeiras mulheres Inspetoras do Trabalho, a primeira mulher Chefe de Delegação do Ministério do Trabalho (no distrito de Aveiro). E foi criada a Comissão para a Igualdade no Trabalho e Emprego (CITE). Para isso muito ajudou ter encontrado, no fundo de uma gaveta, um parecer da Comissão da Igualdade, propondo a criação de uma instância de acompanhamento das condições do trabalho feminino. Foi a oportunidade para transpor, com as adaptações impostas pelo diverso avanço do mundo jurídico, o modelo sueco do “Ombudsman para a Igualdade”, ou Provedoria da Igualdade, (que conhecia da minha ronda europeia pelos serviços do “ombudsman”, no ano anterior). Constituí um grupo de trabalho para ultimar um anteprojeto de diploma no prazo de 30 dias e, para presidir ao GT, convidei um dos meus competentíssimos colegas da Provedoria da Justiça. O mais jovem de todos nós, brilhante jurista, e um aliado certo no campo da igualdade: o Dr. João Caupers, que foi, quatro décadas depois, Presidente do Tribunal Constitucional. Com ele, o GT cumpriu todos os prazos, procedeu, diligentemente, a audições dos parceiros sociais e apresentou um projeto de diploma que instituía a CITE, instância tripartida (Governo, sindicatos, patronato) e que foi visto pela OIT como um perfeito paradigma para a Europa de então. Porque escolhi um homem para chefiar o GT? Para passar a mensagem de que as questões da igualdade de género envolvem tanto as mulheres como os homens… O Ministro aceitou o diploma da CITE, sem a menor objeção e decidiu inclui-lo no chamado “pacote laboral”, uma ambiciosa revisão global da legislação do trabalho, elaborada no seu gabinete, que foi aprovada em Conselho de Ministros e enviada para promulgação ao Presidente da República. Pouco depois, por razões bem conhecidas, o Governo pediu a demissão, o Presidente dissolveu a Assembleia da República, e nomeou, coisa inédita, um novo Governo para preparar as eleições de outubro, chefiado por Maria de Lurdes Pintasilgo. Por pouco, ela não se tornou a primeira mulher Primeira-Ministra na Europa, a 1 de agosto de 1979. Thatcher estava no poder há poucas semanas. Uma das primeiras decisões desse Executivo, com assentimento presidencial, foi a rejeição do “pacote laboral” do Governo Mota Pinto. Lá se ia a CITE, também… Eu estava de volta à Provedoria, onde o meu regresso fora saudado como a de uma filha pródiga. Apressei-me a telefonar ao meu sucessor na Secretaria de Estado, o Dr. Ribeiro Ferreira, pedindo uma reunião. Conhecia-o do tempo em que assessorava o gabinete do Ministro Rui Machete e ele presidia a uma instituição de segurança social . Durante a nossa conversa, disse-lhe que a CITE era, e não era, parte do rejeitado pacote legislativo. Tivera origem e tratamento autónomo, com ampla discussão e consenso, no campo sindical e patronal. Ribeiro Ferreira foi amabilíssimo. Saí com a esperança de que o novo Executivo desse uma volta ao texto e o adotasse como seu. Com grande espanto e regozijo vi o Decreto –Lei criador da CITE ser promulgado sem alteração de uma vírgula e com a assinatura de Mota Pinto! Só por isso, já teria valido a pena a minha primeira aventura governativa, mas ainda houve mais dois “conseguimentos” (como diria a Dr.ª Assunção Esteves): a regionalização dos serviços do Trabalho na Madeira e nos Açores e o reconhecimento do direito à liberdade de emigrar dos jogadores de futebol. A regionalização era, como é óbvio, decisão de do Governo, não de uma Secretária de Estado. A minha parte foi aplanar o terreno para a sua completa e pacífica implementação. Todos os serviços transitavam para a órbita dos Governos das Regiões Autónomas, excetuando a Inspeção de Trabalho, que mantinha a sede em Lisboa, obedecendo a ditames da OIT. A exceção foi mal recebida na Madeira. Estava aberta uma guerra sem fim à vista, com graves consequências para o funcionamento da Inspeção: a Secretaria Regional do Trabalho tomara conta das instalações, da documentação (mapas de pessoal, etc.) e do carro que os serviços haviam antes partilhado. Ou seja: a Inspeção estava na rua, sem teto, sem viatura e sem papéis. Não me lembro se a rutura se dera naquele Executivo ou no anterior, nada passara por mim, até que o Diretor-Geral do Trabalho trouxe o assunto a despacho, com uma apresentação melodramática. Rejeitei, sem apelo nem agravo a sua cruzada anti Jardim e anti autonomia. O alto funcionário, habituado à mansa aquiescência dos governantes, ficou visivelmente desconsertado, pela minha oposição. Argumentei, com mal disfarçada irritação. “Quais são concretamente as suas soluções, Senhor Doutor? Invadir a ilha, com a Marinha e a Força Aérea para recuperar a casa, a documentação e o carro? Se não quiser essa via, resta o diálogo! Em busca da paz, chamei a Lisboa, para conversações, o Secretário Regional, Bazenga Marques. Veio de imediato, mas entrou no meu gabinete a olhar-me de lado. Abri o jogo, mal nos sentámos: “Sei que tem havido alguns desentendimentos no processo de regionalização dos serviços. Vamos resolvê-los! Há o problema das instalações. São vossas! Só lhe peço que nos ajude a encontrar uma casa bem situada para a Inspeção. Eu sei que no Funchal, arrendar um edifício não coisa fácil. Há, também, a questão dos mapas de pessoal e outros documentos. Vamos fazê-los circular de uns serviços para os outros. Pomos as chefias dos serviços em contacto. E há o caso do carro. Fiquem com o que lá está e eu vou conseguir providenciar um outro para a Inspecção. O longo monólogo foi mudando o semblante do meu parceiro regional. Quando terminei, estava outro. Tomamos café, falámos longamente de tudo e mais alguma coisa. E posso dizer sem exagerar que ficamos amigos para o resto da vida. Nunca ia ao Funchal, sem o contactar, mesmo quando o meu pelouro já era outro. O detalhe mais urgente, para cumprir a minha parte do acordo, era o automóvel, mas eu já tinha um plano. Quando relatei ao Ministro o feliz curso feliz das negociações madeirenses, aproveitei para fazer um pedido: “O Senhor Ministro tem na sua frota um Peugeot 304, que é pouco utilizado. Importa-se de o mandar para a Madeira?”. Não se importou nada. Era um homem prático e decidido. O Peugeot viajou para a Madeira num dos dias seguintes. Passadas poucas semanas, a equipa ministerial completa foi convidada a visitar a Região, e a assinar “in loco” os protocolos das transferências de serviços. Tudo em ar de festa, com banquete de despedida no Reid’s, do qual eu costumava dizer: “Uma mesa cheia de homens. Mulher só eu. E de saias compridas só o Bispo do Funchal e eu”. Ficamos alojados no Savoy, o velho Savoy, com o seu “charme” antigo e uma praia privativa a que se chegava atravessando um bonito jardim. Para o mar profundo descia-se por uma escadinha. Os meus minutos livres foram passados aí. Outra das atrações do hotel era um bar discoteca com uma vista assombrosa sobre a cidade. O Ministro, o João Padrão, e o Luís Garcez Palha, um dos Diretores-Gerais, fomos gozar a vista e conversar, convivialmente. Com um “senão”: pregaram uma grande partida. Pedi um cocktail de fruta, sem álcool e alguém trocou a encomenda. Com o meu olfato residual, a bebida frutada pareceu-me inofensiva. Fui repetindo.... Quando me levantei sentia a discoteca a andar à roda. Nos corredores estreitos e intermináveis, ia à frente, e o mínimo desvio de rota seria notado. Segui em frente, em linha reta, sem olhar para o lado. No dia seguinte o Luís comentava: “Só se notou que caminhava muito hirta. Demais! Como uma inglesa, habituada a beber bem”. O João era o principal suspeito, até porque sorriu, quando o acusei no dia seguinte, mas, na verdade, só não duvidava da inocência do Ministro. Em contexto de ausência de qualquer prévio contencioso, não houve deslocação semelhante aos Açores. O protocolo foi assinado na Praça de Londres, com a presença do Ministro da República e do Secretário do Trabalho da Região, o Dr. Gentil Lagarto, com quem mantinha longos contactos telefónicos. Era muito simpático e, a julgar pela aparência, mais novo do que eu. Para mim, foi fácil manter um relacionamento excelente com as autonomias, sentindo-me mais do lado de lá do que do lado de cá… Tive, em cima da secretária, até ao fim de mandato, uma pequena bandeira açoriana que me foi oferecida durante aquela cerimónia. Curiosamente, não foi a resolução das greves, que me levou a fazer manchetes de imprensa (para isso lá estava, e muito bem, o Ministro), mas uma polémica sobre o desporto. Mais precisamente, sobre futebol e a emigração, (como que prognosticando uma próxima transição de pelouro governamental). Refiro-me ao caso da transferência de quase meia equipa do SCP para os Tea men” de Boston. Alguns dos jogadores candidatos à emigração americana (Jordão, Keita e outros) não preenchiam os requisitos para saírem do país, segundo as regras da Portaria de Regulamentação de Trabalho (PRT) em vigor. A PRT impunha dois requisitos cumulativos: idade mínima e um período de permanência no clube de, pelo menos, três anos. Esta última exigência, a meu ver, atentava contra o princípio da liberdade de emigrar. A assessora do Provedor de Justiça, que havia dentro da Secretária de Estado reagiu, sem hesitação. O direito de emigrar está consagrado na Constitucional. A imposição de um largo período obrigatório ao serviço de uma entidade patronal coartava esse direito. Se o jogador mudasse, sucessivamente, de clube sem perfazer um triénio, ficaria impedidos de sair de Portugal para exercer a profissão. Estalou a polémica entre SCP e SLB (preocupado com o súbito enriquecimento do rival). A solução não dependia de despacho conjunto, com o Secretário de Estado do Desporto, somente de despacho meu. Não cedi a pressões, que foram muitas... Autorizei as transferências e mandei rever a regulamentação à luz dos princípios jurídico-constitucional. Em vão clamaram clubes rivais, comentadores, políticos. A nova PRT poria, segundo eles, em causa o futuro do futebol. Tinham dito o mesmo da lei Bosman. Não acreditei no discurso catastrofista, e, mesmo que acreditasse, não recuava. Nada justifica o sacrifício de direitos fundamentais. O Ministro não interferiu, minimamente. Seria adepto do futebol? Não sei. Desportistas, era, daqueles que vão correr pelo asfalto às 6.h00 da manhã. Cruzava-se, em fato de treino, com operários que gritavam: “vai trabalhar, malandro!” Não sabiam que ali ia um incansável trabalhador. Nas reuniões restritas do 16º andar, sempre intensas, ao ritmo ministerial, gozávamos, ás vezes, uma pausa/café, e o Dr. Marques de Carvalho contava histórias deste género, com surpreendente humor. Eu gosto imenso de futebol e sou muito portista (como era o João Padrão), mas nunca me determinaria, em questões desta ordem por paixão clubista, mas sei que só fui poupada a suspeições, porque o imbróglio não envolvia o FCP. Não me poupou, porém, ao mediatismo, embora tenha tentado reduzir a exposição. À RTP mandei um mensageiro (um jurista do ministério, já não recordo quem). Às rádios, idem. Dei apenas uma grande entrevista a um jornal. Foi a minha estreia, na primeira página de “A Bola”, com desenvolvimento nas páginas seguintes. Respondi a um questionário, por escrito. Depois, veio um fotógrafo colher imagens no meu gabinete, acompanhado de um simpático jornalista, com quem conversei longamente, divertidamente, sobre futebol, “off record” … Em que medida ter olhado um caso do futebol pelo ângulo, que se impunha, o da emigração terá levado o Primeiro-Ministro do VI Governo a convidar-me para a respetiva pasta? Talvez…. Certo é que não fui, bem pelo contrário, o único membro do Governo Mota Pinto a ser mobilizado por Sá Carneiro. O IV Governo foi um viveiro de políticos futuros e, a meu ver, porque, embora sem obediência partidária, tinham quadrante ideológico (centro-esquerda, naquela conjuntura, acantonado à direita) e uma visão estratégica para o país. Não eram jovens tecnocratas, ainda que se estreassem como decisores políticos, e, em muitos setores, empreenderam grandes reformas. Ficaram pelo caminho, devido ao fim antecipado do mandato, mas a prova de sua capacidade de ação e inovação estava feita. No início da democracia, assim era, aprendia-se a governar, governando. Uns conseguiam melhor do que outros, uns pelouros eram, também, mais propícios do que outros. O Ministério do Trabalho esteve entre os de sinal mais, em foco no seu braço de ferro com a Intersindical, na requisição civil no setor das comunicações, em inúmeros conflitos laborais, num quotidiano trepidante. A firmeza vinha de cima, do Primeiro Ministro, que lhes permitia avançar sem receios, sem recuos. Sorte minha estrear-me neste governo!… Vem-me da infância o traço de ser disciplinada só quando aceito a bondade de comando, do projeto. Ali, aceitava. Pelo meio, converti-me a outra ideia de mim. Estava convencida de que a minha vocação era a consultadoria. No 16º andar da torre da Praça de Londres descobri a sensação de dar andamento aos processos, bem apoiada na consultadoria alheia. A superior sabedoria dos meus colaboradores não me incomodava - quanto mais geniais, melhor! Colaborador precioso foi ainda o meu colega João Padrão, que até me ajudou a lidar com alguns sindicatos – caso dos estivadores de Leixões, numa das greves mais estranhas. No cerne estava a efetiva redundância de trabalhadores, resultante da mecanização de tarefas. Chegámos, ao fim de muitas e intermináveis jornadas, e rodadas de café, a um consenso salomónico, sem sangue derramado, salvando uns quantos redundantes…. Um dos sindicalistas, que me dava a direita, sempre involucrado na sua samarra volumosa, era bem divertido, mas o mais inflexível de todos. Mais frustrante foi o meu repetido insucesso na luta contra a desigualdade salarial entre sexos, (que, 25 anos passados, permanece). As tarefas femininas são canonicamente subavaliadas! Um exemplo, a apanha da azeitona: os homens varejavam, as mulheres apanhavam as azeitonas do chão. Eles ganhavam o dobro. O que era mais custoso? ganhavam o dobro…. Eu protestava, mas sindicatos e patronato olhavam.me como uma utopista… Mais tarde, um jornalista de Toronto (Cruz Gomes) faria manchete, chamando-me uma “D Quixote de saias”. Certo é nunca os desaires me desanimaram e isso é, de facto, eminentemente quixotesco. Porém, ao contrário do cavaleiro, tenho, também outra forma de tenacidade, pragmática. Visitei todas as delegações distritais do ministério - nenhuma mão ficou por apertar, nenhuma voz sem ser ouvida. Anotei tudo, metodicamente… coisas incríveis na província, casas degradadas, sem aquecimento, à espera de obras, água escorrendo pelas paredes, os funcionários trabalhavam de sobretudo, frota automóvel a cair de podre, com enormes despesas de manutenção e riscos de acidentes. No fim, entreguei ao Ministro um volumosos relatório, mas, como o governo caiu por essa altura, sob fogo cruzado das oposições parlamentares, ignoro o que lhe aconteceu. Situações lúdicas, também as houve. Nesta categoria se incluem as várias intervenções públicas, em que me afirmei como feminista, perante atónitas audiências, dada a (imerecida) aura conservadora do Governo. E uma tomada de posse de delegados do Ministério, que encheu, por completo, o meu enorme gabinete. Entre os delegados estava o Nuno Tavares, meu colega de Coimbra, que confidenciou ao amigo Garcez Palha a sua surpresa por Mota Pinto ter escolhido uma “comuna” para aquele pelouro (minha imerecida fama do tempo em não havia centro, os da esquerda moderada misturados com comunistas, os da direita democrática com salazaristas). Garcez Palha queria que, no preciso momento em que o Nuno assinava a folha de posse eu lhe dissesse: “Oh Nuno, andas para aí a espalhar que eu sou comuna?” Ele teria um sobressalto e, com um pouco de sorte talvez até rasgasse os selos (assinava-se sobre vistosos selos colados na folha de papel azul). Deixei-o assinar, em paz, só depois, quando todos confraternizávamos, proferi bem alto a terrível interrogação…. Verdadeiramente aflito, ele respondia: “Eu não disse isso!” E eu, sem hesitar, avivei-lhe a memória: “Disseste ao Garcez Palha!” Pouco lhe faltou para um encolher de ombros: “Sim, mas esse é um amigo!”. Acabou tudo em risota… UM BREVE REGRESSO A CASA Findo aquele tempo breve de aventura, voltei para a Provedoria de Justiça, onde fui recebida de braços abertos, como uma filha pródiga. Para mim, o Provedor substituía um conjunto de lendários tios republicanos, com quem, porque desapareceram na minha infância, nunca tive as conversas que pude ter com ele. O Dr. Magalhães Godinho era família - não aquela em que se nasce, mas a que, por vezes, raras vezes, se ganha na vida. E, também ele, apreciava as nossas concórdias e discórdias. Poeta repentista, retratou-me numa simples quadra, assim: “Se a querem ver satisfeita/E com um ar prazenteiro/É darem vivas ao Porto/E ao Dr. Sá Carneiro”. Na verdade, a amizade com o meu incomparável Chefe resistiu a tudo, mesmo o facto de ele ser benfiquista…. Ambiente como o da Provedoria naqueles anos nunca terá havido em serviço público! Éramos poucos, uma trintena. Todos nos conhecíamos. Qualquer pequena efeméride era ocasião de festa – a data da inauguração do serviço, a da tomada de posse do Dr. Godinho, aniversários…. Combinava-se o que cada um trazia de casa, petiscos, doçarias, bebidas. E, depois das 18h00, encerrada a jornada laboral, começava a tertúlia…. Era a hora em que o prodigioso Dr. Godinho dedicava a cada um, a sua quadra popular. Ou em que se cantava, ou contava histórias, ou declamava. Até representávamos peças de teatro, com guião nosso… Uma vez imitei o Vasco Gonçalves no discurso caótico em que o discurso lhe caiu aos pés e ele teve de o repescar do chão, folha a folha… Os meus últimos dias felizes na Provedoria corresponderam exatamente ao mandato da Engª Pintasilgo. A vitória da AD, nas eleições de outubro, punha fim ao V Governo Constitucional, mas, por razões várias que já andam perdidas no esquecimento coletivo e no meu também, a formação do novo Executivo e a sua entrada em cena viram-se adiadas para janeiro. Ao “réveillon” seguiu-se, cronologicamente, a tomada de posse do Governo de Sá Carneiro – Ministros e Secretário de Estado da Presidência. Os outros Secretários de Estado foram convidados depois, dando aso à especulação à volta de muitos nomes, entre eles o meu, que antes já tinha sido badalado (pelo Expresso) para Ministra do Trabalho, prognóstico, não se confirmaria. Fui, assim, ministeriável, mas nunca ministra. O lugar qie me esperava era uma outra Secretaria de Estado... Quando a telefonista da Provedoria me passou uma chamada do Dr. Sá Carneiro, calculei a razão da chamada. Como já disse, era o meu preferido, desde que, em entrevista a um muito jovem Jaime Gama se declarara "social-democrata à sueca", precisamente o meu quadrante político. Para além das afinidades ideológicas, gostava dos defeitos que os inimigos lhe apontavam, que considerava decisivas qualidades! ENCONTRO COM SÁ CARNEIRO Pelo telefone, o meu “herói” foi direto ao assunto, sem preâmbulo, convocou-me para uma audiência às 5h00 da tarde – dali a duas horas – sem mencionar a sua finalidade. Nem tempo tive de ir a casa mudar de fato. Parti para a Gomes Teixeira, com a devida antecedência, mal penteada e malvestida (o meu normal). E inquieta. Se ele fosse pessoa seca, pouco simpática isso arrefeceria o meu entusiasmo, a minha condição de “incondicional"? Levei um livro para ler, contando com um lapso de espera. Enganei-me. Entrei diretamente no seu gabinete, à hora exata. O Primeiro-Ministro recebeu-me com um sorriso luminoso, que começava nos seus impressionantes olhos claros. Assim o recordo, em todos os encontros que se seguiram. Quando a ele me dirigi pelo seu título oficial, atalhou, de imediato: "Não me chame Primeiro Ministro". Ao que eu respondi: "Desculpe, mas é como o vou chamar, porque me dá imensa satisfação que seja Primeiro-Ministro! Esperei anos para o poder tratar assim". Tratamento cerimonioso aparte, a conversa foi muito informal. Disse coisas um pouco insólitas, naquele tom que tantas vezes usei com os políticos de Coimbra, amigos de longa data. Sá Carneiro fazia-me sentir absolutamente à vontade. Não há dúvida de que os homens carismáticos produzem nos interlocutores forte efeito, e não necessariamente o mesmo. Ou os inibe ou os desinibe, ninguém fica indiferente. Eu pertencia ao reduto dos que, na sua presença, ficavam eufóricos. A única pergunta que poderia ter feito parte de uma “lista de Costa 2023” foi esta: “A Sr.ª Dr.ª fala francês e Inglês?” Sim, falava. Pelo visto, era “conditio sine qua non” e bem, porque são línguas de comunicação nos contactos internacionais. Um tradutor atrapalha a cumplicidade. As interrogações seguintes destinavam-se introduzir o tema principal, de forma simpática. “A Sr.ª Dr.ª conhece muitos diplomatas?”. Na verdade, até então, o meu inico contacto tinha sido com o Embaixador em Copenhague, o Dr. Ramos Costa (?)o grande amigo do Dr. Godinho, que não era diplomata de carreira. Estavam por reencontrar outros que comigo partilhavam um passado juvenil, como o João Quintela, meu colega de Coimbra, e das mesas do “Tropical”. Concedi que não conhecia nenhum… O Primeiro Ministro passou diretamente ao assunto: “O que lhe parece ser Secretária de Estado da Emigração?” Sem hesitar um segundo, exclamei: “Senhor Primeiro Ministro, nem pensar! Eu no MNE? Sempre mal penteada e malvestida?”. Com o cabelo em desalinho, e despreocupação com a aparência geral, (embora um pouco melhorada com um casaco curto de peles), a desculpa era credível. A minha colega de gabinete na Provedoria, Branca Amaral, ouvira o telefonema, comentara que o meu velho casacão aos quadrados pretos, brancos e cinzentos era medonho, e insistiu me emprestar o seu casaco. Num casamento dizem que dá sorte levar “something borrowed”, na política não sei. Sei que aquele iria ser, realmente, o melhor ano da minha vida (até dezembro, dia 4…). O Doutor Sá Carneiro foi a primeira esplêndida surpresa. Direto e conciso, como o telefonema deixara adivinhar, mas amabilíssimo e com um fino sentido de humor! Não se concretizou o risco de o detestar como pessoa, por ser distante, ou, horror dos horrores, pomposo. A segunda surpresa foi o pelouro me propôs. Não estava preparada para ser a primeira mulher com cargo de governo no Ministério dos Negócios Estrangeiros, em 250 anos. Porém, os meus motivos de escusa não o demoveram. Vi-me obrigada a carrear mais argumentos para basear a minha recusa: “Não tenho perfil para esse lugar - é muito difícil! “Difícil? Como pode considerar difícil e Emigração depois de ter sido Secretária de Estado do Trabalho?” (como toda a gente, Sá Carneiro achava que uma mulher que afrontava negociações com grevistas e braços de ferro no mundo laboral estava preparada para tudo. Não era bem assim. Tinha mais perfil para conversações, dentro de quatro paredes, do que para conferências de imprensa, discursos em público, ou para cruzar os céus em aeronaves. Estava a ser franca, embora aparentemente exagerasse, ao afirmar “O Ministério do Trabalho não foi nada demais. Estava num antigo campo de especialização, e tinha colaboradores excelentes. Foi fácil tomar decisões, dar despachos e ir para casa com a secretária limpa de papéis”. Sá Carneiro não ficou convencido de que a resistência a dificuldades passadas não servisse às agruras das novas funções. Disse-me que gostaria de me apresentar ao MNE, para uma conversa a três. Entrou em cena mais um dos “pais fundadores da democracia”. O CDS não era partido que eu apreciasse. O mesmo poderia dizer do seu presidente. No entanto, em pessoa, o Prof Freitas do Amaral era, também, extremamente simpático, e eu tenho um fraco por pessoas simpáticas. Mas via-me perante um dilema: Mudar ou não o tom da conversa em curso com o Dr. Sá Carneiro? Obviamente não…. Ficou-me a impressão de que o MNE, embora sorridente, ao longo de 15 ou 20 minutos, estaria a pensar que a coligação tinha os seus custos e o darem-lhe uma tão excêntrica mulher era um deles… Recordo-me de ele ter, também, trazido à conversa o meu desempenho no Governo Mota Pinto: “Não vai estranhar a greve que está anunciada pelo pessoal das delegações da Emigração. Já está habituada”. Por mais que eu tentasse “normalizar” a vida e obra como Secretaria de Estado do Trabalho, não conseguia. Era um brilharete no curriculum… Antes das 18h00, desfez-se o trio, com o Dr. Sá Carneiro a dar-me um curto prazo de 24 horas para lhe comunicar resposta definitiva. Já a caminho da porta de saída, fui dizendo: “Senhor primeiro Ministro, eu por si faço tudo: Vou de escadote colar o seu retrato nas paredes, vou, de balde e pá, pintar AD nas ruas – tudo menos ser Secretária de Estado da Emigração!”” Não havendo ainda telemóveis, foi do telefone fixo de casa que falei com o Doutor Mota Pinto, de quem recebi todo o encorajamento para aceitar. Com uma prevenção: “Não julgue que poderá fazer como no meu Governo, esquivar-se a intervenções públicas, a dar entrevistas”. Era, de facto, o meu “calcanhar de Aquiles”… Anunciei: “Vou já comprar “medipax””. O Doutor Mota Pinto detestava remédios: “Não, isso não! Cada um faz como quer. Não gosta de dar entrevistas, não dá! Não quer fazer discursos, não faz!” Mas eu sabia não escapava a essa ordália… O segundo telefonema foi para a Branca Amaral, cujo cunhado, Rui Machete começara o tirocínio governamental como titular da Emigração, antes de se tornar Ministro dos Assuntos Sociais. Combinámos jantar os três num restaurante de Alvalade, e Rui Machete contou, com muita graça, as mais pitorescas histórias dos seus meses no Palácio das Necessidades, e fez com que o meu futuro parecesse um atrativo empreendimento. A família, por fim consultada, completou a unanimidade do “sim, não hesites”. No dia seguinte, como aprazado, telefonei ao Dr. Sá Carneiro. Fiz uma brevíssima síntese da argumentação com que todos me tinham incitado a aceitar, o que o levou a comentar, com uma branda repreensão na voz: “Julguei que tinha sido eu a convencê-la!”. Apressei-me a assentir: “E foi! É uma aceitação absolutamente “intuitu personae”! E acrescentei que me julgava fadada para um desastre. O Dr. Sá Carneiro mantinha-se inabalável: “Não se preocupe! Esse é problema meu. Assumo total responsabilidade pela escolha”. E, assim, num frio dia de janeiro, meio angustiada, meio curiosa, fui tomar posse no Palácio da Ajuda, pela segunda vez, prevendo que não era, desta vez, missão para somente uns meses. Só não imaginava que ali começava uma etapa de percurso de mais de 25 anos, uma espécie de “rio sem regresso”, o “wild river” da política. Se isso me tivesse passado pela cabeça, veria esse destino como condenação a pena pesada. Na verdade, os anos foram passando e nada foi pesado, ou forçado. Entrei sem querer, fiquei porque quis… IN ITINERE, PELO OUTRO PORTUGAL Detestei, mais do que o resto, todas as (minhas) cinco tomadas de posse naquele salão grande e frio, frio mesmo na canícula estival. Enervante estar na longa fila de Secretários de Estados, à espera de ser chamada ao juramento ritual. Em 1980, fila de muitos homens e apenas três mulheres, uma de cada um dos partidos, a Margarida Borges de Carvalho pelo PPM, a Teresa Costa Macedo pelo CDS e eu pelo PSD. A "quota mínima", tripartida... (eu filiara-me nessa altura, um impulso de que, sendo pouco propensa a obediências partidárias ou outras, me haveria de me arrepender). O ambiente na Ajuda era eletrizante, tenso, como as relações entre Presidente e Governo, tão más, tão más que nem houve sessão de cumprimentos. O meu prezado Provedor dera-me novamente boleia para o Palácio da Ajuda, mas na ida para o Palácio das Necessidades já estava o carro oficial à minha espera– um velho Peugeot “boca de sapo” que, antes da revolução, tinha pertencido ao Dr. Sáragga Leal. Ia sozinha e não segura! A minha primeira preocupação fora repetir a receita do anterior governo: um gabinete de qualidade e paritário! Convidei, novamente o Manuel Marcelino para o topo da pirâmide e recebi uma pronta negativa. Para meu espanto, era contra a AD! Em Mota Pinto punha inteira confiança, tinha sido seu aluno e admirava-o como professor e como pessoa. Mas no PSD, nem pensar! O esquerdismo de Marcelino apanhou-me de surpresa, julgava-o à minha direita. Precisava de alguém que pudesse ser equivalente. Apostei num dos diretores-gerais do Ministério do Trabalho: Luís Garcez-Palha! Não tinha nem ficha nem objeções partidárias. Nos meus cinco gabinetes quase não houve militantes ativos de partidos, e com isso me dei muito bem. Dos adjuntos, um tinha de ser necessariamente diplomata de carreira, para fazer a ligação à “Casa”. Com a ajuda de António Gouveia, uma escolha excelente: o Dr. Gonçalves Pedro, discreto, competente, incansável trabalhador. A seu lado a polivalente jurista Fernanda Agria e as secretárias, a Milú e a Ana, a acidental ex-secretária de Vasco Gonçalves. Como uma família em movimento para casa nova, de muito diferente arquitetura – da modernidade da torre da Praça de Londres ao ambiente nas Necessidades, onde os salões palacianos se cruzavam com selas monacais. A Secretaria de Estado da Emigração recente e marginal, conquistara a pulso uns escassos metros quadrados no prestigiado 1º andar, quatro salinhas, todas de igual dimensão, com portas comunicantes. Não ousei pôr em causa a conquista de um antecessor, em favor de mais espaço e conforto no andar de baixo… Quanto aos serviços da emigração, depois que o edifício sede do “Secretariado Nacional da Emigração”, na Rua João Crisóstomo, fora tomado pelo Ministério dos Assuntos Sociais, viram-se dispersos pelos quatro cantos da cidade – uma espécie de diáspora dos departamentos que tratam da diáspora dos homens. A pequenez das salas era a menor das minhas preocupações. A maior era olhar para as secretárias completamente vazias de papéis. Onde estavam os dossiers? Enquanto eu reuni com o Ministro Freitas do Amaral a minha equipa foi em demanda dos papéis e desvendou rapidamente o enigma: as funcionárias do serviço de apoio tinham sido afastadas por ordem do Ministro, que não queria por perto quem colaborara com o governo Pintasilgo. Ao contrário dos meus Ministros, o primeiro e o segundo, não receava o partidarismo da máquina administrativa, pelo menos àquele nível, e discretamente, no dia seguinte, mandei chamar esse núcleo de apoio e com ele veio toda a documentação de que precisávamos. O meu “rendez-vous” com o MNE no seu gabinete grande, luminoso e ornamentado de antigos azulejos, foi apenas a primeira de inúmeras sessões marcadas pela sua invariável amabilidade. O entendimento foi sempre perfeito e evoluiu rapidamente para a amizade, reflexo do que acontecia, a mais alto nível, entre Freitas do Amaral e. Sá Carneiro. A confiança entre todos era absoluta (com todos, não, mas quase… também havia quem corresse em pista própria). Um tempo irrepetível. A AD morreu com Sá Carneiro e Amaro da Costa, a 4 de dezembro. A partir de então, mantinha o nome, mas não era a mesma coisa. Os dois governos seguintes assentaram em areais movediças. Em janeiro de 1980, a maioria, embora magra e plural, (PSD, PPM, mais à direita o CDS, mais à esquerda Reformadores), prometia um quadriénio de estabilidade. Agora estava entre militantes de partidos, num Governo de maioria, a “fazer política”, como eles. Haveria eleições intercalares em outubro desse ano, e, em caso de vitória, era para continuar. Por puro “ímpeto Sacarneirista” inscrevi-me no PSD, e com isso me tornei a primeira mulher militante do partido a pertencer a um governo da República. Estava a estrear o cartão de militante, (sem antecipar a viragem do partido á direita, passo a passo, líder a líder, depois de Mota Pinto) num segundo governo de imparável ação. A perspetiva de eleições intercalares tornava tudo muito urgente, mas mesmo as questões politicamente mais prementes e complexas eram debatidas com serenidade. E eu prefiro encarar com mais calma as ações que exigem mais confronto. Freitas do Amaral foi o meu ministro ideal, era ponderado e dialogante, para além de ser inteligente, culto, e, acima de tudo, um confiável amigo. Com ele, afinal, o “slogan” do CDS “partido rigorosamente ao centro” era perfeito. Depois, havia de lhe acontecer exatamente aquilo de que me queixo – a fuga do partido para outros quadrantes. Naquele primeiro dia fui por ele incumbida de preparar a legislação para instituir o “Conselho das Comunidades Portuguesas”. Que melhor perspetiva para uma jurista que começara a vida precisamente nessas tarefas? E, ainda por cima, não era um diploma comum, não havia paradigma institucional para o que se pretendia – um órgão que desse voz às comunidades da diáspora, em simultâneo, com caráter representativo e consultivo. A Secretaria de Estado pretendia alargar os seus horizontes, acrescentara à designação tradicional as Comunidades Portuguesas e não se tratava de alteração cosmética. Até aí, os governos olhavam apenas a emigração recente e próxima, com medidas assistencialistas, de cunho paternalista. O Governo da AD ao entrar em diálogo com as comunidades da Diáspora iria abrir mais uma frente de confrontação com Presidente Eanes. De facto, ele fora o primeiro a colmatar a omissão governamental neste domínio, para tal recuperando as comemorações camonianas. Começou por retirar o Poeta do limbo e, num segundo tempo, elevou as comemorações à dignidade de Dia Nacional. O 10 de Junho tornara-se, desde 1978, o “Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas” e no 400º centenário do Poeta patrocinava a organização de um Congresso, no âmbito do qual se prepara a criação de uma estrutura permanente e representação dos emigrantes. O operacional desta estratégia, o Conselheiro da Revolução Vítor Alves, estava, desde dezembro de 79, à frente da Comissão Organizadora desse grande Congresso das Comunidades, para o qual fora nomeado por Decreto-Lei do Governo Pintasilgo, na sua 25ª hora, dois meses depois da vitória da AD. A tomada de posse de um Governo de maioria, com os seus próprios projetos para as comunidades do estrangeiro, veio desfazer a pacífica divisão de territórios Governo/Presidência até então inalterada. O mesmo acontecia, aliás, no plano da diplomacia. Segundo um pitoresco dito dos corredores das Necessidades. “Melo Antunes era o Ministro dos Negócios Estrangeiros do Senhor Presidente, Vítor Alves o Ministro da Emigração do Senhor Presidente”. O choque foi inevitável: o VI Governo travou a realização do Congresso de Vítor Alves, adiando o evento para 1981. O Presidente inviabilizou a convocatória do CCP em 1980, retendo, por largos meses, o decreto-lei, aprovado em Conselho de Ministros. E lá estava eu, pela segunda vez, em área de turbulência, no “olho do furacão”. O Primeiro Ministro acreditava, (e eu com ele), que o povo português não precisava de mais tempo de transição e de tutela militar. Democracia já! A revisão Constitucional de 1982, votada pelo “bloco central” partidário, aboliria o Conselho da Revolução, limitaria os poderes presidenciais. E o País, de facto, foi em frente, de eleição livre em eleição livre, sem sobressaltos. Assim terminou uma “guerra civil constitucional”, no campo democrático. Não havia, entre políticos e militares, ao menos os do chamado “grupo dos nove”, a que pertenciam Melo Antunes e Vítor Alves, divergência nos fins, mas sim no “timing” de construção de instituições livres de qualquer tutela, inteiramente democráticas. Com esta reconfiguração das esferas de influência dos Órgãos de soberania, fui incumbida de travar o Congresso presidencial e de avançar com o Conselho das Comunidades da AD. Em termos de Direito comparado, o único paradigma a que podíamos recorrer era o “Conselho Superior dos Franceses do Estrangeiro”, já então com um percurso de várias décadas. A nossa própria experiência fora, infelizmente, efémera - os dois grandes Congressos das Comunidades da Cultura Portuguesa dos anos sessenta, iniciativa do Prof Adriano Moreira, na qualidade de Presidente da Sociedade de Geografia, foram descontinuados na era marcelista. Constituir um pequeno grupo de trabalho no próprio Gabinete (Fernanda Agria, Luís Fontoura, Eduardo Costa e Garcez Palha). Convidei todos os deputados da emigração a participarem, incluindo o do PS, João Lima, que, estando envolvido no projeto paralelo do Vítor Alves, não quis participar. Eu tinha de o convidar não podia exclui-lo à partida, e ele tinha de declinar. A vida é assim. Não faltariam mais tarde ocasiões para estarmos do mesmo lado. De facto, só o José Gama, do CDS, foi colaborador assíduo, como eu. Entrava porta dentro e sentava-me à mesa redonda, sempre que tinha um minuto livre. Era o melhor momento do dia, de volta ao meu trabalho favorito. Houve também, diplomatas que nos deram contributos muito importantes, entre eles o Embaixador Meneses Rosa, do Brasil. E académicos como O Prof Adriano Moreira, que conheci através do Zé Gama. Foi de uma simpatia e generosidade sem limites. Falámos longamente, quer de questões de natureza concetual, quer de aspetos práticos, que não me preocupavam menos (a forma de estabelecer contactos, de passar a informação, os meios de mobilização, o “timing” do processo de convocatória. Adriano Moreira colocava a Cultura no centro da sua organização, como máximo denominador comum, num universo heterogéneo, que envolvia realidade muito diversas: os emigrantes recentes, com interesses de toda a ordem no país, incluindo de natureza política, os seus descendentes, cuja ligação perdura pela vontade de preservação da fala e dos costumes, e os povos que, ao longo de séculos, coabitaram com os portugueses e com Portugal mantêm laços afetivos, quer atualmente falem ou não a sua língua. Disso, na tradição das políticas públicas portugueses, não curava o Estado, sempre mais preocupado em sugar remessas. Só muito tarde, nos meados do século XX, deram alguma coisa em troca, com medidas quase unicamente assistencialistas ou de incitamento ao regresso. E, como a Europa prometia mais das duas componentes (remessas e regressos), na Europa se concentraram, e a partir da revolução de 74, votos também nos votos, reforçando clivagens partidárias. Assim, de uma forma extremamente simplista ficam caraterizados vários séculos de uso e aproveitamento pelos Poderes Públicos das migrações de saída e retorno. O Governo de Sá Carneiro foi o primeiro a ter uma estratégia de reconhecimento e valorização das comunidades em todo o mundo (e não apenas na Europa), que passava pela execução das políticas públicas em articulação com uma vasta rede de instituições, criadas por um movimento associativo poderoso e independente. O Programa Eleitoral da AD submetido a sufrágio em outubro de 1979 distinguia em subcapítulos as políticas para a emigração (apoios sociais à integração, com a lei da dupla nacionalidade, os direitos de participação política, e ao regresso, com facilidades fiscais e alfandegárias) e as políticas para as comunidades portuguesas (com a criação do Conselho Mundial das Comunidades, e um apelo à aproximação pela via da Cultura e do diálogo). O CCP era, assim, concebido como o instrumento dinamizador dessas novas políticas que chamávamos “de reencontro”. Não era evidente a forma de transpor a ideia para a lei e, depois, da lei para a prática. Foi o desafio a que procurei dar solução do primeiro ao último dia do meu exercício na Secretária de Estado, em quatro governos. Entre 1980 e 1987. Sempre, como disse, em diálogo. O diploma foi, neste processo, a coisa mais fácil -ficou concluído em pouco mais de um mês, o que não deu tempo de consultar, previamente, os destinatários. Seriam consultados “a posteriori”, na 1ª reunião mundial do CCP, e nas seguintes, ao longo dos sete primeiros anos, reconfigurando a instituição, com uma liberdade singular num país, de onde não tinham desaparecido, (se é que já desapareceram), resquícios de velho autoritarismo. Nada me deu mais gozo!... O texto saído do meu gabinete era avisadamente minimalista, em aspetos que permitiriam dar a primazia à interpretação, por consensos ou maiorias, dos membros eleitos. A minha marca foi, bem vistas as coisas, não deixar a marca do Governo, mas a dos Conselheiros, (a da “sociedade civil”, conceito tão caro a Sá Carneiro e outros fundadores do partido). Pelo menos neste aspeto o Conselho associativo da década de oitenta, tão “desgovernamentalizado” quanto possível, apesar de várias querelas menores e muito mediáticas, foi uma esplêndida aventura da democracia participativa. Com muita democracia e muita participação! O Congresso das Comunidades foi outra história, tecida de conflitos, que não levaram a lado algum. O 1º conflito foi entre Governo da AD e o Conselho da Revolução. Vítor Alves, o Presidente do Congresso, insurgia-se contra o adiamento dos preparativos no estrangeiro, acusava o MNE, a SEECP de incorrerem em responsabilidade pelos prejuízos decorrentes da decisão. Na resposta explicamos que, bem pelo contrário, estando previsto o adiamento da data do magno evento, pelo voto da maioria parlamentar, a decisão prevenia gastos inúteis (o que veio a acontecer, determinado o pedido de exoneração de Vítor Alves e a sua substituição pelo Prof Rosado Fernandes). E, assim, por ofícios secos e mais ou menos agressivos, nos correspondemos sem qualquer encontro presencial. A primeira vez que o vi, de longe, foi em junho de 1981, no momento em que, perante as câmaras de televisão, tentavam agredi-lo na noite inaugural do Congresso, de cuja organização eu estava afastada. Uma cena digna de um “western” de Hollywood! Vítor Alves continuou a presidir as comemorações do 10 de junho, ao longo de anos, fazendo o seu trabalho competentemente, por um figurino que ainda hoje praticamente se mantém. Nessa qualidade, continuou a sua visitação às nossas comunidades. Por pouco não nos encontramos aqui e ali. No Conselho das Comunidades nunca introduzi nem passados diferendos com o Conselho da Revolução, nem quezílias de política partidária - bastava as que já havia entre os próprios Conselheiros. Só tive oportunidade de falar com Vítor Alves nos finais da década de oitenta, durante um festivo almoço organizado por Dona Benvinda, a mítica jornalista do Rio de Janeiro. Era um homem muito civilizado. O contacto pessoal teria feito a diferença, como aconteceu, logo em janeiro de 1981, com o Presidente Eanes. Houve um minuto, num frente a frente, no Instituto de Defesa Nacional, que mudou radicalmente a minha ideia feita do Presidente. O mesmo digo do meu antecessor na Secretaria de Estado, Mário Neves, um grande jornalista e antigo embaixador na URSS, com quem simpatizei, de imediato. Foi ele que fez questão de me encontrar para falarmos sobre os dossiers pendentes. Inexperiente e tímida como era, hesitei na fórmula. Almoço? Um simples café um salão do Palácio? De repente, um lampejo! Mário Neves era amigo do Dr. Godinho, o ideal era um encontro a três. E foi mesmo! Escolhi um restaurante perto da Provedoria, na Avenida da República, muito badalado, na altura, ainda que de breve sucesso e vida. Recebi das mãos de Mário Neves um magnífico relatório com o ponto de situação e sugestões de sequência. Falámos de tudo um pouco, até de feminismo, o que o levou a oferecer-me, no dia seguinte, um escrito seu sobre Maria Lamas, com uma dedicatória encantadora. O único “senão” aconteceu no fim. Quando o Dr. Magalhães Godinho se preparava para saldar a conta, eu já o tinha feito. Desabafo do meu Provedor: “Tenho esta idade e é a primeira vez que uma senhora me paga um almoço!” Mário Neves sorria...e assim o vou recordar, sempre discreto e sorridente, enquanto o amigo e a estranhíssima jovem, que eu era, discorríamos sobre isto e aquilo, impetuosamente. Outro rosto da minha nostalgia é António Patrício Gouveia. Poucas vezes estivemos juntos, usávamos o telefone. Sempre que uma dúvida me assaltava, pedia-lhe conselho. Por razões que ignoro, ele conhecia o MNE muito bem, embora não fosse diplomata (seria primo dos Embaixadores de apelido Patrício, que, por sua vez, eram primos do Maestro António Vitorino de Almeida - outro génio que conheci, nos caminhos da política, cruzados com os da Cultura?). Penso em génios, e logo penso, também em Sá Carneiro, tão mal retratado nas biografias, até nas ficcionadas – excetuando alguns esplêndidos textos biográficos de MJ Avillez… Em Sá Carneiro, a sua estatura de Estadista, não o impedia de “descer” pragmaticamente aos detalhes da governação e de dar atenção às pessoas, aos colaboradores. Comigo foi extraordinário! Por detrás da nossa primeira e hilariante reunião, intuiu que a minha autoproclamada insegurança não era fantasia e exagero. Quando disse que assumia a total responsabilidade pela escolha que em mim fazia, estava mesmo disposto a cumprir. Durante as primeiras semanas, os seus telefonemas foram frequentes, para uma pergunta, um alvitre, um elogio…. E telefonava sem mediação de secretárias. Na altura nas mesas dos gabinetes eram várias os aparelhos, todos fixos, é claro, uns números privados para chamadas intergovernamentais, outros não e ele, às vezes, enganava-se e ligava para uma das secretárias. Uma delas, a mais jovem, Graça Marcelino, que era simpatizante da UEDS, meses depois, participou-me que ia votar na AD, porque considerava o Governo sério e eficaz. Era quem mais atendia os telefonemas do Dr. Sá Carneiro…. Depois de algumas semanas, sentindo-me positivamente integrada no meu novo “munus”, foi espaçando os encorajamentos . No primeiro desses telefonemas para “apoio moral”, alertou-me para as condições da emigração para a Suíça. Por acaso, o Diretor-Geral da Emigração, Dr. Cassola Ribeiro, estava a despacho, à minha frente e ouviu, inevitavelmente, parte do diálogo. Sá Carneiro, breve e preciso, como sempre, referiu que uma sua antiga empregada acabava de partir para esse país, de comboio, em grupo, sem saber qual o local de trabalho, o empregador e demais detalhes sobre o contrato. Não queria estatuto especial para ela e nem o nome quis transmitir. O que o preocupava era a indignidade do tratamento dado a cidadãos portugueses. Comentei: “Inacreditável, Senhor-Primeiro-Ministro! Para parecer um mercado de escravos, só falta, à chegada, examinarem os dentes dos candidatos… Vou chamar a mim esse processo, imediatamente”. Solícito, o Dr Cassola Ribeiro (de quem, devo dizer, eu gostava muito), com um caderninho e caneta em mãos, perguntou: “Como se chama a empregada do Senhor Primeiro-Ministro?”. Resposta pronta: “Não sei. O Primeiro Ministro não está preocupado com ela, mas com todos os emigrantes, pela forma indigna como são levados de cá, sem contrato assinado”. Perplexo com a minha irritação, explicava: “Sim, tem razão, mas é assim que os suíços querem”. Mais perplexo ficou quando eu atalhei: “Mas não é assim que o Governo português quer. Não autorizo nem mais um contrato de emigração, sem que previamente as pessoas saibam para onde vão e em que condições”. Completamente desconcertado, estava o Diretor-Geral: “Vamos acabar com a emigração para a Suíça?” E eu confirmei: “Nessas condições, sim. Cada cidadão é livre de sair, não saem é nesses termos, com intermediação do Governo. Está decidido pelo Primeiro-Ministro e eu aplaudo. “ Note-se que estávamos a falar do único país europeu ainda aberto a movimentações maciças, depois de os outros se terem fechado, com a crise económica mundial, a partir de 1973. Em qualquer caso, era aviltante negociar, assim, com o patronato suíço – nem sequer era com o Governo que se mantinha à margem do processo. Quem o mediava era o Comité Intergovernamental das Migrações (CIM, hoje OIM), que, neste retrato, ficava pessimamente, exibindo sobranceria e paternalismo no contacto com os países pobres, exportadores de” mão-de-obra”. Antes do dia acabar, o Dr. Cassola Ribeiro trouxe-me um telex, com os dados de todos os contratos individuais daquela leva de expatriação laboral…. Afinal, os dados até já existiam no país de destino, mas não se davam ao trabalho de os comunicar. A partir daí, a informação prévia entrou na rotina negocial. Sá Carneiro distinguia-se por ser igual no discurso e na “praxis”. Eu seguia, atentamente, o seu percurso desde 1969, e, sendo ele modelo de coerência, era fácil adivinhar as suas reações. Quando o MNE, sempre prudente, em matérias mais complexas, alvitrava consulta ao Primeiro Ministro, eu respondia que não valia a pena, ele concordaria. Nunca me enganei. Ganha-se muito tempo em governo que têm linha de rumo… Tudo se torna fácil! Difícil, para mim, foi ser “Sacarneirista” depois de Sá Carneiro. O partido foi resvalando para a direita e as minhas dessintonias aumentado. O PPD/PSD, tem grandes tradições de conflitualidade interna e uma tolerância que foi variando com os líderes. Um dos mais benignos, neste aspeto, foi Durão Barroso. Uma vez, num almoço de campanha, cercado de correligionários, enumerou, pelo menos, uma dúzia de heterodoxias, desde a regionalização à guerra do Iraque. Até eu fiquei surpreendida, por serem tantas! Nos bons exemplos posso ainda citar Marques Mendes, que não manifestou incómodo quando decidi apoiar a candidatura presidencial de Mário Soares contra Cavaco Silva. Uns anos antes, os militantes que haviam feito o mesmo não escaparam a ordem de expulsão. Hoje estou lá no fundo de uma margem distante, pertenço ao passado, não ao presente da agremiação Tudo isso aconteceria muito depois. Em 1980 a harmonia e o entusiasmo imperavam! Passei os meses de janeiro e fevereiro a preparar a legislação do CCP, a colaborar noutros anteprojetos de lei, como o da nacionalidade, entregue a Cruz Vilaça, o meu competentíssimo colega do CDS. Nos intervalos de legiferação, visitei, metodicamente, os serviços espalhados por Lisboa, tomei contacto com dossiers, li os bons autores sobre emigração. Adiei tanto quanto pude (três meses…) o pior - enfrentar audiências, público, “media” - batalhas em terreno desconhecido A minha estreia na televisão aconteceu antes, e foi completamente inesperada. O diplomata responsável pela imprensa, Dr. Quartin Graça, a aparecer à porta do meu gabinete com uma equipa de TV da Venezuela. O MNE decidira partilhar o tempo de antena comigo, para eu abordar temas de emigração. O meu exíguo espaço encheu-se de cabos, máquinas, holofotes, gente. Sentei-me com o entrevistador no pequeno sofá de veludo amarelo, e não tive tempo para ficar cada vez mais enervada, porque ele começou logo a fazer perguntas de resposta fácil, sobre as leis que tinha em mãos, sobre a revisão constitucional e eu entre no espírito da conversa a dois, como se as câmaras não estivessem lá. Depois gravei uma mensagem para um programas da RTP destinado às comunidades da Alemanha, apenas uma breve saudação em português, terminada em alemão, tudo conduzido, por uma antiga colega do colégio, a Tagi (Teresa Álvares de Carvalho). Já estava mais confiante, mas ainda com teimosia de principiante, recusei, qualquer maquilhagem. Quando visionei o programa, apercebi-me da minha palidez doentia. Parecia saída de um filme de vampiros! Nunca mais repeti o erro… MANUELA A VOAR As Américas Pouco depois venci outro medo - o medo de voar! Até então, viagens aéreas, pouquíssimas, trajetos curtos e obrigatórios. Quando tinha alternativa, ainda que muito morosa, optava por ela. Nos meus anos de bolseira em Paris (68-70), era caso único, ao trocar as passagens de avião oferecidas pela Gulbenkian, pelo Sud Expresso. Ali, outra era a geografia com que me confrontava. Não havia comboio para as Américas, e serviço é serviço…. Entre abril e setembro desse ano, atravessei quatro continentes, grandes países, dentro dos quais levantava voo e aterrava dezenas de vezes… Primeira dúvida: por onde começar estes encontros? O Brasil, seria a escolha óbvia, mas eu precisava de “estagiar” onde fosse mais fácil. A fluência dos brasileiros a falarem a língua comum, intimidava-me. A América do Norte parecia-me menos exigente, mais informal! José Gama, ex-imigrante em Connecticut e Massachusetts, foi o meu mentor – traçou um roteiro para viajantes resiliente, 20 dias, 20 hotéis - e acompanhou-me nas visitas a dezenas de visitas a associações, escolas, igrejas, e um sem número de discursos, de entrevistas…. Surpresa das surpresas: a América do Norte não dispensava as formalidades – organização com “mestre de cerimónias”, jantares com “dress code” chique, arranjos florais na lapela. E muita oratória. Viajei de costa a costa, de leste (NY, New Jersey, Washington, Boston, Fall River, New Bedford, Connecticut - Waterbury, Danbury, Hartford, etc etc - Toronto, Otava, Montreal) a oeste, (Califórnia, San Diego, Los Angeles - Chino, Artesia - São Francisco e toda a sua cercadura de cidades com enorme presença portuguesa - S José, Santa Clara, Oackland, Hayward, Tulare, no Vale de São Joaquim…. Fui recebida, com muita música e folclore em salões de clubes e centros recreativos, igrejas, escolas, e passei horas em debates, nas chamadas “sessões de esclarecimento”, que eram ponto obrigatório da agenda, e em estúdios de rádio e televisão (com os quais estava definitivamente familiarizada). Saí de Lisboa e voltei ao fim de duas vertiginosas semanas, com a sensação de não ter deixado o país. Por ele tinha andado redescobrindo-o em outros continentes, entre aeroportos, aviões que levantavam e aterravam e quartos de hotel de luxo. (reserva das embaixadas, que partiam do princípio de que eu tinha ao dispor verbas de representação, de que eu sempre prescindia, pelo que as contas excediam quase sempre as magras ajudas). Nada que me arruinasse, mas achava que não valia a pena. Assim pernoitei em vários hotéis históricos, daqueles que têm e fazem “curriculum”, como o Beverly Hill Wilshire, onde a minha suite era tão grande e tão cheia de portas e espelhos, que eu perdia lá dentro. o St. Francis, no 31º andar da torre (eu que detesto morar nas alturas, sobretudo em zonas sísmicas), onde teriam estado, décadas antes, Charles Chaplin e Mae West, ou o “Mount Nelson”, em Capetown. Ao mesmo ritmo, perdi o medo de voar e o medo de falar para as câmaras, microfones e audiências, nos meus primeiros dias de andanças pela América lusa. É certo que achava os meus discursos entediantes, sobretudo quando comparados com os do Deputado José Gama, um orador nato. Bem vistas as coisas, éramos uma boa dupla: ele arrebatava as pessoas com palavras de saudoso patriotismo (havia quem chorasse de emoção!), assegurando o sucesso do evento; depois eu, muito jovial, mas sem graça nenhuma, enumerava planos de ação e propostas de lei - nacionalidade, direitos políticos, Conselho das Comunidades… Ao Zé Gama devo, para além disso, a franqueza com que corrigia as minhas gafes ou despropósitos de “caloira”. Aconteceu, por exemplo, na visita a uma escola da Nova Inglaterra. Chegámos atrasados do compromisso anterior e eu, maníaca da pontualidade, para recuperar tempo, apressei as várias etapas e saí sorridente, como quem venceu uma corrida de obstáculos. No carro ele, muito zangado, advertiu-me: “Nunca mais na sua vida apresse uma receção! Lembre-se do trabalho que tiveram todos, professores e alunos, durante dias, a preparar a sua visita: os desenhos a giz no quadro negro, os versos recitados pelos meninos, os cânticos. Tem de lhes dar a atenção devida, sem olhar para o relógio. A atrasos, já estão habituados, não tem importância.” Grande lição! Passei a olhar cada gesto, cada apresentação, avaliando o seu conteúdo de dificuldade e o seu significado. E a isso se terá devido um ambiente de recíproca e genuína cordialidade estabelecido não digo com todos (nunca agradamos a todos), mas com tantas pessoas, com quem me cruzei, ao longo de mais de quarenta anos… Outro dos meus receios bem fundados era o de ser rejeitada por ser mulher. Para além de ser jovem, na realidade e, mais ainda, na aparência, com pouco traquejo político, era a primeira mulher que a Pátria enviava a comunidades da emigração conhecidas pelo conservadorismo de usos e tradições. Ainda por cima, no meio associativo, os meus interlocutores eram quase sempre homens, mas não pareciam irritados com a minha presença – só onde a politização era visível, houve alguma agressividade, que não me incomodava nada. Respondia no mesmo tom. Newark foi a minha estreia absoluta. Recordo-me de muita gente nas salas, muitos rostos, todos desconhecidos, com exceção do Senhor Cardielos, Vice-cônsul que estava à frente do consulado. E recordo-me de mim, da sensação de desconforto, de imperícia em tudo o que fazia e dizia. Newark, que viria a ser um dos meus destinos mais frequentes, e não só, mas também por causa dos festejos do 10 de junho, que não tinham rival na dimensão popular, nas multidões que atraia, nos tempos do Senhor Coutinho Na rota para o norte, o tempo tornava-se mais agreste, mas as pessoas mais calorosas – visão, talvez, subjetiva… Talvez eu é que estivesse já mais à vontade. Foi já nesse estado de espírito que me vi no Canadá – um grande encontro em Toronto, na “Casa de Trás-os Montes”, com mais de 200 pessoas, uma longa sessão de resposta a perguntas (repetitivas, com a lei do arrendamento em grande destaque), e a espetacular atuação de um rancho folclórico de Pauliteiros de Miranda. E audiências com o Ministro da Imigração Reuben Gaetz. o Mayor John Sewell. Em Otava, uma visita excecionalmente bem organizada pelo Embaixador Luís Góis Figueira, que me acompanhou em todo o périplo, desde Toronto, com um empenhamento e eficácia jamais vistos. É para mim um mistério o facto de a sua carreira posterior não ter sido o que eu esperava: Secretário-Geral do MNE ou Embaixador em Londres ou Paris. Na capital, fui recebida pelo Ministro da Imigração, Lloyd Axworthy, com um almoço e uma reunião de trabalho com mais dois ministros e nem sei quantos diretores-gerais. Abordámos as grandes questões da imigração, num dos países mais progressistas e igualitários na integração de estrangeiros, pioneiro na aceitação da dupla nacionalidade e na prática de medidas de apoio ao interculturalismo. Converteram-me ao Canadá! Em Montreal, onde aportaram os pioneiros das nossas migrações contemporâneas, a partir de 1953, mais uma comunidade que me recebeu com muitas perguntas e muita simpatia, numa cidade que reivindica a sua herança europeia. Um ponto alto, sem dúvida, a receção na Câmara Municipal pelo carismático Maire Jean Drapeau, o homem que levou a Montreal a Expo universal de 1967 e as Oimpíadas de 1976. Um sexagenário encantador que já era um mito em vida! Ele próprio me levou á varanda do alto da qual olhamos o rio Saint Laurent e recordamos o grito do General De Gaulle: “Vive le Québec Libre”. Em maio, voei para o Brasil, terra cheia de memórias familiares, e terreno fértil em extraordinárias descobertas.... os grandes hospitais das Beneficências, os clubes desportivos (o “Vasco da Gama”, do RJ, a “Portuguesa de Desportos” de SP, a “Tuna Lusa” nordestina…), os Gabinetes de Leitura - o do Rio, uma deslumbrante “catedral” de livros, com uma acústica fantástica e o “curriculum” de ter sido a primeira sede da “Academia Brasileira de Letras”. Recebi a informação do próprio presidente da Academia, Austregésilo de Athaíde, que há mais de vinte anos ocupava o cargo e continuaria a ocupá-lo, por mais vinte. Desde 1948, habitava já lá em cima, na esfera dos imortais, conhecido e reconhecido como o principal artífice da “Declaração Universal dos Direitos Humanos”. O que não em nada adormecera a sua vontade de combater pelas boas causas, ou o seu imparável sentido de humor, muito “british tropical”. Continuava a ser um constante frequentador do Gabinete de Leitura e do associativismo português em geral, e eu tive a sorte de o encontrar em muitas das subsequentes visitas ao Rio. A Beneficência de São Paulo era presidida por outra figura rara, Hermírio de Morais, herdeiro de um dos maiores grupos económicos do Brasil, homem de fortuna antiga, sóbrio e austero, de quem se gostava instintivamente. Embora com um passado bem diferente (de “self-made man”), Valentim dos Santos Diniz não era menos impressionante, havia nele o traço aristocrático do grande benfeitor desinteressado. Acredito que, naquela época, no Brasil inteiro, o maior de todos. Na verdade, eu sei que não devia citar ninguém, individualmente – porque todos me receberam com uma inexcedível simpatia e me impressionaram com obra feita, ou, se não feita por eles, ao menos, continuada. Homens, sempre homens à frente daquelas espantosas instituições, mas socialmente acompanhados pelas suas mulheres, não menos acolhedoras. Os salões dos centros culturais, dos clubes recreativos podiam ser mais ou menos luxuosos, mas eram, regra geral, abertos a todas as classes, a todas as bolsas, ao contrário, por exemplo, da Venezuela, onde os grandes clubes, como o de Caracas, eram exclusivos – só para sócios pouco menos do que milionários. Ia registando pormenores, aprendendo, interagindo. Estava a adaptar-me ao meu papel de “mulher de ação”. E a gostar! Também os brasileiros, famosos ou não, faziam o meu ideal de extroversão e convivialidade. Não sei quantos ministros conheci em Brasília – muitos, num grande banquete oferecido pelo nosso Embaixador! Para além de Maluf, em SP, ou António Carlos Magalhães, em Salvador. A entrada das mulheres brasileiras na política estava por fazer – mais do que em Portugal, e o meu cargo chamou a atenção da imprensa. “Porque não perguntam a esta professora portuguesa?” foi manchete de um dos jornais. Impressionava-os ainda mais o meu cargo anterior, no Ministério do Trabalho, a lidar com sindicatos comunistas… De Belém do Pará, da Amazónia, ao Rio Grande do Sul, sentia-me em casa, só estranhava andar seis horas de avião e ainda estar no “meu” país… Brasília tem uma comunidade portuguesa recente e comparativamente modesta, mas já com estruturas associativas. Arquitetonicamente uma cidade vanguardista, mas estranha – sem esplanadas sem cafés, e sem mar. Os diplomatas gostam da vida social em círculo mais fechado. Só no Rio de Janeiro fiquei numa residência oficial – o Palácio de São Clemente. O nosso Cônsul –Geral era um admirável anfitrião, e seria um muito bom amigo em anos futuros, mas o palácio, que é imenso, acabava de ser “saqueado”. O seu melhor mobiliário viajara para a nova capital. O fausto de outrora só se mantinha-se no andar de baixo. Lá em cima, o Palácio parecia uma casa assombrada…. Interessante era a proximidade das favelas, que subiam a colina nas traseiras de São Clemente. Essa convivência geográfica e humana é, na cidade, bastante comum. Creio que, de preferência, os que se dedicam a assaltar não assaltam os vizinhos Uma das singularidades do Rio era uma mulher que sobressaia no interior da comunidade com a sua luz própria: Dona Benvinda Maria, a diretora do jornal “O Mundo Português. Uma guerreira a quem ninguém ousava fazer frente. Tive imensa sorte em a contar sempre como grande amiga1. O Brasil brasileiro, e, dentro dele, o luso-brasileiro é um fascinante mundo de contrastes. Até mesmo quando a ocasião é solene, acaba sendo mais descontraída e amável. Embora eu não fosse muito além da enumeração das reformas que tinha em mãos, começava a melhorar, a dizer umas graças, daquelas em que os americanos são peritos. Por todo o lado me recebiam com sorrisos e ramos de rosas, minhas flores preferidas. O sentimento de pertença ao país, apossou-se de mim, mal pus o pé no chão do aeroporto, perto da ilha Fiscal, onde se realizou o último baile do Império, tão graciosamente romantizado por Josué Montello. Depois, cruzando o espaço aéreo, de sul a norte, o que mais estranhava era voar mais de seis horas seguidas, de Belém ou Manaus a Porto Alegre, e ainda estar dentro daquele meu outro país… E nas comunidades luso-brasileiras reencontrava Portugal, às vezes o Portugal da minha infância, que na Europa já não existe. Os meus receios iam cedendo ao ritmo de receções generalizadamente simpáticas. Não era certamente pela oratória… talvez fosse mesmo pela sua ausência, pela forma despida de floreados, direta, de expor a matéria, de falar com as pessoas. Não era fantástica, mas era genuína. Nada de intervenções escritas, de princípio levava algumas em carteira, mas creio que nunca as usei. Nunca pressenti que o facto de ser mulher num mundo de homens facilitava a minha missão. Até ao dia de um almoço com Paulo Goulart, um jornalista da rádio comunitária, e ativo membro e dirigente de várias instituições. No Festival Cabrilho, cabia-lhe a honra, que não era pequena de representar o navegador na teatralização do seu desembarque em San Diego, ocorrido séculos antes. Naquele setembro de 1982, na qualidade de deputada dei uma longa entrevista a Goulart/Cabrilho, finda a qual me convidou para um restaurante, com ampla vista sobre o oceano Pacífico. Estávamos olhando o mar, saboreando postas de tubarão (peixe que no prato recomendo), discorrendo sobre a “res publica” pátria, quando, de repente, me confidenciou: "Sabe, aqui só há dois políticos de quem gostámos, a Manuela e o João Lima". (como eu deputado pela emigração e antigo Secretário de Estado). Fez uma pausa, como quem avalia e compara os seus eleitos, e rematou com esta tirada: "Pensando bem, o João Lima até tem muito mais valor, porque é homem e socialista". Na América, o rótulo de socialista é sinónimo de comunista, de facto, assusta a maioria e não dá votos... Quanto à apregoada vantagem de ser mulher, o meu espanto foi de tal ordem, que nem me lembrei de o questionar sobre os fundamento de tão insólita opinião! Goulart não era socialista nem feminista, antes um observador desinteressado, que nem sequer emitia juízos de valor sobre as individualidades comparadas…. Foi uma revelação, à qual me fui convertendo, com a ajuda de outros amigos, João Pereira da Siva, de Belo Horizonte, um dos pioneiros do CCP e poeta nas horas vagas, que, tal como o Dr. Godinho, me dedicou umas quadras: “Eu sou do resto do mundo/ E de estrangeiro chamado/Apesar de amor profundo/ Ao Portugal tão amado Dama de ferro da gente/Secretária, aqui d’el Rei!/ Emigrante justamente/ É português e de lei”. Em duas quadras um sentimento geral de injustiça pelo descaso da pátria e o reconhecimento de que eu estava do lado deles. Acabaria por concluir que, entre portugueses, não é difícil a uma mulher ser aceite em qualquer cargo. Difícil é chegar lá. Eu tinha chegado, por acaso, involuntariamente, e por aposta alheia, masculina, a um afável mundo de homens, onde era tratada como igual. Algumas outras mulheres, já na altura, também, ainda raríssimas: a Manuela Chaplin em Newark, a Maria Alice (Malice) Ribeiro em Toronto, a Mary Giglitto em San Diego, a Berta Madeira em São Francisco, e, no Rio, a já citada Dona Benvinda Maria (escrevo “Dona” porque, não sendo da minha geração, foi a única a quem sempre dei esse tratamento). Quanto à questão geracional, confesso que a via como um outro problema bicudo – os homens importantes com quem dialogava eram quase todos séniores, mas nem isso prejudicou a minha missão. E, por falar em “missão”, uma nota insólita sobre a imagem que projetava nesses tempos de recém-chegada anónima, de que soube através do Serviço do Provedor. Eu costumava, entre outras informações úteis, referir o papel da Provedoria na defesa dos cidadãos, que, na emigração, ninguém conhecia. Um dos cidadãos emigrados tratou de apresentar uma reclamação, dizendo que o fazia a conselho de uma “missionária”, que passara na comunidade, vinda de Lisboa. Tudo a rir-se de mim, na Provedoria, e eu também… A minha aparência despistava até os profissionais. Era normal os rececionistas dos hotéis, entregarem a chave das “suites” às minhas acompanhantes e darem-me o quarto mais pequeno. Quando por acaso descobríamos a troca, eu recusava-me a “deménager”. Experiências hoteleiras incomuns, recordo bastantes, a mais extraordinária das quais foi adormecer na réplica de uma nave espacial, numa pousada do Canadá! Ou o episódio num hotel do centro de Atenas, onde era convidada do Governo grego, com a minha “comitiva” que se resumia a uma adjunta do gabinete, a Isabel. Aí deram-nos duas suites iguais, com portas comunicantes e ela ofereceu-se para dependurar no fecho das portas exteriores os pedidos de pequeno almoço. Regressou de súbito, lívida, ainda com os papéis na mão: “Estão dois soldados de metralhadora no corredor, a apontar às portas!”. Tranquilizei-a: “Não se preocupe, Isabel, são os nossos seguranças do turno da noite!”. Não gosto de armas por perto, se tivesse escolha, prescindia, mas ali não tinha. O ambiente andava agitado, com grandes manifestações de protesto contra a NATO, em vésperas de uma cimeira da Organização na Turquia, que, por acaso, era o nosso próximo destino. De dia, a escolta grega era muito mais discreta, dois homens e uma mulher “à civil”, todos bem vestidos. E muito simpáticos! A certa altura, passeando nas ruas estreitas da “Plaka”, com o meu passo rápido, sem querer, perdi-os. Que susto!… A Isabel e eu andámos, cada uma para seu lado, à procura deles desesperadamente até os encontrar. Não queríamos que o nosso “desaparecimento” lhes causasse um processo… O mundo antes dos telemóveis era assim. Gosto francamente dos gregos, estão sempre prontos a ajudar uma visitante em dificuldade com o mapa da cidade, se preciso for com linguagem gestual. Estive em Atenas, vezes sem conta, convidada por sucessivos homólogos. Um deles, para além de grego só falava alemão e, apesar disso, mantivemos conversas compridas sobre migrações, cruzando o meu rudimentar alemão com o seu inglês básico…. De uma das vezes fui recebida pela Ministra da Cultura, Melina Mercouri, com quem tirei uma foto para fazer inveja aos amigos cinéfilos. Na Grécia, a Secretaria de Estado dos emigrantes estava integrada no pelouro da Cultura – e muito bem! O meu círculo de parceiros internacionais alargou-se, enormemente, a partir das reuniões de Ministros das Migrações do Conselho da Europa. Perdi a primeira, em Estrasburgo/1980, numa data em que eu cumpria programa nas comunidades. Pedi ao colega do Emprego, Luís Morales. Foi um sucesso, decerto bem melhor do que eu seria, ganhando um debate decisivo com Lionel Stoleru, o O Secretário de Estado da Imigração, que não deixou saudades ao ser substituído, pouco depois, por Georgina Dufois, estrela ascendente do Governo Mitterrand. Enquanto Morales brilhava em Estrasburgo, eu estava algures. Talvez no Brasil, ou na Argentina, o país de Borges e de tantos amigos da Fundação Argentina de Paris. O Brasil é português, de língua e herança, mas não é europeu, a Argentina é. O Luís Garcez Palha, a Milú,e eu ficamos num pequeno hotel da Florida (finalmente, um pequeno hotel!) e o Embaixador. O Embaixador Lencastre da Veiga deu-nos a boa nova de que podíamos passear à vontade pelas ruas, dia e noite, sem segurança! A nossa comunidade era antiga e singularíssima, com muitos dos portugueses a serem empresários no setor na horticultura e na floricultura, no pequeno (ou grande) comércio. Visitei vários Clubes na “Gran Buenos Aires, um círculo alargado à volta da maravilhosa cidade - bonitos salões de centros culturais, alguns com restaurantes de comida portuguesa, espaçosas sedes campestres. Comunidades mais significativas em qualidade do que em quantidade, tal como no Uruguai, onde só fui mais tarde – nesse ano vieram eles de Montevideo para reunir comigo. Em junho fui chamada a diversas comemorações do dia nacional, para o que não é preciso o dom da ubiquidade – as festas não se esgotam num dia, prolongam-se ao longo do mês. Estive no Dia Nacional de Waterbury e de outras cidades de Connecticut, de Newark, de Nova Iorque e, depois, de Caracas, celebrado no monumental “Centro Português” ainda em construção, sem portas nem janelas. Não foi inaugurado o Centro, mas uma rua circundante – a Rua (ou Avenida?) Camões. Cabia-me descerrar uma lápide, que se revelou tarefa árdua. O panejamento que a recobria resistiu às minhas várias tentativas de o remover e, como ninguém intervinha, passei à ação. Saltei, com a agilidade dos trinta e ta anos, para um muro circundante, baixo, e ataquei o obstáculo de cima para baixo, como os jogadores de basquetebol, que introduzem a bola com a mão à altura do cesto. Curiosamente, na imagem da inauguração, apareço de costas, nesse lance mais do que desportivo. Outra situação um pouco estranha aconteceu na receção oficial na Embaixada, onde o chefe da nossa diplomacia, (que não era de carreira), decidiu partilhar com os homólogos estrangeiros uma mensagem áudio do Presidente Eanes num aparelho de cassetes barato e pífio. Não se entendeu uma palavra. Aproveitei para ler pausadamente uma semelhante mensagem do Primeiro-Ministro Sá Carneiro, muito contra a vontade do Embaixador. Estive, nas quatro décadas seguintes, em muitas cerimónias do Dia Nacional, mas nunca mais presenciei uma audição de cassetes. Paris, inevitavelmente No final desse mês, visitei a Europa, Luxemburgo e várias cidades da Alemanha, ligadas por autoestradas onde o Mercedes- Benz da Embaixada encurtava terreno a mais de 200km/hora - como eu gosto, sem infringir a lei, porque não havia limite de velocidade. E deixei a França para o fim, o previsível grande final…. Dizia um dos meus antecessores, o Embaixador Paulo Enes, que Paris é a melhor cidade do mundo para todos os cidadãos, exceto para o Secretário de Estado da Emigração portuguesa. O nosso representante em Paris era o Embaixador Siqueira Freire, o mais perfeito e encantador dos diplomatas. Não seria falta sua se o encontro comunitário corresse mal, que era a hipótese mais provável. Tomou todas as precauções. Escolheu um salão recatado, longe da residência da Rue Noisiel, onde eu estava instalada. E convidou para a reunião dirigentes associativos de todas as áreas consulares do país. Sala cheia a ambiente e ambiente tenso para começar! Comunistas ou “gauchistes” mais radicais ocuparam as filas da frente. Preveni que daria a palavra aos representantes de cada área, responderia a todas as perguntas, e só depois se generalizaria o debate. Se assim não fosse, a primeira fila não deixaria ouvir mais ninguém. Preparei-me para um exercício de paciência. Comecei por dar explicações, de imediato, a cada interveniente. Protestaram, queriam poupar tempo, agrupando a resposta a grupos de cinco perguntas. Assim fiz. Protestaram, porque, afinal, era preferível o “ping-pong” individual. Aí, surgiu o meu primeiro brando remoque – era bom assentar num critério. O pior estava para vir. Os comunistas, e os “compagnons de route”, apresentavam-se, invariavelmente, como independentes – coisa extraordinária, tantos anos depois de desaparecida a PIDE… Uma longa lista de independentes, até que, a certa altura, do fundo da sala se levantou um orador que disse: “Eu venho de Estrasburgo. Sou do PSD.” Foi uma algazarra no salão! O mínimo que gritavam era “fascista”. Perdi a paciência! Com a poderosa arma que era o microfone na mão, gritei acima do ruído geral. “Haja respeito! Acabou a ditadura, estamos em democracia. Cada pode dizer o que quer. Os senhores aqui da frente, são todos independentes. Aquele senhor, lá de trás, é do PSD. Está no seu direito! Ele ouviu-vos, sem protestos. Agora os senhores vão ouvi-lo exatamente da mesma maneira. Primeira surpresa: calaram-se e ouviram, em polido silêncio, o emissário de Estrasburgo. Surpresa maior: o ambiente degelou. Dera o meu grito de indignação no momento certo, que eu não imaginara que fosse o momento certo. Pelo meio, critiquei a absoluta ausência de mulheres migrantes na reunião, sem despertar animosidade. E depois de encerrada, em paz, a reunião, fiquei uma meia hora à conversa, informalmente, rodeada pelos da linha da frente, e um dos mais aguerridos até nos convidou a visitar a associação a que presidia, em Pontault – Combault. O Embaixador e eu fomos recebidos com imensa cordialidade e uma taça de “champagne”. Ficou, muito viva a memória dessa tarde, memória de uma Associação que fazia um grande trabalho quotidiano em pequenas e bem arrumadas instalações - na informação, no apoio social, no ensino da língua, e no campo cultural, com um festival português, que foi ganhando dimensão até se converter no maior evento anual de Pontault, naturalmente, oficializado pela “Mairie”. O quer não era caso único, regra geral o nosso associativismo angariava subsídios das autoridades locais do que das nossas. O orçamento da Instituto de Apoio à Emigração e às Comunidades Portuguesas, como eu, com escaldante candura, afirmaria, durante o 1º Governo Balsemão, era “ridículo”. O adjetivo fez manchetes de jornal, e até 1ª página no “Diário Popular”. Na mesma altura, Braz Teixeira adjetivou de “vergonhoso” o orçamento da Secretaria de Estado da Cultura. Fomos ambos saneadas na remodelação de setembro de 1981, ele definitivamente desenganado da política, eu com guia de marcha para o parlamento, uma vez que fora eleita por um quadriénio. África, Áfricas… A viagem que se seguiu a Pontault-Combault foi às profundezas de África –ao Zaire, Suazilândia e República da África do Sul. Por essa altura, já a minha comitiva se reduzia a uma secretária – quase sempre a muito discretamente competente Maria de Lurdes. A Ana, a muito espalhafatosamente competente, com duas filhas pequenas, pedia escusa. Que me lembre só viajou comigo uma vez, para as celebrações do 10 de junho nos EUA e na Venezuela, onde - hélas! - lhe roubaram as malas. É uma situação que acompanhei de perto no caso dela e, anos mais tarde, de António Bernardino, em Cabo Verde (com culpas para Lisboa, de onde a mala chegou só no dia em que regressamos). Viver de roupa emprestada não é fácil, ainda menos do caso da Ana, que era magríssima. No Zaire, o Embaixador Baptista Martins insistiu que ficássemos na residência, que era pouco menos do que sumptuosa. Uma primeira experiência africana, se descontar a “excursão-prémio” ao litoral marroquino duas antes. Ali era outra a África - tudo em ponto grande, o país, a cidade, as nossas instituições - a “Amicale Sportive Kinoise” e o Colégio Português de Kinshasa. A “Amicale” impressionava até quem já conhecia as luso-brasileiras: salões elegantes, um multifacetado complexo desportivo, piscina olímpica e, além disso, a convivialidade intercultural de associados de 34 nacionalidades. Era o maior e o melhor clube de todo o Zaire. De facto, bastava ser o melhor de Kinshasa, que como Lisboa domina a cena, em todos os aspetos. Semelhante ambição engendrara o Colégio Português, que ensinava o currículo completo da escolarização primária e secundária, em português, com pleno reconhecimento do Ministério da Educação, alto nível pedagógico e magníficas instalações, que incluíam “tout ce qu’ íl faut”, desde laboratórios a campos de jogos. O Embaixador Baptista Martins, que depois encontraria em Cabo Verde, na Argentina e na Hungria. Era eficientíssimo, e estava sempre de boa disposição. A seu lado, não menos enérgica, interventiva e simpática a Embaixatriz, que tinha a arte de nos fazer sentir completamente à vontade na residência. Deu-me conselhos práticos, que me permitiram evitar doenças terríveis, como evitar a água das torneiras até para lavar os dentes, no Zaire e em continentes inteiros, a leste e oeste. Hipocondríaca como sou, segui o alvitre à risca, usando à falta de água engarrafada, laranjada ou coca-cola. “Ce grande et beau pays”, como os naturais gostam de dizer do Zaire albergava uma singularíssima comunidade, impressionante não pelos números, (seriam pouco mais de 10.000), mas pela união interna e pela visibilidade externa, influência social e económica, e, sobretudo, boa aceitação, prestígio. O programa oficial indiciava isso mesmo. Fui recebida pelo Primeiro Ministro, o Doutor Karl- I- Bond, antigo professor universitário na Bélgica, com quem a conversa fluiu, nuns trinta minutos que passaram depressa demais… E, se seguida, pelo Embaixador Izumbuir, Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros, outro verdadeiro senhor, afável e charmoso, que falava um português perfeito. Eram tudo o que eu não esperava no círculo político de Mobutu. Com um e outro falei de lusofonia, de migrações, de laços culturais. Espantosamente, ambos reconheciam que tinham sido incitados s fazer os eus estudos por imigrantes portugueses, os tais que eram os únicos europeus a mediar trocas comerciais navegando as vias fluviais, à falta de estradas. Naquela região de África, estávamos livres da mácula de colonizadores. Até faziam uma distinção entre brancos e europeus. Uns era os portugueses, os demais caíam na outra categoria - eu confundo-as, só sei que éramos os bons! A Embaixatriz não conhecia a palavra obediência conjugal, ínsita na epístola de São Paulo. Contra a branda tentativa de dissuasão do marido, levou-nos a visitar os bairros considerados mais perigosos de Kinshasa, onde nenhum branco (ou europeu) se aventurava, e muito menos num faustoso Mercedes, com “chauffeur” fardado. Foi uma grande experiência etnográfica! Era o pôr do sol, as mães davam banho aos filhos, nos pátios das casas, muitas casas, todas muito semelhantes, despejando jarros de água sobre as suas cabeças, entre risos e vozearia. A Embaixatriz via-se rodeada de criancinhas bonitas, das mães - conversavam em francês, “tu cá., tu lá”. Muito popular, a querida Embaixatriz! Àquela hora, ali, os homens rareavam, exceto os que trabalhavam em bancas de ourives, também familiarizados com a bonita e chiquérrima cliente portuguesa. Compramos anéis e pulseiras de ouro puro e marfim, ainda em mercado legal. Com ela andámos também, sob calor tórrido, em mercados exóticos de víveres, onde me chocou ver pequenos macaquinhos mortos, à venda como galinhas, nos supermercados da Europa. Menos inquietante, o mercado de artesanato e arte, pinturas muito originais, estatuetas de malaquite ou de madeiras sedosas, que nos encantaram. E os vendedores, sorridentes e garridamente vestidos, a discutir preços, que iam descendo, vertiginosamente… Na televisão, o futebol dominava, quase sempre com retrospetivas de campeonatos mundiais e finais de torneios. As emissões encerravam cedo, aí pela meia noite, sempre com a efígie de Mobutu entre nuvens. Se me tivessem contado, não acreditava, mas vi, vi com os meus próprios olhos. Os telefones eram objetos decorativos, não funcionavam, era mais fácil dar o recado diretamente ou enviar mensageiro físico). Era obrigatório o tratamento igualitário de“citoyen” ou “citoyenne”, em vez do interdito Mr. e M.me). Isso em nada atenuava diferenças abissais de riqueza e pobreza, os altos níveis de corrução, criminalidade e violência. No entanto, das muitas visitas ao país, recordo um povo cordial, de sorriso fácil… Agora o Zaire é chamado Congo, a “Amicale” foi arrasada, como quase tudo e os emigrantes, salvo raras exceções, daquelas que sempre há, vieram embora. Não sei se farão parte do futuro congolês, mas estão na memória, como a sentiu no seu périplo por ar, terra e rios até ao Kivu, em receções populares extraordinárias, o Embaixador Álvaro Guerra. Uma viagem que me contou, com a precisão do jornalista e o humor que nunca perdeu. Será que chegou a publicar o relato dessa espantosa odisseia? Insistência eu fiz, com certeza, pois nunca perdia uma oportunidade de incentivar os amigos a passarem ao papel as suas experiências de vida. O que resultou, por exemplo, com Vasco Guerreiro. Ou talvez não, se é que já tinha o projeto em mente. Em qualquer caso, o entusiasmo alheio é sempre fator positivo. Anos depois, convidou-me a prefaciar o livro que conta a saga dos nossos comerciantes, rio abaixo, rio acima, a presença histórica no setor do café, (a “Casa Nogueira”, cujo vulto mais conhecido era um gestor, o Comendador Jaime da Cunha Viana, homem simples e bondoso, universalmente respeitado. Sempre que havia surtos de violência, muita gente se abrigava na sua casa grande, verdadeiro “santuário”. Era a nossa outra Embaixada. Kinshasa, a minha primeira imersão africana…. Apaixonante, incomparável, mesmo sem ter podido ir ao Kiwu! E que fantásticas recordações de uma comunidade feliz e unida – creio que mais unida não vi nenhuma. A etapa seguinte foi Joanesburgo. Era esperada na sala VIP pelo Embaixador Almeida Coutinho pelo Vice-Ministro do Interior, o Sr. Kotzee, um “bóer” gigante (comigo, talvez por ser mulher todos se mostravam cordiais). A minha terá sido a primeira visita de um membro do Governo português depois da revolução. O apartheid vedara o país a contactos internacionais, e bem, mas Sá Carneiro entendeu, igualmente bem, que a Secretária de Estado das Comunidades deveria ir aonde houvesse portugueses. Uma exceção absoluta! Em Pretória, tive um almoço de trabalho que juntou o meu homólogo e outras autoridades, com as questões da emigração em cima da mesa. Tudo consensual neste campo. Os meus encontros a nível bilateral corriam sempre bem, espantava-me a insuspeitada vocação para negociar acordos. Na sala, o mais reservado era o nosso Embaixador, com o seu jeito cauteloso e extremamente introvertido, a contrastar, com a minha habitual extroversão, que a África parecia potenciar. A Embaixatriz mostrava-se sempre mais otimista, mais à vontade, mas ambos foram excelentes anfitriões. Eu estava, desde o início, convidada a pernoitar na residência oficial, enquanto a comitiva se alojaria num hotel, mas quando agradeci a amabilidade e informei que a comitiva era unipessoal, uma secretária do Gabinete, o convite passou a abrange-la. Da residência recordo, sobretudo, os jardins, as vistas bonitas e, coisa rara, piscina. Contaram-me que Salazar era militantemente contra esse luxo burguês, e aquela exceção fora apresentada como “reservatório de água”. Ao contrário do nosso pretérito ditador, o associativismo português na RAS dava ao desporto enorme relevo - para captar a juventude nada melhor do que campos de jogos, o resto vem depois: a escola, os salões de convívio, os restaurantes. Na Venezuela, uma das maiores associações fora de Caracas, na área de Valência, começou assim, pela compra de uns hectares de terreno e imediata construção de uma grande piscina e de um relvado para a prática do futebol. Os sócios foram crescendo e as obras avançando à medida que o dinheiro entrava na tesouraria. Quando lá fui, já era um conjunto associativo monumental, com prémios ganhos a nível de todo o país. Pretória dava três bons exemplos desta doutrina, com a Associação da Colónia Portuguesa (ACP) de Pretória, e com a “Casa do Porto”, e, surgida alguns anos depois, a Associação Madeirense. Joanesburgo, com a maior concentração de emigrantes portugueses, era um universo associativo ainda maior, e com mais rivalidades, também.... Em Pretória, a forte personalidade do Vice-Cônsul Mário Silva ajudava a cimentar essa invulgar fraternidade. Homem único e irrepetível, amigo de toda a gente, incluindo os sul-africanos, (o que salvou da expulsão e outras desgraças muitos conterrâneos), teve um papel crucial na ajuda aos refugiados da descolonização de Moçambique e Angola. Alguém devia escrever a sua biografia… Na área consular de Joanesburgo, Carlos Teixeira da Mota, um dos mais brilhantes diplomatas da sua geração, estava a terminar o mandato e em pé de guerra com uma parte da comunidade, por causa da sua tentativa de integrar o ensino oficial do português na rede sul-africana em horário pós-escolar. Aparentemente um feito, uma “lança em África” …. até então o nosso Ministério da Educação só patrocinava a aprendizagem da língua na Europa, através de acordos bilaterais. Contra se manifestavam todas as associações que haviam investido muito nas suas próprias escolas e se viam em risco de ter de as fechar. Isso em muitos casos viria a acontecer e significou o declínio de parte das grandes instituições existentes. Se a matéria estivesse no âmbito da Secretaria de Estado, teria procurado a compatibilização dos dois planos de ensino da língua, repartindo por ambos os professores enviados de Portugal, garantindo o mesmo nível pedagógico e mesmo reconhecimento oficial, porque o enquadramento das aulas de língua num programa de atividades culturais em ambiente lusófono era, certamente, uma mais valia. A minha “comitiva” unipessoal, (a Milú) e eu fomos hóspedes na residência de Teixeira da Mota. Fomos recebidas por ele, à porta da vivenda na companhia de dois cães cordialíssimos, um labrador negro e um “leão da Rodésia”, que eu tomei por um perdigueiro gigante. Uma “gaffe”, mas era o meu primeiro “leão da Rodésia”, esplêndida raça africana, cujo temperamento está nas antípodas dos nossos amigáveis perdigueiros. Certo é que simpatizou connosco, ambas desde a infância amigas de todos os animais. Um dos portuguese que Teixeira da Mota fez questão de nos apresentar foi Joe Berardo, o já então célebre emigrante que enriqueceu, joeirando minas de ouro desativadas e esquecidas. Foi um almoço a quatro na residência. Encantou-nos a espontaneidade de Berardo e das suas narrativas, sentimento obviamente partilhado pelo nosso anfitrião. Outro almoço inesquecível foi o da “Academia de Bacalhau” de Joanesburgo. As Academias, ao contrário do que o nome parece indicar, não são fraternidades meramente gastronómicas, mas sim uma espécie de cruzamento dos “Lyons” e das alegres tertúlias da nossa tradição - uma combinação da componente nuclear da beneficência, com uma inédita faceta lúdica. A ideia foi do Dr. Durval Marques, Diretor do Bank of Lisbon and South Africa, e refletia a sua personalidade extrovertida, convivial e generosa. Na véspera de um 10 de junho, tomou a iniciativa de “institucionalizar” os almoços entre portugueses, homens de negócios, da “city” de Joanesburgo, dando-lhes regularidade e um regimento que permitisse a recolha de fundos para bem-fazer. O bacalhau entrou em cena como símbolo de amizade, (o “fiel amigo”), os associados recebiam o tratamento de “compadres”, título que tem o mesmo sentido simbólico. O “regimento” das reuniões tornava tabu a discussão de política, de religião, etc. – tudo o que facilitasse infrações que levassem a multas pesadas… De início, os convivas eram só homens. As suas mulheres, as “comadres”, não pertenciam formalmente à organização, embora fossem sempre convidadas para jantares comemorativos. As primeiras mulheres membros da Academia de Joanesburgo foram Amália Rodrigues e Vera Lagoa. A terceira fui eu. Aceitei, porque o espírito da organização nunca me pareceu discriminatório. Os fundadores estavam ligados por profissões onde, de facto, não havia mulheres. Logo que as Academias se expandiram pelo mundo lusófono, e chegaram à América do Norte, noutro contexto, abriram-se à plena participação feminina, e em Toronto, por sinal, a primeira presidência da Academia de Bacalhau foi de uma mulher. As Academias são, hoje, o maior movimento internacional da nossa emigração e não faltam exemplos de comadres dirigentes eleitas pelos seus pares – caso atual da do Porto. O mais popular de todos os encontros na RAS foi o de uma cidade cujo nome desconhecia em absoluto – Vanderbeljpark! Haveria de voltar lá, vezes sem conta. Quando no meu programa de deputada estava prevista uma ida a “Sun City” era certo e sabido que eu acabaria por trocar a excursão por uma visita, quase sempre a esta comunidade. E nunca cheguei a conhecer a Las Vegas africana! A cidade de Vanderbeljpark fica no coração de uma zona industrial, onde os portugueses eram suficientemente numerosos para fundarem um centro tão espetacular. Nessa noite, uma multidão entusiasta foi compensada de ter de ouvir o meu discurso chato (mais o do Mayor e o do Zé Gama, em modo de campanha eleitoral), pelas exibições de um rancho folclórico e de um grupo de fadistas e orfeonistas de Coimbra, que incluía o Luís Góis, e por um grande banquete à portuguesa. O único “senão” foi a entrada do Zé Gama em terreno partidário. Eu não queria misturar as águas e protestei, durante a viagem de regresso, mas ele respondia-me: “Pois, a Manuela não está preocupada, como cabeça de lista tem o lugar assegurado. Eu não. Tenho de lutar pelo meu!”. Exagero dele, na RAS o eleitorado da AD rondava os 90%. No fim de semana, o Governo sul-africano oferecia-nos uma estadia no Kruger Park, e o Embaixador mostrava empenho em que aceitássemos, mas Teixeira da Mota, mal chegamos a Joanesburgo, sugeriu um programa alternativo, mais cativante: uma viagem à Suazilândia, para contacto com comunidades de portugueses, mais de 12.000, que ali mantinham um associativismo pujante. O Embaixador Coutinho assinalou vários obstáculos: a Suazilândia dependia do seu colega de Moçambique (contra-argumentei que bastava comunicar a súbita decisão ao colega, compreendendo que ele não pudesse fazer a deslocação, para se juntar a nós); as autoridades não estavam prevenidas (bastava comunicar-lhes): não haveria vaga nos melhores hotéis. Respondi que, se isso acontecesse, haveria portugueses prontos a dar-nos abrigo por duas noites. Não foi preciso, conseguimos um hotelzinho em M’Babane, que, não sendo o melhor, era, confortável. E fomos magnificamente recebidos pelos emigrantes, tanto na capital como em Manzini, em duas belas associações. Muita gente, intensa vida social nos salões, e à volta das piscinas, que davam ao ambiente um toque de hotelaria “cinco estrelas”. Houve tempo para tudo, até para fazermos as habituais sessões de esclarecimento (problemas com o ensino da língua, com as contas de poupança crédito a juro bonificado e a exportação de carros, a indiciar já a tendência para regressos, que vieram a concretizar-se, progressivamente). Começámos, no sábado, em M´Babane. No domingo fomos a Manzini, onde chegamos ao pôr do sol. A primeira imagem portuguesa que os nossos olhos viram, em contraluz, foi uma grande bandeira azul e branca (do FCP!). Surpresa e emoção, para uma portista como eu! Só depois constatei que o emblema apresentava pequenas particularidades, a Virgem substituída por símbolos suazis, mas as cores lá estavam a indiciar a origem geográfica e clubista da maioria dos fundadores. Um encontro memorável, até porque foi ó único (voltaria à capital, sempre à pressa, não a Manzini, infelizmente). Pormenor curiosíssimo: na sala da direção havia duas solenes molduras com as efígies de Salazar e Caetano, retiradas do seu sítio e deixadas em cima de um armário. Os pregos estavam bem visíveis na parede à espera da recolocação dos quadros. Não comentei nem indaguei porquê. Imaginei uma votação sobre o “tira ou deixa” das fotos, a terminar empatada. Muito possível… Manzini não foi caso isolado. O mesmo registei, com a mesma democrática impassividade, em outras cidades de África e do Brasil. Em Belo Horizonte, numa foto em que estou ao lado do grande amigo José Aparecido de Oliveira, vêem-se, atrás das nossas cabeças, em fundo, o Presidente do Conselho Marcelo Caetano, a preto e branco, e o Presidente Mário Soares, a cores, lado a lado, na parede! Na viagem de regresso ao Gauteng, ainda tivemos oportunidade de contactar outra comunidade portuguesa, num almoço festivo em Nelspruit, com dezenas e dezenas de participantes. Uma organização perfeita de última hora, mais um testemunho da nossa proverbial capacidade de improviso. No território da RAS éramos acompanhados por dois seguranças muito simpáticos – um tenente de nome inglês e uma sargento de origem portuguesa. Tentámos obter licença para que fossem connosco à Suazilândia, não para proteção, mas pela boa companhia, mas sem sucesso. Estavam à nossa espera na fronteira, sorridentes. A próxima etapa era Durban, a beira do oceano Índico. O mítico Índico. Arranjei um minuto para ir à praia e mergulhar um pé nas suas águas (tanto mar, tanta piscina, nos meus roteiros, sempre sem tempo para mergulhar). Na cidade, estava ainda em fase de conclusão o que viria a ser um mais um magnífico centro social e cultural. À frente do consulado, a Vice-cônsul, mulher extraordinária, fez questão de participar na obra coletiva de construção, para o que foi obrigada, pelas exigentes leis locais, a tirar um curso especializado. Era viscondessa (suponho que por casamento, embora não me lembre do visconde), chique e muito simples, uma mistura ideal, que lhe permitia conviver em qualquer meio social, com qualquer nacionalidade. O programa incluiu um grande jantar num clube muito “british” precedido de um espetáculo de danças zulus. Os artistas eram muito simpáticos, tiramos imensas fotos com eles. Nunca mais vi os dançarinos zulus, nem jantei no clube inglês, mas visitei várias o magnífico clube português, depois de concluído e animado pelas suas gentes. A cidade do Cabo seria o ponto final da visita. Aí encontramos mais um Cônsul fora de série (de carreira, tal como o colega de Joanesburgo) desejoso de nos mostrar todas as faces da nossa emigração naquele fim de mundo. Já estávamos habituadas, a comitiva e eu, a não parar de manhã à noite. Não faltou a visita ao Cabo da Boa Esperança, onde o Cônsul recitou com uma bela voz e a devida ênfase o Mostrengo pessoano. Sob condição: todos virados para o mar, sem o olharmos! Cumprimos o prometido. Para o meu curriculum de antigos hotéis de “charme” fica a agradável estadia no “Mount Nelson”, que parecia parado no começo do século. Escolha do Embaixador Coutinho, que fez questão de me acompanhar em todo o périplo pelo sul da África do Sul. As eleições de 5 de outubro foram ganhas pela AD, expressivamente – o círculo de fora da Europa bateu todos os recordes, para sossego do Zé Gama. Alguma polémica causou um desabafo do Prof Freitas do Amaral, ouvido pela imprensa: “Agora a maioria já não precisa dos deputados do Dr. Mota Amaral”. Não era segredo que reproduzia um comentário do próprio Dr. Sá Carneiro. Como eu o compreendia…. A minha admiração pela autonomia Madeira incluía AJ Jardim, mas igual sentimento pelos Açores não se estendia ao perfil “opus Dei” do Presidente Mota Amaral. No partido, estivemos, quase sempre, nas antípodas, sem prejuízo das minhas sintonias insulares, com os governos regionais, e madeirenses e açorianos da Diáspora, (cuja emigração é proporcionalmente ainda mais significativa do que a do continente). Na sequência das legislativas, um acordo com Belém permitiu ao VI Governo permanecer até ao fim do ano, já em clima de eleições presidenciais. O grande projeto da AD para as Comunidades – a assembleia que lhes dava voz, o CCP, viu-se, também, adiado até à posse do VII Governo, em consequência de um “veto de bolso” do Presidente durante longos meses, quase seis – o Decreto Lei foi promulgado a 12 de setembro, mas já antes, nas minhas intervenções por todo o lado, eu anunciava a sua constituição certa, em data incerta. Quarenta anos a voar Assim principiou um ciclo de viagens, que se foi alargando ao longo de quatro décadas, até à pandemia, que me apanhou já quase octogenária. Foi a uma vida nem escolhida nem rejeitada. E, contudo, boa. Boa no convívio com os portugueses. no contacto com os governos estrangeiros, no trabalho em organizações internacionais, que privilegiei nos últimos treze anos de parlamento. Após ter falhado o primeiro “rendez-vous” com o Conselho da Europa, na 1ª Conferência de Ministros, em 1980, o que menos me faltou foi a vivência do “Palais de l’Europe”, o meu parlamento preferido, onde tudo é possível, até sonhar utopias Em 1980 fiz noutro palco a minha estreia internacional - na Conferência da meia década das Nações Unidas para a Mulher, em Copenhague. Na verdade, foram somente quinze minutos de palavra, nem sequer de fama, presente inesperado do Ministro que tutelava a Comissão da Igualdade, Pinto Balsemão. Ele tinha apenas três mulheres no Governo, uma de cada partido, para escolher a presidente da Delegação Portuguesa (delegações chefiadas por homens limitavam-se à geografia do Médio Oriente…). Não sei se me deu preferência por uma questão partidária, ou por me considerar a mais feminista. Tivemos um encontro prévio, em que apenas me recomendou, vivamente, que não excedesse o tempo de palavra. E eu cumpri, treinando e cronometrando o discurso, para não deixar o país malvisto…. Disse o texto muito depressa, num sintético inglês, e assim falei o correspondente a meia hora nos meus escassos 15 minutos, nem mais um segundo. Ao pescoço, para deixar a mensagem também pela imagem, levava o lenço de uma organização feminista e fui, naturalmente, muito felicitada por isso. A delegação era formada por especialistas da Comissão da Igualdade, todas excelentes, com destaque para a mais jovem, Leonor Beleza. Pedi ao Ministro o seu adjunto e meu amigo António Tânger, para me acompanhar. Estive na Dinamarca menos de 48 horas - a tal obrigou uma agenda implacável – enquanto o jovem Tânger permaneceu até ao termo dos trabalhos e apresentou resultados. Tentou e conseguiu acordar com todas as delegações dos países lusófonos uma declaração conjunta, em que se reclamava a introdução do Português como língua oficial das Nações Unidas. Seis anos apenas depois da Revolução, e ainda menos desde a descolonização, foi obra! Só recordo, hoje, vagamente, o salão, imenso e, apesar disso, acolhedor, e a delegação vizinha (do Catar, ou, melhor, Katar?), com os homens interventivos na primeira fila e silenciosas mulheres atrás. Aberrante numa conferência do empoderamento feminino… Os intercâmbios internacionais foram sempre a parte mais fácil do meu trabalho, tanto a nível multilateral como bilateral. Não me prejudicou, ao contrário do que esperava, o facto de ser direta e, quando necessário, contundente. A norte da Europa ser assim cria um clima de confiança. Na Suécia, na Alemanha, no Luxemburgo, na Inglaterra, era “conditio sine qua non” para negociar de igual para igual. E nos países do Sul? Talvez passasse por excentricidade, mas não causou aparente problema. 1980 foi o meu ano mais feliz, irrepetível, como eu já pressentia ao percorrê-lo, porque estava num governo de missão, com um fervor de crente incondicional, porque a missão me levava a entrar num mundo inimaginável e convidativo e porque me via em situações, que, à partida, não acreditava poder gerir e muito menos gerir por gosto. Viagens de avião, entrevistas, receções, discursos, debates públicos e similares compromissos passaram, meteoricamente, de paradigma de ordália bárbara a simpáticos pontos da agenda dos dias. Contudo, esse meu ano áureo terminaria bruscamente a 4 de dezembro. Dois dias antes, estive com Sá Carneiro, pela última vez, numa sessão de campanha presidencial, que reuniu centenas de militantes da AD, no Hotel Sheraton. O candidato Soares Carneiro e o seu mandatário Mota Pinto vinham dos Açores num voo que chegou com enorme atraso. Sá Carneiro falou mais de uma hora, em tom muito natural, contando alguns divertidos episódios de guerrilha política com o inimigo. Conversava para uma larga audiência de centenas de pessoas, como se estivesse em casa a conversar com amigos. Não dava mostras de cansaço e, nós, todos de pé, também não! Por fim, chegaram os convidados especiais, a reunião recuperou o seu formato mais convencional. A saída dos oradores fez-se num infindável corredor de cumprimentos. Que cansaço, ao fim de horas no uso da palavra, apertar centenas de mãos… Eu estava com o Zé Gama junto a uma parede lateral. Decidimos ambos não forçar o Dr. Sá Carneiro a mais um aperto de mão, ficamos a vê-lo, de longe, com preocupação, por não podermos tomar providências para o poupar. E, de repente, olhou para nós, e ato contínuo, veio, em linha reta, na nossa direção, cumprimentar-nos. Um último sorriso, uma última palavra. Daí em diante, restava-me continuar na emigração o Sácarneirismo, sem Sá Carneiro. Um quadro de atuação inovadora, pela viragem das políticas meramente assistencialistas focadas na emigração recente para os horizontes da Diáspora, com as suas prioridades culturais, e pelo reconhecimento e defesa dos direitos de cidadania dos expatriados, de direitos iguais, a par reconhecimento de Portugal como Nação de Comunidades, Comunidades em sentido sociológico, com a sua coesão e dinâmica, que as tornava insubstituíveis parceiras de diálogo para o desenvolvimento das políticas públicas. Com o fim do paternalismo intrínseco às políticas do passado, se iniciava um ciclo da democracia participativa, cujo primeiro passo foi a criação de um fórum representativo, o Conselho das Comunidades Portuguesas. O espírito do 25 de abril chegava, assim, às comunidades do estrangeiro. O 2º Governo da AD, chefiado por Pinto Balsemão, tomou posse, tal como o primeiro, nos primeiros dias de janeiro, mas as similitudes ficavam por aí. A AD original estava condenada a falhanço pelo desafeto crescente entre os parceiros. Pelo CDS, Freitas do Amaral negociou o governo e quis ficar de fora. E no PSD de fora ficaram, também, os ministros mais próximos de Sá Carneiro, como Eurico de Melo e Cavaco Silva. Ia começar a guerra sem tréguas entre Balsemão e os chamados “críticos” ou “rurais do Norte” (suponho que pensando em Eurico, um engenheiro/empresário nortenho, de aspeto pouco rural, e em Cavaco Silva, que era sulista). Eu tinha cartão fresco do PSD, assinado pelo Ângelo Correio. Fora uma adesão espontânea e impulsiva, nas vésperas de tomar posse no Governo. Para quem sempre tinha tido problemas de obediência, não era uma prudente iniciativa. Na altura, nem imaginava vir a ter envolvimento nas estruturas do partido, no meu gabinete mais ninguém tinha filiação partidária e no intenso roteiro das primeiras visitas às comunidades, os contactos com secções do PSD foram marginais. Na Europa, uma parte do movimento associativo era muito politizada, nas comunidades transoceânicas a maioria mostrava bem mais interesse nos laços culturais, no ensino, na divulgação daa imagem do país. Já Adriano Moreira, o grande percursor na estratégia de unir a Diáspora, dizia “a cultura é o máximo denominador comum”. Cedo nas minhas” viagens de observação e estudo” me apercebi da importância de expandir esse círculo maior, o que em nada prejudicava o projeto de alargar os direitos de intervenção política dos que se incluíam no círculo menor, a “comunidade política nacional”, também afortunadamente em expansão (o recenseamento eleitoral, se bem me lembro, quase duplicou nesse ano, apesar da oposição parlamentar ter chumbado o alargamento do prazo de inscrição nos cadernos eleitorais, que ficou reduzido a um mês – foi a única votação perdida pela AD, talvez porque dois ou três deputados da escassa maioria tivessem saído para tomar um café…). Sempre trabalhei bem com um e outro desses círculos, aceitando a livre escolha de cada um na sua forma de se sentir português. 1981 – O Conselho das Comunidades e outras aventuras Em 1981, não estava à espera de permanecer em funções nas Necessidades. Foi Freitas do Amaral quem me impôs a Balsemão, ameaçando exigir o lugar para o CDS, a menos que eu continuasse. Creio que queria que eu levasse por diante o grande projeto da AD, a organização concreta do Conselho das Comunidades, esse pomo de discórdia com o Conselho da Revolução. O convite foi-me formalmente dirigido pelo novo MNE, André Gonçalves Pereira. Mais um professor de Direito! Foi uma conversa amável, com reticências em fundo. Penso que tinha outro perfil de colaborador em mente, por certo sugerido pelo Primeiro Ministro… Tive um momento de hesitação, mas estava a meio de tarefas que queria acabar, com o CCP e a legislação da dupla cidadania à cabeça. Já entrava num avião como quem se senta numa sala de cinema e gostava imensamente das comunidades que ia conhecendo, sentia-me bem naquele trabalho paciente e sistemático de levantamento de situações e procura de solução concreta para os problemas. Era a mesma pessoa, e era outra, transformada pela evidência de experiências vividas. No dia 3 de janeiro, tinha na agenda, (para provável insatisfação do Primeiro Ministro e ambivalente estado de alma do MNE), tomar posse como SEECP, de tarde, no Palácio da Ajuda. A manhã estava reservada para a abertura do ano académico, no IDN, a convite do Diretor, General Altino de Magalhães. Tinha dado ao curso de DN uma aula (ou conferência?) sobre políticas publicas para a emigração, como haveria de fazer nos anos seguintes - era prática do IDN solicitar o contributo de membros do Executivo dos diferentes pelouros. Aérea como sou, não me ocorreu que a cerimónia merecesse honras de presença do Chefe de Estado. Encontrava-me no gabinete do Diretor, conversando com altas patentes militares (em democracia, aprecio imenso o convívio de militares) quando chegou o General Eanes. Apesar de empossada em dois governos, nunca o tinha cumprimentado. No primeiro, reinou a informalidade, formaram-se pequenos grupos e eu andei pelos cantos da sala, sem me aproximar do centro. No segundo, tão tensas eram as relações entre PR e PM, que não houve linha de cumprimentos. À terceira, foi de vez. O Presidente veio na minha direção e, depois do aperto de mão, disse-me: “Vou oferecer-lhe uma Constituição. Quer com assinatura ou sem assinatura? Pergunta tão surpreendente que tratei de responder da maneira mais fácil. “Com assinatura, Senhor Presidente. Muito obrigada”. Na segunda frase, o tom cortante acentuou-se: “É que, por declarações que fez recentemente, parece-me que nunca leu a Constituição”. Fez-se luz no meu espírito! Estava em causa o meu discurso na campanha do General Soares Carneiro, em que afirmava que em democracia não há tutelas de Conselhos da Revolução não eleitos pelo povo. Veementemente… Decidi evitar o terreno da argumentação jurídica e ir direta à questão em si “Tem todo a razão, Senhor Presidente. Nunca li a Constituição – somente artigo por artigo, quando é preciso”. Surpreendi o Presidente… e vislumbrei a retração de um quase sorriso. A partir dessa fração de segundo, o fio da conversa flui para a esfera positivamente lúdica. E a minha relação com o General mudou para todo o sempre. O seu sentido de humor e simplicidade foram uma revelação. O diálogo continuou perante uma distinta e silenciosa plateia. Para mim foi como se não estivessem lá. Aproveitei para mostrar o que mais me interessava no texto Constitucional: “Em todo o caso, há um artigo que conheço bem, o que consagra a igualdade entre homens e mulheres” O Presidente manifestou a sua concordância, eu lembrei-me de comentar que, ao abrigo desse artigo, num parecer dado na Provedoria de Justiça, pouco tempo antes, tinha defendido que as mulheres deviam fazer serviço militar obrigatória, o que o General Ramalho Eanes também respaldava. E quando eu acrescentei. “Eu é que já não serei abrangida pela medida” atalhou, com mais um toque de humor: “Porque não? Podemos dar à lei eficácia retroativa” Chegara a hora da sessão solene e o General Altino Magalhães veio convidar o Presidente a dirigir-se para o auditório. O diálogo foi interrompido, mas seria, nos anos futuros, retomado em inúmeras ocasiões, sobretudo durante o governo do “bloco central” quando Jaime Gama me enviava como sua substituta a cerimónias de entrega de credenciais de embaixadores, no Palácio de Belém. Conversar com o Presidente era sempre um prazer. Só mesmo um homem muito inteligente podia ser tão acutilante, conclui. E hoje muito me regozijo que hoje seja figura de culto universal – um estatuto com o qual passará à História, certamente. Da tomada de posse em 1981 não guardo especial memória. Não podia sentir-me feliz... Sempre tive a clara noção de que sem Sá Carneiro tínhamos perdida a melhor alternativa de futuro e todas as que restavam eram baças. Estava ali para levar por diante o projeto da AD para as comunidades, para tornar realidade a sua prioridade de lhes dar voz numa assembleia representativa. Não podemos saber o que teria sido o CCP, com qualquer outro Secretário de Estado. Em outro qualquer Governo, podia ter sido outra coisa melhor, mas não naquele, a avaliar pelo Congresso das Comunidades, que começou com pancadaria e acabou com a secessão de um terço dos participantes… É improvável que o meu “alternante” (na alternativa que o Prof Freitas do Amaral evitou) levasse à prática o bonito discurso de dar à “sociedade civil” o seu espaço face ao Estado. Os meus sucessores diretos no cargo (José Vitorino, com Balsemão, em 1981) e Correia de Jesus (com Cavaco, em 1987) parecem confirmar esta suspeita. Ambos suspenderam, de imediato, as reuniões mundiais do CCP, neutralizando-o. O primeiro considerava quase uma divulgação de segredos de Estado a política de transparência que eu impunha no Secretariado do Conselho, através da divulgação das respostas da Administração Pública a quaisquer recomendações do Órgão. O segundo acusou o CCP de pouco menos do que “usurpação” dos poderes constitucionais do Governo. Ora como os poderes do Conselho eram os que eu, enquanto membro do Governo, plenamente lhes reconhecia, mais valera acusar, diretamente, a herética antecessora. Os meus paradigmas nórdicos chocavam fragosamente com os vícios do secretismo e da opacidade das decisões administrativas e políticas, que reinava, e ainda reina, entre nós. E, talvez por isso, o CCP associativo, que tinha a força e a autonomia do seu “background” institucional não me sobreviveria no seu percurso singularíssimo de autoconstrução, em liberdade. A sua lei fundadora (o Decreto-Lei no 380/80), sendo minimalista, dava larga margem de manobra aos eleitos na sua interpretação e aplicação concretas. Para tanto, logo na 1ª Reunião Mundial, o Governo disponibilizou, entre as secções de trabalho, uma especialmente destinada à revisão dessa lei. E como havia sempre alguma coisa a rever e melhorar, a secção continuou, de princípio a fim desse 1º ciclo do Conselho. Foi sempre a mais participada pelos principais líderes de todos os cantos do globo, a mais decisiva no moldar da instituição. Todas as reconfigurações importantes co “Conselho” – como a criação da Comissão Permanente, dos Conselhos Regionais, da Comissão de Peritos, das Conferências temáticas (a fim de interagir nas comunidades para além do círculo associativo) ou da Comissão Interministerial - foram propostas pelos membros eleitos, sem interferência governamental. O mesmo se diga do modo de funcionamento do Órgão, no sentido da sua autonomia interna (presidência das reuniões de trabalho regionais e mundiais, elaboração da agenda, etc). Nem sempre houve paz, mas houve democracia! O Conselho não foi o paraíso de concórdia. Ou melhor, foi e não foi…. Foi nas matérias essências para a sua estruturação, como bem sabe quem esteve por dentro do processo. Visto de fora, porém, o CCP parecia uma casa da barafunda”. Pequenos pretextos, “faits divers”, provocados por um ativismo aguerrido com epicentro em Paris de França, deram essa pública imagem - com protestos, insultos, abandono de reuniões, tudo devidamente ampliado em “conferências de imprensa”. Uns lampejos de PREC, ainda temporalmente próximo! Comunistas e a sua esquerda, que nunca elegeram um só deputado à AR não resistiram à tentação de aproveitar aquele palco. Em lugar de Deputados, passaram a dispor de uma mão cheia de Conselheiros do CCP. Felizmente o alvo das diatribes era unicamente o Governo, isto é, quase sempre eu. As exceções foram os Primeiros-Ministros Mário Soares e Cavaco Silva, os únicos grandes vultos da pátria que aceitaram reunir com eles. Ambos ficaram furiosos e reagiram à sua maneira. O Dr. Soares, a quente. Correu-os, gritando, do seu gabinete, de onde eles queriam, justamente, ser corridos. O Prof.º Cavaco, a frio. Mal escolheu um novo SECP (Correia de Jesus), que aceitou o serviço, extinguiu o CCP autónomo, em favor de uma estrutura dócil, em que as eleições eram a exceção e a nomeação (pelo SECP), a regra. As reuniões mundiais acabaram. De positivo, o facto de algumas mulheres de elevado perfil aterem sido convidadas a pertencer aa uma organização local muito “low profile”. O CCP ressurgiu, em pleno, no Governo Guterres, quase dez anos depois, em 1996. A proposta de Lei chegou a São Bento, quase em fim de época parlamentar, mas a Comissão de Negócios Estrangeiros deu-lhe toda a prioridade e, numa maratona de reuniões, aprovou-a antes das férias de verão. O Carlos Luiz (do PS) e eu conseguimos tomámos a iniciativa, com apoio dos colegas de todas as bancadas. Novos tempos, uma democracia menos agressiva, um CCP sem vestígios de PREC. O CCP foi símbolo e instrumento de uma maneira diferente de fazer política. Posso dizer que me ocupou o pensamento e a ação desde o primeiro ao último momento de governação – e até depois, como deputada. Mas também é forçoso acrescentar que me deixou a frustração: de ter perdido o combate pela igualdade de sexos, dentro de uma instituição particularmente misógina - ainda agora o é, com quotas e tudo! A ausência de representação feminina ou a sua gritante sub-representação durante o primeiro 1º CCP, quando era eleito por um colégio eleitoral associativo refletia a realidade misógina das comunidades de onde provinha. E m 1981, os eleitos eram homens – a 100% e em 1883, apenas duas mulheres, uma de Toronto, Maria Alice Ribeiro, outra de Paris, Custódia se lhes juntaram. Era óbvio que o colégio eleitoral associativo refletia a realidade misógina das comunidades de onde provinha, mas o certo é que passar à eleição por sufrágio direto e universal não resultou em grande progresso, nem mesmo com aplicação da Lei da Paridade, desse 2007. O conselho continua uma República de homens. Em mais de 40 anos nunca uma mulher foi escolhida pelos seus pares para uma presidência, nem do Conselho Permanente, nem de uma simples comissão. Comparativamente, a Assembleia da República pertence a outra liga… O que podia eu fazer? Escolhi mulheres para tarefas e cargos de nomeação governamental, como a assessoria das Secções, o Secretariado, a “Comissão de Peritos”, por sinal rigorosamente paritária. Era de menos. Vi-me num impasse… até que, em 1984, uma via de solução foi aberta duas emigrantes, Maria Alice Ribeiro, a Conselheira de Toronto, e Natália Dutra, mulher do Conselheiro da Califórnia Ramiro Dutra). A ideia surgiu num jantar informal, durante e Reunião Regional do CCP em Danbury, Connecticut. No dia seguinte, Maria Alice formalizou a proposta no Plenário e, em Lisboa, foi-lhe dada prioridade máxima por uma “cadeia de comando” feminina: a SECP, a Presidente e a Vice-Presidente do Instituto, (Maria Luísa Pinto e Rita Gomes), a Diretora do Centro de Estudos (Graça Guedes) e a verdadeira “operacional” de uma esplêndida organização (Maria do Céu Cunha Rego). Foi escolhida a cidade de Viana, o mês de junho, logo após o Dia Nacional. Estávamos, por coincidência, no ano de encerramento da Década das Nações Unidas para a Mulher e recebemos o alto patrocínio da UNESCO. E, assim, Portugal, país conhecido, desde o início da Expansão, pelas mais misóginas políticas migratórias se converteu absoluto em pioneiro ao promover o 1º congresso mundial para o empoderamento das mulheres migrantes. Na verdade, o Congresso constituiu uma réplica feminina do Conselho, convocando mulheres das duas vertentes em que este se repartia, o associativismo e o jornalismo (o Encontro foi, recordo-me bem realizado na então novíssima Escola de Jornalismo, dirigida pelo Prof Salvato Trigo) Os interlocutores, a nível do Estado eram praticamente os mesmos – Governos da República e das Regiões Autónomas e parlamentares, altos dirigentes da Administração Pública, (não esquecendo, naturalmente, a Comissão da Igualdade). E, também, grandes escritoras e aliadas, como Ola Gonçalves e a maior de todas, Agustina, que além de genial, era uma simpatia. (como Amália, Eduardo Lourenço, Natália ou Eusébio, cada qual no seu terreno de jogo). Ao grande Encontro não faltaram as protagonistas que o tornaram o mais extraordinário congresso em que participei em quase meio século de vida pública. Eu, que até me dou bem entre barafundas e contendas – como se viu, anos após ano, nos sete que durou, em plenitude de funções, o CCP originário – deparei ali o ambiente era o oposto. E eu dei-me ainda melhor! Para mim, é sempre natural dar reciprocidade a amizades e inimizades. Nunca gostei de quem não gostasse de mim (não sei o que são amores não correspondidos), mas, à partida, simpatizo com toda a gente, na convicção, por vezes infundadas, de que os outros retribuem o amistoso sentimento. Todavia, não sendo pessoa de começar uma guerra, respondo, como vimos, às que me fazem, sem oferecer, cristãmente, a outra face a uma metafórica bofetada. Questão que ali não esteve na ordem do dia… Qual foi, então, o segredo do sucesso desse Encontro mundial? Porventura o feliz processo de escolha. No meu gabinete, apenas traçámos perfis e critérios gerais, ninguém interveio em escolhas concretas. A mobilização a nível local foi obra, sobretudo, dos meus homólogos dos Açores e Madeira, de Embaixadas e Consulados. As candidaturas foram curriculares e acompanhadas de uma comunicação escrita sobre os temas do Encontro mundial, que reuniu trinta e cinco mulheres dos cinco continentes, de várias gerações, meios sociais, formação académica e profissões. Estudantes, professoras, empresárias, jornalistas, investigadoras, dirigentes associativas, artistas, entraram em cena, vindas do espaço de invisibilidade onde se encontravam, e mostraram-se com brilho e entusiasmo. Trouxeram a sua visão estratégica dos problemas de fundo das comunidades, como um todo, e do papel da metade feminina no seu interior. Exigiam ter voz nas soluções a encontrar, num e noutro plano. Na verdade, foi um CCP feminino, que provou quanta falta elas faziam no Conselho de onde estavam ausentes. Em vez de confrontos e aproveitamento partidário, constatou-se a vontade geral de aproveitar o momento para troca de experiências de gerações e emigrações, que, apesar de tão diferentes, convergiram nas análises de situação e nas propostas. Os problemas da desigualdade e marginalização não estavam ultrapassados em lado algum, apenas se distinguiam em grau e enfase. As mulheres migrantes estavam (quase) completamente ausentes da liderança do movimento associativo, com reflexo direto no CCP. E, da parte governamental, a promoção da igualdade de participação cívica e política que a Constituição declara tarefa fundamental do Estado limitava-se a território nacional… O Encontro de Viana ganhou a sua aura mítica por ser o primeiro gesto do Estado no sentido de promover o empoderamento das mulheres portuguesas onde eram mais discriminadas: no espaço extraterritorial de vivência coletiva, que são as comunidades organizadas. E, também, por ser o tempo e o lugar onde as mulheres migrantes revelaram a vontade comum de mudar essa situação, reclamando esse mundo, em grande medida, desde a génese, como contributo seu reconhecido. De facto, foi a chegada das mulheres, e com elas, de famílias inteiras, ao convívio associativo, que converteu um modelo organizativo que mais não era do que a réplica de cafés ou tabernas de aldeia, em “centro cultural”, com a música, a dança, a escola, o desporto, escola, não esquecendo a gastronomia, o restaurante, que é, em regra, o sustentáculo financeiro de tudo o mais.… Mas, apesar disso, como tantas vozes disseram em Viana, as mulheres viam-se acantonadas nessas “casas coletivas” ao seu papel tradicional de discreta “fada” do seu próprio lar. A mesma rígida divisão de trabalho… As emigrantes sentiam-se, quase sempre, mais iguais na profissão e, latamente, na sociedade estrangeira do que naquela sociedade nacional paralela, onde, para serem aceites, tinham de se conformar às cozinhas e aos bastidores da festa… Na reunião pioneira tomavam a palavra “mulheres-exceção”, com títulos académicos, sucesso profissional, dirigentes de associações ou empresas, ativistas conscientes das discriminações sofridas pelas “mulheres comuns”, se não por elas mesmas... E houve, também, em Viana, as participantes que ali fizeram a sua volta às origens. Foi o caso da famosa Dolores Nunes-Lowry. Sintetizou assim a sua epifania vianense: “Portugal, país de meus pais e agora também o meu!”. Não sei quantas vezes a citei, para mostrar como o espaço da lusofilia pode crescer mais do que se imagina possível. Fiquei, confesso, sentimentalmente ligada tanto ao CCP dos homens, como ao efémero CCP das mulheres! Se tivesse de sintetizar a obra feita em quatro governos, apontava o diálogo nestes “fora” e em todos os encontros e debates realizados ao longo desses anos, um pouco por todo o lado. O resto foi tentar levar a solução aos problemas, na dinâmica assim criada. Com os meios disponíveis da parte do governo, deixando, o que no CCP é paradigmático, a primazia à obra coletiva, à obra dos outros. Não eram ideias ou projetos pessoais. O Conselho estava previsto num pequeno texto do Programa eleitoral da AD, e podia ter sido concretizado de mil e uma maneiras. Foi-o à minha maneira: com o mínimo de Estado possível, onde quer que eu representasse o Estado. Independentemente do cargo ou do assunto em concreto, eu prefiro trabalhar em coletivo e sempre ganhei com isso, como se vê pelo exemplo do encontro mundial de mulheres, mas de duas portuguesas da América do Norte, que tiveram a ideia. Eu pu-la em prática…. Deram-me a melhor das soluções o que eu queria fazer sem saber por onde começar (uma espécie de “ovo de Colombo”). Já o mesmo acontecera no Ministério do Trabalho, quando encontrei numa gaveta o projeto esquecido de criar um instrumento para promover a igualdade de sexos no campo laboral. E assim nasceu a CITE… Outras vezes era o contrário, eu tinha a ideia a sorte de encontrar quem a concretizasse muito melhor do que imaginara. É certo que entre as minhas ideias e as da minha “entourage”, (onde se distinguiam Maria do Céu Cunha Rego, irmã gémea no feminismo, e a Maria Beatriz Rocha Trindade, pioneira da sociologia das migrações), muitas utopias não encontraram terreno onde germinar. Um dia contarei a história dos meus desaires, que é maior e mais variada do que a dos conseguimentos. Alguns desses fracassos aconteceram comigo, outros posteriormente. A nossa vida política é feita de constantes ruturas de percurso que são, a meu ver, a principal razão do nosso atraso económico e geral. Os sucessores preferem inovar, a prosseguir qualquer projeto, e não raramente desmantelam tudo o que vem de trás, sobretudo se neles vislumbrarem uma sombra de outrem. Com a CITE tive imensa sorte: atribuo a sua longevidade ao facto de nunca ter sido fulanizada ou conotada, (talvez por ter sido um diploma do Governo Mota Pinto promulgado na vigência Pintasilgo). O CCP foi outra espécie de milagre… viu-se completamente desfigurado durante as maiorias de Cavaco Silva, mas veio a ser “repristinado”, com o espírito e as funções originais por José Lello, no Governo de António Guterres. Já as “Conferências para a Promoção da Igualdade” previstas com periodicidade anual, com que, depois do Encontro de Viana, se queria prossegui as políticas públicas contra a discriminação de género na emigração foram um nado-morto, enterrado lado a lado com o CCP. Só 20 anos depois, em 2005, renasceriam, com o meu já distante sucessor, e amigo, António Braga (eu própria, do lado da sociedade civil, como dirigente da Associação Mulher Migrante, lhe apresentei um plano de novas conferências, que tomaram a designação de “Encontros para a Cidadania – a igualdade entre homens e mulheres”. Todos estes bons exemplos de viragem de “políticas de desmantelamento”, curiosamente, aconteceram na sequência de intervenção minha junto de governos socialistas (les beaux esprits se rencontrent...). No caso do Conselho, é evidente que a sua extinção foi facilitada pela má, ainda que injusta, imagem mediática que o cercara. Muito injusta! Assim como não podemos avaliar uma Assembleia da República, com 230 membros, pelo comportamento dos doze deputados de um partido radical e populistas (lembremo-nos, por exemplo, da receção ao Presidente do Brasil a 25 de abril de 2003), também não podemos amarrar o CCP à conduta desordeira de pouco mais de meia dúzia de conselheiros de Paris e arredores, que, como diria o Presidente Lula da Silva, faziam “um papelão” …. A sessão inaugural, (a 6 de abril de 1981), deixou uma péssima primeira impressão, protagonizada por um “hacker” parisiense. Depois, o Conselho que terminou em festa e em festa, com o Secretariado a as assessorias das Secções a serem unanimemente elogiadas, mas isso já teve o mesmo eco na imprensa. Fora uma espécie de “milagre”, operado graças à calma e paciência da parte dos funcionários, a uma invulgar contenção da minha parte e uma grande capacidade de diálogo dos conselheiros mais moderados (a maioria!). Havia um significativo de padres, que muito se empenharam na pacificação do ambiente – dos EUA, Canadá, Venezuela, Reino Unido, Austrália… Quando eu narrava alguns episódios que os envolviam ao Ministro Gonçalves Pereira, ele atalhou, a rir-se: “Já percebi. Quem lhe salvou o Conselho foram as hostes do Cardeal Medeiros!” Menos contente se mostrara o MNE, uns dias antes, quando tinha sabido pelos jornais da minha aceitação da presidência do CCP por um emigrante, eleito entre os seus pares. Interpelou-me no seu belo gabinete forrado de azulejos: “Com que então aceitou retirar-me a presidência do Conselho? Ao que respondi prontamente: “Aceitei, sim. A proposta era consensual e achei que não prejudicava o funcionamento dos trabalhos. Importa-se?” Não! Não me importo” foi a plácida reação verbal, o rosto impassível (era homem para gozar com estas coisas – “de minima non curat pretor”…). Retorqui, simplesmente: “Então está tudo bem!”. Ao ritmo a que o Conselho decorria, não havia tempo para consultar o Ministro a toda a hora, nem ele o quereria… Em regra, os Ministro dos Negócios Estrangeiros, focados na sua agenda diplomática, davam carta branca aos Secretários de Estado da Emigração. Em 1980, em estreia absoluta, levava mais assuntos a consulta do Prof Freitas do Amaral e ele estava sempre disponível para pensar qualquer assunto em conjunto. Em 1981, já andava em roda livre e assim continuaria - a margem de autonomia era a outra face da moeda de uma insofismável marginalidade do pelouro das comunidades no MNE, (exceção feita ao tempo de Sá Carneiro/Freitas do Amaral). Gonçalves Pereira só num caso impôs o seu critério, para me impedir de participar nos “encontros preparatórios” do Congresso das Comunidades Portuguesas, (como eu queria e o Presidente do Congresso, Prof Rosado Fernandes, também). O grande evento que devia ter estado no centro das comemorações camonianas, mas o braço de ferro do Governo com o Presidente e o Conselho da Revolução levou ao seu adiamento. Ficou o nosso vate sem festa digna de registo, porque no Congresso, a 10 de junho de 81, a polémica política deixou pouco espaço à poesia. A magna reunião da Diáspora, nos salões de um hotel “5 estrelas”, começou, como num “saloon” do “farwest”, com uma cena de pancadaria transmitida em direto pela televisão! Alguns Congressistas, furiosos com a (prudente) ausência do Presidente Eanes, atacaram o seu mensageiro, o Conselheiro da Revolução Vítor Alves, antes mesmo do discurso inaugural. Passei a poucos metros, para entrar na sala, contrariando conselhos da segurança. “Esta guerra não é comigo”. Nada, ali, era comigo: entrei muda e sai calada. Permaneci, horas e horas, sentada na longa mesa de honra, a assistir aos trabalhos – um encadeamento de incidentes processuais, afrontamentos ideológicos, violência verbal, quando não física. O que mais se poderia esperar do funcionamento em plenário, dirigido por um sindicalista do PSD com mau feitio, que decidiu repartir o tempo de palavra por centenas de oradores? Com um ou dois minutos “per capite”, a alternativa para os congressistas era fazerem uma breve saudação ou um breve protesto. Muitos dos contestários (a metade esquerda dos congressistas europeus) aproveitavam o seu minuto para traçar as diferenças entre um CCP democrático, onde, apenas dois meses antes, tinham podido aprofundar os assuntos, e o Congresso, convertido em maratona de telegráficos monólogos. A mesa do Congresso usou a força esmagadora da maioria contra a minoria. Alguns moderados tentaram fazer a ponte entre as extremidades, (sobretudo os do Brasil). Em vão. Um Congresso em que eu pudesse intervir não seria assim. Isso foi percetível até para o Conselheiro da Revolução Vítor Alves. Na sua biografia sou assinalada como parte da fação moderada do PSD…. Na altura, eu, ainda muito a leste da vida partidária, e não dei conta de quanto estava isolada, e até de saída no curto prazo, daquele governo (uma sobrevivência do “Sacarneirismo” no MNE). Só “a posteriori” compreendi as razões do confinamento em Lisboa, sem poder participar nos diversos congressos realizados nas comunidades, onde foram possíveis os debates que não houve em Lisboa. Penso que, talvez, (do lado do Estado qual andorinha solitária que anuncia a primavera), pudesse ter unido os desavindos (convidado o Congresso a inspirar-se no CCP) O meu estatuto de indesejável naquele Executivo não melhorou com as intempestivas declarações, quando vi cortadas as verbas para o funcionamento e ação do IAECP. Fiz títulos de jornal ao dizer que o orçamento da minha Secretaria de Estado era ridículo. Na mesma altura, o meu colega Braz Teixeira adjetivava de “vergonhoso” o orçamento que lhe davam para a Cultura. Fomos os dois corridos do Governo, poucos meses depois, no mesmo dia. No meu caso, depois de um estranhíssimo ziguezague de convites e “desconvites” (neologismo que terá surgido então). Primeiro, Gonçalves Pereira preveniu-me de que o Chefe do Governo queria substituir-me, convencido de que eu alinhava com os seus “críticos”. Não era verdade, embora, no íntimo, simpatizasse com o outro PSD. Não pecava por ação, só por pensamento não revelado em palavras. O MNE e eu, apesar das nossas diferenças, entendíamo-nos bem, graças a um conjunto de semelhanças idiossincráticas – por exemplo, sermos de decisão rápida, nem sempre a melhor. No imediato, a quente, não cedíamos, mas no dia seguinte, a frio, éramos muito capazes de repensar o veredito. Em regra, quando ele dava despacho, da qual eu discordava, voltava à carga, após pausa bem calculada: “Senhor Ministro, estive a pensar no assunto e parece-me que seria melhor ir por outro lado”. Ele quase sempre assentia. Os meus colaboradores usavam comigo o mesmo método, que resultava, talvez, um pouco menos vezes. Outras sintonias: sermos acessíveis, a qualquer hora do dia, de preferência pelo telefone, informais no tratamento mútuo, imparáveis a mover processos para a frente… Talvez por isso, tentou que eu permanecesse em funções. Chamou-me ao seu gabinete, com ar de quem venceu um combate, disse-me que tinha convencido o chefe máximo a manter-me no elenco das Necessidades. Fui informar a minha equipa. Pararam a limpeza das gavetas e retomaram o fio da meada, dando prioridade a uma visita já programada a Paris, para conversações com o meu esfíngico homólogo, o conservador Lionel Stoleru. A Europa parece ter sido nesses oito meses do VII Governo o meu único círculo geográfico de livre circulação –Paris, por várias vezes, Luxemburgo, onde conheci o Ministro Spautz, um frequente futuro interlocutor, a Alemanha, também para contacto com os homólogos, e pouco mais. A exceção terá sido uma viagem à Venezuela. Parece-me que até a parada do 10 de junho em Newark falhei nesse ano… falha grave porque ainda não era, mas ia ser, com o Sr Coutinho, a maior festa do mundo (português) e já merecia reconhecimento. Em agosto a emigração encontrava-se no território nacional, de férias. Só pela fronteira terreste entrava mais de um milhão de retornados. As festas e os debates mudavam de geografia, não de natureza e estilo, e eu corria o país, pendendo sempre mais para noroeste, sob o peso dos convites insistentes. Quantas horas serpenteei pelas curvas do Marão para chegar a Vila Real, Montalegre, Chaves. Miranda do Douro, com um motorista que parecia vir da Fórmula 1.… As afinidades com os transmontanos são muitas – gente frontal que fala sem rodeios, dá a palavra e cumpre e não admite que os outros não façam o mesmo. E, além disso, recebem magnificamente! Depois de uma dessas memoráveis jornadas, aos meus agradecimentos o Diretor do Turismo respondeu com uma útil advertência “Ainda bem que gostou. Da próxima vez que formos a Lisboa não faça como a sua colega de partido, X , que também partiu encantada, parecia uma grande amiga, mas, depois, quando a procuramos em Lisboa nem sequer nos recebeu”. O comum dos políticos faz o mesmo. Aquela repreensão prévia teve em mim efeito muito pedagógico. Procurei sempre dar a reciprocidade. E, também, não fazer promessas vãs. Podia até ser antipática no momento a dizer “não sei se vai ser possível”, mas, depois, se a coisa não acontecesse, estavam prevenidos e, se acontecesse, ficavam encantados. O crime (da demagogia fácil) nem sempre compensa… Por acaso, não foi em terras transmontanas, mas mais perto, na também muito familiar cidade de Santo Tirso (onde passei algumas férias da minha infância), que tive um último encontro com emigrantes no verão de 81, nas vésperas de tomar posse o novo Governo. No dia seguinte, fui chamada a urgente audiência pelo MNE, que me comunicou a terceira reviravolta, explicada em tom de comédia. O Primeiro-Ministro não desistia de me substituir por um dos seus fidelíssimos rapazes. Ambos nos divertimos a expensas do escolhido, um especialista em pescas e turismo, na 25ª hora reconvertido às questões migratórias. O MNE pediu-me que lhe passasse a informação relevante, o que prontamente fiz, convidando-o para um almoço de trabalho, à portuguesa. Não me pareceu entusiasmado com os dossiers, manifestou mais curiosidade em saber a marca do carro que ia herdar. Muito gozo me deu responder-lhe: “Vai ter o carro mais barato que há no mercado para um Secretário de Estado” …. O que era verdade, com a compra recente de um Peugeot em saldo, despachada por mim, a fim de poupar verbas ao IAECP, quando o velho “Citroen bico de pato” do Gabinete foi para a sucata. Ainda por cima, não era preto, como os homens pomposos gostam. Era azul claro, último exemplar que restava no stand. O novo Secretário de Estado não conseguiu trocá-lo, e nunca teve um carro dos seus sonhos… Durante o seu mandato, nunca mais fez questão de me ouvir, nem como deputada da emigração nem como ex-governante. Naquele agosto politicamente quente, não gostei do “desconvite”, mas gostei que o termo entrasse no dicionário de alguns jornais. Nem todos os “desconvites” são maus, dependendo do contexto e do momento. Aquele era porque eu tinha muita coisa em mão: as negociações bilaterais com Paris, a revisão das Leis da Nacionalidade e do Conselho, o 1º Congresso Mundial de Jornalistas da Emigração, o início de uma colaboração sistemática com universidades de norte a sul do país, para colocar a emigração na agenda académica, as parcerias com o movimento associativo, o lançamento de uma linha editorial e de um circuito de vídeo - primeiros passos para a constituição de um Fundo Documental e Iconográfico das Comunidades Portuguesas, por sua vez, pensado como a pedra angular de um futuro Museu da Emigração. Estes dois últimos projetos estavam muito bem entregues à criatividade e ao entusiasmo da Maria Beatriz Rocha Trindade. De tudo isso, com o meu sucessor só foi para a frente o congresso dos jornalistas, para o qual os deputados da emigração não foram convidados…. Comigo tê-lo-iam sido, naturalmente. Sou uma nortenha “convivial” e cultivo, por feitio e quase sempre com proveito, o “diálogo com todos”, deputados (seja qual for o seu partido), membros de associações (seja qual for a eventual coloração partidária), funcionários e colegas (idem). Vitorino pertencia a outra escola de pensamento. Conseguiu o feito raro de ter, a propósito de diversos “dossiers”, os quatro deputados da emigração contra si, três da AD (um do CDS, José Gama, dois PSD’S de fações adversárias, o Capitão Figueiredo Lopes e eu) e um da oposição (João Lima do PS)! Subitamente, em São Bento Não obstante me ter visto, assim, afastada de um cativante trabalho inacabado, fui animada para o Palácio de São Bento, porque como diz o poeta, a vida é feita de mudança, e o Parlamento, visto de fora, sempre parecera mais “glamoroso” do que o Executivo. A realidade logo desfez ilusões, outra constante da vida.... Nem no meu emprego de neófita tinha trabalhado em condições de tanto desfavor, sem secretariado e sem gabinete individual. O “ratio” de deputados para cada secretária (no feminino, pois não havia, que me lembre, um único secretário) era simplesmente caricato. Falo de deputados comuns, não dos líderes das bancadas parlamentares, que gozavam de assessoria, local de trabalho, carro e outras mordomias. Nós, a arraia miúda, quanto a secretária, no sentido de mesa de trabalho, estávamos pior ainda. Tínhamos ao dispor apenas uma sala comum, com cadeiras, mesinhas com telefones fixos e um cacifo aberto para correspondência. A sala mais parecia uma estação de comboio em hora de ponta, num vaivém constante de gente apressada, com correrias coletivas quando a campainha chamava para o hemiciclo. Fumavam, desalmadamente, por todo o lado, ali, na sala de sessões, nos corredores… Só a fumarada me incomodava, não o caloroso caos, em que faltava tudo menos camaradagem, ao menos dentro de cada clã. O recomeço é sempre uma espécie de primavera. Aproveitei-a bem. Comecei a fazer amigos, um pouco por todo o lado e alguns inimigos, dentro do meu partido. Fui em demanda do grupo dos “críticos” ao qual era suspeita de pertencer, assim fazendo do prematuro prognóstico realidade pura e dura. Balsemão tinha tido razão antes do tempo. Creio que ele ainda tentou estender-me um ramo de oliveira, convidou-me, para o representar na festa de 25º aniversário do “First Portuguese Canadian Club”, associação pioneira em Toronto, conhecida familiarmente como “First”. Tinha ótimas instalações próprias, salões, restaurante, escola. Um “ex-libris” da comunidade! A festa foi em grande, com um tempo agradável, juntaram-se no largo fronteiriço à sede, centenas ou milhares de pessoas. Li a mensagem de Balsemão, acrescentei as saudações da praxe. Enfim, uma representação que não desiludiria o representado. (aplacada, porém, não estava, nem ia ficar, e, um pouco mais tarde, recusei outro ramo de oliveira, o convite indireto para ocupar o lugar dos “críticos” na Comissão Política). Em Toronto dei a Cruz Gomes, o diretor de “O mundo”, uma entrevista de três páginas, em que Sá Carneiro era citado vezes sem conta e não me esquivava a responder ao tópico do “desconvite”: “Na realidade, o que me motivava a ficar no (1º) Governo Balsemão e o que me levava a fazer parte do 2º Governo era precisamente a continuidade, havia um sem número de coisas a fazer”. Mas, dito isso, objetivamente reconhecia que a mudança de titular tinha o seu lado positivo: “Quanto mais políticos houver interessados na emigração, melhor! Cruz Gomes era militante do PDS, Sácarneirista como eu, embora, se bem me lembro, mais recetivo a Balsemão, mas não ao “josevitorinismo” na emigração… O que se adivinha nos elogios: “Eis na íntegra a conversa tida com uma mulher cuja simplicidade, sabedoria e capacidade governativa ensombra muita gente”. Uma espécie de obituário pela ex-SEECP, que me causava um enorme espanto. Na verdade, não esperava ter projetado uma boa imagem de “poder no feminino”, e, com ela, “ensombrar” alguns homens (os que se deixavam ensombrar…). O rápido alinhamento com os “críticos” permitia-me, entretanto, viver o que de mais lúdico tem a política partidária - guerrilhas verbais, sem obediência a qualquer chefe, liberdade de movimentos, de fazer coisas diferentes, de conhecer gente fascinante, que nem sempre se encontra num parlamento. Eu tive a sorte de ficar, na bancada, lado a lado com Natália Correia, com Francisco Sousa Tavares… Não creio que fossem muito compatíveis entre si, mas eram-no comigo. Os “críticos”, também – uns mais do que outros. Mais, Amélia e Amândio de Azevedo, um pouco mais velhos, muito mais experientes, sempre a tentarem sustar os meus ímpetos…E a Dinah Alhandra, cujos ímpetos ninguém travava, e que falava sempre com uma franqueza estarrecedora: “Que mal te fica esse fato, menina!” ou “Hoje estás com um aspeto horrível, o que te aconteceu? Em compensação, quando Dinah me fazia o mais pequeno elogio, eu acreditava! Natália também me chamava “menina”, acompanhando o meu debute parlamentar. Também Sousa Tavares me encantava, com o exemplo da sua absoluta independência da ortodoxia partidária. Era um crítico (não alinhado, é claro), estávamos de acordo em muita coisa e em relação a muita gente, e, se não, também nos divertíamos com as pequenas divergências. Estreei-me no hemiciclo nas temáticas de emigração, muito solicitada pelo PCP, que parecia ter contas a ajustar comigo. Sem deputados de emigração, entregavam o pelouro a um eleito por outro círculo - naquela legislatura era um antigo emigrante, Custódio Gingão. Os seus repetidos ataques, diretos, cristalinos, em domínios em que ele, eu (nós!), nos sentíamos à vontade eram mutuamente benéficos, mas, certamente, mais para mim, que era a principiante. Comecei a olhá-lo quase como o meu orientador de estágio, uma espécie de “personal trainer”. Um dia, disse-lhe isso, que devia agradecer-lhe as oportunidades que me dava de me sair bem. Não foi uma grande ideia…Ele terá pressentido quanto, que era dito em tom de brincadeira, havia de verdadeiro e começou a espaçar as interpelações à ex-governante. Era muito simpático! As nossas divergências e convergências eram reais e, quando necessário, expostas com civilidade. Os comunistas da Assembleia e os do Conselho com uma ou outra exceção, nem pareciam gente do mesmo partido. Outros palcos, potros voos O hemiciclo não foi o meu único palco único. Entrei, finalmente, no campo da política partidária. Até então, embora tivesse sido membro de três governos estive sentira-me sempre na pele de independente, como jurista. (a elaborar normativos legais, a fazer levantamento de situações…) ou como ativista, a mobilizar para a ação, em debates, discursos, protestos, sessões de esclarecimento. A diferença em relação a anteriores funções era levar os diplomas ou projetos à prática, sem depender de despacho alheio. No fim o despacho era meu. Até pude criar novos organismos e instituições, a CITE, o CCP…… Naquele final de 1981, perdia esses meios, mas ganhava acesso a órgãos que até aí só conhecia de crónicas dos media: o Conselho Nacional do PSD, as secções do partido no país e na emigração. Fui convidada para o Gabinete de Estudos da área metropolitana do PSD, juntamente com António Maria Pereira (um político excêntrico de quem gostava imenso), o meu antigo Ministro, Eusébio Marques de Carvalho e Rogério Martins). Assim me iniciava na militância partidária, dentro de uma fação, uma minoria, que é, em regra, mais favorável à criação de solidariedades genuínas. Comprei, festivamente, uma dupla guerra contra o que me parecia o desgoverno de uma AD, ferida de morte, e contra desgoverno sectorial na emigração, inclusive o “saneamento” dos meus ex-colaboradores no IAECP e no CCP. Comecei a pronunciar-me abundantemente, dentro e fora do hemiciclo sobre variadas questões de política nacional e internacional, como a ocupação do Montes Golan ou o confinamento na União Soviética da família de Sahkarov. E retomei as longas viagens, a mais comunidades, com mais tempo, colmatando as omissões dos mais apressados roteiros de Secretária de Estado. A confortável maioria da AD permitia-me deslocações de mais de um mês inteiro a qualquer ponto do planeta. Fui, como queria Sá Carneiro, onde houvesse portugueses, que, diga-se, tornam a missão difícil, porque estão em todo o lado. Já havia Ministro a acantonar-me a um gabinete, à maneira de Gonçalves Pereira, para cuja fobia das minhas viagens ainda não encontrei explicação. A emigração não se pode olhar à distância, a convivência ajuda a resolver os problemas, a denuncia-los, ou, pelo menos, a mostrar que alguém ali ao lado está solidário. O importante é não dar consolo com promessas vãs, e eu, mesmo no meu ano de governante caloira, guardei-me de ir por aí. Analisava a situação com prudente pessimismo, na dúvida respondendo que tentaria, sem dar garantias. Podiam não ficar contentes, no momento, mas a alegria era a dobrar, quando a coisa acabava por correr bem. Acho que nesse anti populismo fundei alguma popularidade… E em reuniões de trabalho, com caráter de regularidade. Como deputada, entre setembro de 1981 e junho de 1983, fiz tantas, tantas viagens que lhes perdi a conta, algumas longas e programadas, outras para corresponder a efemérides e comemorações. A América do Norte, nas duas costas, bateu recordes, com o Brasil, a África do Sul e o Zaire também muito frequentados. Em 1982, comecei por voar para Oriente. Primeiro Goa, que me lembrava o Brasil, o Nordeste, com capelinhas e igrejas no alto de colinas, o clima, num fevereiro quente, a gentileza das pessoas, o seu português de sabor antigo (com Óscar Lopes aprendi que a pronúncia brasileira de vogais abertas é mais próxima da que foi a do Poeta do que da portuguesa atual, que soa a língua eslava…). O meu amabilíssimo anfitrião era o “Speaker” do parlamento goês, um antigo “freedom fighter”, que prezava a herança portuguesa e estava envolvido em instituições e iniciativas para a preservar. Em sua casa falava-se a língua, cultivavam-se os velhos usos e costumes. Convivi em família, com a sua família e guardo saudades desses momentos Era tempo de carnaval, levaram-me a participar nos festejos populares do “entrudo” – o entrudo luso, não a moderna versão carnavalesca do sambódromo que por cá vamos mimetizando. Não quis ficar à beira-mar, no apartamento cinco estrelas de uma cadeia internacional. Preferi a singularidade do mítico Hotel Mandovi, com vista para o rio, num quarto enorme, refrescado pelas longas pás escuras das ventoinhas de teto. Para contactos diplomáticos e uma visita ao Parlamento da União Indiana, passei dois ou três dias em Nova Deli, na residência do Embaixador. Uma cidade moderna em gritante contraste com a Deli velha, que me impressionou muito mais. Nunca tinha visto nada igual. De todas, a principal atração, para mim, foi o trânsito. Torrencial, exótico... Elefantes, bicicletas, motos e motoretas, rickshaws (ou riquexás) de todas as formas e feitios, carros moderníssimos, D. Elviras, autocarros… O desembarque da arca de Noé teria, no meio de uma cidade qualquer, teria um mesmo fabuloso e delirante impacto. De Nova Deli voei para Hong-Kong e Macau, para muitos contactos. Macau era ainda colónia, (se é que algum dia o foi - a China o deu, como entreposto comercial, a China o levou, quando quis) e vivia tranquila voltada para o seu futuro …chinês. Um programa sem tempos mortos… Tive audiências com o Governador de Macau, Almeida Costa, com o Presidente da Assembleia Legislativa, Carlos Pais da Assunção. Mesmo estando no Hotel Lisboa, um hotel-casino, não me ocorreu entrar no espaço do jogo, pelo menos como espectadora, assim deixando escapar o direto conhecimento de um dos traços identitários do território. Fiquei com a impressão que do passado português havia mais vestígios nos traços de arquitetura, aqui e ali, do que na língua e na vida das pessoas. Em Hong-Kong, ao contrário de Macau, encontrei mais presença portuguesa do que esperava, talvez porque as expetativas fossem baixas: uma associação portuguesa, cuja sede própria era um edifício de doze andares no centro daquela fabulosa metrópole. Um verdadeiro “luxo asiático”!… O presidente era um antigo “mayor”, figura já mítica, “património” histórico local, mas portuguesíssimo de coração e, por sinal, muito simpático. A beleza de todo aquele pequeno, grande ponto geográfico da China supera todo e qualquer cartão postal, é para ser vista ao natural. Um Rio de Janeiro do Oriente? O aeroporto assustava um pouco, muito movimento, a proximidade do mar. Tinha pela frente mais um longo voo sobre mares que os portugueses navegaram antes dos outros europeus. E que voo, na a 1ª classe da “Cathay Pacific”! O conforto, o sossego, a gentileza das hospedeiras, os presentinhos, (que incluíam um roupão de seda natural). A Assembleia enviava os seus deputados sempre em 1ª, e eu não pertencia ao grupo numeroso dos que trocavam o bilhete para usar a diferença para outros fins (por vezes com o assentimento dos serviços). Graças a isso, dormi a noite inteira, como num hotel de seis estrelas, e cheguei a Sidney fresquíssima, pronta a começar uma jornada intensa. Esperava-me mais um cônsul-geral encantador, um artista que pintava belíssima aguarelas, casado com uma italiana cheia de vida e de graça. Fiquei na residência, uma mansão tranquila, exceto nas noites em que, de vez em quando, um “opossum” entrava pelo telhado para o sótão, sempre preparado para o receber com uma maçã dentro de uma armadilha. Mal o bicho peludo se via enjaulado gritava, interminavelmente, como um ser humano sujeito a extrema violência. Os donos da casa resolviam o problema com uma chamada de urgência para os serviços competentes e, ato contínuo, apresentava-se à porta um guarda florestal que recolhia o animal e tratava de o devolver à natureza. Tudo isto me foi explicado à hora de jantar, para não me assustar se ouvisse gritos lancinantes de madrugada. Pelo contrário, fiquei entusiasmada. Era, provavelmente, em Sidney, a única pessoa que desejava ter um opossum no sótão e o desejo foi correspondido pela parte de um pequeno invasor! Só que, hélas, eu dormia o meu sono profundo e não o ouvi. Quando soube, já o guarda florestal o levara de volta há umas horas. Felizmente, os animaizinhos pareciam cintes da minha simpatia, todas as minhas noites de Sidney, houve um que visitou a casa do Cônsul. O primeiro que vi era um belo exemplar, acinzentado, com um focinho menos pontiagudo do que o normal e mais parecia um enorme gato, com mau feitio. Coitado, preso na gaiola, não estava no seu melhor. Tirei algumas fotos rápidas e deixei-o ir em paz. Foi o ponto alto do meu turismo em Sidney, porque a cidade foi vista “en passant”. A reunião com dirigentes de associações no consulado foi útil e longa, durou toda a tarde. Havia muito a dizer, a desabafar. As visitas de Portugal eram, então, raras. O deputado José Gama estivera lá há pouco tempo, e terá sido o precursor. O Dr. Carlos Lemos, que ainda não era, mas havia de ser o mais extraordinário dos nossos cônsules do fim do mundo, aponta nesse sentido. O Dr. Lemos junta a uma cordialidade latina um humor muito britânico que se pressente na observação que deixou no jornal “O Português na Austrália”; “[…] pode dizer-se que foi durante o reinado da Dr.ª Manuela Aguiar como Secretária de Estado que Portugal descobriu a Austrália”. É certo que eu tentava não esquecer as comunidades distantes, mesmo aquelas que ainda não conhecia, mas ali, naquela reunião no consulado, senti que a minha passada ausência pesava no ambiente. Não era propriamente hostil, como o que provocavam os “enragés” de França, mas senti a falta de empatia com a audiência. Havia nuvens no ar.... A falar nos fomos entendendo, devagar… Como em outras ocasiões, chegou o momento do “degelo”, muito evidente, embora não soubesse o porquê - qualquer pequena reação ou palavra… Os rostos abriram-se- O tom já era definitivamente cordial. Todos insistiam em me mostrar as suas associações, ao que o Cônsul-Geral opunha prudentes e definitivas objeções: o tempo era escasso para “correr as capelinhas” e não se podia privilegiar umas em detrimento das outras. Contudo, eu não queria ir-me embora de Sidney, sem ver, com os meus próprios olhos, os centros de convívio dos emigrantes. Tive uma ideia salvadora: fazermos um sorteio, e visitarmos o vencedor - proposta logo. Aceite. Apareceram papelinhos para escrever o nome dos clubes candidatos, uma caixinha a fazer de urna, eu de olhos fechados, retirei um dos retângulos. Tudo no meio de muito boa disposição. Começamos pelo clube sorteado, acompanhados por todos os membros das outras associações. Aí, sugeriram que fossemos também a outra sede, que era próxima. E nessa repetiu-se o convite e assim, sucessivamente, num um roteiro completo. Fomos, todos, de porta em porta, como na “movida” espanhola…. Eram sede acolhedoras, mas modestas, no rés-do-chão ou na cave de prédios de arrendamento. Quando voltei a Sidney, quase 20 anos depois, muitas das agremiações tinham comprado propriedades esplêndidas (num dos casos um estádio de futebol, a que acrescentaram salas de receções). Sinal seguro da progressão coletiva de pessoas e instituições! Do programa, no dia seguinte, desapareceu uma excursão matutina, não me lembro aonde – talvez o Featherdale Wiilflife Park … Prescindi, porque preciso de dormir as oito horas, e, de tarde, tinha de estar em forma para os encontros agendados com o “mayor”, com responsáveis locais pela imigração e o com o “Ombudsman”. Sintomática, na minha agenda australiana, a inclusão de uma ronda de visitas aos titulares da instituição – em Sidney, Melbourne e Perth e a nível federal em Camberra - evidência de que me sentia, ainda, sobretudo, a assessora do Provedor de Justiça em “comissão de serviço” na política…E era, obviamente, uma instância importante de recurso para migrantes, que tendem a desconhecer a sua existência. Camberra foi ponto de reencontro com bons amigos – o Embaixador Inácio Rebello de Andrade e a sua mulher Thessa. Conhecia-os de muitas visitas a Nova York, o anterior posto de Inácio, como Cônsul – Geral. “Dakota House”, onde Lennon foi assassinado, era a residência oficial do Cônsul e a minha pousada de luxo na cidade …. O fabuloso apartamento pertencia ao Estado Português e um dos atos estúpidos da nossa diplomacia (ou, porventura, das nossas finanças) foi vendê-la, uns anos depois, a troco de um punhado de dólares. É a casa mais icónica de NY! No tempo dos Rebello de Andrade, estava no seu melhor, já que a Consulesa era uma espécie de cruzamento entre a perfeita dona de casa e uma e extravagante personagem de Scott Fitzgerald. Filha de um judeu alemão multimilionário, com quem mantinha relações distantes, lindíssima, extrovertida, dotada de uma energia verdadeiramente contagiante, tornou-se uma amigas, instantaneamente! Nos breves intervalos da agenda oficial, levava-me aos “sales” - sabia de cor as promoções diárias, fosse em lojas tipo “Sacks 5th Avenue”, fosse no Harlem… O Sacks ficava junto ao consulado, aproveitávamos qualquer pausa de 15 minutos para ir lá. A Thessa escolhia os modelos, eu experimentava, entrando e saindo apressadamente dos cubículos de prova. Ela decidia: “esse não, esse sim”. Eu pagava na caixa e saímos a correr… No meu último dia de Estados Unidos, em rota para a Venezuela, antes do almoço, fomos ao Harlem, e, como nos atrasámos um pouco, ela teve de telefonar ao marido, a preveni-lo, e ele perguntou onde estávamos. Foi um momento dramático! Todos conseguíamos ouvir os gritos do outro lado do telefone: “Como podes ter levado a Secretária de Estado para o Harlém? Que loucura, estão em risco de vida! Volta imediatamente!”. Voltámos, sem nos sentirmos ameaçadas. Tínhamos tomado um vulgar táxi, usávamos fatos pouco chamativos, não passava pela cabeça de ninguém que uma de nós fosse membro do Governo, e a outra Consulesa. Em lugares perigosos, a melhor segurança é o anonimato. Em todo o caso, compreendi o “stress” de Inácio. Thessa e ele formavam um dos casais mais contrastante que jamais vi.… Eu própria, em tempos idos, tinha sido com o meu “ex” um casal improvável, mas nada de tão radical. Rebello de Andrade era um diplomata competentíssimo, prudente, discreto, mais do que discreto, introvertido. O ato mais ousado da sua vida terá sido, certamente, casar com aquela fantástica alemã! Foi esta dupla improvável que me recebeu, de novo, com amizade, em Camberra (infelizmente pela a última vez - divorciaram-se num dos anos seguintes). Na pequena capital do país/ continente, não eram numerosos os portugueses e reunimos num restaurante, em jantar de trabalho e de festa. O tempo restante foi passado em contactos muitos e animados em eventos sociais com a nata da sociedade australiana - extremamente amáveis, talvez ali me vissem como uma espécie de ave exótica, da Europa latina, em efémera passagem. Gabavam, invariavelmente, o meu inglês. Em matéria de línguas, que não a minha, tendo a mimetizar pronúncias e, naquela altura, andava em fase de “crisp british accent” (como, algo depreciativamente, escrevera, tempos antes, um jornal americano de Massachusetts). Das conversas informais, nessas várias receções e jantares, em que acompanhava Thessa e Inácio, guardo boas embora nebulosas memórias de gente interessante, diplomatas, deputados, ministros, alguns deles eminentes juristas, que se mostravam recetivos aos nossos dilemas constitucionais, em especial à luta para extinguir um Conselho da Revolução, que nos fazia parecer uma república do terceiro-mundista. Com a revisão de 82 prestes a subir a plenário, era o meu tema favorito de conversa (com a comunidade havia outras prioridades…). Nem com a Thessa em Camberra, nem no resto da Austrália, entrei numa loja para comprar mais do que uns postais. Nos momentos livres, o meu foco estava na fascinante fauna local. Fui com a minha amiga Embaixatriz a um parque de vida selvagem, com duas atrações principais, as avestruzes, enormes criaturas com quem não convém confraternizar, e cangurus, especialmente sociáveis. Para os atrair, Thessa levava grandes sacas de pão, que fizeram sucesso, embora os marsupiais sejam supostamente herbívoros. Não havia vivalma na planura a perder de vista, e, sem concorrência, fomos cercadas pelos simpáticos cangurus, aos quais distribuímos, um a um, dezenas de pãezinhos. Vinham comer à nossa mão, sem se atropelarem, um exemplo de civilidade para os humanos. Nas fotografias pareço estar à conversa com eles, e talvez estivesse, como faço com cães e gatos. Na manhã seguinte, voei para oeste. Ali, e em toda a Austrália, entrava-se no avião exatamente como num autocarro da velha Europa, sem nenhuma formalidade, atravessando a pista a pé, com um bilhete comprado na hora. Não sei se ainda é assim, em tempos mais securitários… Se Camberra é a pequena Bona australiana, Melbourne é a grande metrópole, que disputa com Sidney a primazia de cidade principal. Mesmo sem a opera deslumbrante, sem a imensa baía, era uma cidade onde me via em casa. O continente australiano lembrava-me, sobretudo, o Canadá, um país onde natureza e sociedade convivem bem, onde tudo é grande e variado, e as pessoas vieram de todo o lado e deram o contributo das suas diferenças. Várias vezes estive quase a dizer. “Aqui no Canadá” e contive-me no último momento. Até a recetividade das comunidades, depois de ultrapassado o bloqueio psicológico em Sidney, tinha o seu “quê” de canadiano… Em Melbourne, só o então cônsul honorário destoava do conjunto. Era um australiano idoso, pouco envolvido na comunidade, talvez uma sobrevivência da época em que quase não havia imigração portuguesa. Quem organizou o meu programa local foi o Dr. Carlos de Lemos, que já desempenhava, na prática, funções consulares para as quais seria nomeado, pouco depois. Já o conhecia, porque foi um dos participantes do Congresso das Comunidades, em junho de 81, que se distinguiu por tentar a pacificação dos opostos, por dar um raro toque de convivialidade ao agitado plenário. É alguém de quem se gosta - um homem de bem, sempre pronto a ajudar quem precise, um diplomata nato, com um fino sentido de humor, fazendo amigos em todo o lado, pelo mundo fora, numa vida passada em vários continentes. Nunca houve, na Austrália inteira, português mais bem relacionado com os vultos da política e da cultura do país que o recebeu. Como toda a gente, eu gostei dele à primeira vista. No dia seguinte ao tumultuado final do congresso de Lisboa, já praticamente em trânsito para o aeroporto, pediu-me uma breve reunião. Disse que sim, é claro, não tinha muitas oportunidades de falar com emigrantes das antípodas, mas estava em manhã particularmente ocupada. Com muita graça, ele contou num texto publicado em “O Português da Austrália”, que a entrevista não seguira as formalidades habituais, que ele acabara por ser o entrevistado, e que eu ia despachando papéis urgentes que o pessoal gabinete trazia, de vez em quando. Mas o certo é que o pedido que o levara ali, o envio de livros para o curso de português, fora prontamente satisfeito - uma semana depois os livros estavam em Melbourne. Poucos meses depois, era eu que, já na qualidade de deputada, estava em Victoria e beneficiei de uma grande receção. Houve de tudo: conferência de imprensa, entrevistas, reuniões com os emigrantes, visita à Associação Portuguesa de Victoria, com as crianças da escola a cantarem o hino nacional (o que, no país, seria apenas coisa prazenteira, mas ali emocionava!), e um piquenique comunitário, na casa de praia do nosso futuro cônsul, em Somer. Ofereceu um concerto ao ar livre de “didjeridoo” por um dos mais famosos artistas aborígenes. Senti-me uma privilegiada quando me apercebi de que o espetáculo era novidade absoluta, também, para a maioria dos presentes. Aquele país de imigrantes tem definitivamente com os antigos naturais do país problemas não muito bem resolvidos… O casal Lemos, não. Ele é um daqueles portugueses cosmopolitas, que convive bem com a alteridade, e a mulher, a Doutora Marion, (Molly para os amigos), uma académica respeitadíssima, com doutoramento em metodologias de ensino das minorias. Foi, mais tarde, presidente da Comissão Nacional de luta contra o insucesso escolar e a recebeu a Ordem da Austrália, no mais alto grau. Condecorações tem, também, o marido, de Portugal, da Austrália e de Timor. Foi sempre um defensor tanto dos nossos emigrantes como dos refugiados timorenses. Os momentos mais extraordinários do meu périplo australiano foram, sem dúvida, os do longo encontro com os timorenses - o que mais imediatas e importantes consequências teve após o meu regresso a Lisboa. Comprometi-me a levar os seus dramas e problemas ao parlamento e fi-lo, conseguindo, por sorte, rápidos apoios para a criação de uma “Comissão Parlamentar para o Acompanhamento sa Situação de Timor-Leste”. Conto em duas palavras: comecei por falar com o único deputado timorense, Manuel Tilman, que aderiu à ideia de alma e coração, e ambos avançamos com a proposta. Ninguém se opôs. Opôs-se, sim, a maioria balsemista à minha vice-presidência da Comissão, que um dos “boys” do clã dominante reclamou para si. Nada o recomendava exceto o compadrio, mas isto em política partidária é normal. O mais importante foi eleger o Manuel Tilman, unanimemente, para a presidência. Eu mantive-me, sempre sem cargos, na Comissão. Antes mesmo da respetiva formalização (ainda o expedito vice-presidente não o era), pedimos uma audiência ao Presidente Ramalho Eanes: O Parlamento era um órgão soberano, mas queríamos partilhar o projeto com ele, como grande paladino da causa timorense. Eramos, assim, uma delegação informal, com membros de todos os partidos. Uma reunião perfeita em que eu protagonizei o momento mais aéreo e divertido (coisa nada incomum…), ao dizer ao Presidente o que me motivara a fazer a proposta. No meu entusiasmo, comecei assim: ”Quando estive em Timor…” O presidente interrompeu-me, com um sorriso: “Esteve em Timor?” Claro que não poderia ter estado numa ilha barbaramente invadida e controlada pelo exército indonésio. Só mesmo como “infiltrada”… Expliquei-me: “Desculpe o meu engano, Senhor Presidente. Em Timor, de facto, não estive, mas senti-me em Timor, no meio de tantos timorenses refugiados na Austrália”. O Presidente, sempre amável comigo, regozijou-se com a explanação, que era coisa óbvia, e, mais ainda, com o projeto de criar uma Comissão. Estava inteiramente connosco, todos do lado dos timorenses. Ao Parlamento regressei de boleia com o Mário Tomé, a conversar sobre fações do PSD. Foi surpreendido por lhe dizer que pertencia, festivamente, aos opositores ao Primeiro-Ministro. “Aos rurais do Norte?” exclamava ele. Confirmei: Sim, sim, aos rurais do Norte, às hostes do Eurico de Melo”. Como eu também pertencia, muito ostensivamente, à esquerda do PSD, sobretudo no que respeita a migrações, refugiados, igualdade de género. Não seria, especialmente, o quadrante de muitos dos “rurais”, mas o coração tem razões que a razão não compreende. Em todo o caso, quanto a Timor não havia esquerdas e direitas. O “dossier” já era e seria, crescentemente, o mais consensual da política portuguesa. Com timorenses me voltei a encontrar em Perth, última etapa do meu roteiro na Oceânia. Foi num domingo, depois de missa campal - um encontro tão emotivo como o primeiro, inequivocamente apoiado pela comunidade portuguesa. Timorenses e portugueses receberam-me calorosamente. Estive com os presidentes das associações de Perth e de Fremantle, no Clube Português, (com as suas excelentes instalações, as melhores que visitei na Austrália), e na Associação Multicultural Portuguesa. Nas outras cidades não havia qualquer organização do PSD, mas, ali, uma parte do programa estava reservado ao núcleo social-democrata de Fremantle! Aí, numa cidade com importante concentração de portugueses. Fui recebida por um rancho folclórico infantil madeirense, trajado a preceito. À nossa volta um grupo de fotógrafos, muitos flashes. Uma dessas coloridas fotografias ilustrou a reportagem do “Western Australian”, assinada pela jornalista Janet Wainwright, que dá uma inesperada conotação partidária à minha presença, a começar pelo título “Traveller with a voting cause”. Segundo ela, “Manuela Aguiar travels the world to meet electors” É certo que era eleita pelos emigrantes, o que na Austrália, causava sensação, mas, se essa fosse a causa que me movia na volta ao mundo, nem Perth nem qualquer destino da Austrália teriam estado em agenda. Eram poucos os eleitores… De facto, sempre aceitei que os emigrados escolhessem a forma de se relacionarem com o país, que pode passar, como não, pelo boletim de voto. Acima do interesse pela participação na esfera política está sempre interesse pela Cultura de origem - a Cultura, que é, como dizia Adriano Moreira, “o máximo denominador político”. A ligação política é muito importante para uns, para outros não. Sendo uma assumida “sufragista” no campo das migrações, sempre em luta pela igualdade de direitos políticos dos emigrantes (os que querem votar), compreendo os que estão noutra onda. Devemos dar a informação e os meios sobre a intervenção política, assegurando a liberdade de escolha aos portugueses da emigração e diáspora. O PSD/Fremantle contribuiu ali para emprestar coloração partidária a uma missão que eu perspetivava mais abrangentemente. E nada de mal resultou disso, pelo contrário. Permitiu-me contactar com ativistas do meu partido e com políticos de partidos congéneres, que me ofereceram um magnífico almoço a bordo de um barco. Eu adoro mar, barcos, jangadas, tudo o que avance sobre águas, de preferência agitadas. Não era o caso, num dia esplendoroso de sol e calor. A conversa centrou-se, tal como em Camberra, na esperança da plena democratização de Portugal, oito anos depois da Revolução. Muito diferente foi a tónica do jornal “O Português na Austrália” que através dos seus correspondentes, deu amplas notícias das reuniões com as comunidades. E o teor das reportagens não me é menos favorável. Descrevem-me como “uma senhora muito simpática e desempoeirada, dotada de grande poder de comunicação, dominando o inglês como poucos, causando admiração aos próprios australianos”. A excessiva ênfase colocada no domínio de uma língua estrangeira parece sempre uma espécie de “prémio de consolação”, como elogiar a bonita pele de uma criatura feia. Mas os outros destaques não eram menos surpreendentes. Eu estava a poucos meses de me tornar quarentona, mas, desgraçadamente, parecia muito mais nova e era “verde” no cargo, onde me via “de passagem”. Contudo, gostava genuinamente de contactar as pessoas com quem me cruzava, e estava pronta a ajudá-las no que pudesse. A descrição jornalística não se ajustava à minha visão das coisas (e de mim). Ficava-me a suspeita de que uma mulher, como eu, sem ponta de sofisticação, a querer apanhar “o fio da meada”, ganhava, afinal, no confronto a homens de postura mais solene, quando não pomposa, (e, quiçá, sem grande jeito para línguas…). No ocidente da Austrália, a presença feminina foi muito mais visível do que era habitual – um escol de professoras muito ativas, a dirigente da “Comissão de Pais”, Ana Pereira, e uma líder carismática chamada Manuela Faria…. A Manuela, e à sua desenvoltura, devo o não ter deixado a Austrália sem ver o mais gracioso dos marsupiais, o coala. No intenso programa não houvera uma pequena pausa para ir em demanda da fauna local. O voo de partida para a África do Sul era matutino, coincidia com a hora de abertura do famoso Yanchey Park. Não sei como, Manuela conseguiu que nos abrissem portas de manhãzinha! Um muito prestável guarda trepou à majestosa arvore para trazer um pequeno coala ensonado. Desaconselhou-me de pegar nele, podia não gostar da quebra da rotina e morder. Contentei-me em lhe passar a mão pelo dorso de pelo muito macio, mantendo a mão longe do seu focinho encantador. Dali partimos, a grande velocidade para o aeroporto, onde nos esperava o Vice-Cônsul, Sr. Correia, para as despedidas. Viajei com a Quantas, outra sumptuosa companhia aérea, ao menos na 1ª classe. O Oriente, nesse capítulo, é imbatível… O avião fez escala nas Ilhas Maurícias, que mal avistei. Não saí do meu confortável assento até à chegada ao sul da África. Cheguei a Joanesburgo descansada e pronta a entrar em atividades, de manhã à noite. Fui direta para o hotel, deixei a mala, voltei a sair. Ainda se podia pernoitar no centro da cidade. Já me diziam que era perigoso circular pelas ruas, mas eu, eterna otimista, não acreditava nisso. Os segundos e subsequentes encontros são sempre radicalmente diferentes do primeiro. Perde-se o mistério da descoberta, ganha-se em tudo o mais. Abraçam-se amigos, faz-se o levantamento da situação… há as questões que se arrastam, as que se agudizem, as que se resolvem, as que aparecem ou reaparecem, tudo abordado já num clima de cumplicidade. Estive sempre mais do lado da “sociedade civil” do que do Estado, sobretudo lá fora, onde a parte do Estado é tão pequena. Talvez isso me permitisse maior sintonia no meio associativo. Só mesmo em campanha eleitoral, me via, às vezes, a usar chavões, embora evitasse o tom comicieiro (no país experimentei, uma vez por outra, com um sucesso que me deixava sempre espantada). Na emigração, a melhor campanha é trabalhar ao longo do ano, ecumenicamente, com crentes e descrentes… Isso transparecia numa ou outra crónica, na imprensa das comunidades, mas nenhum foi tão longe como um jovem correspondente de um jornal do Porto, que eu nem conhecia. Depois uma minha intervenção num Encontro de Emigrantes em Ovar, comentou: “A Doutora fala como se não fosse do Governo”. Na verdade, a minha alma estava do outro lado, com os membros de um associativismo, cuja obra, por todo o lado, em muito suplantava as dos governos todos juntos. Na RAS repeti o roteiro de instituições já familiares. Os problemas do ensino associativo estavam a agudizar-se, e os problemas sociais, também, numa economia liberal, sem rede de segurança social. Entre os portugueses, havia, como entre os naturais, os ricos e os pobres (muito menos, em proporção, e, em absoluto, menos pobres). O “Lusito”, centro de acolhimento e ensino de alunos com especiais dificuldades, e o Lar de idosos da Sociedade de Beneficência eram paradigmas de excelência e grandiosidade. Lusito. Por sinal, uma exceção à regra, com uma liderança maioritariamente feminina. Outra raridade era a existência de uma “Liga da Mulher Portuguesa”. A sua fundadora e presidente, a Prof.ª Manuela da Rosa, era uma das “damas de ferro” que começavam a emergir no imenso fresco de rostos masculinos do movimento associativo. Uma das poucas que viria, anos mais tarde, a ser eleita para o Conselho das Comunidades. Nessa data, foi ainda com um CCP 100% masculino que reuni. Estavam em pé de guerra com o Governo, por causa do adiamento “sine die” da Reunião Mundial – no que eu os acompanhava, e os outros deputados da emigração, também. Partidariamente, por isso e não só, as águas andavam agitadas. Com a AD em plano inclinado, o deputado do CDS, o meu amigo Zé Gama, fazia uma “violenta campanha” contra o PSD, que acusava de ser “socialista”. Amigos, amigos, negócios aparte... Porém essa acusação manifestamente exagerada não sortiria efeito. Os eleitores não gostavam de socialistas, mas não incluíam os sociais-democratas liberais do PSD nesse quadrante. A meio do circuito pela RAS, fiz um desvio para ir, por dois dias ao Zimbabué, a Harare, onde a comunidade ascendia a largos milhares e mantinha um grande clube, com a sua escola de português. A independência do Estado era recente. Harare não se diferenciava de qualquer cidade do grande país vizinho. No voo para Joanesburgo viajei ao lado de uma velhinha inglesa que falava como se ainda vivesse na Rodésia e em Salisbúria. E, de facto, Harare ainda não era Harare africanizada, de onde brancos e seu comércio de luxo tinham sumido de vez. Antes do regresso a Lisboa, depois de seis semanas, em meia volta ao mundo, fiz nova paragem em Kinshasa, onde o Colégio Português estava no centro de uma polémica. O SECP suspendera as bolsas de estudo para os alunos! Todos os deputados da emigração (quatro) se uniram para protestar - o socialista João Lima falou mesmo de “escândalo nacional”. Fui ao Colégio manifestar solidariedade e indignação., depois, reuni no não menos famoso Clube português, para abordar quaisquer outras questões de atualidade. No entanto, o ensino voltou a ocupar grande parte da tarde O sucessor do Embaixador Baptista Martins era o Embaixador Quartin Graça, um amigo dos meus tempos da Secretaria de Estado. Com a nova Embaixatriz não houve, evidentemente, segunda incursão aos bairros “proibidos” de Kinshasa… E as minhas últimas horas no “grand et beau pays”, como os zairenses adoram descreve-lo, deram satisfação a um anseio antigo: experimentar uma tempestade tropical! Na hora da partida, desabou sobre Kinshasa uma chuva súbita e torrencial, que emprestou “suspense” a rodos à viagem para o aeroporto. Dir-se-ia que o Mercedes da Embaixada tinha virado anfíbio. Sulcava um rio de águas que se apartavam à sua passagem, lançando vagas ondulantes sobre as duas margens. O Mercedes não parou nunca, e foi o que nos valeu, de contrário perdia o voo... As reações dos meus companheiros de viagem adensavam o clima de expetativa pessimista. Se encalhássemos, o risco de assalto tornava-se altíssimo. Do motorista (zairense) esperavam o pior, mas o homem, contra previsões, fez sempre a coisa certa. Como teria sido a viagem de volta? Não sei. “No news, goos news “. Assalto, mortos ou feridos não houve. Do outro lado do mar, a norte, em Toronto, o “Mundo” de Cruz Gomes, anunciava “Manuela Aguiar deslocou-se ao Zaire. Ainda a força de Sá Carneiro! Aterrei em Lisboa, aterrei nas tricas da política caseira…. Estava ativíssima, dentro e fora de São Bento. Na eleição para a direção da bancada do PSD afrontaram-se as listas encabeçadas por dois advogados, Mário Raposo e Moura Guedes, que ganhou a contenda. Era o candidato de Balsemão, não era um “boy”… fez convites bastante heterodoxos para as vice-presidências, a Francisco Sousa Tavares e a mim, perfeitos “outsiders”. Francisco aceitou e insistia comigo para o acompanhar. Fazer dupla com ele era a parte mais atrativa da proposta, mas tive de recusar, porque, mais tarde ou mais cedo, me veria confrontada com verdadeiros dilemas. Os recortes de jornal ajudam-me a reconstituir a frenética conjuntura. Já se tinha evaporado da memória que o meu nome despontara em algumas manchetes, como a do CM. “Manuela Aguiar não aceita liderar PSD no parlamento. O nome da ex-Secretária de Estado foi aventado…” Aventado, sim, mas base real. Nem me sentia com experiência bastante, nem tinha qualquer hipótese de ganhar - a maioria estava do outro lado. O semanário “O Tempo” dirigido por Nuno Rocha, situava-me na “ala hipercrítica”, com Helena Roseta e Dinah Alhandra, as três “extremamente duras”. Face a Balsemão, em sintonia, sempre, mas, derrubado este, no início de 1983, seguiríamos vias diferentes, eu nas hostes de Mota Pinto, elas contra. A separação das águas não era diferente na política interna global e no campo da emigração. José Vitorino desmantelou tudo quanto vinha de trás, do meu mandato, com grande denodo. Não escapavam nem instituições, como o CCP, nem pessoas, todas as que suspeitava de proximidade comigo, como o Presidente do IAECP, Augusto de Sousa, e o Secretário do Conselho, Garcez Palha. Isso lhe valeu o afastamento dos deputados da emigração, os da AD e o da oposição, João Lima, um antigo Secretário de Estado, que sempre respeitei e que, numa entrevista a “O Mundo” de Toronto, me manifestava sentimento recíproco: “A Dr.ª Manuela Aguiar foi uma boa sucessora e, pelo que fez, nada tem a ver com o atual secretário da Emigração”. Na verdade, não me ocorreria “sanear” antigos colaboradores de João Lima ou de Mário Neves, desvaloriza-los com remoques pessoais, ou romper a sua herança de iniciativas, num domínio, onde, ressalvada a matéria eleitoral, eram de regra os consensos. Contudo, Vitorino não era um o meu alvo preferencial. Visava mais alto. E, fora do território partidário, o que me preocupava-era o impasse institucional enquistado no Conselho da Revolução. Numa entrevista ao jornal “O Diabo” de Vera Lagoa, reafirmava: “Nada contra os militares, mas acho sintomático que, desde 1926, não tenha havido um civil na presidência”. E ainda: “Receio a ditadura e não a dos partidos de oposição. O PS de Mário Soares é democrático e o PCP nunca vencerá pela via eleitoral”. Na minha agenda, a par da revisão constitucional (para extinguir, de vez, o Conselho da Revolução) estava a regionalização. Quarenta anos depois, ainda está… Os nossos maiores problemas são agora (agora, em 1982) os da pobreza, das desigualdades sociais, do atraso económico. Denunciava desigualdade entre pessoas, entre regiões, entre segmentos de mercado (profissões de perfil feminino). E procurava pôr a emigração no mapa dos “media” nacionais, o que era muito mais difícil do que fazer manchetes com uma desabrida opinião sobre politiquice caseira. E andava, incessantemente, fora e dentro. Fora, o que assinalar desse meu vaivém, por uma boa causa? O trabalho quotidiano é o compacto de uma infinita sucessão de dias, que se fundem numa mancha imprecisa. Mais nítidas são as imagens de uma girândola de encontros com personagens e lugares, sem obediência a cronologia… O Canadá estava, frequentemente, e continua a estar no meu roteiro de viagens - um dos países de onde os convites não cessam de chegar e sempre para iniciativas interessantes. E, por isso, na segunda longa “digressão” como deputada, em 1982, do Oriente rumei a Ocidente, revisitei Montreal, Otava e Toronto, continuei para oeste, a descobrir o muito disperso Canadá lusitano - as comunidades do Ontário, Hamilton, London, etc etc. Depois Winnipeg, cidade rigorosamente ao centro, como o velho CDS, cidade do meio, gélida e varrida pelos ventos, mas com portugueses bem calorosos e um cônsul honorário de grande categoria, muito famoso como arquiteto. Através dele, fui convidada a ser oradora numa conferência sobre a nossa história de Expansão e migrações numa das Universidades. Recordo a sala, os estudantes, que fizeram muitas perguntas, mas não o nome… Era coisa nova, que havia de se repetir pelo mundo, mas, naquela primeira abordagem, senti a responsabilidade, e socorri-me de um texto escrito à pressa. Era melhor do que nada… Estive a traduzi-lo para inglês, a meias com o Cônsul. A parte mais difícil foi um poema de Sena, duas estrofes com que terminava a comunicação: “solúvel e insolúvel este povo, na memória dos outros e na sua mesma”. Não sei se Sena gostaria da nossa tradução… À cautela nunca a mostrei a Mécia, de quem gostava imenso. Uma das mais extraordinárias memórias que guardo de todos os meus mil e um encontros pelo mundo português é a do dia passado com ele em Santa Barbara, no seu enorme casarão, de portas abertas para estudantes que entravam, conversavam, saiam. Um lugar jovem, luminoso e convivial, onde se respirava a liberdade de ideias, opiniões e pessoas interessantes, a começar pela enérgica Mécia. Ficamos amigas na distância, trocávamos sempre, pelo menos, um cartão de Natal a contar novidades. Nessa altura estava lá, em licença sabática a Maria de Lurdes Belchior. Outra mulher notável, que associo sempre à outra Maria de Lourdes, a Pintasilgo e a Teresa Santa Clara Gomes. Das três, era a mais divertida, com seu sentido de humor repentista e certeiro. Ao almoço, falando das nossas (muito diferentes) estadas longas em Paris, contou-me que, quando dizia a nacionalidade, os parisienses se apressavam a comentar que tinham uma “bonne” ou “concièrge” portuguesa, de quem gostavam muito. E a nossa Belchior respondia: “Tiens, ma bonne elle est française!” Fechando, nas memórias, o parêntesis de Santa Barbara e das suas mansões e voltando aos arranha céus cinzentos de Winnipeg, recordo que de lá parti à boleia de um compatriota, num imponente Mercedes preto, atravessando, sob vagas de nevões, entremeadas de sol tímido, paisagens assombrosas de montanha, (Lake Louise…) até Calgary e Edmonton. Entretanto, não sei como, apanhei uma súbita, embora passageira, constipação (coisa rara…), um desconforto, o risco de contagiar os outros, e o mau aspeto pessoal. Assim mesmo, correu tudo bem, nas missas das paróquias, nas sessões dos clubes, nos festivos restaurantes. Houve, até, um imprevisto encontro com o núcleo do PSD de Calgary, mais ou menos capitaneado por uma mulher - uma raridade a somar á outra, quer era a da própria presença de um núcleo laranja naquela lonjura… A essas cidades voltaria algumas vezes, não muitas, e da última, já neste século, a força do associativismo em Edmonton já era outra, o clube era proprietário de uma enorme propriedade, onde investira em seis (seis!) campos de futebol para formação. O nosso futebol, a que chamam “soccer”, é mais e melhor jogado por raparigas do que por rapazes, mas em geral, a partir das escolas, vai ganhando popularidade. Nesse inverno de 82, estávamos ainda longe deste patamar, sem que o ambiente fosse menos afetivo. Após efusivas despedidas, tomei o “Greyhound”, em direção ao vale de Okanagen, onde deparei com uma comunidade deveras singular: muitos dos portugueses são donos de quintas, de extensos pomares! Não sei quantos visitei – todos impecavelmente organizados. Pouco percebo do assunto, só distingo uma macieira de uma pereira se tiver os frutos dependurados, mas gostei muito do que vi! Outros compatriotas estavam no setor da comercialização, em empresas altamente mecanizadas. Emigrantes prósperos! E nada de neve. Parecia outro país, ou outra estação do ano… O meu principal cicerone foi o Presidente da Associação de Osoyos. Andei com ele, de carro, enquanto tratava de burocracias indispensáveis à preparação da grande festa, em que era a convidada – por exemplo, autorização de um departamento camarário para servirem bebidas alcoólicas, que, por sua vez, era necessária para a compra das garrafas no supermercado. Inimaginável em Portugal…. Acompanhei todas estas diligências, com curiosidade de estrangeira. Tudo rápido, burocracia eficiente…. Estava admirada, não só por isso, mas por me aperceber de que as associações têm muitos diretores, muita gente, mas quem trabalha, às vezes, é só um… Alojaram-me num hotel equipado com colchões de água. Recomendo-os vivamente. Tenho pena de nunca mais ter dormido num desses leitos móveis, moldáveis, sentindo, por baixo, a água a acompanhar o meu mais pequeno movimento. Foi muito agradável e pouco comum esta incursão “campestre”, porque as comunidades portuguesas estão geralmente radicadas nas cidades, perdida a ligação ao cultivo da terra, que marcou o início da emigração em tantos destinos, Califórnia, Havai, Argentina, algumas regiões do Brasil, e até o próprio Canadá, (Québec, anos cinquenta). As exceções, hoje, são, para além de Okanagan, por exemplo, a Argentina (hortas, floricultura) ou o vale de San Joaquin… Tomei, de novo, o “Greyhound” até às costas do Pacífico. Foram horas a contemplar da janela os espetaculares desenhos e ângulos das “Rocky Mountains”. Por fim, Vancouver, um deslumbramento para a vista, com a sua cercadura de montanhas. Uma cidade cosmopolita, mas serena, tranquila que parece ser excelente e segura para viver. Ali, tinha mais a sensação de estar na Austrália do que o resto do país – sem grande surpresa, já que também a Austrália me lembrara o Canadá…. Vistoriei, atentamente, clubes e centros culturais portugueses, incluindo uma associação macaense e uma sede do DES (Divino Espírito Santo). O clima é ameno e foi sob um sol radioso que me aventurei a ir, num pequeno avião, para a Ilha de Vancouver e que regressei, ao fim de três dias memoráveis, num vagaroso ferry, por entre uma miríade de formosas ilhotas. Em Victoria, cidade jardim lindíssima, numa comunidade alegre e dinâmica, mandavam as mulheres! Professoras… o professorado parece ser, para o sexo feminino, uma academia de liderança. O maior e melhor centro de convívio luso-canadiano estava integrado numa grande paróquia portuguesas, mas com autonomia, num espaço próprio. A corrente de simpatia não passava entre o padre e aquelas valerosas ativistas…. A comunidade tinha-se quotizado para comprar o terreno e construir a sua igreja, como acontece em tantos outros países das Américas e da África, mas, ali, conservava a propriedade da área circundante ao local de culto. Avisada decisão, pois se a diocese canadiana decidisse, mais tarde, mudar a pertença étnica da Igreja não arrastaria a pertença do terreno. Contudo, a divisão de mando entre clero e laicos, nem sempre era pacífica, e elas, as professoras, ameaçavam ganhar qualquer contenda…. Os jardins são um dos ex-libris de Victoria e muitos dos portugueses procuravam trabalho como jardineiros. Um deles era o famoso Matateu. Gostaria de o ter conhecido e homenageado como velha glória do nosso futebol, mas, naqueles poucos dias, ninguém chegou a localizá-lo. Da Columbia Britânica passei à Califórnia: São Francisco e o círculo de históricas portugueses, São José, Oackland, Santa Clara, Berkeley, etc etc. Depois, revisitei o Vale de São Joaquim, onde os emigrantes são donos das maiores vacarias dos EUA. Não faltam “cowboys” de apelido português, nem carne para as “festas do Divino”, nas centenas de centros DES, (à volta de 300, se não me engano), espalhados por toda a Califórnia. Pelo menos uns 90% dos membros das nossas comunidades são de origem açoriana. Mais a sul, nos arredores de LA, em Chino e Artesia, há, também, vacarias supermodernas, onde alguns milionários lusos fizeram fortuna. E há, evidentemente, grandes associações. Uma com um coreto, outra com um redondel para touradas à americana (sem tortura de animais, do mal o menos). Espero que ainda hoje conservem o nível e o ritmo de atividades que tanto me impressionaram então. De LA tomei o avião para San Diego, na fronteira do México, lugar privilegiado, à beira de um mar que parece o nosso, o da Arrábida. San Diego era um mundo aparte e não só paisagisticamente, também como matriarcado que tende a afirmar-se em comunidades piscatória. E à frente estava uma mulher ainda jovem e já lendária, a Mary Giglitto! Dando este destaque a algumas mulheres com que me cruzei, estou, certamente, a criar a ilusão de que eram bastantes. Não eram. Se desse igual destaque aos dirigentes do sexo masculino enchia páginas e páginas de um livro, espesso como uma lista telefónica. Elas eram apenas uma vistosa exceção. Mary mais do que qualquer outra. Em San Diego, onde os maiores atuneiros do mundo eram de portugueses, construídas por portugueses, com a sua tecnologia de ponta e o seu design, e tripuladas por portugueses, ficávamos com a impressão de que Mary reinava como monarca absoluta, mas esclarecida. O Festival Cabrilho, em honra do navegador que descobriu a Califórnia, era obra sua, arregimentara a marinha americana e da portuguesa, os diplomatas destes países, mais os do México e da Espanha - quatro Nações reunidas na comemoração anual. Assim “renacionalizou Cabrilho”, e, com ele, o Festival, que, de outro modo, seria glória, como Colombo. Mary era, em San Diego, a mais visível, mas não a única portuguesa em lideranças associativas. Como vimos, com os maridos no alto mar, elas assumiam, em terra, funções de mando. No “Centro Histórico Português de S Diego”, os órgãos diretivos eram compostos por 10 mulheres e 10 homens, sob a presidência de Basílio Freitas – nessa época, um exemplo porventura único de paridade. Do Centro Histórico me tornei membro honorário, entre ilustres militares, como o Almirante Sarmento Rodrigues e o Coronel Victor Alves. Todavia, só em setembro de 82, numa visita em que fui expressamente para isso, assistiria ao meu 1º Festival Cabrilho, com o Embaixador Hall Themido e o Cônsul Geral Gabriel Mesquita de Brito. O ponto mais alto das cerimónias foi a teatralização do desembarque de Cabrilho, representado pelo jornalista Paulo Goulart, absolutamente transfigurado no colorido traje seiscentista, com elmo e armadura, reluzindo ao sol. De oeste para leste, de costa a costa, voltei ao Atlântico, a Massachusetts e Rhode Island, onde a pesca foi, como no sul da Califórnia, engodo para a nossa emigração (a pesca da baleia). Hoje, já não há a pesca tradicional, mas ainda sobrevivem as corridas de baleeiros no mar, integradas no famoso “Boston Portuguese Festival”, uma iniciativa recente, já no século atual de uma Cônsul de boa memória, a Embaixadora Manuela Bairos. New Bedford e Fall River (com mais de 90% de população portuguesa), seriam, para mim, locais de frequente peregrinação. Em Fall River conheci a Senadora Fonseca, tanto quanto sei, a primeira portuguesa eleita deputada nos EUA. Eleita e reeleita, então já há mais de vinte anos, a nível Estadual, e tão famosa pelo talento político como pelos seus vistosos chapéus. Serena, muito segura de si, sem ser arrogante, é uma figura que relembro com especial carinho. Uma coleção dos seus chapéus pode ver-se, agora, no Arquivo (e Museu) português da Universidade de Dartmouth. Em Rhode Island reencontrei a Cônsul-Geral Anabela Cardoso, que organizara, dois anos antes, o meu programa de contactos em Providence. Era, na década de oitenta, uma das pioneiras da nossa diplomacia, já que, durante a ditadura a carreira diplomática esteve vedada ao sexo feminino (e antes, com a República, também, de pouco valendo a luta de notáveis sugragistas). Eu não pertenço à escola de pensamento feminista que espera de todas as mulheres a capacidade de fazerem, instantaneamente, a diferença na gestão da “res publica”. Contento-me em que cheguem lá e depois se verá. Mas prefiro, como é óbvio, as que constituem, sem sombra de dúvida, uma mais valia. Era o caso de Anabela Cardoso! Como Secretária de Estado estava habituada a ser transportada em carros espaventosos ou limousines. A Cônsul foi buscar-nos a Boston, (a mim e à comitiva de duas pessoas) ao volante da sua comprida e desportiva carrinha pessoal. Colocou todas as nossas malas nas traseiras, em “open space”, sentou-me ao seu lado, os acompanhantes trás, e lá fomos, informalmente, como uma família, embora tivéssemos acabado de nos conhecermos. E assim andámos por Providence, de compromisso em compromisso - o Senado (então presidido pelo histórico luso-americano Senador Castro), o Palácio do Governador, o Consulado, as associações… Fiquei muito bem impressionada, Sou uma entusiasta de veículos práticos, caravanas, “jeeps”, e gosto, sobretudo, de poupar os dinheiros dos contribuintes. Anabela era dinâmica, descontraída, movia-se tão bem no meio português como no americano. Não era muito frequente ser recebida a tão alto nível, ter o presidente do Senado à mesa do almoço. E, além disso, a nossa Cônsul partilhava comigo a paixão por cães. Recordo-me de uma longa entrevista que demos, em conjunto, a uma rádio portuguesa. Esta área é privilegiada, em matéria de “media” – jornais, como o prestigiado “Portuguese Times”, variados programas de rádio, e uma estação de largo espetro, que emitia para os Estados vizinhos, (pertencia ao milionário Edmund Dinis, o Procurador a quem, infelizmente, caiu em mãos o caso Chappaquidick, que poria fim à sua carreira…), e até uma televisão, a emitir 24 horas por dia! Não sei quantas vezes fui entrevistada nessa estação televisiva, sempre com jornalistas de grande gabarito, mas recordo uma, em particular. Por razões que esqueci, foi em inglês, e muito focada em questões de política nacional, que eu teria de apresentar ao público americano. Fiz vários paralelos entre partidos dos dois países e situei-me, como social-democrata, no partido Democrático e na ala Kennedista. Várias vezes frisei que, se Jack Kennedy entrasse na nossa vida política seria PSD. No fim, longe das câmaras, o jornalista disse-me: “Essa conotação de Kennedy à social democracia não vai parecer nada bem. Na América, social democrata é sinónimo de comunista”. Tarde me preveniu… Tal como pelo norte da América também pelo Sul circulei, pelo menos três vezes, nesses cerca de dois anos como deputada. A Assembleia da República tinha o mais bizarro sistema de financiamento de deslocação dos deputados da emigração… duas (ou três?) viagens por ano, de avião, em 1ª classe, sem limite de milhagem ou de custo. Esse condicionalismo obrigava-me a planear longos périplos de várias semanas, através de países e continentes. Por mais do que uma vez, passei da América do Norte para a do Sul, ou daí para África, num roteiro com mais de vinte, trinta aterragens nos aeroportos. Parece coisa cansativa, insuportável, mas não era. Não sofria de “jet lag”, gostava de viajar sozinha, de terra em terra, e de aí encontrar amigos, e de ir fazendo a aprendizagem de costumes, modos de conviver, instituições… O sistema apesar de absurdo, tinha um lado positivo: os longos circuitos permitiam uma mais fácil comparação de situações, semelhanças, diversidades, e do modo como o movimento associativo ia configurando cada comunidade… A Venezuela foi outro grande país percorrido de leste a oeste, da Ilha Margarita, (com sede associativa numa pequena casa de arquitetura muito interessante, um ambiente mágico…) e Barcelona, passando por comunidades com grandes associações, como Barquisimeto, Maracay e Valência. A última paragem foi Maracaibo, na fronteira da Colômbia. O nosso Cônsul honorário era casado com uma lindíssima princesa índia, ambos muito acolhedores e a comunidade, não sendo muito numerosa estava bem organizada. Para esquecer foi só uma longuíssima entrevista num terrível “portunhol” dada à “Radio Fé de Maracaibo” …. De volta a Caracas, tomei o avião para as Antilhas holandesas, Aruba e Curaçau, onde, há, para além da presença histórica, havia, também, emigração recente, pouco lembrada no país, mas com presença e obra associativa. No dialeto falado, não conseguia apreender a componente portuguesa, mas nos escritos, sim! Estavam muito interessados em entrar em contacto com Cabo Verde, consideravam-se herdeiros dos seus falares. E, de nós, queriam apoio ao ensino da língua portuguesa. Era a grande prioridade Do mesmo modo no Brasil, pude, como deputado ir muito mais longe do que fora como Secretária de Estado Brasil. E não só na geografia, também no contacto direto com as pessoas nas associações mais recentes, e mais populares – as “casas regionais” – Casa de Arouca, de Viseu, da Feira, de Espinho, do Porto, dos Açores… ao todo, dezenas. O argumento para serem barradas do meu programa era sempre o mesmo: se é impossível ir a todas, não se deve privilegiar uma ou duas, com isso alimentando rivalidades e conflitos. Com estatuto de parlamentar e o meu próprio critério comecei a frequentar as festas principais, uma atrás de outra (às vezes, três ou quatro por noite) e ninguém se queixava… Mesmo assim estava confrontada com a impossibilidade de ir até o lado onde há núcleos de portugueses organizados. Aliás, onde não estão organizadas, de um momento para o outro, podem vir a estar… O caso de Iguaçu é o exemplo que conheço melhor… Nesse lugar universalmente famoso (as fantásticas cataratas, repartidas por Brasil, Argentina e Paraguai,) a presença portuguesa era um “hotel de bandeira”: o Hotel Lisboa de um nosso dinâmico compatriota! Num périplo pelo sul do Brasil que chegou até Rio Grande e Pelotas, na fronteira do Uruguai, decido fazer um desvio a Iguaçu, para ver o hotel e as quedas de água (dois em um). Uma funcionária do Consulado do Rio, Ofélia Lapo (que mais tarde foi, episodicamente e em substituição, deputada do PS pelo Círculo Fora da Europa) disse-me que tinha um parente na cidade e ofereceu-se para me pôr em contacto com ele: o Sr. Manuel Lameiras. Não podia ter tido melhor anfitrião e deu um grande contributo para a minha história do imprevisto. Foi-me esperar ao aeroporto com a mulher. Em vez de me levarem ao Hotel Lisboa, insistiram que ficasse em sua casa – um apartamento de luxo que superava todos os hotéis. Era um imigrante recente, com um percurso extraordinário. Viera de Angola refugiar-se no Brasil, único país do mundo que recebia os retornados, incondicionalmente. O começo foi difícil, não encontrava trabalho. Ocorreu-lhe pedir boleia a um amigo camionista, que ia para sul, até à fronteira, a ver se em outras paragens vislumbrava mais oportunidades. Ora na vizinhança de Iguaçu estava em construção uma enorme barragem, apercebeu-se de que a cidade ia crescer muito. Trouxe para ali a família e investiu em material de construção – varetas de ferro, coisa que ninguém roubava, nem se estragava a céu aberto. Uma aposta milionária…. O passo seguinte foi comprar terrenos, ainda muito baratos, que se valorizaram imensamente. E, assim, enriqueceu a velocidade meteórica. Era dono de quarteirões inteiros no melhor lugar de uma terra em expansão e de um centro comercial no Paraguai, com mais de duzentos empregados. Continuava a ser um homem simples, amável e um empreendedor imparável– uma “máquina” de gestão, fosse do que fosse. Ao famoso Hotel Lisboa fui para um jantar de confraternização de algumas dezenas de portugueses, que até então, ninguém sabia existirem. Um jantar cheio de (boas) consequências! Em conversa, constatei que muitos tinham vindo trabalhar na barragem – engenheiros, técnicos, gente bem-sucedida, que gostava de socializar, de quando em quando, em jeito de tertúlia. Era, evidentemente, a matéria prima de que se faz um clube da Diáspora. Lancei-lhe o repto: porque não criarem uma associação? De imediato, um disponibilizava o terreno, outro, material de construção, um arquiteto voluntário para desenhar o plano, os engenheiros fiscalizavam a obra. Uns anos depois, quando lá voltei, a associação estava de pé, um espaço esplêndido, grandes salões… tudo ainda em acabamento, mas a prometer intensa vida comunitária. Ainda não fiz uma terceira visita para ver como funciona… O eixo Rio-São Paulo-Santos dominava, naturalmente, toda e qualquer roteiro de visitas, mas eu não me ficava por aí. Não haverá muitos brasileiros que conheçam tão extensivamente o seu país continental… No Rio, quem tomava conta da minha agenda era, quase sempre, Dona Benvinda Maria, a Diretora e proprietária do “Mundo Português” e, depois, do “Portugal em Foco. Dona Benvinda era uma “dama de ferro”, como não conheci outra, nem mesmo Mary Giglitto. Mary, que era professora de profissão, tinha um jeito muito diplomático de se impor em campo aberto ou nos bastidores. Dona Benvinda, a jornalista, era uma “generala”, sempre em cena, à cabeça do movimento. Nada nem ninguém a amedrontava e ela amedrontava tanto qualquer potencial opositor. Não havia quem lhe fizesse frente. E, sendo inteligente e generosa, fez coisas extraordinárias, em especial, com os jovens, através de competições desportivas e da dança. Durante anos, trouxe a Portugal em digressão um rancho folclórico formado por pares das diferentes casas regionais, que se exibiam “à portuguesa”, numa primeira parte e, na segunda, “à brasileira” – o samba, em todo o esplendor dos trajes e dos ritmos. Um sucesso sem paralelo, ao longo de mais de 20 anos. Tudo somado, ela promoveu a vinda ao país de centenas e centenas de jovens – mais do que qualquer governo ao longo desse período… Assim ombreou com os Presidente das grandes instituições, homens sem uma só exceção – o Dr. António Gomes da Costa, o Dr. Tinham por ela um respeito infinito. E eu também… Em São Paulo a comunidade rivaliza com a do Rio, considera-se a maior de todas. Tem, pelo menos, mais eleitores! E instituições igualmente grandiosas, como a emblemática “Casa de Portugal”, que acolheu, durante décadas, o nosso Consulado, o Hospital da Beneficência…. Não há uma idêntica proliferação de casas regionais, mas algumas das existentes são “monumentais”, como a de Trás-os-Montes ou a de Arouca (tal como a do Rio possui magníficas instalações, num lugar paradisíaco - a dimensão os arouquenses dão à sua presença no Brasil é deveras surpreendente). No Conselho das Comunidades a influência do Rio e de São Paulo foi sempre enorme… e equivalente. Com o então muito jovem advogado Dr. Almeida e Silva, São Paulo ganhava sempre o campeonato de bom humor e popularidade. No Brasil brasileiro o nome português mais conhecido era o de alguém que pouco frequentava o meio comunitário: Ruth Escobar! (ou talvez partilhasse esse pódio da fama com o cantor Roberto Leal). Ruth era atriz, encenadora, empresária de teatro, e, nessa altura, mudara-se para os palcos da política, era militante feminista e representante do Brasil na ONU, na Comissão para os Direitos da Mulher. Está na História como a primeira mulher eleita para a Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (suponho que a primeira em todo o país), mas o seu ímpeto progressista chocava de frente com o proverbial conservadorismo das nossas comunidades, e nunca a vi nas mil e uma festas lusíadas do Brasil. Fiquei a conhecê-la graças ao Cônsul, que teve a bendita ideia de a convidar para um jantar que me ofereceu na residência. Sentadas na mesa lado a lado, a cumplicidade foi instantânea. Éramos, se não da mesma idade, da mesma geração, ambas portuenses de corpo e alma, extrovertidas, festivas e guerreiras. O comum passado portuense foi “leit-motiv” do nosso alegre diálogo. Voltamos a ser as meninas críticas da escola retrógrada, inconformadas com os absurdos conceitos e preconceitos de uma sociedade anacrónica e misógina, a lançar contra a “Ordem” abominada a desordem ao nosso alcance - o que, depois, ao longo da sua vida fantástica, ela conseguiria imensamente melhor do que eu…. Voltamos a passear pelas ruas do Porto, pelas esplanadas da Foz, a gozar as matinés do Rivoli ou a noite longa de São João nas Fontaínhas... Depois das visitas se terem retirado, o Cônsul, que, por sinal, era um jovem diplomata muito bem-parecido e elegante, mostrava-se particularmente satisfeito por nos ter reunido, a Ruth e a mim, comentando: “Não sabia que eram tão amigas!” Quanto a isso, desiludi-o… e ele nem queria acreditar que, no princípio do jantar, éramos simplesmente duas desconhecidas… À Argentina o Uruguai as visitas eram um pouco menos frequentes, mas também lhes perdi a conta, de tantas que foram, por vezes encadeadas com programas no Rio Grande do Sul e no Paraná. Em Montevideo, o grande organizador era um alentejano tranquilo e discreto e eficientíssimo, o Luís Panasco Caetano, que também teve um papel importantíssimo no Conselho das Comunidades, e, mais tarde, enquanto Conselheiro, na expansão do associativismo feminino. Como ele dizia “não é preciso ser jovem para tentar dar-lhes todas as oportunidades, não é preciso ser velho para querer resolver os seus problemas, não é preciso ser mulher para lutar pelos seus direitos”. Era casado com uma asturiana, Josefa, que o acompanhava no seu envolvimento na comunidade, com não menor capacidade de fazer coisas, mas com um feitio bem diferente, muito mais comunicativa, alegre, impetuosa. À sua volta tudo virava uma festa. Completavam-se maravilhosamente, até nos seus centros de interesse, ele atraído por questões sociais, políticas, económicas, ela pela música e pela dança. Em Montevideu, foi, assim, uma espanhola que criou, ensaiou e dirigiu, durante décadas, o grupo de folclore português! Outro par notável era o casal Assunção, Margarita e Fernando. Tal como Josefa e Luís, meus grandes amigos! O Prof Fernando Assunção era um filho de um emigrante português (homem muito culto e muito rico), foi sempre um apaixonado por Portugal e teve uma enorme importância na preservação da nossa herança histórica no Uruguai. Se alguém merecia ter recebido, num 10 de junho, a mais alta condecoração era, certamente, ele… Académico, investigador em vários campos e disciplinas, a História, a Antropologia Social, e, igualmente, ativo militante do Partido Colorado do Presidente Sanguinetti, o que lhe permitiu ter um papel absolutamente determinante no projeto de recuperação do centro histórico de Colónia de Sacramento, na sua traça original portuguesa – rigorosa reconstituição que lhe permitiu ser consagrado como património mundial pela UNESCO. Veio a ser o Comissário do espetacular Pavilhão do Uruguai na Expo 98, onde, tal como no do Japão, se prestava tributo ao passado comum. Sempre que o seu partido esteve no poder, usou a sua influência para aproximar os seus dois países de coração. A mim, deu-me a conhecer um Uruguai em que o visitante de passagem não entra e era sempre um enorme prazer conversar com eles. Na bagagem trazia, muitas vezes, uma das suas magníficas publicações sobre a cultura gaúcha, “El caballo criollo”, “El mate”, “El tango”, “ou sobre história, “Epopeia y tragedia de Manuel Lobo” - obra sobre o herói de Sacramento, que nos permitiu publicar na linha de publicações da SECP. A imagem com que prefiro recordá-lo é a dançar o tango, com a sua lindíssima mulher. Para além de saber tudo sobre as origens do tango, também sabia dar a aula pratica, magistralmente… Uruguai e Argentina são a minha América Latina querida. A mais europeia, também, sobretudo a Argentina urbana, e a sua esplendorosa capital. Coloco o Brasil, noutra categoria, uma América tropical lusa, tem muito pouco a ver com qualquer vizinho – ou com a Europa – e só mesmo os portugueses, e nem todos, ali se sentem na segunda pátria. Dos países de imigração, que observei de perto, a Argentina é o mais cosmopolita de todos! Um dos jovens universitários que participava num curso de verão da SECP, disse-me, um dia, que o preocupava essa abertura excessiva a todas as Europas: “Já não sabemos o que nos carateriza!” “Oh, não – respondi-lhe, com a certeza de quem viveu um ano em ambiente argentino - isso não dissolve a vossa identidade! Pelo contrário, dá-lhe a sua principal caraterística, que é o cosmopolitismo”. Pareceu-me reconfortado com essa minha perspetiva. É exatamente o que eu penso. A nível da comunidade portuguesa isso reflete-se na naturalidade com que reclamam a herança portuguesa, sem complexos, ao longo de várias gerações. Constatação que confirmei, com a maior clareza numa comunidade antiga e muito distante da capital, a mais de 2000 km: Comodoro-Ribadávia na Patagónia. Portugueses de 1ª geração são pouquíssimos, e a comunidade continua, cada vez mais rejuvenescida! Crianças e jovens a dançar nos grupos folclóricos contei cerca de duzentas (folclore algarvio - são quase todos descendentes dos pioneiros, pescadores vindo do Algarve até àquele fim de mundo). A Associação Portuguesa começou por funcionar num edifício nobre no centro da cidade, que incorporava um imponente teatro, mas por altura da minha visita já tinham construído nova sede, moderníssima, com projeto de um jovem associado arquiteto. Nos dias que lá passei, sentia-me entre compatriotas! Falavam castelhano, mas estavam tão focados nas coisas portuguesas, que eu nem me apercebia da questão linguística, e todos me entendiam bem. A cidade, embora tenha crescido com a descoberta do petróleo, convive ainda hoje com o mar e a Natureza … no porto podemos passear entre lobos marinho, do alto dos montes ventosas, avistamos colónias de pinguins… Ao contrário do que acontecia em outros países das Américas, na Argentina as minhas incursões circunscreveram-se, quase sempre, à região de” Gran Buenos Aires” e as cidades próximas, como Villa Elisa e Echevarria. É verdade que nesse grande círculo se fixou a maioria da nossa emigração, muitos dos quais horticultores e donos de quintas e hortas que abastecem a cidade. E aí se encontram os centros de convívio, tanto os tradicionais, como os mais recentes, muitos dos quais de uma dimensão equivalente aos das comunidades bem mais numerosas do Brasil e da Venezuela. Por muito difícil e modesto que tenha sido o começo – na agricultura, pesca, ofícios - essa dimensão extraordinária fala-nos de prosperidade coletiva. O que não significa inexistência de pobreza dos desprotegidos da fortuna, que não se ajustam ao perfil, ou estereótipo, construído sobre os empresários bem-sucedidos… E, por isso, a justíssima reivindicação de uma pensão social tem estado no topo das prioridades em toda a América Latina. Até ver, não conseguiram mais do que um magro subsídio para os que vivem praticamente na miséria (o “ASIC”, para “idosos carenciados”) Depois de ter estado, uma vez, no distante sul, na Patagónia, também, por uma só vez, fui ao distante oeste, a Mendoza, junto à cordilheira andina. Quanto a outros núcleos dispersos por um país tão grande, ficou-me um sentimento de culpa, por não ter ido lá, caso de Córdoba ou Rosário. Ler números e estatísticas, não é a mesma coisa! Uma vez feito o contacto, criam-se laços de conhecimento mútuo, que resistem à distância – o que é agora muito mais fácil, com a internet. Até onde não esperamos, de todo, uma exultante presença portuguesa podemos dar com ela. Veja-se o paradigma de Comodoro, que hoje está agora na vanguarda do movimento associativo luso-argentino. Não é (ainda) o caso de Mendoza, núcleo bastante mais pequeno, sem um suporte organizacional permanente. De qualquer modo, reúnem-se, celebram as festividades principais, são um “achado” interessante. Mendoza é uma Argentina regional muito diferente de todas as outras e resistiu melhor em tempo de abalo financeiro. É uma região vinícola, com as mais extensas vinhas de toda a América do Sul. Entre os maiores produtores já, então, estava uma empresa nacional, a Sogrape, mas não me pareceu haver grande ligação à comunidade. Talvez se venha a afirmar, um dia, pois é nesta gama empresarial que se encontram muitos potenciais patrocinadores de eventos e projetos. A minha visita foi breve e na 25ª hora. Vinha do Chile, (onde era muito menor o grupo de portugueses que o Embaixador se esforçou por os reunir), em direção a Buenos Aires, para a minha despedida, como deputada da emigração, em 2005. O Embaixador Ribeiro de Almeida desaconselhara vivamente a paragem em Mendoza. Segundo ele, tinha tudo para correr mal - o cônsul honorário estava colocado na sua “lista negra”. Eu gostava muito do Embaixador, mas não perdia nada em ir pessoalmente analisar a situação. Por acaso, tudo se passou incrivelmente bem. O Cônsul era um jovem engenheiro e empresário, eficiente, amabilíssimo. Vi-o atuar no terreno, acessível, próximo das pessoas, muito bem relacionado com as elites locais. Os dois dias em Mendoza foram intensos – confraternização com os portugueses, visita às empresas de viticultura, receção no Município e na Assembleia Legislativa, conferência de imprensa, (cheia de câmaras, flashes e microfones), jantar privado com o Governador! Tive, também, um encontro com os Deputados nacionais eleitos por Mendoza, que, simpaticamente, se ofereceram para me organizar uma audiência com o Presidente do Parlamento em Buenos Aires. Agradeci e aleguei impossibilidade de agenda, para não envergonhar a Embaixada, que nunca, nas minhas deslocações como Deputada a Buenos Aires, conseguira contactos a esse alto nível. Qual fora razão da desavença com o Cônsul honorário – “aquela máquina”? Pequenas tricas, suponho, ou uma certa falta de subserviência de quem não precisava do cargo, embora gostasse de o desempenhar muito bem… Ao Embaixador dei conta do que testemunhei e do inegável prestígio de que gozava o nosso representante, que, infelizmente, seria substituído pouco depois. Na vida de um deputado este contato com as pessoas, este conhecimento muito concreto das situações e problemas é o fundamental. O mais importante não é estar sentadinho no hemiciclo de São Bento, a aplaudir as tiradas da “linha da frente”… eu costumava dizer que, para mim, era um luxo poder passar uma tarde inteira no hemiciclo, (deixando de lado as habituais diligências, telefonemas, telexes, faxes, requerimentos…). Nesses dias de exceção confidencia à minha secretária (a tal que partilhava com uma dezena ou mais de colegas): “Hoje vou até ao Parque Meyer!” (as vezes, parecia mesmo…). A diferença, em relação aos colegas eleitos num pequeno distrito de um pequeno país, era ter de correr mundo em todas as direções. O meu “distrito” era o mundo, excetuando apenas a velha Europa! Portugal nunca quis adotar círculos uninominais, que combatem a nefasta a omnipotência das máquinas partidárias, porque estabelecem uma relação direta eleito/eleitor, em vez de sufragar um “rebanho” de deputados, que ninguém sabe quem são. Vota-se, afinal, no partido, no líder máximo… Ora, na emigração, os círculos, com apenas dois deputados, são “quase uninominais”. Os candidatos apresentam-se como cabeças de lista dos dois maiores partidos, que fazem campanhas muito mais fulanizadas. E, de seguida, são geralmente, presença mais ou menos assídua nas comunidades, ao menos nas maiores. Têm nome, têm rosto, embora também tenham partido. Essa minha primeira experiência, entre 81 e 83, foi pouco menos do que empolgante. Organizava o meu trabalho, livre de qualquer obediência ou diretriz, e ia alargando o espaço das comunidades onde interagia. Cá dentro, votei a Constituição de 82, dei vivas à democracia plena, enfim sem Conselho da Revolução, muito embora perdesse na proposta de dar o direito de voto dos emigrantes na eleição presidencial – o intangível art.º 124º… Entretanto ia descobrindo as delícias da luta partidária interna nos alegres convívios de “críticos”, de norte a sul do país, das praias do Algarve, às quintas do Minho. Não perdíamos o fio à meada, éramos convictos, mas sabíamos conjugar o lado sério com o lúdico. Andei, positivamente, em rebelião e em festa durante dois anos! E eis que, ao fim de muitas derrotas, de repente, ganhamos a guerra – ao menos os que sonhávamos ter alguém como Mota Pinto à frente do PSD. Balsemão resistiu até que desistiu. Em boa hora. Há coisas na vida que faz muito melhor do que a política. Foi fazê-las. 1983 - DE MONTECHORO EM DIANTE Mota Pinto venceu em toda a linha no Congresso de Montechoro, mas a conjuntura era de “vacas magras”, porque a moribunda AD deixava o País à beira da falência e da intervenção externa. E eu, sem querer, voltei à SECP… Quando saí do Governo, saí com pena de não poder continuar tantos projetos que tinha em mãos. Dois anos depois, estava bem no Parlamento e também não queria sair de lá. Curiosamente, a minha cadeira de deputada, que parecia segura, tinha estado em risco. Foi uma história rocambolesca, em tempos de transição, com a nova liderança política a coexistir com o velho Conselho Nacional. Nos termos estatutários, competia à Comissão Política Nacional (CPN) apresentar as listas de candidatos por circunscrição eleitoral, e ao Conselho aprová-las ou rejeita-las. Em caso de rejeição, só a CPN podia, se assim o entendesse, alterar a lista. Contudo, naquela noite foram surgindo, de mansinho, aqui a ali, propostas de substituição de nomes, logo aprovadas por maioria, com a cumplicidade de quem presidia aos trabalhos. Havia choro e ranger de dentes, mas não se levantaram objeções jurídicas. Quando chegou a vez das listas da emigração, eis que reaparece o sindicalista Cabecinha (o que, poucos meses antes, tornara o Congresso das Comunidades uma comédia “buñueliana”), com uma proposta de substituição de Manuela Aguiar por Lurdes Breu, como cabeça de lista Fora da Europa. Breu, que tinha sido uma icónica presidente de Câmara, viu-se excluída da lista de Aveiro. A “dança de cadeiras”, que até aí correra tão bem aos “Balsemistas”, parou com estrondo. Não sei ao certo porquê, talvez fosse demasiado escandaloso decapitar, politicamente falando, uma deputada com experiência no terreno por outra sem especialização que justificasse a troca. Pela noite fora, debateu-se, interminavelmente, a (i)legalidade daminha remoção. A distrital de Lisboa, da “ala crítica”, (salvo erro, presidida por Santana Lopes), demitiu-se em bloco e as ilhas dividiram-se - A J Jardim em minha defesa, Mota Amaral contra. A dada altura, os trabalhos foram interrompidos para que o Conselho de Jurisdição pudesse reunir e deliberar. O CN era aberto, como são, agora, regra geral, os congressos partidários, tudo se sabia e os média focaram-se, naturalmente, na polémica. O meu nome abria todos os noticiários – nunca fora nem voltaria a ser falada - o meu efémero momento de fama! A 300 km meus pais estavam acordados a acompanhar o folhetim, sem perceberem exatamente o que se passava (como toda a gente…). Ao fim de horas e horas de contraditório jurídico, o inspirado causídico AJ Jardim averbou vitória total, a ala Motapintista recuperou todos os candidatos que indevidamente perdera com a “golpada” estatutária, coisa bem mais importante do que o meu caso isolado. No semanário “O País” de 17 de março, um articulista escrevia. “Não vou apontar vencedores individuais, embora tenha havido muitos. O maior, porém, foi o PPD original”. Com a AD irremediavelmente desfeita, as eleições foram ganhas, sem maioria, pelo PS. Face a uma situação financeira gravíssima, a única coligação maioritária possível era a dos dois grandes partidos. Mário Soares e Mota Pinto não hesitaram, assumiram a responsabilidade de formar o chamado “Governo do Bloco Central”. Hernâni Lopes aceitou a pasta das Finanças e levou a bom termo, a missão de reequilibrar as contas públicas, com intervenção externa, e, todavia, sem a submissão rastejante a que assistimos uns 28 anos depois, com a “troyca”. Ganhou o país, mas a ala direita do PSD, autorrotulada de “Nova Esperança” não se conformou… A “nova Esperança” era Marcelo, era Barroso, era Santana - era, em qualquer caso, uma direita “civilizada”, que vinha de trás, do tradicional frentismo do PPD. Nada de comparável à de hoje, a dos Venturas que saíram para o Chega e dos que não saíram e têm, lá dentro, força demais.. Constituir o IX Governo foi tarefa morosa, ainda mais do que o costume, assentando numa “coligação de iguais” e não de um partido maior com parceiros menores. Enquanto as laboriosas negociações decorriam, nesse mês de junho, que nos pareceu muito longo, aproveitei o retardamento dos trabalhos parlamentares para participar nas festas do Dia de Portugal, nos EUA, e prosseguir a visitação nas semanas seguintes. Tinha estado na costa leste durante a campanha eleitoral, (assim como no sul da América e da África), mas fui “convocada” para as comemorações do 10 de junho em Connecticut e em Newark. Como habitualmente, em Newark pelo Sr. Coutinho, que organizava a maior de todas as paradas luso-americanas, com um infindável cortejo de carros alegóricos passando entre as esplanadas da festa gastronómica, com bifanas e sardinhas assadas “in loco”. O grande arraial da Ferry Street, onde não faltavam os bombos minhotos (por acaso, uma sugestão minha, que o Sr. Coutinho, depois do primeiro teste, incorporou no ritual). Em Connecticut, o responsável pela minha presença assídua era o Cônsul Honorário Dr. Adriano Seabra da Veiga. O seu método era infalível. Participava-me que tinha dado à comunicação social a notícia sobre a minha comparência: “Estão todos à sua espera, não pode faltar”. E eu lá ia… E de muito bom grado! As comunidades de Connecticut são muito especiais, fruto de uma emigração mais recente do que a da Nova Inglaterra ou da Califórnia, de maioria continental, e muito dispersas geograficamente por todo o mapa do Estado - o que terá levado a que fosse relativamente subestimada, nos números e na obra comunitária. Ao contrário de Boston, Providence, New Bedford, Newark e São Francisco, nunca teve Consulado de carreira, somente um Cônsul Honorário, dependente do Consulado de Nova Iorque. Por sorte, o Cônsul honorário, Dr. Adriano Seabra da Veiga mostrou ser uma extraordinária mais valia. Nem o mais notável diplomata de carreira gozaria de tanta simpatia e influência no meio americano e no português, e, com isso, de tanta capacidade de iniciativa e realização, durante várias décadas…. Um caso semelhante ao de outro mítico Cônsul (também honorário) o Dr. Carlos de Lemos, em Melbourne. Os casos são semelhantes, não os protagonistas - um impetuoso e irreverente Dr. Veiga e um sereníssimo Dr. Lemos, um metódico e eficaz estratega… Ambos, afortunadamente, bem-amados pelos compatriotas, que uniam à sua volta, enaltecidos e condecorados pelos governantes. (nunca precisaram de estar de mal com El-Rei por amor do Povo… eu, sim, de vez em quando, vi-me de mal com os novos reizinhos da República) Connecticut era um exemplo de bom entendimento entre dirigentes e entre eles e o consulado, havia coordenação de datas de eventos importantes e, por isso, era possível estar presente em sucessivas comemorações do “Dia Nacional”, que se estendiam pelo mês de junho, nas múltiplas comunidades, promovidas por associações e paróquias portuguesas, que são das mais grandiosas e dinâmicas de todo o país – as de Waterbury, sede do Consulado, onde residia o Dr. Seabra da Veiga, de Danbury, (cujo pároco, o Dr. José Alves Cachadinha, era uma das mais brilhantes personalidades que conheci na emigração e um dos ideólogos e dos construtores do CCP), de Hartford, capital do Estado, etc. etc…. Adriano era um grande médico, formado em Coimbra, um generoso filantropo, cidadão de dois países, homem fascinante, casado com uma encantadora americana de origem “quebequoise”, a Rita. Rita, diplomada em enfermagem (o que me leva a supor que se terão conhecido num hospital…), falava várias línguas, entre as quais o português. Tinha uma paciência infinita para acompanhar o marido no turbilhão das suas multifacetadas atividades e para receber, com incomparável hospitalidade, os seus convidados. Tornaram-se amigos mais próximos do que a maioria dos meus familiares. Tinham a idade da minha mãe, mas sempre os tratei pelo nome próprio. E em Connecticut nunca fui para um hotel, ficava com eles, na sua mansão que se tornara lendária, sempre aberta a portugueses de passagem pela América, (entre eles, Sá Carneiro), exilados (Veiga Simão e Victor Crespo, o General Spínola…), ou em tratamento médico, caso de Zeca Afonso e de Amália - Amália qualquer que fosse o estado de saúde. Seu marido e Adriano eram primos direitos, amicíssimos, complementares, um muito discreto, o outro exuberantemente expansivo! Adriano tinha grandes retratos da prima em casa, e no consulado também. Conhecia-através dele, não na América, mas em Lisboa, no Ritz, num jantar em que confraternizei com os dois casais. Amália, Adriano e eu, conversadores imparáveis, Rita e o Eng.º Seabra, ouvindo mais do que falando. Nessa noite Amália passou o tempo a autoproclamar-se uma mulher muito inculta e ignorante, mas tudo, tudo o que dizia provava precisamente o contrário. Isso foi um exclusivo do primeiro encontro. E não sei porquê… Desconfiei que era uma forma de defesa contra uma classe de gente particularmente preconceituosa e complexada (os nossos governantes), mas, se foi isso, depressa me retirou daquela categoria abstrata…. Era uma verdadeira senhora, tinha uma graça natural a contar qualquer pequena história, ou a seguir o fio de uma conversa, franca e direta e, por vezes, surpreendente a dar opiniões. Não parecia, de todo, a intangível diva dos palcos. Isto é, não intimidava. O seu á vontade, ao menos em pequeno grupo, era contagiante. Uma vez em palco, transfigurava-se. A última vez que a vi e ouvi cantar foi no Rio, no Canecão. Terá sido um dos seus últimos espetáculos. Um assombro, a sala eletrizada!…. Por puro acaso, viajáramos juntas para o Brasil, sentadas, lado a lado, numa Executiva quase vazia, a conversar pela noite fora…. Igualmente por acaso nos encontrámos algumas vezes nos EUA, em Waterbury, “chez Rita e Adriano e, também, em Newark, em 1998, quando Amália foi a “Grand Marshall” da parada, a primeira mulher a encabeçar a parada, envergando sobre feminino vestido a simbólica faixa verde e vermelha. No banquete apareceu muito formal, de vestido de renda preto, mas, ato contínuo, para o desfile, mudou para um traje garrido, com as cores da bandeira. Sabia “estar” em cada ocasião e com ... cada audiência Nos festejos de Newark estive não sei quantas vezes (12? 15? Mais? Perdi a conta…). Os de 1983 foram os primeiros. Fui no cortejo em carro descapotável ao lado do Embaixador Leonardo Mathias, sob um sol tórrido, uma temperatura de quase 40º. Avisadamente, não repeti a experiência. Preferia a sombra da bancada improvisada na Ferry Street, de onde os oradores convidados discursavam no final… Nesse “dia de ananases”, já corriam nas Américas as notícias que me davam como nome certo na Secretaria de Estado da Emigração. Porém, ninguém me contactara, como vim a saber, depois, por dificuldades de localização - não havia telemóveis, “facebook”, “whatsapp”…. No termo do meu roteiro americano, em New Bedford, o Diretor do “Portuguese Times”, numa grande entrevista, quis confirmar se estava convidada para o novo Governo e eu disse que não. Era verdade… A minha resposta fez manchete de primeira página na edição do jornal distribuída no sábado seguinte – o preciso dia em que eu tomava posse no Palácio da Ajuda! Adelino ficou compreensivelmente muito zangado comigo, mas o certo é que a situação se alterara depressa demais. Mal cheguei fui chamada ao gabinete do Vice-Primeiro Ministro, e aí convidada a voltar ao Palácio das Necessidades. Ao Doutor Mota Pinto disse que não queria um cargo, onde não teria meios para trabalhar, mas a minha negativa não foi levada a sério. E, de facto, lá compareci na Ajuda, proferi e assinei o compromisso de honra - num sábado, coisa inédita, e a coincidir com a tal manchete do Portugueses Times, atraiçoada pela originalidade.... Nas Necessidades Os meus motivos de apreensão tinham razão de ser… A Secretaria de Estado estava “falida”, as suas modestíssimas finanças comprometidas com numerosos recrutamentos de pessoal, feitos pelo meu antecessor, na 25ª hora de mandato. Da minha parte, nada contra, desde que ele tivesse garantido verbas suplementares, o que, aparentemente, não lhe ocorrera. Que irrealistas, são os homens, pensei – pelo menos alguns… Eu, pelo contrário, nunca avançava para despesas extraordinárias sem fazer contas – na vida pública, como na privada. Nunca vivi acima das possibilidades. “Viver acima das possibilidades”, se bem se lembram, seria uma expressão favorita do futuro Primeiro Ministro, Passos Coelho. Disso acusava a generalidade dos portugueses, durante o império da “troyca”, que coincidiu com o seu. O meu antecessor era um dos políticos portugueses a quem a acusação assentava “como uma luva”. Vi-me num imbróglio… imagine-se… começar o mandato a fazer o despedimento de uma parte dos recém-nomeados, que nem se terão chegado a sentar nas suas “cadeiras de sonho” …. Quando um dia, mais tarde, exemplificava estas e outras vicissitudes das transições de poder, em conversa com a minha homóloga francesa, Georgina Dufois, referi-me à fonte dos meus problemas, ora como o sucessor, ora como o antecessor. Georgina atalhou: “votre intercalaire”. Bem visto! O meu "intercalar" e eu, em matéria de migrações, nunca estivemos de acordo em coisa alguma… Em outros assuntos, sim – ambos éramos e somos, por exemplo, regionalistas. A José Vitorino, essa crença, uns anos depois, valeu a expulsão do partido (sorte a que eu escapei por pouco, aquando do meu público apoio à candidatura do Dr. Soares contra o Prof Cavaco, em 2005). Por acaso, eu pertencia à Comissão Política de Fernando Nogueira, quando ele quis regressar ao partido e fui a primeira a defender a sua pronta reintegração. Todavia, em 83, estava ainda em pé de guerra com Vitorino, quando me vi de volta a um Executivo de coligação. Dinheiro não tinha, nem para afrontar o quotidiano mas melhorava de estatuto – com um estatuto, digamos, de “parceria política”. Dei-me sempre esplendidamente em “entente” interpartidária, quer com Freitas do Amaral, quer com Jaime Gama. No campo das migrações, partilhávamos a mesma visão estratégica de aproximação às comunidades, a começar pelo papel central do CCP - de novo, a primeira prioridade! Como deputada, na Comissão de Negócios Estrangeiros, fora a autora de uma proposta, aprovada por unanimidade, em que se instava o Governo a cumprir a lei, convocando a reunião mundial. Como membro do Governo respondi positivamente à Deputada…. Desencadeei, de imediato, o processo eleitoral e iniciei a preparação do Plenário, que se realizou, em novembro, no Porto. A sessão de abertura, dessa vez pacífica e pública, encheu o salão árabe do Palácio da Bolsa. As reuniões de trabalho decorreram no confortável INATEL de Santa Maria da Feira (solução muito económica…) e a sessão de encerramento na Universidade de Aveiro. O Conselho iria ter, ao longo dos quatro anos em que ocupei o cargo, em dois Executivos, as condições para se autoconstruir e escolher os seus caminhos. De caso pensado, entreguei o Conselho aos Conselheiros! Executei, assim, com bastante liberdade, “o mandato que me foi confiado”, dando aso, ou asas, a uma instituição originalíssima, sem paralelo na nossa República, que tão centralizadora e “soberanista” é, face a uma sociedade civil frágil e dependente. O paradigma fica para sempre, embora este modelo de Conselho não me sobrevivesse…. Só por milagre isso teria acontecido! O meu sucessor – o segundo e último sucessor considera-lo ia “inconstitucional”, por invadir o domínio da soberania do Estado. Não fez a coisa por menos! Nenhum constitucionalista o acompanhou em tão radical condenação, proferida em Plenário da Assembleia da República. Os deputados de todas as oposições, à esquerda e à direita, caíram-lhe em cima e alguns do PSD, também, mas o partido tinha maioria parlamentar suficiente para aprovar qualquer dislate. Em vão, a voz de Adriano Moreira foi a que se ergueu mais alto, a defender o extinto Conselho exemplarmente civilista! O CCP foi, na verdade, o instrumento privilegiado de uma nova maneira de governar, em diálogo, em parcerias sem fim, com organizações fortes e independentes do Estado, como são as das Comunidades Portuguesas, que ao Estado nada devem, antes pelo contrário. De facto, ao longo de séculos, no aspeto da Cultura, da assistência social, e qualquer outro que consideremos, substituíram-se a Governos distantes e à ausência de políticas públicas. Resumindo: os Governos não fizeram praticamente nada e ainda hoje fazem pouco, que poucos são os meios. Mas, pelo menos, que façam o melhor possível (o meu moto…), compensando a falta de verbas com sinergias facilmente criadas, pois que se trata de um universo de voluntariado. Nada me deu mais gozo na vida política do que engendrar essa plataforma que se chamou Conselho, onde o Governo, que eu representava interagia com uma assembleia de representantes das comunidades, de igual para igual. Uma távola redonda! O CCP foi a minha távola redonda e o não haver mulheres entre eles, foi, “hélas”, o preço a pagar pela não interferência no processo de escolhas (houve que esperar o momento certo para a abertura às questões de género, que surgiu com a presença de uma primeira mulher, e uma “mulher de armas”, a jornalista Maria Alice Ribeiro de Toronto) Creio ter, assim, dado, ao baixar o perfil governamental, um contributo para instituir espécie de Órgão corporativo, nas antípodas do corporativismo do Estado (o do Estado Novo), pondo o acento tónico no muito admirável mundo organizacional das comunidades portuguesas, não no Terreiro do Paço. Ou seja, num espaço de voluntariado social, beneficente, cívico e cultural. A ideia da criação do Conselho não foi minha, foi de estrategas da AD, expressa, com destaque, como promessa capital, no programa eleitoral. Todavia, pelo acaso de estar naquele cargo, naquele preciso momento, caiu-me nas mãos para executar, sem livro de instruções. Ou melhor, apenas com uma diretriz clara, a impor respeito pela total autonomia dos interlocutores civilistas. Segui-a à risca e rapidamente, elaborando uma lei flexível, aberta a consulta “ex post”. Foi avançada sem parecer prévio, justamente para apressar a convocatória e reunião do Órgão, ainda em 1980. Intuito baldado pelo conflito aberto entre Belém e São Bento, (ou entre Belém e a Gomes Teixeira), que levou à retenção do diploma durante cinco meses (como chamado “veto de bolso”), atrasando por um ano o arranque do CCP. Há males com os seus aspetos positivos, e foi o caso, na medida em que me deu tempo para contactar comunidades dos quatro cantos da terra, de observar as suas caraterísticas, formas de atuar, virtualidades, problemas, carências. Sempre com uma perspetiva hibridista, entre a estudiosa e a trabalhadora social - e daí um perspicaz compatriota do Québec me ter descrito, na tal carta dirigida ao Provedor de Justiça, como “uma missionária que passou por aqui”. (não se imagina quanto fui objeto de “gozação” pelos meus colegas da Provedoria, sendo a única resposta rir-me com eles). A verdade é que eu não correspondia ao estereótipo do governante, nem na indumentária, nem no discurso. Eu tentava, esforçava-me, mas ficava sempre aquém da meta. Nos hotéis, olhavam para mim e para as senhoras ou senhores da comitiva, davam-lhes o quarto grande e a mim o quarto pequeno. Foi assim que um assessor, o Dr Victor Gil, passou uns dias numa faustosa “suite do Copacabana Palace, no Rio, e à Presidente do Instituto, Maria Luísa Pinto, isso aconteceu frequentemente. Às vezes, ocasionalmente, descobríamos o engano, (se eu comentasse, por exemplo, que o hotel era bom, mas o quarto um bocadinho acanhado). Dando conta do equívoco, a Maria Luísa queria, de imediato, fazer a troca, que eu rejeitava, é claro (um trabalhão escusado, porque o tempo para “curtir” as facilidades extra era escasso). Ela andava sempre muito mais chique do que eu – era o seu natural, como o meu é ter tendência para uns fatinhos sem grande graça ou colorido. Mas um dia aparecemos no Instituto com vestidos iguais, iguais mesmo, ainda que de cor diferente, comprados num “shopping” de Waterbury, onde era costume o nosso Cônsul nos levar num intervalo da agenda do dia. Foi um desaire. A Maria Luísa saía com o dela (flores em fundo azul), no dia seguinte àquele em que eu tinha arejado o meu (flores em fundo vermelho), porque era sabido que eu não usava o mesmo fato dois dias seguidos. Só que naquele dia me distraí e fui trabalhar com o mesmo florido conjunto da véspera. A infeliz coincidência, numa manhã normal tinha fácil remédio, uma de nós tratava de ir a casa mudar, não naquela, porém, porque a agenda começava cedo pela assinatura de um protocolo com um governante de Macau. Há homens que não prestam atenção a indumentária de senhoras, mas não era o caso dele. Estava em estado de choque! De vez em quando, mirava-nos de lado, tentando ser discreto, como se não acreditasse no que via. De facto, parecíamos saídas de um catálogo de “La Redoute”. A manhã foi horrível. Depois dele partir divertimo-nos a contar a história a toda a gente, à nossa volta, enquanto ainda formávamos aquele dueto uniformizado… Não aconteceu nada de semelhante no dia inaugural do Conselho. Por uma vez, tive bastante cuidado com a aparência e ainda bem …. Pressentia o simbolismo do momento, e, quer a instituição nascente viesse a ter vida efémera ou longa, as fotos que o retratassem tornar-se-iam icónicas. Na manhã do dia 6 de abril de 1981, pelas 10.00, estávamos reunidos, no salão de espelhos e talha dourada e creme do Palácio Foz: seis dezenas de conselheiros, vários membros do Governo (ou Governos, incluindo os autonómicos), deputados, representantes dos parceiros sociais, jornalistas, e os vários assessores e peritos com os seus "dossiers" muito bem preparados. Um misto de expetativa e ansiedade num cenário esplêndido para o grande começo. Apenas dois discursos breves, o da Secretária-Geral Fernanda Agria, mais enervada do que expectante, e eu (nas antípodas, cheia de expectativas, embora à espera de terçar armas, no caso, argumentos. Na véspera, fervilhavam boatos. O grupo de França mantinha-se aparte de todos os outros participantes, acolitado pela intersindical. Foram vistos, nos alojamentos do INATEL em conciliábulos pela noite fora, o que, para os parceiros de todos os outros continentes e países, não augurava nada de bom Antes mesmo do primeiro Plenário os alinhamentos já estavam feitos – uma enorme maioria queria fazer do CCP um fórum de diálogo construtivo, uma pequena e ativa minoria queria fazê-lo o palco da sua discórdia.. Antes mesmo do primeiro Plenário os alinhamentos já estavam determinados – uma enorme maioria queria fazer do CCP, ali, um fórum de diálogo construtivo, uma pequena e ativa minoria olhava-o como palco ideal da sua discórdia e da sua luta. Ao longo de sete anos, o “leit-motiv” das crónicas jornalísticas do Conselho seriam os escândalos engendrados por essa pequeníssima e ativíssima minoria, que usava da palavra tanto ou mais em conferências de imprensa do que dentro das salas de reuniões – brados de guerra, protestos, insultos, insultos contra o Governo em geral, (em regra personificado pelo detentor ou detentora do cargo da Secretaria de Estado das Comunidades Portuguesas) ou diretamente contra os Primeiros-Ministros. O incidente mais emblemático foi o que atingiu o Mário Soares, o mais letal, para o próprio Conselho, o que envolveu o Cavaco Silva. Nem um nem outro reagiram bem ao serem destratados, mas, enquanto a irritação do Dr. Soares foi ultrapassada, a do Prof Cavaco fez “boomerang”, não de imediato, não enquanto eu permaneci em funções, mas logo que fui substituída. Todavia, isso foi vários anos depois, na reta final de um percurso, em que o Órgão se viu condenado, sem apelo nem agravo. Pelo contrário nos dias matriciais do Conselho - 6 a 10 de abril – os caminhos foram escolhidos de forma livre, democrática e, inesperadamente, unânime. Uma unanimidade que se perderia nos Plenários seguintes, porque ali foi facilitada pelo enfoque na arquitetura da instituição, na reforma da lei fundadora que o próprio Governo, avisadamente, submetia a consulta dos conselheiros. E, bem vistas as coisas, no que respeita à construção do Conselho, às suas reconfigurações, entre 1981 e 1987, nunca houve divergências de maior. Não foi de somenos importância o facto de não ter havido interferência governamental, o que tornou o 1º CCP um "case study" num país onde o autoritarismo do Estado ainda campeia, meio século depois da revolução dos cravos. Estou, deliberadamente, a esquecer, o tempo do meu “intercalar”, cerca de dois anos. São mesmo para esquecer, porque nada se passou, neste capítulo, nem sequer a Reunião Mundial foi convocada. Sem ouvir ninguém, o SEECP fez uma frouxa tentativa de alterar a legislação, que o Conselho de Ministros, avisadamente, “chumbou”... Em Portugal, legisla-se muito e frequentemente mal. O CCP escapou ao excesso, reformou-se por dentro quase sem mexer no histórico Decreto-Lei nº 372/80. Apenas se verifica uma alteração pontual, em 1984, para consagrar a "regionalização" - ou seja, a alternância entre as clássicas reuniões mundiais, por secções temáticas e plenários, realizadas no nosso país, e as inovadoras reuniões mundiais, divididas por quatro regiões do mundo - América do Norte, América do Sul, Europa e África - funcionando em plenário contínuo, rotativamente, nos diferentes países de cada círculo geográfico. Considerei excelente a recomendação, mas, ainda que assim não fosse, tê-la-ia posto em prática, sem objeção. O mesmo posso dizer de uma longa série de melhoramentos, que tornaram o órgão muito mais funcional: a criação da “Comissão Permanente”, da “Comissão de Peritos”, da Secção Permanente da Comunicação Social, das “Conferências” temáticas promovidas, anualmente pelos Conselhos de País, (espécie de “town hall” à americana), ou da “Comissão Interministerial para a Emigração e Comunidades Portuguesas”, que tinha como atribuição principal dar sequência e resposta ao conjunto das recomendações do CCP. E ainda a organização do 1º Encontro Mundial de Jornalistas das Comunidades (em 1982), e do 1º Encontro das Mulheres no Associativismo e no Jornalismo (1985)… e outras de qua já não me lembro com exatidão. No esquema inicial, o CCP partia da base muito alargada de Comissões locais organizadas por área consular, abertas à inscrição de todas as associações aí existentes, as quais, em conjunto, formavam a Comissão de País. Essas Comissões tinham inteira liberdade de ação, de iniciativa, de estabelecer o seu próprio regimento, a sua composição, a agenda, as atribuições dos membros. A lei só impunha o número de Conselheiros de cada país à Reunião Mundial, assim como regras gerais para a eleição desses representantes. A autonomia começava nas bases, afirmava-se, com a força imanente do movimento associativo face aos consulados, tanto quanto face aos governos - a força de comunidades orgânicas, coesas, independentes, verdadeira sociedade civil, o “outro Portugal”, espontâneo e voluntarista, que girava fora da órbita do Estado. Aliás, essas instituições tinham o seu estatuto definido pelo Direito de cada país e, por isso, vistos como interlocutores válidos pelas suas autoridades – em muito casos faziam a ponte entre governantes dos dois países a que estavam ligados… Quando, no 40º ano da criação do Conselho das Comunidades Portuguesas, editei uma pequena publicação sobre o processo da sua construção e chamei-lhe, no subtítulo, um “espaço de utopia e experimentação”. Poderia, talvez, ter falado, mais prosaicamente, de “espaço de inovação e pragmatismo” ou invocado a ideia de “laboratório”. Sim, o CCP andou coletivamente em busca da sua identidade, lugar e destino, e não há dúvida que os encontrou. Sobre a sua própria natureza e missão nunca houve divergências de fundo entre esquerdas e direitas ou entre países e continentes. Eram todos voluntários de um associativismo generoso, antes de serem militantes partidários, e queriam, por igual, a instituição de perfil autonomista, que vinha preencher um vazio. Trataram de lhe assegurar condições de funcionamento de uma forma tão pacífica e consensual, que passou completamente despercebida aos observadores menos atentos, que foram quase todos, incluindo os “media”. O palco servia a todos, aos reformistas e aos revolucionários e, é óbvio que, no que respeita a políticas públicas, as divergências se manifestavam, com estrondo e ruído, sempre amplificados nas notícias… E assim se consolidou a “lenda negra” do Conselho, escondendo a sua verdadeira faceta de instituição dialogante e democrática, onde as maiorias fizeram sempre um ótimo trabalho, as minorias, em muitos aspetos, também… E é bom não esquecer os funcionários, assessores, peritos. Secretário (ou Secretária) do Conselho, que, apesar de serem de nomeação governamental, foram, invariavelmente, louvados pelo seu trabalho isento e competente. Sem exceções… De todos, o maior achado dos Conselheiros foi a ideia da rotação entre os dois moldes de reuniões mundiais – a reunião mundial única e a reunião mundial quadripartida pelos quatro continentes. Porquê? Porque os plenários regionais agregavam solidariedades mais fáceis, eram muito mais homogéneos e foram um autêntico laboratório de boas práticas, logo depois aplicadas, com o mesmo sucesso, ao grande encontro intercontinental… Foi o caso, na reunião inicial tão divisivo, da presidência do Órgão, por lei entregue, à francesa, a um membro do Governo. A exigência de um presidente eleito, um emigrante, fez vencimento em 1981, por pressão da Europa, que os demais, para não estragar os esforços de apaziguamento, não contrariaram. Eu dei o meu acordo incondicional, pois era pormenor que não me ralava. O MNE não gostou de saber a novidade pelos jornais e interpelou-me: “Com que então retirou-me a presidência do Conselho?”. Confirmei, porque “de jure” o lugar era dele, eu ocupava-o por delegação de competências, dizendo que sim, que me parecera uma solução razoável e terminando com uma pergunta: “O Senhor Ministro importa-se?”. Ao que ele, com um encolher de ombros, disse: “Não. Não me importo”. E eu fechei a conversa, no mesmo tom ligeiro. “Nesse caso, está tudo bem!” E estava! Só que, na 2ª Reunião Mundial, em 1983, retomaram a polémica e uma larga maioria votou pela manutenção do “status quo”. Foi na mesma altura em que, por unanimidade, votaram a regionalização, sem sombra de objeção dos extremistas da Europa, que recebiam, de bandeja, a oportunidade de aí se verem livres dos “transoceânicos”. A 1ª Reunião Regional foi, em outubro de 1984, a da América do Norte (Canadá, EUA e, por opção, a Austrália), em Danbury, Connecticut, nas magníficas instalações da Igreja portuguesa, cujo pároco era o Dr. Cachadinha, presidente da Comissão de País dos EUA. Tudo ficou nas mãos dos organizadores, a preparação, o programa da reunião e, também, a presidência dos trabalhos, entregue a uma mesa eleita pelos Conselheiros. Estava feita a revolução, sem pompa, sem ruído e sem qualquer modificação da bendita lei fundadora… Eu presidi, tão somente, às sessões cerimoniais de abertura e de encerramento. Uma Reunião esplêndida, de onde todos saímos felizes! Estava aberto o precedente e daí em diante não haveria recuo, nem sequer nos grandes plenários realizados, bienalmente, em Portugal… O de Porto Santo, em 1985, foi aquele que consagrou a autonomia de gestão dos Conselheiros. Também aí, o que avultou na imprensa não foi esse grande “salto qualitativo” no empoderamento dos Conselheiros, mas uma insignificante dissidência de meia dúzia de “parisienses”, que abandonaram os trabalhos, ao terceiro dia, para darem vazão à sua cólera na tradicional conferência de imprensa em Lisboa… Em guerra aberta com a esmagadora maioria dos seus pares (para além da guerra permanente com qualquer Governo), vieram comunicar-me que passavam a reunir entre eles, à margem da Reunião. Resposta pronta: “Estão num país livre, façam como quiserem, mas, a partir do momento em que deixem de participar na agenda do CCP, passam a pagar a vossa conta de hotel”. O hotel era caro…fizeram as malas e abalaram. Poucos… metade dos Conselheiros da Europa ficou ordeiramente na Madeira, no esplêndido ambiente de trabalho e confraternização que se gerou. A cisão foi de pouca dura. Estavam de volta, como se nada tivesse acontecido, nas reuniões preparatórias dos encontros regionais de 1986. E organizaram a da Europa, em Estugarda, muitíssimo bem, sem escândalos, com uma presidência capaz a tranquila… Uma contribuição da minha lavra para a agenda do CCP - a meu ver, relevantíssima… - , não mereceu destaque algum dos observadores externos nem particular entusiasmo dos membros eleitos. Era uma espécie de “ovo de Colombo”. Um órgão consultivo existe para ser consultado, evidentemente. E, contudo, não o era. Ou era-o apenas no domínio respeitante às suas próprias estruturas – e esse, sim, incendiava as almas nos Plenários e na Secção que a SEECP destinara ao tema desde a primeira hora… Dando-me conta da lacuna, em 1984, passei a apresentar ao Conselho, anualmente, nas Reuniões anuais, pedido de parecer sobre o programa de atividades da Secretaria de Estado para o ano seguinte, bem como sobre o balanço de ações do período anterior, acompanhado do respetivo orçamento despesas com as ações levadas a cabo no ano que findava. O CCP, ainda que apenas a título consultivo, ganhava prerrogativas quase-parlamentares de se pronunciar sobre o Orçamento e o Programa de governação no meu setor! Se eu achava a ideia progressista, verdadeiramente co gestionária, fiquei sozinha em campo,( coisa que na vida muitas vezes me aconteceu e nunca me desanimou). Nem os mais desenfreados “gauchistes” aproveitaram a deixa para criticar fosse o que fosse. Muito estranho… Os documentos eram foi facilmente aprovada, um pouco por todo o lado, sem grande discussão. Quatro décadas depois, o CCP vive das suas próprias propostas e iniciativas, raras vezes devidamente e já se vai queixando de não ser consultado. A nova lei talvez mude este panorama, ao impor a consulta obrigatória do CCP em certas matérias… A minha, que era voluntária, viu-se, misteriosamente, pouco menos do que desprezada. Eu sonhava com um Conselho que olhasse a panóplia de realizações que oferecíamos, se pronunciasse sobre o seu interesse, apontasse prioridades e, através das associações agregadas no seu interior, lhe desse ativa colaboração. Tudo o que consegui, onde queria debate sério, foi, em regra, uma aprovação genérica, “en passant”. Mais uma razão para dizer que o Conselho fez, não o meu, mas o seu próprio caminho. E ainda bem, porque esse o objetivo principal. Um Conselho, cuja autonomia o convertia em genuíno porta-voz do associativismo era a expressão máxima de uma forma nova de governar, em diálogo contínuo. Claro que essa prática sistemática não podia limitar-se ao âmbito de um fórum, por muito representativo que fosse. Impunha-se, mais latamente, o contacto de proximidade com os cidadãos e com as comunidades, dispersas pelo vasto mundo, com os seus centros comunitários e os seus média, e também com os consulados, porque uma coisa é ler relatórios de funcionários, e outra é vê-los a funcionar no quotidiano – os que se interessam pela emigração e os que se despreocupam. Mostrou-me a experiência que a percentagem, nesta classificação dicotómica, era cerca de 50% para cada lado… E nos embaixadores, mais ou menos o mesmo posicionamento. Talvez um pouco menos…. Ora o escrutínio de um Governo, permitia, quando permitia, trazer as comunidades das margens para o centro das atenções, sobretudo se os governantes pertencessem a tal à categoria dos que se interessam pelas matérias sobre as quais discursam… também há os outros, que andam apenas em passeio. Antes de 80, a fronteira das preocupações nacionais, o campo de aplicação das políticas públicas, era a Europa da emigração “a salto” - a França/ França/ França, como até meados do século XX fora o Brasil/ Brasil/Brasil. Depois, a grande distância, a Alemanha e o Luxemburgo nos antigos segundo e terceiro lugar pertencentes à América do Norte ou à Argentina… Para além da fronteira marítima, chegou primeiro, através dos seus emissários, o Presidente da República do que os Governos da democracia, O Presidente Eanes, a partir de 1978, mandando festejar, a 10 de junho, Camões e as Comunidades Portuguesas. O organizador das comemorações anuais era o Conselheiro da Revolução Vítor Alves, que, nessa qualidade, correu mundo. (como já disse, o seu projeto de convocar um congresso mundial das comunidades, incumbido de criar estruturas permanentes de representação de emigrantes, duplicava, com precisão matemática, o do CCP – o que seria fonte inesgotável de conflitos de competências, até que a montanha - o “happening” chamado congresso… - pariu um rato, não deixando o futuro nenhuma nova instituição. Ficou sozinho em campo o CCP, com uma composição em que a Europa detinha menos de 1/3 dos assentos, porque, contas feitas, era essa a dimensão que os números justificavam. Isso não significava que o Conselho fosse o meu único interlocutor. Ao longo dos meus quatro mandatos como SEECP, reuni, incessantemente, nos diferentes países, com os cidadãos, em intermináveis “sessões de esclarecimento”, visitas a centros comunitários, a meios de comunicação, a consulados, a homólogos de governos estrangeiros, a organizações internacionais. Deixei de ter vida de família, fins de semana, férias, passei a fazer escritório em salões VIP de aeroportos, aviões e quartos de hotel. E deixei de ler, exceto policiais em inglês, edições de bolso, para descansar de relatórios oficiais… Escrever só mesmo alguns discursos, embora, a partir de certa altura, tivesse um “ghost writer” . O meu “ghost writer” O meu “escritor fantasma” era um antigo colegado “Centro de Estudos”, o Carlos Branco. Uma sorte! Ele e eu discordávamos em muitas coisas, mas estávamos de acordo em quase todas as matérias da emigração e ele expressava as (minhas) ideias bem melhor e mais sinteticamente do que eu. Mas não todas… sobre questões femininas, ou feminismo, não conseguia apresentar nada de comparável ao seu normal. Tinha eu de me desembaraçar. Que remédio…. nenhum outro escrevia do meu jeito… Carlos Branco era um homem da geração dos meus pais, solteirão, solitário, um excêntrico, com aspeto de sábio distraído, óculos de tartaruga redondos, fato completo escuro, muito gasto e “démodé”. Parecia um sábio e era. Multidisciplinar! Formado em Histórico-filosóficas, mas cultor de outros saberes, da sociologia à etnografia, ao Direito, às Finanças, ao cinema, à música… Não me lembro de me ter algum dia falado de viagens, ou de contactos com qualquer comunidade da emigração. Os seus horizontes abriam-se dentro de bibliotecas e gabinetes. Talvez, também, nas salas de teatro de cinema, de concertos. Gostava muito dele, mas receio que a minha pressa e impaciência o importunassem. Não tínhamos o mesmo ritmo. Eu irritava-me imenso quando ele me chamava, criticamente “Catarina de todas as Rússias” ou quando começava uma frase com: “Calma e serenidade! Duas coisas que me faltavam, é claro que sim. Isso podia fazer-me pontualmente difícil - déspota, não. Como caricatura, excelente… Certo é que Carlos Branco tinha no meu gabinete tratamento de vedeta. E muito justamente, porque ninguém (nem eu) sabia, como ele, traduzir no fio dos discursos o caráter inovador das políticas – que não eram minhas, mas daquele Governo, o Governo de Sá Carneiro. Tudo começava no diálogo, autêntico e sistemático, com as instituições da sociedade civil. As comunidades portuguesas eram valorizadas na sua realidade orgânica, na plêiade de organizações de que se constituíam, e ganhavam coesão, solidariedade, força para preservar tradições, costumes, língua, cultura. As comunidades orgânicas, assim definidas, eram interlocutores insubstituíveis do Governo, como parceiros na execução de políticas públicas, incluindo as respeitantes à defesa de direitos individuais. A rede associativa é, por exemplo, de uma eficácia sem paralelo, na transmissão de informação de toda a ordem, jurídica, económica, social, assim como no apelo à participação cívica ou política. E, se os Governos pretendem levar a cabo os seus próprios projetos de formação (de ensino da língua, de teatro, folclore, jogos…), de pesquisa, de divulgação cultural (exposições, colóquios, conferências, intercâmbios, sessões de esclarecimento), tudo isso se tornava mais viável e muito mais eficaz porque tinha ao seu dispor, em qualquer continente ou país de emigração e, as mais excelentes e acessíveis instalações, para além de voluntários capazes de ajudar em todos os aspetos. Eram manifestamente recíprocas, para o Estado e as Comunidades, as vantagens de romper as distâncias, de geografia e de mentalidade e atitude, subjacente às políticas que chamávamos do novo Ciclo das Comunidades (no referido sentido sociológico). Ou “políticas de reencontro”. Este reencontro satisfazia muitas das reivindicações comunitárias, que se situavam, precisamente, no campo da informação, da formação, da promoção da Cultura. E que eram, por isso mesmo, prioridades da SEECP… (que o Carlos Branco insistia em enumerar, repetidamente, nos discursos, convicto de que a maioria dos destinatários não assimilava inovações logo nas primeiras abordagens. Estávamos no limiar de um tempo novo, , o “ciclo das Comunidades”, todas as iniciativas obedeciam a uma estratégia pensada no longo prazo, executada no dia a dia. Neste contexto, as visitas às comunidades, os múltiplos contactos de anteriores responsáveis, que não seriam menos gratos ou menos afetivos, eram vistos como “peças soltas”, enquanto, a partir de 80, no “ciclo das Comunidades” prosseguiam um plano de mobilização, com caráter sistemático, e um enfoque especial, embora não exclusivo, no CCP. Para mim, com um envolvimento pessoal, que me dava, como se imagina, um imenso gozo, porque entroncava no combate ao centralismo de gabinete de Terreiro do Paço e aos costumes paternalistas da nossa tradição, cuja proclamada brandura sempre questionei. Viajar é preciso Assim, por dever de ofício e por gosto, não tinha “parança”. Sentia-me bem. Só quando se parei de vez, um quarto de século depois, é que me apercebi do excesso, aliás, muitas vezes criticado. Os portugueses têm a fascinação do estrangeiro e invejam quem anda sempre por lá. Fui, cá dentro, por isso, objeto de crónicas agrestes e outras divertidas, em cartoons e em títulos jocosos de jornal – como “Manuela a voar”, que chegou a cansar pela repetição. Não vale a pena passar em revista os últimos quatro anos de Governo em itinerância pelo espaço extraterritorial português. Estão recheados de boas recordações, mas são muito semelhantes ao primeiro. A diferença é que o primeiro foi de encontros e os seguintes de reencontros. Só essa a diferença e para melhor porque nos conhecíamos, sabíamos o que podíamos esperar uns dos outros, na partilha de projetos. Acompanhei o crescimento de muitas associações, como vem vê crescer os jovens da família. Todos os voos somados, davam muitas voltas ao mundo, embora cada vez mais raramente tivessem por destino novas paisagens. Digamos, fui mais de cinquenta vezes ao Brasil e nenhuma ao Perú, à Colômbia, ao Equador ou a Cuba- onde talvez houvesse compatriotas, mas não comunidades, vida portuguesa… Todavia, a minha fama de “globetrotter” ultrapassava largamente as fronteiras do meu “mundo português”. Até o Doutor Soares, quando se falava de um qualquer país remoto se virava para mim e perguntava, mais em tom de ponto de exclamação do que de interrogação: “A Senhora Doutora já lá esteve? E eu dizia sempre que não, o que não o inibia de repetir a pergunta numa conversa seguinte. Os palcos internacionais Um outro destino dessa movimentação imparável era o das reuniões internacionais - o Conselho da Europa, OCDE, OIT, CIM, UNESCO, todas cidades familiares da Suíça, França, Bélgica - e, no bilateral, as conversações constantes com os homólogos das terras de imigração. Quase sempre, um reino de cordialidade longe das pequenas querelas e intrigas da política caseira, mesmo quando não havia cedências desejadas pela outra parte – os luxemburgueses Jean Claude Juncker e Spatz, os franceses Georgina Dufois e Bernard Bosson, os suíços Klaus Hug e Junzicker, o britânico David Waddington, uma série de alemães e de gregos, de nomes mais difíceis de lembrar do que os seus rostos e simpatia, o venezuelano Aristigueta-Gramko, o canadiano Axworthy, Abi Hakel, mais uma longa lista de políticos brasileiros, e a melhor das aliadas, a sueca Anita Gradin, amizade duradoura, para além da zona demarcada da política. Gradin era, na altura, de todos estes nomes o mais proeminente, a nível europeu, e, na Suécia, uma figura respeitadíssima, a responsável pela adoção do sistema de quotas no PSD, ministra dos Governos de Olaf Palme, em diversas pastas, presidente da Internacional Socialista de Mulheres. (J C Juncker, jovem Secretário de Estado do Trabalho e da Imigração só anos depois seria Primeiro Ministro e, por fim, Presidente da Comissão Europeia). O meu primeiro encontro com Anita Gradin, então Ministra da Imigração, foi em Estocolmo, nas vésperas da 2ª Conferência de Ministros do Conselho da Europa responsáveis pelas Migrações. Em Roma, fomos ambas eleitas Vice-Presidentes da Conferência, presidida, como era de praxe, pelo Ministro do país anfitrião. Para mim, uma estreia! A Conferência das Nações Unidas para a Igualdade, em Copenhaga fez curriculum, mas limitou-se à leitura de um texto de 3 ou 4 páginas. Roma foi um “upgrade”, tive ampla oportunidade de entrar em debates, de tomar a palavra para quebrar tabus (vários…). Tive ali um protagonismo inesperado - inesperado para todos, a começar por mim. Não especialmente por mérito meu, mas porque os ventos me foram favoráveis. Fiz a ponte entre países de emigração e imigração numa questão muito sensível: os regressos de migrantes, que muitos países de acolhimento, em conjuntura de “vacas magras”, queriam por em agenda e favorecer. De facto, estava numa posição única, porque Portugal, ao contrário dos seus parceiros do sul, desde a revolução de 74, tinha políticas públicas de incentivo ao retorno, com medidas, que, a meu ver, se revelaram bastante eficazes (contas de poupança-crédito, bonificação de juros, benefícios fiscais, isenções alfandegárias…). E, por isso, aceitei abertamente a discussão do tema, numa linha firme de facilitação da livre escolha pelos trabalhadores da permanência no estrangeiro ou da reinserção na sociedade de origem, ao mesmo tempo que punha em debate a questão fundamental da dupla nacionalidade. Expliquei que, como representante de um país de emigração, queria a dupla nacionalidade, para assegurar a boa integração, em condições de igualdade, no país de destino, não para manter a ligação à origem, porque esta nunca se rompe. O problema é que a maioria dos emigrantes recusava adotar uma segunda nacionalidade se isso implicasse perder a originária. Era um discurso novo, surpreendente, secundado, de imediato, pela Espanha, que, como nós, e no mesmo sentido acabava de alterar a sua lei da nacional. Um discurso que atacava, de frente, a doutrina tradicional do Conselho da Europa, pondo em causa o princípio da unicidade da nacionalidade, consagrado na Convenção de 1963. Foi um primeiro abalo de conceitos antigo, um convite a encarar o desafio de repensar as coisas. Correu bem, tão bem que Portugal apresentou a candidatura a acolher a 3ª Conferência de Ministros das Migrações e foi aceite por unanimidade… E Anita Gradin, até então acérrima defensora, como todos os colegas nórdicos, da Convenção de 1963, propôs-se organizar e organizou, no ano seguinte, um colóquio internacional sobre a polémica e fascinante temática. A franqueza com que falei de uma e outra questão (a escolha da dupla cidadania e a livre opção entre ficar, ou não, definitivamente no país estrangeiro, fazendo-o seu) e a forma como privilegiei a vontade e os sentimentos dos próprios emigrantes face aos dois Estados ajudou-me a fazer aliados. Eram posições muito genuínas e isso dava força às palavras. Outro fator terá pesado: o significativo número, não ainda em paridade, mas em posições de influência, e todas com especial sensibilidade para os aspetos sociais da imigração. Anita e Georgina foram as principais, mas não as únicas. O bom ambiente assentava naquela química perfeita entre o trabalho e a festa. Roma é uma cidade assombrosa, “delabrée”, mas assombrosa. Ao fim da tarde, partíamos em grupo, para fazer um pouco de exercício e confraternizar num ruidoso restaurante (adoro tudo o que é italiano, com exceção das pizzas). Ao fim da tarde, ainda havia lojas abertas e Anita e eu compramos uns chapéus de abas idênticos, muito pitorescos, que ela ameaçou estrear para a mesa da presidência. E cumpriu. Eu não tive coragem, para atingir o mesmo grau de sofisticação faltavam-me alguns anos… As nossas fotos, lado a lado no plenário de Ministros, seriam ainda mais engraçadas se a tivesse acompanhado na excentricidade. Aquela primeira grande Conferência, sobretudo durante as suas pausas e intervalos, sem tradução simultânea, mostrou-me que Sá Carneiro tinha tido razão ao escolher para a emigração alguém que falasse línguas com à vontade, pelo menos o francês e o inglês. Eu falava… tinha tido a sorte de estudar com professoras para quem o francês (a Madre Borghi) e o inglês (a Madre King) eram línguas maternas. Já deixei antever que não tinha sido entusiasta da frequência de colégio interno muito chique, que troquei, logo que pude, felicíssima, por um liceu popular, mas reconheço “a posteriori” algumas vantagens ao ensino das Doroteias vantagens... Sem essa habilitação, talvez não tivesse tido com os meus homólogos, relação tão “tu cá, tu lá”. Anita, Georgina e eu formámos um trio que se impôs, muito para além daquele evento romano. Curiosamente, uma não falava inglês, nem a outra o francês, eu via-me sempre no papel de tradutora… E acho que elas, entre si, nunca se tornaram grandes amigas precisamente porque lhes faltava a conversa direta, o convívio num espaço comum que qualquer língua é. Uma pena, porque eram socialistas, feministas militantes, partilhavam as posições humanistas sobre a imigração. Não divergiam, realmente, em nada de fundamental. Nem entre si nem comigo, que, nestas matérias, me situo do mesmo lado. E porque não? Afinal, aderi a um partido que se chama social democrata. Eu sei que está acantonado à direita, quando muito ao centro direita, nacional e internacionalmente, (desde que se transferiu para o PPE), mas disso eu não tenho culpa. A adesão ao PPE, nos anos noventa, durante o meu tempo de representante na Assembleia do Conselho da Europa, causou-me não poucos transtornos, excluindo o ser considerada a “gauchiste” do “bureau”. De facto era, e ao “bureau” para irritação de alguns, pertencia mais por inerência (por ser presidente da Delegação nacional) do que por livre escolha dos meus pares…. À vida pública portuguesa não faltam singulares ambiguidades, algumas provindas das particularidades da Revolução de Abril. Veja-se o caso dos partidos políticos que se colocavam à esquerda da sua realidade – o CDS ao centro, sem nenhum outro à sua direita, o PPD, candidato à Internacional Socialista e o PS autoproclamando do marxismo - coisa de que me lembro das marchas que andei em Lisboa, atrás do Dr Mário Soares, sem ser soarista, mas por ser democrata, ouvindo, a meu lado, os camaradas gritar o mais incomodativo slogan: “partido socialista, partido marxista”. Suponho que ainda há marxistas no PS, mas mais discretos. A ambiguidade das políticas e dos políticos não é propriamente raridade entre nós, muito para alem do campo partidário. Já Miriam Halpern Pereira aponta essa caraterística às políticas tradicionais de emigração, que oscilavam entre a abertura e o condicionamento dos fluxos, conforme ditavam as conveniências da conjuntura. Com as medidas de apoio ao regresso dos emigrantes ao país, a partir da meia década de setenta, as alterações de humor governamental não perecem ter sido poucas…. Tudo começou no apelo revolucionário do regresso em massa dos que a ditadura tinha expelido to território. Ora, embora houvesse bom número de exilados, a esmagadora maioria era emigração económica, que só voltava se pudesse aqui viver como lá fora. E a que voltou, involuntária e dramaticamente, foi a que a descolonização tardia e apressada, jorrou de África. Um êxodo de 800.000 a um milhão, (ninguém sabe ao certo), que, pelas suas caraterísticas de resiliência e dinamismo, a prazo, se integrou rapidamente em Portugal (sobretudo!), no Brasil, único país, que como o seu, os recebeu, incondicionalmente, e na África do Sul, que os aceitou com muito mais restrições, (na ausência de solidariedade europeia, americana ou outra). Esse retorno traumatizou tanto os próprios protagonistas, como as autoridades e a opinião pública. O tema regresso tornou-se sensível – ao mínimo anúncio de iniciativas que o incentivassem nas terras de acolhimento (na Alemanha, na França…), o país inteiro entrava em “stress”, com os políticos à cabeça! Não se atreviam, porém, a suspender as medidas concretas de apoio – os depósitos a juro bonificado, que enchiam os cofres da banca, as isenções fiscais, as facilidades alfandegárias. Limitavam-se a discursar em sentido contrário, a dissuadir os homens, que não as remessas. Mas os portugueses, como sempre tinham feito no passado, cumpriam à risca os seus planos pessoais, coincidentes ou não com os desígnios de Chefes do Governo e Presidentes. Face a estas altas figuras, eu só tinha uma vantagem, que era andar no terreno e conhecer as realidades – o tal “saber de experiência feito”. (Camões dixit). Os emigrantes voltavam quando tinham o suficiente para a compra da casa, com meios para investir num negócio ou uma pensão de reforma. Voltavam para as aldeias de origem, não para procurar empregos mal pagos ou inexistentes nas cidades do litoral. Estes regressos eram tão naturais e tranquilos que ninguém parecia dar por eles. Só tinham vantagens! Mesmo assim, andei a proclamar estas verdades à “Mr de la Palisse”, durante quatro longos anos. Nunca consegui convencer a imprensa, o povo e as mais altas testas governativas de que não haveria nova gigantesca vaga de súbitos retornos. Foi um exercício de paciência… Em Roma, a minha visão otimista e bem fundada do fenómeno foi o meu passaporte para a linha da frente da Conferência. Estavam, finalmente, perante uma representante de um país de emigração sem medo do regresso voluntário de emigrantes! Disposta a trazê-lo a debate, e a colaborar, desde que todos respeitassem a liberdade de escolha das pessoas concretas. Por sinal, saí de Lisboa trazendo na pasta um projeto de discurso (do Carlos Branco…), baseado nas informações técnicas do IAECP, que fui lendo e retificando a bordo do avião.... Onde os Serviços, ao fazer um balanço de movimentos recentes, escreviam: "Não há regressos significativos a Portugal", cortei o "não", e afirmei "Há regressos significativos e Portugal". Nem eles nem eu tínhamos números para apoiar asserções de sinal oposto. Eles regiam-se pela inércia, eu pela observação... Eles, os funcionários, trabalhavam sentados nas suas secretárias, eu andava pelo país, por vilas e aldeias do interior, via muitas casas novas na paisagem ou no traçado urbano, já ocupadas em permanência. Casas de emigrantes, sem dúvida. Poucos meses depois vieram a público os resultados de duas investigações académicas independentes (a da Prof.ª Manuela Siva e a do Prof. Sousa Ferreira). Qualquer deles registava mais de meio milhão de emigrantes já reintegrados no país, num movimento que atingira o auge e entraria em curva descendente nos anos seguintes. Regressos invisíveis, programados, graduais, e sustentados pelas políticas públicas de apoio, que o Estado usava como arma de caça às divisas e eles como meio de fechar o ciclo migratório mais depressa e melhor. A minha outra causa não era menos justa nem menos pragmática – a dupla nacionalidade. O Conselho da Europa pensava pela cabeça dos países mais poderosos, países recetores de “mão de obra” (horrível palavra que objetiva a pessoa). Impor a escolha de uma só nacionalidade, era essencial – o imigrante devia adotar a do novo país, esquecendo as origens para mais completamente se integrar. Assim o proclamava a Convenção de 1963, sobre a unicidade de nacionalidade. Erro sobre a natureza humana, fui eu dizer em Roma, ao pedir o fim da Convenção. Um emigrante feliz tem sempre dois amores – o do país de origem, que nunca se perde, e o do novo país, que se ganha pelo trato e pela compreensão desta abrangência real do seu duplo sentimento de pertença. Os pioneiros desta escola de pensamento foram países construídos por imigrantes, e os mais desenvolvidos, como o Canadá e os EUA. O Canadá, ainda na década de sessenta, em texto legislativo, os EUA, pela prática jurisprudencial, pela continuada ausência de sanção. Na Europa, Portugal e Espanha, quase em simultâneo (embora de costas voltadas, como é costume), tinham dado esse passo. E, como eu expliquei, não para manter os laços com os seus nacionais que se naturalizassem, mas para ativamente os encorajar à naturalização, como instrumento de uma perfeita integração no estrangeiro, com um estatuto de igualdade. O espanhol estava no mesmo cumprimento de onda. Na verdade, a onda ia alastrando. Anita foi o mais longe que podia. Deu o benefício da dúvida. Ofereceu-se para convocar prontamente, uma conferência internacional em Estocolmo, onde abordaríamos a magna e polémica questão. A Conferência foi terreno propício para o primeiro passo europeu na boa direção, mas a clivagem Norte/Sul continuaria por muitos anos. No Conselho da Europa a luta que durou o tempo suficiente para eu participar nela, como Deputada, na década seguinte. Finalmente, a Convenção de 63 foi revogada pela de 96. Desapareceu a imposição da unicidade de nacionalidade, sem consagração de uma nova obrigatoriedade. A isso obstou a teimosia alemã. Cada Estado é livre de legislar na matéria. A Alemanha exige aos estrangeiros a unicidade, não aos seus. Suponho que ainda hoje, descendentes de várias gerações de descendentes, cidadãos de países da Europa central e de leste podem reclamar, cumulativamente, a nacionalidade alemã. Um novo mundo de amizades Anita Gradin Depois do encontro de Estocolmo, os políticos e juristas participantes regressaram aos seus países. Eu fiquei durante o fim de semana com Anita e Bertil Kersfetl na ilha onde tinham a sua casa de campo. A Maria José Cabugueira era a adjunta do Gabinete que estava de serviço e também foi convidada. (a Maria José era uma simpatia e eficientíssima, tinha acabado de tirar o curso e ninguém diria que não lhe sobrava experiência – foi uma das minhas várias vezes na extrema juventude, aposta ganhas, sempre, embora nenhuma era tão inaptamente competente como esta jurista da Católica). A ilha era maravilhosa, com bosques que desciam até às margens tranquilas do que parecia um lago. E sem vizinhos à vista. Havia apenas mais uma ou duas casas de madeira, distantes umas das outras. Com Anita e Maria José andei a apanhar cogumelos, com Bertil, que era coronel do Exército, fui à pesca. Remei, que é coisa de que gosto imenso, enquanto ele lançava a rede. Estraguei-lhe a pescaria, porque, contra as instruções, cedia à tentação de remar depressa demais. Regressamos do mar com um só peixe, mas alentado, foi o nosso jantar abundante e excelente jantar. Anita era cozinheira de primeira categoria. Pouco depois, tive oportunidade de retribuir, não numa ilha, em que o nosso litoral não é prodigo, mas em Espinho, à vista do agitado Atlântico, que Anita e Bertil adoravam. Passámos bons momentos em conversa no pontão norte, sentados nos rochedos da extremidade, onde temos a sensação de estar a bordo de um navio. E em Lisboa, é claro, em não sei quantos eventos, ora organizados pela SECP, ou por outros departamentos, já que a minha amiga sueca era perita em diversíssimas áreas, da Igualdade e Imigração , que partilhávamos, ao Comércio Externo, Justiça ou Finanças em que ela sobraçou pastas ministeriais. Sempre que podia, vinha mais cedo um ou dois dias, revíamos dossiers e projetos, enquanto gozávamos as paisagens de Sintra, de Nazareth, de Aveiro do rio Douro (este é um belo país para conseguir simultâneos trabalho/turismo). Em Portugal, o seu outro amigo era António Guterres –tinham sido colegas na Assembleia do Conselho da Europa, onde Anita foi, durante uma década, uma das mais influentes parlamentares. Guterres sucedeu a Anita, em Estrasburgo, como presidente da Comissão das Migrações e Refugiados. Curiosamente, mais tarde, nos anos 90, também eu fui eleita para a presidência dessa Comissão. As semelhanças curriculares, com ela e com ele, ficam por aí… Numa dessas visitas de Anita, então Ministra da Imigração e da Igualdade, em tempos de Governo do Bloco Central, organizei, em sua honra, um almoço em grande formato, uma sala cheia de notabilidade, a Dr.ª Maria Barroso, vários membros do Governo, Deputados e convidados especiais, como António Guterres, que, nessa conjuntura, andava muito marginalizado pelo seu partido… O tema era migrações, não a política nacional, pelo que não houve reparo – e, se houvesse, pouco me ralava. Ir contracorrente era um dos meus pontos fortes, desde a remota infância. Dava-me gozo e, às vezes, pagava um preço, que valia sempre a pena. A minha saída definitiva do Governo, em agosto de 87, foi um desses episódios. Tinha, após a eleição presidencial de 85, aderido à “Fundação Século XXI”, de Freitas do Amaral, com mais um ou dois Ministros de Cavaco Silva, que não terá apreciado nada esse nosso “desvio”. Em todo o caso, sai pela porta da frente, e até me fizeram Vice-Presidente da AR – a primeira mulher a ocupar cargo, mais protocolar do que outra coisa qualquer, mas que, pelo ineditismo, teve bastante visibilidade. Acumulava, também, o cargo de Presidente da Comissão Parlamentar da Condição Feminina e, nesse chapéu convidei Anita Gradin, Ministra e Presidente da Internacional das Mulheres Socialistas a falar-nos sobre paridade. Foi uma reunião de diálogo muito informal, muito participado em nos contou como ela própria e outras militantes conseguiram impor o sistema de quotas no interior do PSD sueco. Resumindo: as mulheres eram uma pequena minoria nas listas do partido para as sucessivas eleições legislativas e a desculpa era sempre a mesma – não havia candidatas disponíveis: elas não queriam, não se interessavam ou não podiam conciliar vida familiar e política, etc. etc. Curiosamente, argumentos com que nos confrontávamos ainda em Portugal… A diferença era cronológica. O que acontecera a norte da Europa continuava, décadas depois, a ser a nossa atualidade, aqui no sul. Na Suécia de 60, Anita Gradin passou do contraditório de puras alegações à recolha de “curricula” femininos e, na primeira oportunidade, quando o partido fazia seleção de candidaturas, apresentou a prova de que não faltavam mulheres com qualificações iguais ou melhores do que os deles. A norte, a evidência não se pode varrer para debaixo dos tapetes e, embora a contragosto, os homens aceitaram a regra da a paridade nas práticas internas do partido. A força do paradigma levou outros partidos a adotá-lo. Não foi preciso inscrever a sua obrigatoriedade nas leis do Estado. Mais a sul, sim, e tardiamente, por cá - cerca de 20 anos depois deste conciliábulo com a pioneira sueca. Ela deu-nos inspiração esperança, houve, porém, que esperar, anos e anos, até que o PS internamente adotasse essa prática, e a impusesse, em 2007, numa lei da República, em 2007, depois de falhada uma primeira tentativa, em que, para além dos socialistas só mesmo eu votei a favor… Maior e imediata Influência, ainda que ocasional e indireta, acabou por ter Anita Gradin no lançamento das políticas para a igualdade na emigração portuguesa. A explicação é simples. A nossa amizade e sintonia política era do conhecimento geral no Conselho da Europa e, pelo visto, também a nível da nossa comunidade da Suécia. Em 2005, já eu tinha deixado a vida parlamentar, a presidente de uma Federação de Mulheres Lusófonas (PIKO), com sede em Estocolmo, telefonou-me, a perguntar se, em nome delas, podia mediar um pedido à Senhora Gradin, para participar, como convidada de honra, na comemoração dos vinte anos da instituição. Nunca a PIKO me tinha contactado, mas disse que sim, naturalmente, e fiz a ponte no próprio dia. Correu tudo às mil maravilhas, lá em Estocolmo, sem eco cá dentro, é claro... Mas eu pus-me a fazer contas de subtração dos vinte anos da PIKO ao presente ano de 2005, o que deu 1985. Ora 1985 era a data da convocação pela Secretaria de Estado da Emigração do 1º Encontro Mundial de Mulheres. Que coincidência, o mítico Encontro ter a idade da PIKO! Era preciso celebrar, também, os 20 anos do Encontro! E como? Relançando o interrompido projeto de mobilização das portuguesas migrantes para a intervenção cívica. A Associação Mulher Migrante (AMM), facilmente organizaria um evento comemorativo, mas o ideal era mesmo envolver o Governo. Eu era presidente da AG da AMM, e Rita Gomes, presidente da Direção, ambas estávamos entusiasmadas com a ideia. Pedi uma audiência ao meu sucessor António Braga, com quem tinha relação de forte amizade, nascida nos convívios e trabalhos do Conselho da Europa e da UEO. Sugeri--lhe a realização de uma nova conferência mundial, ao que ele contrapôs um plano de reuniões internacionais quadripartidas geograficamente, ao longo de cada um dos quatro anos do seu mandato, e só depois programar um grande congresso no país. E, assim, numa parceria entre o Governo e uma associação feminista, a AMM, foram levados a cabo os “Encontros para a Cidadania – a Igualdade entre Mulheres e Homens”, ano após ano, na América do Sul (Buenos Aires), Europa (Estocolmo), América do Norte/Leste (Toronto) e Oeste (Berkeley), e, por fim, na África (Joanesburgo). O “congressismo” era, de novo, instrumento privilegiado de tomada de consciência das discriminações, de mobilização para a igualdade - no início do século XXI, como um século antes, com as nossas avós sufragistas. E agora centrado nos problemas das mulheres migrantes, quase sempre as grandes esquecidas do sufragismo, aqui como por todo o lado. Essas jornadas de 2005/2009 foram momentos humanamente inesquecíveis, em que pioneirismo, missão e perfeita convivialidade se misturaram. Acreditávamos que a meta estava ainda longe, mas já era possível ganhar muitas etapas. Em ambiente de esperança e de alegria, contando com o companheirismo de muitos homens, feministas como nós. E, finalmente, o Estado parecia querer cumprir fora como dentro de fronteiras, o seu dever constitucional de promover ativamente a participação das mulheres na esfera pública. Muito curiosa a forma como a Constituição foi (não) aplicada para além das fronteiras terrestres. Eu, como governante, tive consciência do problema e andei à procura de instrumentos de atuação, de aliados no governo e nas comunidades, até que duas emigrantes, Natália Dutra, mulher de um Conselheiro do CCP e a Conselheira Málice Ribeiro, durante um almoço (e ainda há quem critique o pendor português para repastos/tertúlias… ), tiveram a muito excelente ideia de me propor o tal encontro mundial de mulheres da emigração. Lançamo-nos ao trabalho, de imediato. No plural, evidentemente. E num plural feminino: a Maria Luiza e a Maria Rita, Presidente e Vice-Presidente do IAECP (Instituto de Emigração), a Diretora do Centro de Estudos, Graça Guedes, e a melhor das operacionais, Maria do Céu Cunha Rego. Nomear mulheres para reequilibrar a balança de género, na cadeia de comando, como sempre tratei de fazer, tem, por vezes, vantagens acessórias. Neste caso foi uma mais valia, sem negar a boa cooperação de muitos homens – os diretores dos Serviços das regiões Autónomas, Cônsules, Embaixadores Há quem nele veja neste mítico Encontro a génese das políticas de género. Até uma tese de doutoramento sobre os Portugueses de Toronto se insere nessa linha (de todos os meus mandatos, é mesmo a único feito que nessa ótima investigação é salientado). Espantadíssima, tentei aderir à tese, repensei, reavaliei… e não consegui ver-me nesse papel de mãe fundadora das políticas de género. O Encontro foi inédito, fantástico, um passo na boa direção. Porém, um passo não é uma caminhada. E eu até tinha a prossecução planeada através da realização, anual, em cada país, das “Conferência para a Promoção da Igualdade”, quando o Governo caiu, com uma surpreendente moção de censura do PRD…. Caíu antes de se ter efetivado qualquer dessas conferências, por sinal previstas num expedito despacho. E, por isso, registo o projeto não como um dos meus feitos, mas como um dos meus falhanços. Os louros devem ir, sim, para o António Braga, porque os “seus” Encontros para a Cidadania se sucederam com eficácia, com sucesso, em feliz parceria da SECP com a AMM, com a Fundação Pro Dignitate da Dr.ª Maria Barroso, e com as associações que, em cada país, levaram a cabo a complexa organização regional. E eu tive a sorte de fazer parte da bela aventura na qualidade de dirigente de uma ONG! A escolha da Drª Maria Barroso para a presidência de honra foi certeira. Oradora formidável, foi uma constante fonte de inspiração pela palavra e pelo exemplo! E uma companhia maravilhosa para mim, que fiz todas as viagens ao seu lado. Tinha 80 anos no começo das jornadas, quase 85 no termo, mas, com a sua permanente disponibilidade, o seu passo ligeiro, a sua alegria, parecia sempre a mais jovem. Incansável, rigorosa (filha de militar!). Encantadora! Em Toronto, a Profª Manuela Marujo perguntou-lhe qual era o segredo da sua espantosa forma mental e física e ela respondeu: “O segredo é não parar”. E é mesmo… No Encontro da Suécia, da responsabilidade da PIKO (bem o mereciam já que, ainda que involuntariamente, desencadearam o processo…) a Dr.ª Maria de Jesus repartiu a presidência com Anita Gradin. Foi a última vez que eu estive, pessoalmente com ela e com o marido. No último dia, Comissária Europeia, Embaixadora, tal como Maria Barroso, também não parava, viajando, constantemente pelo mundo, como conferencista, ou conselheira de governos em vários continentes. O mais estranho é não me lembrar se cheguei a contar-lhe o modo como esteve se não na história, pelo menos na pré-história do movimento que, naqueles dias, passara por Estocolmo. Quanto às políticas públicas, assim originadas, não houve hiatos nem regressão nos Governos seguintes, apesar da tripla alternância partidária. Bem pelo contrário, o “congressismo para a igualdade”, atingiu o apogeu com o sucessor social-democrata de António Braga, o José Cesário, e foi continuado pelo socialista José Luís Carneiro, que procurou, a meu ver muito bem, chamar o CCP ao desempenho do que deve ser o seu papel neste domínio. A cooperação com a AMM manteve-se sempre ao mesmo nível, e só declinou em tempo de pandemia. O atual SECP, Cafofo parece determinado em relançar o apelo ao CCP, como parceiro das políticas da igualdade. É um desafio necessário, num Órgão onde, não obstante os esforços dos governos, a introdução do sistema de quotas, e aqueles sonoros apelos, as mulheres têm sido incrivelmente marginalizadas – espelho da sua situação dentro do associativismo tradicional. Na verdade, atualmente, vai havendo mais progressos no movimento associativo do que no CCP. Custa-me dizê-lo, na minha qualidade de incondicional admiradora do Conselho e dos Conselheiros, mas não há como nega-lo… Georgina Dufoix Georgina Dufoix era uma francesa impressionante, pela energia, pelo caráter e até, também, pela elegância. Fazia jus ao renome da moda francesa. De Anita Gradin ou de mim não se podia dizer nada de semelhante. Contudo, não é o traje que faz o monge e muitas outras afinidades rapidamente fui descobrindo em Georgina. Eramos da mesma idade, nascidas em 42, e pertencíamos à mesma escola de pensamento, pelo menos naquelas magnas questões que caiam na nossa alçada, questões de solidariedade, de igualdade, para imigrantes e para as mulheres, que Mitterrand chamava precisamente “as migrantes do interior”. Sempre considerei que o ser feminista, contra o patriarcalismo, ou regionalista contra o centralismo “, despertou, em mim, desde o primeiro momento, interesse e paixão, que se revelaria duradoura, pelas realidades das migrações. Estava formatada para essa apetência. Georgina também. Era protestante num país maioritariamente católico (republicano e laico, como o meu, e não muito menos católico). Ou seja, era parte de uma minoria! Enquanto Anita e eu éramos mulheres profissionais, com as imprescindíveis carreiras de que nunca abdicaríamos, e um destino de intervenção política traçado desde os bancos da escola, Georgina casou, teve quatro filhos, esteve à frente de pequenos negócios da família, em Nîmes, até que François Mitterrand desempenhou o seu papel de Professor Higgins face a Elisa. Passe o exagero, porque, na verdade, se limitou-a intuir a sua excecionalidade. Não precisou de lhe ensinar nada, só de a convocar para a missão. Sim, em Georgina, havia a faceta missionária, que se acentuaria na meia idade. Trocou a política pelo misticismo, pela militância evangélica, mas isso foi depois que lhe perdi o rasto (tentei, mas não consegui reencontrá-la, nos anos 90, quando ia a Paris semanalmente). O dramático caso da utilização de sangue contaminado, por médicos do SNS, levou-a, juntamente com o ex-Primeiro Ministro Fabius, a ser julgada e absolvida. Numa frase que ficou célebre, declarou-se “responsável, mas não culpada”. Em Portugal, quando caiu a ponte de Entre-os-Rios, Jorge Coelho disse mais ou menos o mesmo. Tudo isso aconteceu, porém, anos depois. Em 1983, quando a conheci, Georgina era uma jovem (aos quarenta, ela, tal como eu própria, parecia muito mais nova), cheia de convicções e esperanças, movida pela sua visão cristã e socialista do mundo. Estava no início de uma carreira meteórica, que atravessaria três Governos de Maurois, o de Rocard, de Fabius, ao longo dessa década - de Secretária de Estado da Família, População e Trabalhadores Imigrantes a Ministra dos Assuntos Sociais e Solidariedade, e a porta-voz do Governo francês. Para mim, ela era o cintilante exemplo de como uma mulher pode, de uma forma fantástica, aplicar á esfera pública, as receitas do seu ativismo em círculo fechado. Assim haja a oportunidade! Em particular no que respeita à proteção das famílias uniparentais, à proteção de menores, ao seu direito á adoção, as suas políticas foram absolutamente precursoras, em França e no Conselho da Europa. E no que respeita aos imigrantes deu sempre provas da mesma pulsão humanitária. E foi a sua defesa intransigente dos imigrantes que a levou a perder uma última eleição, em 1988, no seu círculo de Gard. Que grande vitória é perder por uma boa causa. Já Kennedy o prognosticava nos seus “Perfis de Coragem”. Georgina tem o seu lugar na crónica que talvez venha, um dia, a ser escrita sobre mulheres políticas, que, como os heróis de JFK, afrontaram o populismo dos seus eleitorados. Eu tinha inevitavelmente de admirar de uma mulher com esse perfil. Inspirava-me confiança total, era franca, direta, esplendidamente eficaz. E tinha o seu lado espirituoso, um sentido de humor que irrompia, de repente. Todas as conversas com ela eram simpáticas e eram úteis, produtivas. Que grande aliada, no país de maior emigração portuguesa! Esteve em Lisboa, muitas vezes, a meu convite – para conversações ou como conferencista, mas o nosso encontro mais “emblemático” de uma relação, que era singular, ocorreu noutro contexto, durante a visita oficial de Maurois, a convite do seu homólogo e camarada Mário Soares. Trouxe uma enorme comitiva para negociações bilaterais de diversos dossiers. Ministros e mais Ministros, entre eles, Georgina. J C Juncker Com Jean Claude Juncker nada era tão linear. Era homem, muito jovem, ainda tímido e reservado – uma timidez de que, como é sabido, se livrou espetacularmente, tornando-se o mais desinibido dos presidentes que a Comissão Europeia conheceu até hoje, famoso pelos seus abraços calorosos e por uma irreverência de que antes parecia incapaz. Que revelação. O que então já se vaticinava era o futuro promissor, que se confirmaria. O nosso embaixador no Luxemburgo quando nos dirigíamos ao 1º encontro falava dele, júnior Secretário de Estado da Imigração (ou do Trabalho e da Imigração?) com grande reverência. Não fiquei assim tão impressionada… Em 1985, nas vésperas da adesão de Portugal à CEE, foi a vez dele de vir a Portugal, e logo com a ingrata missão de anunciar a posição luxemburguesa contra a imediata liberdade de circulação dos nossos imigrantes para o seu país – a famosa “clausula de salvaguarda” Na sua primeira visita a Lisboa trazia más notícias. A componente de trabalhadores portugueses no Grão-Ducado é, proporcionalmente, a maior da Europa – talvez mesmo do mundo. Temiam uma nova vaga lusófona avassaladora! As nossas negociações foram o maior choque frontal de que há memória, no que me concerne, ainda pior do que a batalha verbal com um Ministro da Imigração australiano de apelido Ruddok- a esse o consegui converter em menos de meia hora. Nem Jean Claude nem eu cedemos um só milímetro, ele muito firme e eu desabrida na defesa das nossas posições. Eu exigia o pleno estatuto de cidadania europeia para todos os residentes no Luxemburgo, embora me oferecesse para desaconselhar ativamente novas saídas para aquele país. Do meu ponto de vista era para casais com filhos pequenos, o mais ingrato sistema de ensino de toda a Europa, pois se processava em três difíceis línguas estrangeiros e os que não a dominavam recebiam atestado de retardados mentais. Era verdade e eu atirei isso veementemente para cima da mesa. A minha veemência é sempre genuína e garantidamente impressionante. Não o poupei – foi uma manhã tormentosa. Ao almoço a hospitalidade portuguesa obrigava a tréguas. Um almoço esplêndido, num restaurante chiquérrimo, de um antigo mordomo dos Príncipes de Mónaco (Restaurante Clara?), naquela bonita Praça antiga de Lisboa, onde o Patriarcado tem a sua sede, e de onde se desce de elétrico funicular, para a baixa da cidade, gozando de uma vista esplendorosa. Nessa pausa nas hostilidades tive os primeiros vislumbres de um Juncker diferente, capaz de falar de tudo e mais alguma coisa, amável e com inesperado sentido de humor. Falando de matérias que não a liberdade de circulação dos emigrantes/imigrantes fomos descobrindo que podíamos conviver alegremente. Dali saímos para o aeroporto, onde demos uma conferência de imprensa bastante concorrida, em que não escondemos as nossas irremediáveis divergências. É muito comum na apresentação das conclusões de uma “cimeira”, seja qual for o seu nível, usar expressões vagas que criam (ilusórias) perspetivas de entendimentos a prazo. Nenhum de nós tinha feitio para isso. Proclamamos a verdade pura e dura da discórdia total. Bem vistas as coisas, nessa franqueza já se pressentia a amizade que começava ali. O que eu não sabia é que Jean Claude era contra a política restritiva do seu Governo… Fez essa pública confissão, décadas depois, durante uma conferência em Lisboa. E a sua prática desde que se tornara Primeiro-Ministro avalizava a confidência, porque, de facto, não hesitou em acabar com as clausulas discriminatórias. Já antes disso eu tinha boas razões para o considerar um aliado. Georgina Dufois Não, é certo, no mesmo patamar em que estava com Anita e Georgina, que era o de uma irmandade de sufragistas do nosso tempo. Queríamos, em sociedades estruturalmente discriminatórias, a igualdade para as mulheres, como para os imigrantes, de ambos os sexos. Os marginalizados… Eu costumava bradar que, enquanto não gozarem dos mesmos direitos e oportunidades, “as mulheres são estrangeiras no seu próprio país”. Mitterrand, o político que trouxe Georgina para a política, dizia outro tanto, por palavras ainda mais claras: “as mulheres são migrantes do interior”. Les beaux esprits… Georgina esteve em Lisboa diversas vezes, ora a meu convite, ora em outras circunstâncias, como quando integrou uma visita oficial do Primeiro-Ministro. As conversações ministeriais, sobre numerosos “dossiers”, à volta de uma mesa compridíssima, duraram horas e horas…Ao fim do dia, ela veio ao Palácio das Necessidades para um encontro a duas, de preparação de uma Comissão Mista que ia realizar-se em Paris, uma ou duas semanas depois. Ambas tínhamos os temas bem estudados e tratamos de joeirar os que podiam ter resposta imediata (mais fácil se nos respeitavam diretamente, não tanto em casos que passavam pelo crivo da Segurança Social ou das Finanças, do Interior e outros). Levamos dez minutos a fazer os acertos, e à saída da “sala dos Embaixadores” (a sala de visitas do andar ministerial), depois dos funcionários dispersarem, ela comentou: “Os homens precisaram de horas para discutir problemas que nós resolvemos em dez minutos”. Éramos raparigas que, perante as evidências, prezávamos a nossa competência e ali a tínhamos exibido. A verdade é que ainda estávamos, e continuámos a estar, em palcos de cânone masculino, onde a predisposição geral não nos é favorável. Daí o desabafo da minha colega, que brilhava nas reuniões de trabalho tanto quanto nos salões. Sempre elegantíssima, uma boa embaixadora da moda parisiense, aspeto em que o contraste entre nós não podia ser maior. Anita era mais o meu género despreocupado, com tendência para o traje “pragmático”. Encontros mais protocolares Eu detestava festas em geral e, mais ainda, as que exigiam vestido comprido. Isso acontecia, invariavelmente, nas visitas de Chefes de Estado, que se faziam acompanhar de vastas comitivas, presentes e condecorações. Nas Necessidades, as condecorações abriam uma corrida comparável à do ouro no velho “Far-west”, Condecorações para luzir nas fardas e casacas. Tenho a impressão que a “Casa” ficava com a parte de leão e era com relutância que os diplomatas do “Protocolo” abriam mão de uma para as mãos da Secretária de Estado da Emigração. Tentavam negociar, oferecendo –me, em vez das insígnias, os faustosos presentes. Estou lembrada, por exemplo da vinda dos Reis Balduíno e Fabíola. Propuseram-me uma enorme toalha de renda de Bruges no lugar da Grã-Cruz da Ordem Leopoldo II. Nunca abdiquei de jogar pelas regras do mundo dos homens, naquele mercado de valores. Optei sempre pela vistosa Grã-Cruz! Tenho uma coleção enorme, porque os meus quase sete anos de MNE foram tempo de muita visitação ao mais alto nível. O caso do Brasil foi interessante. Na 1ª visita ganhei a Grã-Cruz da Ordem do Cruzeiro do Sul. Quando, no mandato seguinte, chega um novo Presidente do Brasil, o Protocolo informa-me que receberei o presente, visto que já tenho a condecoração mais alta e, por isso, não posso ter a segunda melhor, a do Rio Branco. Segue-se um braço de ferro: quero a Grã-Cruz do Rio Branco! Considero irrelevante a ordenação protocolar das distinções. Afinal estava certa em toda a linha. Não desdourava coisíssima nenhuma receber o Rio Branco, que tem um universo temático um pouco diferente, onde eu, tão pró-brasileira, tão envolvida em alargar o Tratado de Igualdade, encaixava melhor do que os meus rivais na disputa. E lá estive no jantar de gala do Palácio de Queluz (ou foi no da Ajuda?), com o vestido comprido engalanado pela larga faixa do Rio Branco. O vestido mais utlizado nestas cerimónias foi o do casamento, tingido de preto. Muito prático, porque era de renda de Bruges florida e nos sólidos interstícios dos desenhos florais encaixavam, na perfeição, os fechos metálicos dos “crachás”, o que correspondia à faixa e, por opção, mais um ou dois. Divertia-me sempre muito nestes jantares, para os quais, contudo, partia do meu apartamento da Av do Uruguai, sempre relutante, . Ao fim do dia, com o meu motorista, solitária no banco de trás, olhando pela janela as longas filas de pessoas que aguardavam os autocarros para voltar a casa. Como eu as invejava… como gostaria de engrossar a fila…. E os que me viam em semelhante aparato a pensarem: “Lá vai a perua para uma grande festança. Que bela vida!”. Ninguém acreditaria que, por livre escolha ficaria, como eles, em frente a um ecrã da televisão. Graças à relutância inicial e às fracas espectativas, todos e cada um dos banquetes foram uma boa surpresa. Os mais concorridos e animados, nesta República snob, que se resguarda com uma estúpida “clausula pétrea” na sua Constituição, eram sempre, paradoxalmente, as que homenageavam cabeças coroadas, sendo indiferente que fosse um rei menor ou a rainha das rainhas, Isabel II… O breve tempo de um aperto de mão, não me permitia mais do que uma primeira impressão, de muito pouco peso. Nalguns casos, os régios perfis não davam sequer aso ao mais ligeiro comentário. Generalizando, direi que eram, sobretudo, as consortes que não me convenciam, desde a Rainha Sílvia à Rainha Fabíola. Isso aplicava-se sobretudo às que eram de linhagem inferior aos maridos? Talvez… Muito hirtas, nariz no ar… Já o Rei Balduíno, naquele breve momento, me deixou encantada! Não sou dada a fervores místicos, mas aquele ser humano transmitia uma mensagem de bondade (cristã, fraterna), nos olhos, no sorriso---muito mais do que qualquer dos Papas da cristandade que me foi dado ver. Não via nele um monarca, mas um irmão de fé e de destino. É verdade, fiquei devota de Balduíno! Mais laico foi o sentimento de simpatia pelos Grão-Duques do Luxemburgo, ambos de uma imensa amabilidade… natural. Um tanto ou quanto menos efusivos, mas bastante cordiais os Reis de Espanha Sofia e Juan Carlos ou os Príncipes de Gales, Carlos e Diana. Muito “stiff” e desinteressante a Rainha Isabel (muito superior é o balanço final do seu incrível reinado de mulher estadista, que suplantou todos os seus pares coroados). E em termos de fila de cumprimentos, nada mais se assinala. As rainhas Outro é o caso daqueles com quem pude entrar em diálogo – a Rainha Margarida da Dinamarca, muito simples e simpática, com quem falei sobre a instituição do Ombudsman, no modernizado modelo dinamarquês, a Grã-Duquesa Maria Teresa do Luxemburgo, com quem convivi no Conselho da Europa à volta do tema das microempresas e da participação económica das mulheres e a Rainha Beatriz da Holanda, de todas a mais inesperadamente extrovertida e divertida, como constatei na qualidade de Vice-Presidente da AR. O Presidente Victor Crespo nem no Senado a recebeu – as boas vindas foram dadas numa linha de cumprimento no salão nobre, em frente àqueles painéis descomunais, berrantes, uma espécie de história da Expansão em banda desenhada. Beatriz estava, felizmente, de costas voltadas para o Cabo das Tormentas (de todos, o meu preferido). Aí, a pé firme, durante cerca de uma hora, recebeu mais de duzentos apertos de mão. A mesa da AR rodeava, protocolarmente, o casal régio (no cortejo Crespo dava a direita à monarca e eu ao Príncipe Guilherme, um ambientalista, que não falava de outra coisa) e nesse posto de observação pude testemunhar o teor dos diálogos suscitados por uma Beatriz cheia de espírito e de iniciativa. O Protocolo de Estado dera-nos rigorosas instruções para não tocarmos em assuntos políticos. Na verdade, a grande infratora foi a Rainha…. Feitas as apresentações, quando tinha à sua frente líderes de bancada, presidentes de comissão, Deputados que alardeavam mais à vontade, fazia-lhes perguntas muito diretas sobre o sistema político, a Constituição, os problemas concretos do funcionamento da Assembleia e dos partidos…. Inteligente, comunicativa, perspicaz, teria dado uma excelente jornalista! E nem só algumas mulheres poderosas me impressionaram, também, em ocasiões cerimoniais, houve alguns homens interessantes, por razões as mais diversas. Penso no Príncipe Filipe, Duque de Edimburgo, no Rei Goodwill Zulu, no Ministro Pik Botha, no Primeiro Ministro Jacques Chirac, em Savimbi, em Walter Sisulo. E, caso a parte, grande amigo, Lord Russel Johnston. O Príncipe A primeira vez que vislumbrei Filipe, loiro Príncipe da Grécia e Dinamarca, pelo casamento britanicamente “despromovido” a Duque, era ainda aluna do Colégio. Tivemos feriado para ir, em excursão, a Gaia, participar na entusiástica receção ao cortejo real programado para a Avenida principal de Gaia. As nossas Doroteias distribuíram-nos pelas duas margens, a face da Avenida, já na proximidade da Ponte D Luís. Houve as que escolheram o lado da Rainha e as que preferiram o lado do Duque. Foi o meu caso. Quando o solene “Rols Royce” negro passava por nós, meninas muito alinhadas, em uniforme azul marinho de passeio, a entoar a plenos pulmões o “God save que Queen” a destinatária do hino, encantada, mandou parar a marcha lenta por um momento, para o casal nos acenar, pelo que pude ver de perto o deslumbrante rosto do duque, muito sorridente. Não esperava o novo encontro que se deu mais de 40 anos depois e, desta vez, em trepidante diálogo de dois minutos. Curiosamente, com uma segunda paragem no curso de um desfile, a pé, no Palácio da Ajuda, entre a sala do trono e o salão do banquete. Desfilavam, entre alas de convidados, o casal régio e o presidencial (Dr. Soares e Dr.ª Maria Barroso). Eu, sobre um discreto vestido bege, ostentava a muito menos discreta Grã-Cruz da Ordem do Império Britânico. Filipe, que, entretanto, tinha recuperado o título de Príncipe e perdido a beleza da juventude, embora não o carisma, ficou surpreendido, e deixou a procissão (laica) para vir falar comigo. 1ª frase, apontando para a faixa da Grã-Cruz: “Como conseguiu isso?” E eu, dando-lhe o devido tratamento de “Vossa Alteza”, respondi com igual capacidade de síntese: “Pelo facto de ser Secretária de Estado das Comunidades Portuguesas” 2ª frase: “Muito bem… há, realmente muitos portugueses na Ilha de Wight!”. Não me competindo contrariar a realeza, limitei-me a sorrir. O Príncipe deu conta do engano e retificou: “Nas Ilhas De Jersey e Guernsey, não é?”. Confirmei: “Sim, são muitos, sobretudo da Ilha da Madeira”, e logo o ilustre interlocutor quis saber como se tinha estabelecido aquela imigração. Resumi um longo processo em poucas palavras: “Tudo começou com um grupo restrito. Gostaram das ilhas e do trabalho, contaram às famílias e amigos. Alguns quiseram experimentar, e no regresso contaram a outros, que se juntaram ao movimento e assim sucessivamente. E hoje são comunidades numerosas” Satisfeito com a minha súmula sobre a emigração madeirense para as ilhas do Canal, o Príncipe despediu-se, apressou o passo, e reintegrou o cortejo à entrada do salão. Um “timing” perfeito! Os biógrafos de Filipe de Edimburgo apontam esta sua faceta humana, a descontração, a postura antiprotocolar, a inteligência viva, o interesse pelas pessoas que encontrava pelo caminho. Vivenciei tudo isso em tempo record… Não era conversa para divulgar nos “media”, mas, não tendo nada de confidencial, dava para contar entre amigos. E foi o que fiz durante um daqueles esplêndidos jantares na casa do António Maria Pereira. Marcelo que era um dos convivas, achou graça e publicou a notícia no Expresso… O Rei Goodwill Zulu Com o rei do Zulus, com quem qualquer contacto era ainda mais improvável, estive, anos mais tarde, por diversas vezes, em longos convívios, no sul de África, no Funchal e em Lisboa. A origem remota do 1º encontro vem das comemorações de 1988, em honra de Bartolomeu Dias, com epicentro em Capetown. O Governo (de Cavaco Silva) decidiu não comparecer, mas a AR fez-se representar por uma grande delegação, que eu, como Vice-presidente, encabeçava. Inicialmente convidado pelo Governo da RAS, estava SAR Dom Duarte, Duque de Bragança. E estava muito bem, como descendente direto do Rei D João II. Porém, mão republicana, a despropósito, pressionou o Protocolo sul-africano a renunciar ao convite. Passados cerca de dois ou três meses, um pouco por acaso, eu descobri quem foi - um obscuro político português, com a mediação de um proeminente membro da comunidade de Joanesburgo, sem qualquer interferência dos Órgãos de Soberania da República. Foi o proeminente cidadão quem me relatou o seu próprio feito…. Disse-lhe, logo ali, que tinha de se redimir, tratando de conseguir um convite para o Duque de Bragança, que tanto se interessa pelo mundo da lusofonia. E ele levou a coisa a sério, fez a sua pesquisa, com sucesso. No ano seguinte, o Sr. Castro, um dos poucos portugueses da RAS de tendência monárquica, (milionário e grande amigo do Rei Goodwill) foi o anfitrião de uma extensa visita do nosso Príncipe ao Sul da África, incluindo o Reino da Suazilândia. Tanto o Sr. Castro, como o Senhor Dom Duarte, conhecedores das minhas diligências de bastidores, me convidaram para essa patriótica digressão. Eu agradeci e escusei-me. O lugar de 1ª Vice-Presidente da AR tinha mais pompa protocolar do que conteúdo funcional – ocupava o segundo lugar da sucessão ao PR, representava a AR no lugar do Presidente nas sessões plenárias, na Chefia de delegações parlamentares, e nos mais diversos atos públicos. Tinha sido, várias vezes, convidada por Jonas Savimbi a visitar a Jamba e visto a minha viagem inviabilizada devido ao caráter demasiado representativo do cargo. Achei que o caso de uma viagem com o Chefe da Casa real configurava situação semelhante, mas quando dei conta da minha decisão ao Presidente vítor Crespo e ao líder parlamentar do PSD Montalvão Machado, ambos republicanos, manifestaram, em uníssono, a maior surpresa pela minha recusa. “Mas porque não vai? Eu não sou republicana e não entendi a lógica republicana destes meus amigos, mas, face à sua comum e inequívoca reação, tratei de aceitar os amáveis convites monárquicos. E assim me vi num fascinante périplo em que transitei do mundo familiar das comunidades portuguesas para mundos desconhecidos – como o dos refugiados de Moçambique, apoiados pelos voluntários do famoso Padre Le Secour, na fronteira norte da RAS, ou o dos palácios dos reis Suazi e Zulu. O rei Suazi Mswati III, sucessor do famoso Sobhuzo II, falava o excelente inglês de antigo aluno de Sherborne School e recebeu-nos em vestes africanas, troco nu sob pele de leopardo, (vinha de um Conselho, não sei de Ministros, se de chefes tribais), com uma bela postura, que combinava com simplicidade de trato, discurso perfeitamente europeus. Era jovem (pouco mais de 20 anos), bonito, elegante… parecia um ator de Hollywood, a representar bem o seu papel num filme histórico! Conversou cordialmente com o Senhor Dom Duarte, com se fossem amigos de longa data (entre a realeza deve ser normalmente assim...). A comitiva, Sr. Castro, o Cônsul honorário, a advogada…., o Sr. Milho Cruz, secretário de SAR, o fotógrafo Luís e eu testemunhámos o encontro,- Luís, mais ativamente, tirando inúmeras fotografias, o ritmo pontuado pelos discretos “cliques” dos disparos. Atravessamos a fronteira por diversas vezes em dois dias, (não sei bem porquê, estávamos certamente alojados na RAS…). Tivemos de preencher imensos papéis, uma demorada burocracia, mas só uma só vez, porque, nas seguintes, o “Rolls Royce azul do Senhor Castro recebia exuberantes sinais de braços e mãos de ambos os lados da fronteira e cruxavamos a linha divisória “non-stop”, o que nos dava uma pueril sensação de aventura e liberdade. Por fim, com grandes acenos, nos despedimos dos amáveis guardas fronteiriços e rumamos a sul até aos domínios do Rei Goodwill Zwelithin, no KwaZulu- Natal. O Rei Goodwill facilmente superou a simpatia de seu cunhado Mswati, apesar de ter o dobro da idade. Era um bem-disposto, de sorriso aberto e palavra fácil! A sua cordialidade natural não excluía ninguém. Estava rodeado de membros da Casa civil e militar, todos homens, em impecáveis fatos escuros, incluindo os militares. Com a exceção dos mais tímidos, ou discretos, o Sr. Milho Cruz, o Luís, todos participávamos animadamente numa conversa sem hiatos. O Sr. Castro era um amigo do Rei, o Kuazulu-Natal era a sua Passárgada e aquele tão caloroso ambiente de hospitalidade poderá ter derivado essa amizade, numa relação de causa e efeito. O tempo previsto da audiência e almoço, (um requintado almoço), prolongou-se pela tarde dentro. Esquecemos a hora do voo que nos levaria de Durban para Capetown. O Rei deu-nos uma muito eficiente escolta e, até aos limites territoriais do Reino, avançamos a alta velocidade, mas, mesmo assim, perdemos o avião, e tivemos de esperar várias horas pelo último voo. Valeu bem a pena! E, enquanto os meus companheiros de viagem, descansavam na sala VIP, eu aproveitei para visitar, com o nosso Cônsul, as novíssimas instalações do Clube Português. O único pormenor um pouco insólito, naquele dia perfeito, descontando o descanso forçado no aeroporto, foi o Rei ser servido, como, ao que julgo, manda a tradição, por mulheres que caminhavam de joelhos, na sua presença – à semelhança dos peregrinos pagadores de promessas em Fátima…. Nâo obstante a modernidade do seu pensamento em mil e uma matérias sobre as quais discorríamos, o rei Zulu regia-se em outras matérias por antigos costumes, como a poligamia. Teve seis mulheres e uma trintena de filhos. Todavia, no exterior, fazia-se acompanhar por uma, sempre a mesma, “a Grande Rainha” Montfombi Dlamini, filha de Sobhuso II e irmã de Mswati III. Só vim a conhecer a rainha no ano seguinte em Lisboa, onde tive o privilégio de me passear com a casal régio. Eram (éramos) convidados do Sr. Castro, naturalmente. Na capital, foi mais turismo e menos receções ministeriais ou sociais, embora houvesse algumas e um grande jantar de despedida no Hotel Tivoli. Na etapa seguinte, o Funchal, AJ Jardim fez as honras da Autonomia, com receções e um grande baquete na residência oficial. A Rainha, uma figura serena e imponente, com os seus vistosos vestidos e “capelines”, falava pouco, ao contrário do Rei, com quem conversávamos sobre tudo e mais alguma coisa, como numa tertúlia à portuguesa. Eu gostava imenso daquele monarca africano, que na parte final da viagem me deu o honrosíssimo tratamento de “sister”, que valia, certamente, tanto ou mais do que uma condecoração. Pena é não ter escrito a crónica dessas jornadas, recordar, hoje, tão vivamente os ambientes, os sorrisos, a “entente” zulu/lusa, mas não os detalhes de conversação! Que eram divertidos, não me sobra dúvida, porque isto aconteceu, pelas minhas contas, em fins de 91, e, em janeiro de 92, no meu debute na “Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa”, em Estrasburgo, (não confundir com Parlamento Europeu), Sir Russell-Johnson, o nº 1 do Grupo Liberal e Reformista, “delirou”, positivamente, com as minhas crónicas orais sobre o reino Zulu. Lord Russell Johnston A mais brilhante, exuberante e excêntrica personalidade que conheci em Estrasburgo foi Sir Russell, que pouco tempo depois se tornaria Lord Russell - Johnston. Um grande amigo, ao longo dos meus treze a catorze anos em que coincidimos na APCE e na UEO. Eu vinha de mais uma viagem com o charmoso Rei Googwill e o divertido Sr. Castro e, como tenho tendência a contar sempre episódios recentes e andava em “período Zulu”, Russell terá sido um dos meus primeiros ouvintes dessas histórias curiosas. Ou talvez tenha sido, simplesmente, uma questão de aproximação pelo sentido de humor, que nele era tão natural como respirar e que eu pratico, de vez em quando. No Conselho da Europa, um “must” para entrar no “inner circle” britânico. Em Portugal, coisa perigosíssima - diz-se uma graça e nunca mais nos levam a sério… com algumas exceções, em que se pode incluir o General Eanes, o Doutor Mota Pinto e, obviamente, o Dr. Soares, que, tal como os ingleses, gostava de tudo o que sai dos trilhos. Certo é que os representantes de Sua Majestade cedo decidiram catapultar-me para os meus primeiros cargos diretivos em Comissões e Subcomissões – e não por razões partidárias ideologias. O primeiro a fazer uma aposta na bem-humorada portuguesa foi Lord Finsberg, um conservador muito poderoso, presidente de tudo o que havia de importante, incluindo a presidência da própria Assembleia. Não era adepto do sistema de quotas, em nome do mérito puro e duro (já eu defendo a perfeita compatibilidade de quotas e mérito, condição de bom funcionamento do sistema). Vi-me, por sua proposta, eleita Vice-Presidente da Comissão do Regimento, e, depois, fui colecionando outras Comissões e Subcomissões e muitos relatórios e moções - ser relator(a) ou autor(a) de recomendações são, do mesmo modo, sinais de vitalidade e o meu curriculum, nesse aspeto, nunca cessou de crescer. Note-se que grupos políticos tinham naquela Assembleia muito menos poderes do que têm na nossa (onde são omnipotentes), e isso dava aos deputados verdadeira independência. Contudo, a indicação das 13 presidências de Comissões saia de uma negociação dos grupos partidários que, em regra, era respeitada. Já nas vice-presidência e nas Subcomissões, os deputados de cada Comissão escolhiam livremente. O PPD do 74/75, que se considerava social democrata, quis integrar o Grupo Socialista e só porque o PS de Mário Soares lhe berrou o acesso, Sá Carneiro teve de optar pela Internacional Liberal, negociando a sua conversão, ao menos no título, a “Liberal e Reformista”… Na APCE, era o 3º Grupo atrás dos dois grandes, o Grupo Socialista e o PPE, e só tinha direito a duas presidências de Comissão. Russell-Johnston era escocês, “higlander”, representou Inverness no Parlamento durante décadas. Um Liberal - “liberal/ala esquerda”, enquanto Presidente do Partido Liberal pela Escócia aliou-se ao “Labour” (patrocinando um “Lib-lab”), e, mais tarde, aos Sociais-democratas. Era o que se pode chamar, com propriedade, “um homem de causas”, entre elas a Escócia e a Europa. O mais europeísta dos britânicos, um grande orador um político corajoso, daqueles que tem razão antes do tempo. Foi eleito Presidente do Grupo Liberal no Conselho da Europa, em 1994, e uma das suas primeiras decisões foi propor para a presidência das duas Comissões que cabiam ao Grupo dois portugueses: para a Cultura, Pedro Roseta, para as Migrações, Refugiados e Demografia, eu própria. Quando uma ou outra isolada voz de protesto se levantou por um país ficar com 100% das presidências, ele respondeu, laconicamente: “São os mais competentes”. Ainda por cima, uma terceira indicação, para um Comité de Gestão, recaiu em mais um português, o Joaquim Fernandes Marques, com a mesma justificação: ”É o mais competente… Se outros fossem os pelouros dos Liberais, outros seriam, com toda a probabilidade, os presidentes, naqueles dois, não havia alternativas evidentes. Pedro Roseta, homem cultíssimo era o mais brilhante dos oradores da APCE, tão fulgurante e tão intrinsecamente humanista como o próprio Russell. Eu não estava nesse patamar, mas, num domínio dos mais polémicos, valia a experiência governativa, que os demais não tinham, as posições firmes na defesa dos migrantes, e uma não menor firmeza na condução dos trabalhos. Já tinha feito “curriculum” à frente da Subcomissão das Migrações. Comigo, tudo começava e acabava à hora, não perdia tempo com longos comentários pessoais e fazia cumprir à risca os tempos de intervenção. E nunca faltava a reuniões. Uma mulher inesperadamente pragmática. Quem, antes de ver, diria? Ninguém, nem eu… O tirocínio vinha de trás, de há muito, da presidência dos primeiros tumultuosos plenários CCP (que me empolgaram), dos plenários da Assembleia da República (que detestei) e de Conferências Internacionais (tão mais fáceis do que as lides domésticas…). Pedro Roseta e David Russell Johnston eram dois bons amigos, ambos ativistas de crenças inabaláveis, que proclamavam com a mesma intensidade, em estilos completamente diversos, Pedro num discurso sempre 100% fulgurante e veemente, Russell juntando, como só ele sabia, de vez em quando, o lado mais ideológico com tiradas de um saudável humor (tremendamente eficaz, esse contraste de gelo sobre fogo). Eu gostava muito do trabalho na APCE – do trabalho em si, em matéria de Direitos Humanos, e da minha inteira liberdade de intervenção, de palavra, sem as limitações e as baias partidárias da nossa Assembleia, onde me via no meio de um rebanho. Na verdade, sem essa vertente externa e libertária da minha vida de deputada, acrescendo ao convívio com a chamada Diáspora, não teria suportado a “apagada e vil tristeza” das tardes de São Bento, o acantonamento em que me via (comum à esmagadora maioria de deputados, a todos os que não pertenciam à direção da bancada ou a uma comissão importante…). Contudo, por mais que apreciasse os Plenários do Palácio da Europa, com livre acesso à palavra, e dos ainda mais os animados debates das Comissões, devo confessar que os melhores momentos foram passados no convívio do Grupo Liberal, durante a presidência de Russell! Tão radioso, como consegue ser, sempre, nos concertos-tertúlia, António Vitorino de Almeida. Russell era o nosso “maestro”. Para a comparação ser mais completa, nunca prescindia de nos dar uma lição de música, à despedida, com a audição de uma pequena obra genial, mas não muito conhecida. Todos estávamos convidados a nomear o autor. Raramente algum de nós acertava. O melómeno-mór sabia sempre como armadilhar a melodiosa mostra… Festas assim, num ambiente tão esfuziantemente agregador à volta de um “chefe” só mesmo as da Provedoria da Justiça com Magalhães. Godinho. Na verdade, aquele tão extrovertido e amável “highlander” converteu-se no meu segundo Dr. Godinho! Vem-me da infância este gosto de ouvir os mais velhos. Se começávamos uma conversa, nunca mais parávamos… Em algumas reuniões, comentávamos os discursos dos circunstantes (jocosamente sempre que nos davam aso a isso – e davam), trocando bilhetes, para não perturbarmos os oradores. Por igual nos deleitávamos com “gaffes” pequenas e grandes, lugares comuns, pedantismos. Recordo-me de um momento de grande galhofa, depois que ele foi feito “life peer Baron Russel-Johnson of Minginish”. Um dos nossos cerimoniosos colegas da Europa de Leste passara a trata-lo por “Your Highness”. Russel era, por sinal, um profundo conhecedor desse leste europeu, onde tinha inúmeros amigos. E a oeste, do mesmo modo, e um pouco por todo o lado, entre os que o entronizavam como o europeísta máximo, que era, e os que achavam que para ter tanta graça, não podia levar as coisas a sério. Falso preconceito, difícil de combater. Eu sou desse reduto dos bem-dispostos, que nunca se escandalizam com a maior barbaridade que saia das nossas bocas. Só uma vez consegui deveras chocá-lo, a propósito de Thatcher. Russel detestava a dama. E eu também, mas… No meu caso, havia um “mas”. Políticas concretas aparte, é uma mulher fortíssima para a história das mulheres, uma daquelas que não se pode varrer para debaixo do tapete, ou, dizendo de uma forma mais simpática, não se pode esconder com o manto da invisibilidade. Foi particularmente interessante de seguir no plano internacional – tinha uma excelente imagem por toda a África, foi pioneira no diálogo com Gorbatchev, aliada preferencial de Ronald Reagan, falava-lhes de igual para igual. Restituiu à Grã-Bretanha um estatuto que era mais seu do que do país (um pouco como Mário Soares em Portugal). Russel nunca tinha pensado nisso. Ficou horrorizado e só pedia. “Não diga mais nada, Manuela. Não quero ser convertido a essa personagem!” Era a nossa pequena divergência. Em quase tudo o resto, rapidamente nos púnhamos de acordo, como a nossa correspondência testemunha. E no dia em que Jirinovsky, irrompeu numa reunião do Grupo Liberal, no qual tinha pretensões a alistar-se, fomos os primeiros a sair porta-fora… Em pouco segundos o medonho russo ficou sozinhos frente a câmaras de televisão que o seguiam como se fosse um circo. Não ficou ninguém na imagem com ele… Confesso que gostaria de ver os meus correligionários sentirem o mesmo desconforto na companhia de Trumps,Venturas e Bolsonaros. Um episódio mais tristemente memorável numa viagem de regresso de Bratislava a Viena, na fronteira checo-austríaca, com destino ao aeroporto de Viena. É o aeroporto mais utilizado quando se vai a Bratislava. Dessa vez, os organizadores locais da reunião internacional (já não sei da APCE ou da UEO) tinham providenciado o transporte coletivo do grupo um autocarro de cinquenta lugares, pesado e velho. Findos os trabalhos, uns ficaram, outros partiram em meios próprios e, para esse último percurso, só restávamos Lord Russel e eu. Esperávamos, naturalmente, uma pequena viatura, mesmo que também antiquada e ronceira, mas não….veio buscar-nos o autocarro do costume. Essa opção é que fez a singularidade da situação em que nos íamos ver. É que, chegados a uns dois ou três quilómetros da fronteira, ficámos presos num engarrafamento gigantesco, daqueles que não avançam nem um centímetro. Ao fim de cinco minutos, com o sol a aquecer a geringonça sem ar condicionado, já a minha paciência estava esgotada. Como muitos parceiros de infortúnio estavam fora das viaturas, saí, também, para arejar e perceber o que se passava. Na minha ronda, acabei por encontrar quem falasse inglês e me desse a informação. O trânsito tinha sido interrompido por razões de segurança, para garantir a passagem, daí a algumas horas do Primeiro-Ministro da Checoslováquia! Que despropósito !Eu nem queria acreditar… o muro de Berlim caíra há algum tempo, era suposto aquele país ser uma democracia tranquila, mas a prática da antiga “animal farm” soviética, pelo visto, resistia nos círculos do poder. Milhares de pessoas iam, assim, perder os seus voos, estupidamente. Num tal sistema, um passaporte diplomático talvez abrisse caminho. Não perdia nada por tentar. O motorista não falava línguas estrangeiras, mas, mas eu fiz-me entender por gestos, pedindo-lhe que me acompanhasse até ao posto fronteiriço. Uma caminhada entre um mar de carros e de pessoas, de pé, encostadas às viaturas. Um cenário felliniano. Russel, deixou-se ficar, solitário e fleumático ocupante, a ler, indiferente à caloraça. O diálogo com os polícias da fronteira foi difícil, mas conclusivo - ainda hoje não sei como tal foi possível. Eles só falavam a sua língua, (mais, é claro, o russo obrigatório na URSS). Eu, mostrando o meu passaporte diplomático de couro azul, tentava o alemão, muito rudimentar e a linguagem gestual. Acabei por perceber que o passaporte me dava via verde, mas só num carro ligeiro – os autopullmans eram rigorosamente barrados. Lembrei-me, então, de ir ao longo do caminho repetindo, (voltada para o motorista, como se fosse em conversa com ele…): “Com este passaporte diplomático só preciso de uma boleia para chegar à Áustria”. E o que eu ansiava, aconteceu. Um simpático inglês veio ao meu encontro, dizendo que tinha lugar para mim, no carro. Eram três, dois em traje de férias, (de calções!) e um de fato e gravata, o que ia viajar de avião. O carro era grande e moderno e eles, todos, funcionários da IBM. Quanto ao carro, nada a objetar, já os rapazes de calção podiam prejudicar a credibilidade do conjunto. Havia que tentar! Um deles acompanhou-me ao autocarro, para sacar a mala e, esperava eu, também o meu companheiro de infortúnio, que seria o 5º passageiro. Porém, quando viu a imponente dimensão de Lord Russel, retirou o convite. Infelizmente, também eles eram muito altos e fortes, ocupavam demasiado espaço… Eu estava em risco de perder o avião e Russel, não, pernoitaria e Viena, porque só tinha um outro voo, para leste, no dia seguinte. Expliquei-lhe pormenorizadamente, como executar uma manobra bem-sucedida, insisti para que fizesse precisamente o mesmo, e despedi-me. Avançamos, a todo o vapor, e chegados ao ponto de saída mostramos os passaportes, com o meu em cima. Depois de momentos de “suspense”, eles, muito rígidos, mas corteses, mandaram-nos passar! Fomos em festiva conversa até Viena. Quando reencontrei o meu amigo escocês, perguntei logo: “Como correu a sua boleia, naquela tarde?” Ele riu-se e disse-me: “Nós, na Delegação parlamentar, não temos passaporte diplomático”. Senti-me, de qualquer modo, culpadíssima de o ter “abandonado”. Bons tempos idos… tudo o que é bom (ou mau) tem um fim, lá diz o ditado popular e, a certa altura, já não sei quando, em fins de século, o PSD do Prof. Marcelo decidiu emparceirar com o CDS/PP no PPE, onde agora estamos com os Órbans. Para o Pedro e para mim, (em particular, porque éramos os mais envolvidos no Grupo, ele com categoria de ideólogo, eu na direção da bancada), foi um desânimo! Direi mesmo um exaspero… nas comissões que integrava, migrações, justiça, igualdade, as dessintonias com o novo grupo ressaltavam nos debates e nas votações. Eles contra mim, eu contra eles… Ainda por cima, no mais seleto Grupo Liberal tínhamos um peso e influência que perdemos, no grande PPE, dissolvidos na corrente, quando não estávamos em contracorrente. Com imensa mágoa deixámos, assim, os Liberais, com imensa mágoa eles nos viram sair pela direita baixa. Não se imagina a nossa festa da despedida, com discursos, belos presentes (quadros, livros), cânticos, abraços e lágrimas - se não chorei, fiquei lá muito perto… Fomos forçados a mudar de Grupo, não de ideias, de posições, de cumplicidades. Mantive a amizade, o convívio, as afinidades políticas com todos os meus antigos companheiros de bancada, e sobretudo, com esse tão extraordinário humanista e europeísta, morreu no cargo, subitamente, numa rua de Paris. O “Guardian” descreveu-o, lapidarmente, como “passionate Liberal enthusiast for both Europe and Scottish devolution before they were fashionable”. A imprensa ressaltava, também, a sua qualidade humana, a grande afeição dos que trabalhavam com ele, na Escócia ou na Europa. Assino por baixo… Jacques Chirac Convivi no trabalho quotidiano de organizações europeias, durante mais de treze anos, com Russell-Johnston, de longe o mais admirado dos meus amigos estrangeiros e apenas três dias com Chirac, primeiro ministro de França, durante uma visita oficial do seu homólogo português. Um mundo de diversidade… Durante os quase dois anos em que pertenci ao Governo de Cavaco Silva (o primeiro, o minoritário) só uma vez fui convidada a viajar na sua comitiva. A Paris, precisamente, sendo a comunidade tão grande e importante, acharam que eu podia ter alguma utilidade, junto dos heróis do “salto” e dos seus filhos. É sabido que eles fazem de Paris a segunda maior cidade portuguesa, logo atrás da capital. Não gostava de Chirac, por óbvias razões políticas. Os políticos que não conhecemos, pessoalmente, são geralmente objeto de um benigno ou severo julgamento pela sua sintonia ou dessintonias com as nossas posições. Eu própria, num patamar de baixo da hierarquia governamental, tinha simpatizantes e antipatizantes. Tendia a dar entrevistas com ar muito sério e real convicção, o que podia agradar aos seguidores do mesmo enclave de ativismo, mas desagradava aos outros. O semblante fechado não era o meu natural e o sectarismo ainda menos, porque sempre gostei aligeirar ambientes hostis e de confraternizar com “todo o mundo”. Os responsáveis terão sido os meus pais. Ambas, em uníssono (a senhora minha mãe tão radical e o senhor meu pai tão moderado) me disseram: “Não te rias quando falas de coisas sérias. Não há nada mais ridículo do que os políticos que sorriem a despropósito”. Fazia sentido, e eu, à cautela, sobretudo de início e em televisão, dava essa imagem de uma compostura integral, sem perceber que criava anticorpos. Há que dosear a coisa… no meu caso tive de ir aprendendo a ser mais natural. Isso também vem com a idade. Ou com a mudança de tema… Nunca me recusei a entrar em debates alheios às minhas prioridades (centradas no campo dos direitos dos mais “desprotegidos”, mulheres, refugiados, migrantes, minorias, regiões periféricas, animais…) e um deles foi, por acaso, o mundo paralelo do futebol. Tive de decidir sobre um caso polémico, que configurava grave infração à liberdade de emigrar dos jogadores do nosso campeonato –em favor dos cidadãos/jogadores, é claro. E a partir daí, de vez em quando, era questionada sobre matéria desportiva. Nunca escondi filiação clubista (do FCP, o mais marginalizado, por ser de uma região também discriminada no que será ainda hoje, o mais centralizador Estado da Europa). A um jornalista que, um dia me perguntou: “Não receia perder votos ao mostrar-se “portista”?” Obviamente não! Se perdesse, perdia, ponto final. Mas não acreditava que isso desse ou tirasse voto. As pessoas separam as águas. Se não separassem, o Rui Rio nunca teria sido as maiorias que teve na Câmara do Porto, nem eu as minhas maiorias numa emigração, onde o vermelho e o verde predominam largamente sobre o azul e branco.… Mas o futebol pode criar afinidades, dentro e fora do universo das mesmas cores. Foi a revelação que tive, uma tarde ao atravessa a rua 62, em Espinho. Um jovem desconhecido acercou-se e disse: “Gostei muito de a ver na televisão. Já a tinha visto muitas vezes e não gostava nada de si. Ontem, mudei de opinião”. Fiquei espantada! De facto, esse programa em que participei, a convite da Maria Elisa, teve um impacto grande. Foi, numa conjuntura de polémica acesa, um comum e pacífico elogio ao futebol por três mulheres de cores diferentes, a Maria José Nogueira Pinto (SCP), a Rosalinda Machado (SLB) e eu. Esta divagação desportiva só tem a ver com Jacques Chirac, porque tal como o jovem espinhense da Rua 62, eu mudei de opinião acerca dele, embora não a discutir futebol. Tinha diante de mim um homem enorme, muito bem-parecido e com um “charme” enorme, do qual fui a mais direta recetora. Bom, talvez apenas porque fosse uma delegação de homens, em que era a única mulher, ou porque fosse mais fluente no francês, ou, simplesmente, mais conversadora. Há também quem acredite na força convergente ou divergente dos campos magnéticos. No nosso caso, deu simpatia à primeira vista. Havia em Chirac uma agradável excentricidade, que não ressaltava em TV… A dada altura, perguntou-me qual era o maior contencioso nas relações entre os dois países, no que respeita a emigração e eu respondi, sem hesitar, apontando para o pagamento dos abonos de família aos filhos de emigrantes que permaneciam em Portugal. Eram iguais aos praticados no país, e, por isso, muitíssimo inferiores aos atribuídos em França. Só os que estavam a residir em França recebiam o abono francês. Assim acontecia, evidentemente, em relação a todos os outros povos migrantes, mas, depois que Portugal se tornara membro da CEE, um ano antes, nós contestávamos a discriminação. Até então, sem sucesso – o Ministro dos Assuntos Sociais, não cedia, a verba global era avultada… Chirac respondeu de imediato: “Vou resolver isso! Mande-me o “dossier”. Um dos ministros presentes, da equipa dos Negócios Estrangeiros era um amigo e, em particular, disse-me que ele era suficientemente voluntarista para cumprir a promessa, mas, se o pedido viesse através dos canais oficiais, nunca chegaria às suas mãos. Primeiro, seguia para parecer do Ministro competente, que o fecharia numa gaveta. Ofereceu-se para servir de discreto intermediário. Eu enviava-lhe o documento, ele apresentava-o, a sós, a Chirac, que o assinava. E, pronto, estava assinado! Não havia protesto que o fizesse voltar atrás. Este belo e perfeito esquema não foi aprovado em Lisboa. Não dependia de mim - tudo foi preparado pela Segurança Social, e conduzido pelo gabinete do Primeiro Ministro. Nada feito… Não ficou resolvido o contencioso, mas ficaram boas recordações das conversas do Hotel de Matignon, e de um jantar esplêndido na mansão da Rue Noisiel, em que “Chirac et moi”, bem acompanhados pelo nosso jovial Embaixador Luiz Gaspar da Silva, continuámos, na mesma onda, de sorriso aberto e palavra pronta, perante um casal Cavaco Silva bem mais circunspecto. Luiz Gaspar era um coimbrão, como eu, fomos colegas de Governo (Bloco Central). As nossas relações eram fraternais – durante o seu mandato, em Paris eu, como deputada ou turista, tinha sempre um quarto à espera na Residência e a certeza de conversas muito divertidas. Não, porém, nessa visita em que Primeiro Ministro e comitiva pernoitaram no Hotel de Crillon. (um dos melhores que conheci em todo o mundo). A nota dissonante de uma viagem com história, mas sem História, foi o encontro de Cavaco com emigrantes, num salão da Rue Noisiel… Eu teria desaconselhado o formato do encontro. Teria, se tivesse sido consultada…. Em Paris, com os seus “gauchistes” lusitanos, capitaneados pelos famosos agitadores do CCP, um encontro formal, ao mais alto nível – PR, Primeiro-Ministro – só pode correr mal – é um palco demasiado apetecível! Correu mal com o Presidente Eanes no grande auditório de La Vilette, correu mal, anos depois, com Cavaco num salão da Embaixada… Eu ainda tentei pacificar, pondo pontos nos “is”, mas eles estavam focados no PM e foram de uma violência (verbal) contundente. O Primeiro Ministro controlou facilmente a sentida indignação, mas não esqueceu e o Conselho foi para a sua lista negra. Na primeira oportunidade, isto é, mal eu deixei de ser obstáculo intransponível, o CCP foi corrido de cena, missão de que o meu sucessor gostosamente se encarregou, criando um sucedâneo perfeitamente domesticado e inoperacionais. Imagine-se uma estrutura assente em seis colégios eleitorais - o dos patrões, o dos trabalhadores, o dos intelectuais, o dos média, o das associações laicas e o das religiosas e beneficentes! Finalmente, a solução foi substituir eleições por nomeações, mas nem assim aquele híbrido foi muito longe. A ideia também não era que fosse (penso eu). No que me respeita, porém, a agitada sessão da rua Noisiel, acabou sendo positiva. Meses depois, quando o governo caiu e eu transitei para o Parlamento, e fui feita Vice-Presidente da Assembleia. Cavaco Silva, notório antagonista do sistema de quotas, apostava em mulheres para lugares onde nunca tinham estado. O PSD, com ele, indicou as primeiras mulheres governadoras civis, a primeira juíza do Tribunal, as primeiras mulheres ministras oriundas de um partido (Leonor Beleza, Teresa Patrício Gouveia… já que Pintasilgo, a grande pioneira, era independente). Em 1987, queria indicar a primeira mulher Vice-Presidente da AR, que na linha de sucessão do Presidente da República ocupava o 2ª lugar ee, substituição do Presidente, presidia a plenários, chefiava delegações parlamentares, entre outras atividades representativas e vistosas. Ao que me disseram, fui escolhida porque a minha fleuma a responder aos ruidoso Conselheiros de Paris impressionara o Professor. Achou que quem lidava assim com aqueles “enragés”, também resistiria à mais branda bagunça parlamentar. Resistir, resistia, mas, confesso que sempre preferi os plenários do CCP, onde tudo era mais genuíno e previsível, aos de São Bento, dos quais, com um pouco de exagero, direi precisamente o contrário. . Entre diplomatas Os nossos Nas Necessidades, vivi cerca de sete anos entre diplomatas portugueses. Relatos alheios falavam-me de um mundo fechado e impenetrável, onde seríamos sempre corpos estranhos. É e não é assim. Como em qualquer outro círculo corporativo, há a organização, que é tudo isso e mais ainda, e há as pessoas, os nossos diplomatas que, na sua maioria, achei encantadoras. Sobretudo os mais velhos deixaram-me muito boas recordações, caso do Embaixador António de Faria, a falar do Tratado de Igualdade entre Portugueses e Brasileiros, que teve a sua assinatura, do Embaixador Caldeira Coelho, a contar curiosos pormenores sobre os inícios da emigração portuguesa para o Canadá, em 1953, ou do Embaixador Siqueira Freire, quando, (corajosa e serenamente!), me acompanhou na reunião em Paris, que começou mal e acabou bem, como havia de se tornar habitual nos debates com o CCP local. Contudo, estando eu à frente de uma Secretaria de Estado que entrava na categoria definitiva de “alienígena”, nunca confundi os planos e curei de defender, sem cedências, a sua margem de autonomia face ao todo (à tal poderosa “organização”). Os meus sucessores (gente do mesmo partido, embora não parecendo, porque são de outra escola de pensamento) fizeram o contrário, extinguiram o Instituo, o IAECP, dissolveram os seus serviços numa Direção Geral de Assuntos Consulares. Aconteceu a catástrofe prognosticada e, a meu ver, desde então, só mesmo Secretários de Estado com peso político próprio conseguem ter margem de intervenção na pasta das Comunidades Portuguesas. José Lello é um bom exemplo disso e parece-me ter sido o que melhor compreendeu a dimensão da perda do velho Instituto. O pragmático Dr. Sá Carneiro, em janeiro de 80, durante o nosso insólito primeiro encontro na Gomes Teixeira, perguntou-me: “Que tal se dá com diplomatas?”, ao que na altura, como já relatei, respondi que não conhecia nenhum. E só por acaso não acrescentei que talvez não fosse dar-me bem. O meu habitual pessimismo na previsão que, porém, nunca me impede de ir, quixotescamente, em frente. A ideia desta comparação ao excêntrico cavaleiro não é de minha lavra – fui um dia chamada por um jornalista amigo “D Quixote de saias” (o que diria ele se não fosse meu amigo!…). E, todavia, quarenta anos depois, ao mesmo quesito, poderia dizer: “Afinal, dou-me bem!” Para isso também muito contribuíram os diplomatas do meu Gabinete. No MNE, é verdade que não se pode prescindir de, pelo menos, um, para fazer a ponte ao tal mundo paralelo, espécie de “cidade proibida”, onde estrangeiro não penetra. Nesse papel, há os que cirandam pelos corredores e são uma fonte inesgotável de novidades (que, em regra, narram com graça e vivacidade), e os que se sentam à secretária e trabalham com grande eficácia. Entre estes últimos, contei com dois esplêndidos Chefes de Gabinete e dois bons amigos: o Dr. Gonçalves Pedro e o Dr. Jorge Preto, mais tarde, ambos, naturalmente, Embaixadores. O Embaixador Jorge Preto era tão extraordinário, e entendíamo-nos tão bem, que eu, na prática, lhe entreguei os assuntos do Gabinete e me concentrei no Instituto, onde tinha instalações espaçosas e onde achava que a minha superintendência era mais necessária, para mover a máquina. O Dr. Jorge Preto tinha de exigir, de vez em quando, a minha comparência para assinar, (de cruz, porque confiava nele inteiramente) a documentação. E o curioso é que, à partida, ambos receamos trabalhar em conjunto – o mais possível. Não foi uma escolha nem dele, nem minha, mas da “casa”. Queriam fazer uma troca direta entre um meu adjunto, que era pretendido no “Protocolo”, e um diplomata vindo desse vistoso serviço. Eu sei que há grande qualidade no Protocolo, mas não era o meu campo favorito de recrutamento para o setor da emigração… Ainda por cima, o Dr. Jorge Preto era um homem alto, imponente, bem-parecido, à primeira vista muito formal. Por seu lado, ele não só sabia da minha fama de mulher de muitas e variadas guerras, como desconfiava que o mandavam para o meu gabinete na expetativa de que a coisa corresse mesmo mal. Acho que ambos tivemos uma boa surpresa. Eu ainda era nova demais para condescender com os erros alheios e, de facto, eram conhecidos e comentados alguns desaires no meu relacionamento, quer com a carreira, quer com “futricas”. Imagino que, nos primeiros tempos, alguns dos “emissários de corredor” andassem por perto, para recolher sinais de dissenso. Em vão. Foi coisa que nunca aconteceu… Antes do Dr. Jorge Preto, eu dava uma vista de olhos a quase tudo, incluindo a redação de ofícios e a distribuição dos convidados nas mesas de protocolo. Depois, tomando consciência de que ele fazia tudo muito melhor do que eu, era assaltada por dúvidas e havia muitas decisões que já não tomava sem o consultar. Além disso, era uma simpatia. Os adjuntos e as secretárias adoravam-no. Foi o último, o mais pacífico e o mais feliz dos meus gabinetes, nas Necessidades. E também fora desse pequeno círculo de colaboração diária há diplomatas com quem mantive os laços de amizade pela vida fora, como o João Quintela, meu colega de curso, o Carlos Teixeira da Mota,(ambos brilhantes diplomatas, tão cedo desaparecidos, infelizmente), o Fernando Castro Brandão, casado com a minha super eficiente antiga adjunta Maria José, o António Santana Carlos, casado com a maravilhosa Milú, dos meus primeiros gabinetes, o António Tânger, que conheci novíssimo e cuja franqueza absoluta sempre apreciei, discordância políticas aparte, Álvaro Guerra, que era um conversador invariavelmente divertido, caustico, ou João de Sá Coutinho, de quem, sendo tão diferente, poderia dizer o mesmo – muito divertido, talvez ligeiramente menos caustico, mas mais jovial. Na verdade, um eterno jovem coimbrão, como Luís Gaspar da Silva, que foi meu colega de Governo, antes de ocupar a Embaixada de Paris. No solar de Sá Coutinho, em Ponte de Lima, passei momentos únicos e irrepetíveis. Ele estava sempre pronto a ser a colaborar em conferências e celebrações voltadas para a Diáspora e era um anfitrião maravilhoso (ele, a mulher, a irmã…). Durante um desses eventos comemorativos (o “Dia da Comunidade Luso-Brasileira”, em que tivemos oradores como José Augusto Seabra, Norma Tasca e Alberto da Costa e Silva), na véspera da abertura solene, fomos dar um passeio ao centro da cidade, que é, para mim, a mais bela cidade minhota (e portuguesa!). Ele acabava de receber, por correio, a mensagem do Ministro Pires de Miranda e ainda nem a tinha aberto. Enquanto a abria, foi dizendo que tinha a certeza de que começava assim: “Aproveito o ensejo para me associar…” De texto em mão, passou à leitura. Tinha acertado em cheio…rimo-nos tanto, tanto, a atravessar as ruas de Ponte de Lima, que, a certa altura, sendo ambos muito distraídos, perdemos o papel, ou ele ou eu…Depois de revistarmos bolsos e carteiras… Nada!... O papel tinha sumido. Voltamos para trás, fazendo cuidadosamente todo o percurso examinando beiras e buracos, sem resultado. Um enigma. O precioso documento nunca mais foi visto, O vento o levou. Não que ventasse muito, mas não há outra explicação. Pedimos cópia, que foi enviada, “in extremis”, por telex. Tive de ler o texto cheio de duplo “as” e “es”..Um verdadeiro castigo! No ano e no governo anteriores, outro episódio de colaboração, esse bem menos jocoso, nos reuniu. Era verão, o MNE Jaime Gama estava de férias, assim como o SE das Negócios Estrangeiros, quem quer que fosse (ainda Luís Gaspar ou já Eduardo Âmbar?), pelo que me coube assumir as funções interinamente. É um facto - fiz as vezes de MNE, por uns dias. E logo foi acontecer uma cosa terrível: o reconhecimento da anexação indonésia de Timor pela Austrália! Chamei, de imediato, o Secretário-Geral… o meu amigo João de Sá Coutinho. Juntos, medimos a reação a tomar. Eu, como é evidente, queria a mais violenta e el achou muito bem. O sinal “mais” que se poderia dar era a chamada ao País do nosso Embaixador em Camberra. E assim foi feito! Não sei se Jaime Gama estava ou não de acordo. Aparentemente, sim. Quem não gostou nada de vir a Lisboa do outro lado do mundo, para marcar o protesto foi o Embaixador, que era Inácio Rebello de Andrade, outro bom amigo… Em qualquer caso, eu não podia esquecer Timor. Eu gosto de me considerar minhota e galega, embora a minha ascendência minhota não seja a mais próxima (o ramo Mendes Barbosa de Bitarães e Paredes floresceu em Gondomar, através de um bisavô tabelião, vindo para Gondomar por volta de 1860) e a galega, apesar de direta, seja muito mais remota e sinto-me perfeitamente sintonizada com o humor festivo das gentes da região, do velho “Antro o Douro e Minho”. No MNE bem representativos desse espírito lúdico eram Sá Coutinho e José Manuel Villas-Boas. Um dos mais divertidos serões de que me lembro foi aquele em que na Cidade do Cabo, o Embaixador Villas-Boas contou intermináveis e hilariantes estórias de crendices e fantasmas saídos da imaginação do povo de Caminha. Por essa altura (ou seria noutra viagem?), num 10 de Junho, de grandes comemorações, com presença de autoridades locais e de um Ministro, acompanhado da sua bonita mulher. O apogeu foi o banquete, seguido de baile! Todos a dançar com todos, exceto o Ministro que era um protestante, de uma igreja que proíbe, entre outras coisas, a dança. Ficou sentado, a ver (que não seria pecado tão grave), enquanto a mulher, que não partilhava os tabus, fez par com o Embaixador, a quem confessou que estava felicíssima, porque, depois do casamento, nunca mais pudera dançar! Em 1986, voltei a Capetown, para a Reunião Regional da África do CCP, que foi esplendidamente organizada pelos dirigentes do Conselho das RAS. Ordem do dia, documentação de apoio, presidência das reuniões de trabalho. O Embaixador participou, como convidado e, no fim, em entrevista dada a “O Século de Joanesburgo” fez o mais lapidar elogio do CCP de que tenho conhecimento: “Acabo de assistir ao mais genuíno exercício de democracia que vi em toda a vida” Quando penso que, neste verão de 2023, acaba de ser promulgada a nova legislação do Órgão, contra a vontade, a opinião unanimemente manifestada pelos membros do Conselho Permanente do CCP, tenho de dar razão ao Embaixador. E de reconhecer que democracia não é um “acquis” garantido, o retrocesso pode acontecer, até muitas décadas depois… Nas minhas viagens como SECP tive sempre um apoio condicional dos nossos Representantes, mas alguns excediam-se em eficácia e em simpatia. Era sempre o caso, que já referi, do Embaixador Baptista Martins, e, também, entre tantos, do Embaixadores António Montenegro, Menezes Rosa, que teve intervenção decisiva no processo de legiferação do CCP, Siqueira Freire, Góis Figueira e António Tânger, que eram de um dinamismo organizativo difícil de acompanhar, Rosa Lã (que como Encarregado de Negócios na Venezuela, me permitiu negociar o sigiloso acordo de legalização de trabalhadores portugueses clandestinos), Luís Gaspar da Silva, Leonardo Mathias (outro colega de Governo), Álvaro Guerra, de quem já falei . António Patrício (que pena eu ainda não conhecer, então, o seu interessante curriculum de infância e juventude, que o primo António Vitorino de Almeida desvenda na sua genial autobiografia), Hall Themido (para além da agenda de trabalhos, recordo algumas conversas sobre cães, os nossos animais favoritos, conversas que como ele muito bem entendia, só se podem ter com quem os trate como gente), Francisco Knopfli, (e o seu esfusiante sentido de humor alentejano, que não ficava atrás do minhoto – eu chorava a rir, coisa que me acontece frequentemente nos filmes de Woody Allen). Especial foi o primeiro encontro com o Embaixador Nataniel Costa, em Berna. No fim de uma estada de vários dias, confessou-me que tinha hesitado em me acolher na residência. Pensou que ia ser uma maçada receber a reacionária do PSD. Tinha uma alma de esquerda e não podia imaginar que eu, afinal, estava apenas mal catalogada. Do meu lado as expetativas eram igualmente baixas, parecia-me um diplomata triste e introvertido. Descobrimos rapidamente as afinidades próprias do signo “Gémeos”, como a extroversão, a curiosidade, o gosto pelo movimento e, no nosso caso, também pela História, pelo cinema etc etc. E éramos admiradores de Mário Soares, que se tornou um dos temas de diálogo, Como o Presidente Soares tinha estado pouco antes em visita oficial ao país, o Embaixador Nataniel tinha um reportório bem atualizado. Lembro-me do episódio dos discursos. O Presidente leu o primeiro discurso pelo papel. No fim, num aparte discreto, disse ao amigo diplomata: “Discurso chato. Não leio mais nenhum!”. E a partir daí, assim fez. Para ele, excelente orador, era o mais natural. Estou a recordar a visita à RAS, em que, a seu convite, integrei a comitiva. Até na soleníssima cerimónia de doutoramento “honoris causa” improvisou o agradecimento, uma exceção à regra que lhe granjeou enorme admiração. Mencionar a totalidade de embaixadores dos quais guardo boa memória, equivaleria a reproduzir uma boa parte do Anuário Diplomático… Mas valerá a pena referir ainda Gabriel Mesquita de Brito, então Cônsul-Geral em São Francisco, pois teve a ideia pioneira de sugerir que eu convidasse os deputados luso-americanos do Estado da Califórnia a visitar o belo país dos seus antepassados. Eram cinco ou seis, e vieram todos, na companhia de Gabriel, como se impunha. Correram o retângulo de sul a norte, cavalgaram e tourearam no Ribatejo, dançaram o vira no Alto Minho (com Viana, Ponte de Lima, Arcos de Val de Vez e outras joias patrimoniais no roteiro) e, depois, partiram para os Açores, terra de origem dos pais ou avós, onde os meus amigos do Governo Regional lhes estenderam a passadeira vermelha. Aqui foram acolhidos em sessões solenes por autarcas e tiveram audiências com as mais altas figuras do Estado. O presidente Eanes foi particularmente simpático com eles, há muitas fotos que documentam o clima em que o encontro em Belém decorreu. Mais difíceis foram os contactos parlamentares, porque estávamos em tempo eleitoral e só podemos mostrar-lhes o edifício despovoado de deputados. A escolha da data foi deles – queriam presenciar as campanhas, o dia de votação, a dia seguinte… Eu tive a ideia de contactar a direção dos partidos políticos, pedindo que os acolhessem na noite eleitoral, nas sedes de campanha. Todos aquiesceram, de imediato. Menos um, porque não foi sequer solicitado – o PCP. Embora o “macartismo”, na sua fase virulenta, seja coisa do passado nos EUA, deixou sombras alongadas e era certo que políticos californianos ficariam, no mínimo, mal vistos se ousassem o encontro proibido. Eu fui, com eles, na peregrinação, partido em partido, de salão de hotel em salão de hotel, e diverti-me à grande. Desde logo, com o espanto dos militantes graduados, quando me reconheciam, à frente de um grupo ruidosamente anglófono, a “penetra” do PSD, no altar-mor da sua congregação… Em qualquer caso, cumprimentavam urbanamente. Os resultados iam chegando e o ambiente era civilizado, mas pouco menos que lúgubre. Os americanos manifestavam algum desencanto. “São tristes, os políticos portugueses!”. Eu, como “cicerone” já lhes traçara o curriculum sintético de cada líder e formação partidária, o seu peso relativo no sistema - sentia-me a dar lições de Direito Constitucional, que não é a minha área, sem problema, contudo, a um nível de “cultura geral” … E, face aos comentários, apressei-me a esclarecer que não “eram” tristes, “estavam” tristes. Ainda não saíramos do reduto dos perdedores. Mas, verdade seja dita, na política como no futebol, os portugueses são dos que mais desanimam com a derrota. Não se vê um fracasso calar a voz de uma claque inglesa…. cantam e bebem, quando não fazem pior. Garanti aos meus convidados que iam ter festa pela noite fora no campo do vencedor, que, por acaso, com, mais ou menos, 28%, isto é, muito minoritário, era o PSD de Cavaco Silva. Não falhei a previsão! Pouco faltou para o moderníssimo hotel Méridien vir abaixo. Uma apoteose, corredores cheios de uma multidão ululante, bandeiras, abraços, cânticos - a loucura total! Os americanos sentiam-se em casa. A visita terminou, assim. Foi um sucesso, de princípio a fim e atingiu, com certeza, o objetivo de lhes dar a conhecer não só o País, o seu património e potencial, como também os meandros da vida política portuguesa, e os seus principais protagonistas. Contudo, ao contrário do que sucedeu com políticos europeus ou sul-americanos, não mantive com eles duradouro contacto pessoal. Embaixadores de outras bandeiras Não foi no meu tempo de Governo, mas no de parlamentar, sobretudo no quadriénio em que fui Vice-Presidente da Assembleia, que fiz as melhores amizades no campo da diplomacia bilateral ou multilateral. Amizades que permanecem, para além do exercício de funções. Na política interna, os meus desaires davam um volumoso tratado. (“como fazer para cair em desgraça”, podia ser o título), na parte internacional, caía regra geral em graça, fosse lá pelo que fosse. Pensando bem, na política, talvez de quase toda a gente possa dizer o mesmo. Não há competição direta por lugares, e daí, suponho, ser mundo de menos intriga, de menos inveja paralisante de cooperação amiga - mais fácil, ao menos, para quem goste de relacionamentos baseados na franqueza e na boa disposição. Eu gosto. Vem-me do sangue, dos exemplos de uma família alegre e convivial, ou do signo de zodíaco (gémeos, típica mulher de gémeos). Sei pouco dessa ciência esotérica, mas acho que “il y a du vrai”. Desde que, em criança, as ciganas vestidas de negro, me “liam a sina na palma da mão” nas esplanadas de Espinho, até ao momento mais emocionante, quando Frei Eliseu da Bahia, que tinha aura de santo católico, me disse coisas interessantes sobre mim, consultando o seu complexo mapa astrológico… Frei Eliseu, com quem estive, depois, tantas vezes! Não convenceu Agustina, segundo conta na sua crónica de viagens pelo Brasil. Eça também não a convencia. Já eu adoro Eça e Agustina, no meu “top” português, e também adorava o frade carmelita, porque, além de dizer coisas acertadíssimas, (por virtude de ciência acumulada, ou por pura intuição…), era a bondade em pessoa e dirigia no Convento do Carmo uma obra admirável para meninos da rua. Sempre gostei do convívio intergeracional, que terá começado na muito especial cumplicidade com os avós. Amigos de cabelos brancos tive muitos – como o Frei, o Dr. Godinho, ou o casal Soares, e, neste campo da diplomacia, os brasileiros José Aparecido de Oliveira, Dário de Castro Alves, o Sul-africano Pretorius ou o canadiano Lloyd Francis. Com Lloyd e a mulher Margery convivi, de uma forma muito familiar, não só nas habituais receções, como em visitas de turismo cultural pelo país – o norte do país, sobretudo – e em almoços a três. Eram encantadores! Ela era uma senhora simples, discreta, doce, tinha problemas de saúde, mas mantinha a boa disposição e o sorriso. Ele vinha da política, um Liberal do partido de Trudeau, como eu seria se vivesse no Canadá. Um dos seus “hobbies” era a lapidação de pedras e montou na residência a sua “banca de ourives”, utilizando como matéria prima pedras lindíssimas, encontradas nas praias e nos campos de Portugal. Tenho ainda várias pregadeiras “hand made” por ele. Não sei porque misteriosa razão ninguém se lembra de fazer o mesmo, e não como distração, mas como negócio. Ele próprio estranhava essa omissão nacional… Na minha fase governamental, eram essencialmente as conversações na área das migrações o elo de ligação às várias representações diplomáticas – na Europa, a Suécia, a Grécia e a Turquia (decorrência de amizades com os meus homólogos nascidas nas reuniões do Conselho da Europa), a França e, também, a Suíça, em particular depois, que graças à iniciativas do nosso Embaixador Mendes da Luz em Berna, solidificamos as relações com o Governo suíço – o único a manter, em contracorrente, as portas abertas à nossa emigração, que, a partir de 80, em poucos anos, passou de números insignificantes para mais de 150000. O nosso representante interessava-se imenso por esse fenómeno novo e tratou de estabelecer uma boa relação de amizade com dois dos interlocutores principais, nos pelouros do Trabalho (Klaus Hug) e do Interior (Hunzicker). Trouxe-os a Portugal, onde os recebi cordialmente em Lisboa e, depois, em périplo pelo norte, que foi muito apreciado. O foco foi em negociações “como deve ser”, vantajosas para ambos os lados, mas depois não faltou a “festa minhota”… Se dependesse de mim, nunca faltava. Conseguimos estabelecer protocolos e contactos informais, que fizeram a diferença no tratamento dado aos portugueses. Muito mais do que se sabe ou pode adivinhar…. Um exemplo: os nossos Cônsules receberam instruções para darem informação sobre queixas dos nossos imigrantes contra o patronato, discretamente, à inspeção suíça, domínio de Hunzicker, que tomava a iniciativa de averiguar a sua veracidade. Se os trabalhadores agissem diretamente, arriscavam-se a perder o emprego, mesmo que tivessem razão… Outra embaixada, onde a defesa prática dos direitos dos emigrantes passou por conversas discretas nas embaixadas, cá e lá, foi a da RAS. Lá, mais importante do que a ação de qualquer Embaixador (e houve alguns muito bons), foi a do Vice-Cônsul de Pretória, Mário Silva. Até casos impossíveis de ordem de expulsão imediata de clandestinas em via de execução ele pode evitar, muitas vezes… É um daqueles portugueses de África, cuja biografia devia obrigatoriamente ser escrita, e incluída na história trágica dos refugiados da descolonização de Angola e Moçambique…. Em Lisboa, quem melhor recordo é o Embaixador Pretorius, que adorava Portugal. No almoço de despedida, convidou muitos amigos, sentados numa mesa comprida, onde, sentada à sua direita, era a única mulher. A emoção das suas palavras, saudade antecipada de uma cidade onde foi feliz, repercutia em todos nós. Pouco faltou para chorarmos. Quanto ao facto de ser a única mulher à mesa de refeições ou de negociações, nada de novo ou de incómodo, exceto pelo facto de mostrar as desigualdades no mundo ainda hermeticamente masculino. Os Brasileiros Os brasileiros estavam, sempre, entre os meus embaixadores preferidos, desde Dário Castro Alves e Luiz Lampreia a Alberto da Costa e Siva e José Aparecido de Oliveira. Na verdade, o único com quem não tive contactos muito assíduos – será que alguém teve, em Portugal? –foi Itamar Franco, o antigo Presidente que “virou” enigmático diplomata. O Brasil concede-nos o privilegia de entregar a sua representação em Lisboa e Porto, a personalidades de primeiríssima linha e um antigo presidente, mesmo sendo tão introvertido, entrava ostensivamente nessa categoria. Creio que a minha estreia em jantares de embaixada foi a convite de Dário Castro Alves, o famoso queirosiano, casado com Dinah Silveira de Queiroz - um verdadeiro será literário, e muito elegante, as senhoras de vestido comprido. Era inverno e chovia…, mas o charme distante de Dinah e o efusivo encanto de Dário iluminavam a noite. Foi um amigo de muitos, muitos anos, porque depois de reformado, já viúvo, veio viver na sua querida Lisboa. Sucedeu-lhe era outro notável diplomata e escritor, Alberto da Costa e Silva, e eu passei a frequentar, ainda mais, a residência oficial. Gostava muito do casal, ele sempre com o se ar sereno e um sentido de humor apuradíssimo. Vera (ou Verinha, como lhe chamávamos), sendo muito mais extrovertida, completava-o. Irradiava ânimo e energia, mas o marido, sob o seu ar plácido, não era menos ativo e pragmático – só não o parecia. Entre os projetos que em concreto desenvolvemos estão a geminação entre a nossa Amarante e a sua Amarante do Piauí. Um sucesso, tal como diversas exposições de arte, colóquios, comemorações de efemérides (como a de Ponte de Lima, de que já falei). E, no domínio das migrações nos dois países, mantivemos, enquanto estive na SECP, uma agenda de diálogo permanente. Quando voltei ao Parlamento, a colaboração não diminuiu. Como Vice-Presidente, a minha obrigação prioritária era a representação da instituição em receções diplomáticas, comemorações militares, autárquicas ou outra qualquer, libertando o Presidente Crespo para atos de maior relevo (ou mais do seu agrado). A mim, também nem sempre me parecia o mais aliciante uso de tempo, mas acabei por gostar e por tentar, em qualquer caso, tirar o máximo partido possível desses contactos tão assíduos. Quem vai mudando de vida e ofício ao sabor do imprevisto tem de descobrir formas de dar utilidade a cada nova fase ou capítulo, de preferência na prossecução das boas velhas causas. Uma das quais, no terreno das migrações tinha de ser abordada com algum resguardo, visto que qualquer diligência minha minha incomodava imenso o meu sucessor na pasta e convinha não envolver delegações estrangeiras em questiúnculas intestinas. As próprias comunidades portuguesas não entravam nessa reserva - eram “assunto interno”, e a incomodidade do meu correligionário atuava muito mais como estímulo do que de dissuasão… quando me hostilizam, sem razão, reajo mal. Não havia convite da emigração que eu não aceitasse de bom grado. O cargo era pomposo, as pessoas gostavam (ou do cargo, ou de mim, era-me indiferente o que mais lhes importava). E o Prof Crespo, doutorado por Berkeley (ou Standford?), tendo a experiência de contacto com os portugueses da Califórnia, estava sempre de acordo em que eu assumisse a representação da “Casa”, mas sem despesas para o OE. Por isso, eu tinha de pagar as viagens, quase sempre e, mais raramente, também os hotéis. Nunca disse a ninguém que a Assembleia não providenciava o meu transporte e a estadia, excetuado o próprio SECP, muitos anos depois. Em tom de brincadeira, que, tantas vezes, é o ideal para dizer verdades, contei-lhe que o gozo de o “chatear” com as minhas peregrinações pelo mundo da lusofonia, me tinha custado uma pequena fortuna. Quem não entendia que na nossa emigração há lugar para todos, e que eu não andava por lá a denegri-lo, bem merecia a “plaisenterie”. Nada de semelhante obstava a minha outra “cruzada”, no terreno da igualdade de género, que ganhava pertinência no lugar vistoso a que ascendera e que ganhara uma inédita visibilidade apenas por ser, enfim, treze anos depois da Revolução, ocupado por uma mulher. Aceitei, com entusiasmo, acumular a Vice-presidência do Parlamento com a presidência da Comissão Parlamentar da Condição Feminina. Nesta Comissão não podia descurar a vertente internacional do trabalho, aproveitando a facilidade de acesso aos interlocutores das embaixadas, (do Japão, Israel, Suécia, Canadá e outras, incluindo algumas das mais improváveis, como as do Iraque e da URSS…). O Brasil constituiu exceção nesta agenda feminista, na medida em que foi sempre mais sobre o mundo lusófono e as relações luso-brasileiras que os diálogos versaram. A Alberto da Costa e Silva devo o ter tido um conhecimento precoce do trabalho dos constituintes brasileiros que, em 1988, se preparavam para dilatar, enormemente, o âmbito do “Tratado de Igualdade de Direitos e Deveres entre Brasileiros e Portugueses”. Graças a ele, pude seguir, verdadeiramente deslumbrada, o curso dos trabalhos parlamentares em Brasília, recebendo informação regular sobre o avanço das votações. O capítulo da nacionalidade, onde o alargamento do conteúdo de Direitos do velho “Tratado de Igualdade” se considerava, foi o mais polémico. Tudo menos a concessão aos portugueses de um estatuto de equiparação a nacionais, ou seja, a brasileiros naturalizados. Nem foi preciso debate, o consenso foi natural e imediato. Esse gesto inovou, em termos de Direito comparado, a história do Direito Constitucional, já que, no nosso tempo, nenhum outro ordenamento jurídico vai tão longe. Só uma exigência é feita: a reciprocidade da parte Portuguesa, em favor dos brasileiros. Urgia preparar um projeto de alteração da nossa Constituição (o art.º 15), para dar a imprescindível reciprocidade, com ela tornando efetiva a aplicação do novo estatuto de direitos políticos nos dois países. A tarefa parecia facilitada pelo facto de a Assembleia ter assumido, por essa altura, poderes constituintes. Neste país de políticos pequenos, que, entretanto, ia, ocupando o lugar dos grandes – os chamados “pais da democracia” - o processo foi muito mais acidentado do que eu, a eterna otimista, podia imaginar. Mais adiante, contarei – vale um capítulo próprio, com dedicatória a este excecional Embaixador… …… [adiante] – A questão da reciprocidade Apresentei uma primeira proposta de reciprocidade na Comissão de Negócios Estrangeiras, então presidida por Dias Loureiro. O texto foi redigido pelo Prof Adriano Moreira e por mim, aprovado, num ambiente festivo, por unanimidade e enviada à CERC (Comissão Eventual para a Revisão da Constituição). A CERC, onde estavam presentes as lideranças partidárias, para nosso espanto, meteu a proposta na gaveta, o que era de muito mau augúrio. A diferença entre deputados a decidirem livremente pela sua cabeça, (a favor da dação da necessária reciprocidade aos brasileiros) e deputados enquadrados nas baias partidárias (contra, por oposição dos maiores partidos), ficou bem à vista. Aí começava uma saga incrível e dolorosa, que duraria treze longos anos, e fica como exemplo de insensatez política de nomes respeitáveis da nossa democracia, da sua incapacidade de fraternalismo para com os povos que connosco fizeram percurso comum. Um percurso de que o Brasil é o mais perfeito paradigma, pela forma como o colonialismo foi, até certo ponto, combatido pelo convívio, à margem do projeto estatal, por brasileiros e reinóis, graças ao verdadeiro êxodo de emigrantes, que eram voluntários, quando não mesmo clandestinos. popular. A meu ver, a extraordinária abertura não só da sociedade, mas dos políticos brasileiros para com a imigração portuguesa é herdeira desse passado, desses rurais do Minho e de outras terras nossas que ao longo dos séculos cumpriram o seu sonho brasileiro, se preciso fosse contra os poderes constituídos. A mesquinha e timorata resposta das cúpulas do PSD e do PS deixava a nu o fundo ultranacionalista, xenófobo e racista de uma parte da classe política, que coabita com o humanismo genuíno da outra – duas portugalidades, a estreitamente portuguesa contra a lusófona. Os deputados na AR só através do grupo parlamentar podem avançar com projetos de lei, a exceção é, precisamente, o seu direito a apresentar, a título individual, propostas de emenda no processo de revisão constitucional. E eu, logo no primeiro dia, tomei a iniciativa de propor a alteração do art.º 15º, a fim de consagrar a reciprocidade. Em menos de meia hora tinha recolhido muitas dezenas de assinaturas, de todos os partidos com assento parlamentar, incluindo socialistas de topo, como o presidente da bancada António Guterres, pessoalmente um entusiasta da ideia. Na hora da verdade, na votação da proposta, as lideranças do PS e PSD disseram “não”! No PS, o grande paladino do “não” era Almeida Santos, um “retornado”, sem vontade de ver moçambicanos (e outros africanos do Palop’s) com via aberta para a magistratura e para a política nacional no nosso país. Durante os 13 anos seguintes, ele, praticamente sozinho, teve força para travar a solução do problema que ameaçava as relações luso-brasileiras e o estatuto de que os imigrantes portugueses, muito concreta e dinamicamente, já usufruíam no Brasil. No PDS, as coisas começaram mal. Na reunião do grupo quiseram mesmo obrigar a disciplina de voto. E, muito em especial, no meu caso – segundo eles, por ser Vice-Presidente, não podia ficar na minoria derrotada. Claro que podia e devia. Deixei claríssimo que ia votar a favor da proposta que encabeçava convictamente e estava pronta a demitir-me do cargo de VP, e a demitir-me do partido. E, depois, votaria a minha proposta, mesmo que a votasse sozinha. Na altura, era Ministro dos Assuntos Parlamentares Fernando Nogueira. Sentado junto aos líderes da bancada social-democrata, seguia, atónito, a bizarra discussão. De todos os presentes era quem me conhecia melhor, dos tempos de camaradagem em Coimbra, e sabia bem do que era capaz. Mesmo que assim não fosse, e embora estivesse do lado de Almeida Santos, era homem bem mais inteligente e moderado do que os outros, e falou com meridiana clareza: “A Manuela não pode ir contra a sua própria proposta. Isso é impossível”. Ministro “dixit”. Vencidos, mas não convencidos, acataram e deram liberdade de voto aos que ousassem dissidir. Foram muitos e no PS, também. Com os votos a favor do CDS, do PRD e do MDP/CDE, contribuíram para a maioria simples numa emenda que precisava de 2/3 … Final: SOARES 2001 [adiante] …………….. Alberto da Costa e Silva abriu-me a via por onde tão cedo havia avançar no meu mais importante projeto parlamentar, O que mais me envolveu afetivamente, a luta sem descanso, contra fantasmas do nosso passado que pesam no presente, contra o obscurantismo soberanista de imperialistas sem império. Porque na história que tem as virtudes e os defeitos dos homens (e das mulheres), o melhor dos legados é a lusofonia, ou no círculo mais largo, a lusofilia. Depois de um notabilíssimo diplomata, intelectual, investigador o Brasil enviou a Lisboa, por feliz escolha ou acaso, o maior dos profetas da lusofilia – José Aparecido de Oliveira! O sábio, amável e generoso político mineiro, que foi o construtor da ideia da CPLP. Com ele, era um projeto único e luminoso, ancorado em valores culturais convergentes, sem ele tem sido mosaico de países, projeto falhado, que se tornou irrelevante, de futuro incerto, pela visão curta e mescla de interesses estranhos, com cheiro a petróleo e outros negócios. A meu ver, a CPLP só poderá entrar em novo ciclo ascendente com uma dinâmica brasileira, porque o Brasil é o potentado da lusofonia (gigante em todas as dimensões, a partir da cultural), seguindo o exemplo de Aparecido de Oliveira. Ele era brasileiro, africano, português, isto é, um lusófono perfeito. Tive a sorte de um primeiro encontro com ele, que foi tão acidental quanto marcante. Estávamos num momento de alta tensão nas relações luso-brasileiras. Ainda o imbróglio do não reconhecimento dos diplomas dos dentistas brasileiros estava mal resolvido (com a corporação dos dentistas portugueses em pé de guerra contra a concorrência e o Governo a tentar soluções juridicamente criativas) e já novo escândalo estalava com imenso impacto nos “media” e na opinião pública brasileira. Desta vez com o Primeiro-Ministro Cavaco Silva no centro da controvérsia. Um caso de imigração clandestina – um pequeno grupo de óbvios candidatos e emprego mal pago foi barrado no aeroporto de Lisboa. Como chegaram num avião de uma companhia que só voava para Portugal uma vez por semana, os cidadãos expulsos ficaram oito dias retidos no interior do aeroporto, em condições degradantes e sob os holofotes das televisões. Não se falava de mais nada, e a uma interpelação de um jornalista, o Primeiro-Ministro, do alto da sua maioria e da crença na sua infalibilidade, respondeu secamente qualquer coisa do género. “É um caso inequívoco de expulsão. Os brasileiros são estrangeiros iguais aos outros”: Fiquei em estado de choque. O Senhor Primeiro-Ministro, pelo visto, não sabia que, no Brasil, os portugueses não eram “estrangeiros como outros quaisquer”. O Brasil, apenas duas décadas antes, fora o único país do mundo de fronteiras abertas para os portugueses em fuga de África, durante a dramática descolonização. Receberam todos, incondicionalmente – milhares e milhares! Nos aeroportos organizaram um serviço de apoio e carimbaram, na hora, vistos de residência permanente nos passaportes. Essa epopeia estava completamente esquecida aqui, (sentia-me uma impotente exceção). Mas lá não – o que explica a onda de indignação que agitou o Brasil de lés a lés. Eu partilhava essa indignação. E, um dia de manhã, no meu caminho habitual para a Assembleia, resolvi fazer uma paragem na chancelaria da Embaixada, no Palácio das Laranjeiras, para dar um abraço de solidariedade ao Encarregado de Negócios (Luís Henrique?... sou péssima a recordar nomes, embora não esqueça rostos). Ele estava em Lisboa há uns anos e era uma simpatia, um bom amigo. Conversámos no seu gabinete sobre o absurdo da situação, que era uma dor de cabeça para a diplomacia dos dois países e recaía sobre toda a comunidade portuguesa do outro lado do mar. Eis senão quando ele me disse que gostava de me apresentar ao novo Embaixador. Eu não sabia da sua presença, porque não tinha ainda apresentado credenciais, e nem sabia, ao certo, quem era. Entrei no gabinete com ar bem mais circunspeto, e cumprimentei cerimoniosamente um senhor de cabelos brancos, amável e tristonho: José Aparecido de Oliveira Embora um pouco mais contida na linguagem, repeti o que tinha dito a Luiz Henrique e logo o novo Embaixador pareceu menos triste (tristeza não era, de todo, o seu normal). A conversa fluiu sobre os mais diversos aspetos da luso-brasilidade, as nossas afinidades de pensamento e visão do passado e do futuro das relações dentro deste mundo aumentavam ao minuto. Perdemos a noção do tempo. Por volta da uma da tarde, convidou-me a partilhar com ele o almoço na cantina dos funcionários, onde eu, como é natural, nunca tinha estado. Fizera um novo amigo para todo o sempre e retribuía o sentimento. José Aparecido era um encanto. Enquanto esteve em Lisboa, (num mandato feliz depois das agruras do começo), continuei visita habitual da Embaixada, participei em inúmeros eventos, inclusive, sobre o futuro da CPLP, e, depois de terminada a missão em Lisboa, reencontrei-o no Rio e, também, em Belo Horizonte, num jantar do Clube Português, onde eu era oradora sobre o tema dos descobrimentos portugueses. Imagine-se… sou uma simples amadora de História e o convite obrigou-se a semanas de leitura dos bons autores, o que me foi bastante agradável, e lá me desincumbi como melhor pude. Dei à palestra um título esotérico “Portugal - A aventura da Extroversão” e comecei citando um mercador veneziano que encimava todos os livros de contabilidade com as palavras: “Em nome de Deus e do lucro”… E foi nessa noite longa de discursos e de música, para além de muitos pratos de uma rica ementa, que ele contou, publicamente, o nosso primeiro encontro e quanto o apoio moral de uma Vice-Presidente da Assembleia da República significara para ele. Eu, curiosamente, não tivera a mínima noção disso, apesar da nossa conversa sobre mil assuntos ter durado um dia inteiro e, de a partir daí, ter continuado sempre num clima de amizade e boa disposição. Da sintonia no nosso “ecumenismo lusófono” nasceu a amizade, daquelas que não tem fim. Só este contexto pode explicar que José Aparecido, mais tarde, num artigo publicado sobre o seu tempo de Portugal, cite dois amigos – dois, ente os muitos que aqui deixou – Mário Soares e eu. Excessivo, mas, vindo de quem vinha, melhor do que uma condecoração Desse serão luso de Belo Horizonte, sobram recordações e fotos, na longa mesa de honra da palestra e nas mesas redondas do jantar. Naquela primeira, na parede, vários retratos compõem o cenário de fundo - retratos de várias épocas, com o Presidente da República Mário Soares, a cores, e o antigo Presidente do Conselho, Marcelo Caetano, a preto e branco… Só mesmo numa “casa portuguesa” da emigração isto podia acontecer este encontro de retratos, e, de facto, pelo nosso mundo fora, diversas vezes me deparei com o fenómeno. Nunca comentei, porque em democracia não se apagam imagens, nem mesmo as de um passado opressivo. Em qualquer caso, a impressionante imagem do Dr. Soares, com a faixa presidencial cruzada sobre o peitilho, olhando-nos serenissimamente suplanta todas as demais, Não admira que minha mãe, monárquica de alma e coração, adorasse o Dr. Soares, as suas “presidências abertas”, a sua tão simpática e carismática majestade. [ADIANTE?) .A Israelita Colette Avital, uma estrela maior Embaixadoras também houve algumas, sempre uma minoria, mas, nos últimos anos do século passado, já não uma raridade de causar espanto. O que não houve nunca foi uma embaixadora, ou um embaixador, como Colette Avital, que chegou e se tornou, logo, um fenómeno mediático. Em Lisboa, raras vezes vi a projeção de iniciativas de uma Embaixada ultrapassar o sofisticado e restrito círculo dos seus pares. Colette conseguia sempre dar uma enorme visibilidade a receções, concertos, intercâmbios culturais, declarações, sendo um dos exemplos mais marcantes a sua vigília de solidariedade para com o povo de Israel, durante os bombardeamentos iraquianos, em que se estilhaçava, em várias direções, a absurda guerra do Golfo… Convidou uma longa lista de oradores portugueses, em que eu me contava. Estava escalada para o encerramento, mas, ao ver o Prof Hermano Saraiva, consegui convencer Colette a dar-lhe a última palavra. A regra de ouro destas maratonas oratórias é irem em crescendo para terminarem em apoteose. Ora se eu falasse depois dele, o clímax baixava a pique. Consegui convence-la, era uma pequena infração protocolar, mas o estatuto da idade, da sapiência e arte de comunicação de um antigo Ministro e Embaixador justificava a opção. Mesmo em penúltimo lugar, já a tarefa não era fácil, porque, um a um, os antecessores iam dizendo o que me preparava para dizer, a toda a hora ia reinventando mentalmente o improviso. Fui breve e sincera, (o que é sempre um bom sucedâneo de uma brilhante discursata) e o Professor , longo e fulgurante, esteve ao seu melhor nível. Na verdade, na diplomata que encantava Lisboa, já se adivinhava a política que fez um notável percurso na Knesset e foi candidata à presidência da República (embora, infelizmente, não presidente…). Colette era socialista, próxima de Shimon Peres e feminista. Tinha, assim, exatamente o perfil político das minhas melhores amigas europeias, Anita e Georgina. Era mais do que natural que nos entendêssemos muito bem e nos tornássemos amigas. Ambas devíamos, talvez, a nossa visibilidade mediática ao facto de sermos mulheres num mundo de homens. Nesse fim de século, Portugal acordava (tardiamente) para a questão velha e não resolvida da participação feminina. Havia um interesse que parece ter desaparecido hoje, muito embora a questão permaneça com melhorias mais aparentes do que reais. Em 2022, nem a paridade, absolutamente inédita, no seio do Governo Costa despertou um entusiasmo por aí além, enquanto há trinta ou quarenta anos uma simples Secretária de Estado do Trabalho, ou da Defesa (ou uma Vice-Presidente da AR) era saudada com “hossanas” … Eu gostava imenso de Colette Avital e aceitava os seus convites com o entusiasmo de quem sabe que vai gostar. Creio que ia à Embaixada de Israel, nas Amoreiras, pelo menos tantas vezes quantas à do Brasil… E foi durante o seu tempo que aceitei o convite para visitar Israel (viagem de que adiante falarei). Por sinal, essa iniciativa não foi dela, mas do seu antecessor, Gad Rannon, que era um homem cultíssimo e muito interessante, embora mais “low-profile” (o que se pode dizer de quase todos os Embaixadores, com a exceção de um Costa e Silva, de um Aparecido de Oliveira, ou daquele americano, divertidíssimo, que, durante o campeonato da Europa de futebol, vestia a camisola das quinas e dava entrevistas como fã e comentador! (a esse já só conheci no ecrã, mas acredito que tínhamos uma sólida base de entendimento- coisa inédita, no desporto…). (REP?)E os outros Do Canadá, da Suécia, da França, qualquer que fosse o titular, era uma convidada muito frequente, festivamente saudada logo na portaria, onde não precisava de mostrar cartão – em todos os casos um relacionamento muito ligado às migrações. Três países a que em ligam laços especiais, a Suécia e o Canadá como paradigma de virtudes, a França porque lá vivi e vive a maior comunidade atual. Na Embaixada da Suécia recebi a Ordem da Estrela Polar, entregue numa bonita cerimónia. (não foi uma daquelas que se recebe numa mesa de negociações) e no Canadá um almoço de homenagem por altura da minha despedida da política. Dos muitos grupos parlamentares de amizade em que estive ativamente envolvida, contam-se um e outro país. Fui presidente dessas Comissões, por várias vezes e uma delas, no caso do Canadá, quando tinha à frente uma Embaixadora, escolhi um grupo 100% feminino. Ainda a regra da paridade não entrara em vigor e reuniões 100% masculinas eram correntes. Só assim se podia dar resposta… Quatro anos, dois Governos Em 1987 encerrei, de vez, o capítulo do meu serviço no ramo Executivo. Ao todo, cinco experiências bastante diversas, um governo de independentes, duas coligações à direita, uma ao centro e, finalmente, um governo minoritário. Pessoalmente, preferi as coligações, em que o Ministro era do outro partido - Freitas do Amaral, Jaime Gama davam-me uma espécie de estatuto de parceria política. Não que as divergências ideológicas existissem à vista desarmada. Foi o Prof Freitas do Amaral que me ofereceu de presente a ideia fascinante de criar coisa inteiramente nova: o famoso CCP! Instrumento principal de uma estratégia de reencontro do país territorial com o extraterritorial, olhando-se como iguais - objetivo de longo prazo, é certo, como a meta da igualdade de género e outras metas que implicam vencer preconceitos. Freitas e Gama eram dois homens inteligentes, cultos e politicamente moderados, com quem foi sempre fácil conversar e concordar. Ambos mais sábios e prudentes do que eu, deram-me, contudo, “carta branca” na execução dos projetos, começar pelo Conselho. A relação era de confiança e nem sequer me lembro de discordâncias. Curiosamente, seria com Gonçalves Pereira, um homem de feitio impulsivo e impaciente, (muito mais semelhante ao meu), que as divergências foram recorrentes. Algumas facilmente ultrapassadas, porque quando ele dizia “não”, era, em regra, possível conseguir o “sim” no dia seguinte. Ele, após um lapso de tempo, era suscetível a contraditório, repensava e mudava de opinião sem constrangimento. Isso também se passa comigo, pelo que lidava bem com tais reações. No conteúdo das soluções, acabei por ter uma margem de liberdade quase total, mas não assim no planeamento das reuniões com as comunidades – nos oito meses desse breve Executivo, fiquei pouco menos que prisioneira no meu gabinete, e, em virtude desse veto do MNE, não pude intervir na preparação co Congresso das Comunidades (isto é, nos congressos regionais realizados nos cinco continentes). O Congresso em Lisboa foi a calamidade de que falei. Suponho que nunca antes o desentendimento institucional entre Órgãos de Soberania caíra ao nível de insultos pessoais e cenas de pancaria…. Não sei se, com licença para intervir, eu teria podido pacificar os contendores. Talvez sim, talvez não, mas teria sido sensato dar uma pequena hipótese a quem, com os mesmos interlocutores e no mesmíssimo período, tinha acalmado as primeiras vagas de contestação do CCP. O meu pior Ministro foi o último. O Eng.º Pires de Miranda, especialista de negociação de petróleos do Medio Oriente e pouco mais. Ficou conhecido como “o petroleiro”. Chamava Rússia à URSS e dava despachos, quase sempre um pouco toscos, a lápis. Manifestava o mesmo distanciamento em relação ao que se passava no amplo mundo da diplomacia e aos problemas Comunidades Portuguesas. Cortou o orçamento da SECP, já de si insuficiente, de forma tão drástica, que eu apresentei, de imediato, um pedido de demissão, embora condicional: ou o Orçamento era reconstituído no prazo X, ou eu batia com a porta. Percebeu que não era “bluff” e tratou de fazer a transferência… Porém, a relação nunca mais foi boa. Na reunião de despedida (estava de volta à AR e ele seria substituído pelo catedrático da Universidade do Minho João Deus Pinheiro), quis dar um ar de sua graça, agradecendo uma excelente colaboração, ao que eu atalhei que, para mim, aqueles dois anos tinham sido uma verdadeira ordália, sem condições para fazer tudo o que podia e queria. Sobre estes “quatro anos, dois governos” podia escrever muito ou pouco. Fico pelo pouco. A constância de estratégia e de métodos, de propósitos e de “praxis”, o “invariável” superando largamente aquilo que foi diverso ou original, justifica-dizer a síntese, a simples menção do acento posto nas políticas de proximidade (ir até junto das pessoas, acompanhar a vida associativa, “ver com os meu próprios olhos”, ) e no “Conselho das Comunidades”, instituição pela qual o espírito democrático do 25 de abril chegou às comunidades do estrangeiro, dando-lhes voz, sem esquecer o outro nível de intervenção, na cena internacional, sobretudo no Conselho da Europa, onde o Portugal democrático, como grande país de emigração e diásporas, chegava com uma voz que se fazia ouvir. A 1ª Conferência de Ministros europeus responsáveis pelas migrações realizou-se em 1980, coincidindo com o meu início de funções neste domínio. Nessa data, dei prioridade ao meu périplo pela emigração e fui substituída em Estrasburgo pelo meu colega Luís Morales. Uma grande estreia portuguesa, com intervenções fulgurantes! Obviamente menos fulgurante do que o meu colega, mas não convicta, pragmática e comunicativa (ou não fosse uma “gemini” típica…) exerci a minha Vice-Presidência na 2ª Conferência, em Roma, por forma a assegurar a presidência Portuguesa na 3ª Conferência. Prevista para Lisboa, veio a realizar-se no Porto, em maio de 1987. Não foi fácil substituir a capital, “regionalizando” a localização da Conferência. Lutei em duas frentes, contra os serviços da SECP, centralista por vocação e inércia, e contra os burocratas do Conselho, que queriam apostar na capital. Venci os argumentos que aduziam, um a um: Em primeiro lugar, a facilidade de transportes. Provei que era igual: o Porto estava ligado a todas as capitais europeias. Em segundo lugar, o impacto mediático. Expliquei que a televisão, as rádios, a agência noticiosa, funcionavam da mesma forma nas duas cidades principais e a imprensa também, tanto mais que o Porto tinha excelentes jornais mais do que centenários. E, por último a segurança. Não hesitei em falar da superioridade nortenha neste campo. Já tinha havido atentados em Lisboa e no Algarve, nada de semelhante ocorrera na cidade “de onde houve nome Portugal” … Em boa hora fiz a mudança. No Porto, o acolhimento foi fantástico, com um decisivo apoio da Câmara e do Governador Civil, Eng.º Carlos Brito. A cidade estendeu-nos, positivamente, o seu metafórico tapete vermelho (ou verde, ou azul se se preferir as cores da bandeira municipal ou clubista). As reuniões decorreram no Palácio da Bolsa, no salão árabe. O Embaixador turco estava deslumbrado – sentia-se em casa, conseguia traduzir as inscrições religiosas disseminadas nas paredes do salão. O deslumbramento era, devo dizer, geral. Pela primeira vez na sua história o Clube Portuense acedeu a receber os Ministros numa sala privada. Aí foi a vez de os ingleses se sentirem em casa…Não menor sucesso constituiu o jantar de despedida numa das caves de vinho do Porto, com um “catering” esplêndido e atuação de ranchos folclóricos. Na véspera, num jantar no palacete do Ministério da Cultura, ao Campo Alegre, o serão fora animado pelo som do piano de Pedro Burmester. Os melómanos, estavam, positivamente, em êxtase…. Um Porto muito cosmopolita! A parte dos trabalhos, inaugurada pelo Presidente da República Mário Soares, não decorreu menos brilhantemente, mas, anos depois, alguns dos participantes, ainda falavam mais do que dos discursos e das conclusões, dos palácios e palacetes, das receções, e do Pedro Burmester. Muito cuidada foi também a segurança, objeto de uma operação altamente rigorosa. Os participantes deslocavam-se em autopullmans de última geração, sempre com batedores, vistosa escolta policial e uma ambulância de primeiros socorros, presença de distintos médicos do Hospital de Santo António, um dos quais, por acaso, o meu primo Mário Caetano Pereira, que foi pioneiro dos transplantes na cidade e naquele hospital. Não houve o menor incidente, nem de saúde, nem de qualquer outra ordem. Na hora do balanço, o mais alto responsável pela segurança só tinha uma queixa a formalizar e era contra mim! Grande fora a infração: tinha andado quase sempre à solta, em carro próprios, sem qualquer segurança. Ninguém se atreveu a dar-me conta do reparo. Soube pelo meu primo (“Foste muito criticada pela polícia!”). Na verdade, eu não me tinha sequer apercebido de que estava sujeita ao plano geral – julgava que a questão de segurança se punha só quanto a estrangeiros. Sentia-me seguríssima no meu país, na minha cidade e, para além das sessões protocolares, estava super ocupada com uma infinidade de assuntos, diligências, telefonemas, reuniões laterais. Passou-se tudo isto em maio de 87, suponho que já com o governo caído, depois da aprovação de uma moção de censura, da iniciativa do PRD, a que o PS se associou. Mário Soares não aceitara a alternativa de uma “geringonça” constituída por estes partidos, e promovera eleições antecipadas. Cavaco Silva ganhou, com maioria absoluta e tomou, de novo, posse em meados de agosto. Na véspera, o meu último ato como SECP foi a presença no Festival Internacional da Canção Migrante (que era já o 3º ou o 4º…). No cenário mágico do castelo de. Santa Maria da Feira, onde eu gostava tanto de brincar, quando criança- Foi uma bela despedida! Quase vinte anos em São Bento Em 1985, tinha sido eleita pelo Círculo da Europa (e, por sorte, o PSD que antes tinha sido segundo, ganhou a eleição, embora por pequena margem). Em 1987, não quis ser deputada pela emigração. Não estava disposta a tecer loas a um partido que cortara orçamentos e apoios às Comunidades. Tinha acabado de fazer 45 anos, uma boa idade para voltar à carreira jurídica, depois de quase uma década naquela “estranha forma de vida”. Porém, a Distrital do Porto veio aliciar-me para a sua lista. Quando conheci o Dr. Sá Carneiro, ele disse-me que, no verão de 79, andaram à minha procura justamente para me dirigir convite para me candidatar pelo Porto, mas eu não fora encontrada - estava de férias na Córsega. Ficou-me sempre a mágoa desse desencontro e eis que ali me ofereciam a possibilidade de realizar uma ambição bairrista. Aceite, sem hesitar! E, uma vez eleita, chegou, vindo da Comissão Política do Prof Cavaco, o mais insólito dos desafios: candidatar à Vice-Presidência da Assembleia! Seria a primeira mulher, o que tornava a recusa impossível, apesar dos meus receios quanto à capacidade de assegurar uma boa representação feminina... Seria a primeira a presidir, de vez em quando, às sessões plenárias do Parlamento, à Conferência de líderes, a Delegações parlamentares e a outras funções representativas. O cargo, apesar da sua importância protocolar (2ª figura na linha da sucessão do Presidente da República - "en cas de malheur" assumiria a presidência da AR, e, em caso de uma segunda fatalidade, a Presidência da República até nova eleição ...) era discreto e apagado, mas ao ser desempenhado por uma mulher ganhou imensa visibilidade… A minha sucessora e segunda mulher na Vice-presidência foi Leonor Beleza, após a sua saída do Ministério da Saúde (acusada num bizarro processo semelhante ao que teve de atravessar em França a Ministra Dufoix). Depois de Leonor, houve muitas, mas já caídas, tal como os homólogos masculinos, no quase anonimato. E o País teria ainda de esperar um quarto de século para eleger uma Presidente da AR, Assunção Esteves, escolhida também pelo PSD, que era contra as quotas e privilegiava a aposta no exemplo de “mulheres exceção” (não é o ideal, mas é melhor do que nada e dá louros partidários). Na verdade, foi uma feliz segunda escolha, depois de falhar a eleição da primeira, que recaíra no médico e presidente da AMI, Dr.Nobre. Assunção já anteriormente na lista das pioneiras como Juíza do Tribunal Constitucional. Foi nessa legislatura (1987-91), que a conheci, uma muito jovem jurista que brilhou no plenário durante o processo de revisão constitucional de 1988/89, a par de outro jovem constitucionalista não menos brilhante (antes pelo contrário). António Vitorino de Almeida. É talvez dos meus tempos de assistente de Direito em Coimbra que me vem o entusiasmo pela descoberta de grandes promessas de futuro jurídico e devo dizer que aquele “bloco central de talentos” deveras me deleitou. Foi, de resto, uma legislatura com momentos vários de deleite, protagonizados, sobretudo por Natália – fica para a história da contundência parlamentar o seu “truca-truca”, mas não só, a ponto de qualquer orador evitar o debate com ela, podendo dizer.se que sempre que podiam “desertavam” – e por Francisco Sousa Tavares – recordo o seu habilmente sinuoso discurso em prol da criação do Concelho de Santo Tirso, contra a posição oficial do partido, ou a sua invetiva a um antigo governante do PS ;“cale-se, seu papagaio de 5ª fila!” (em São Bento, como é sabido, as notabilidades caídas em desgraça, não tendo lugar na 1ª fila, sentam-se sempre na última, como que a dizer que “os últimos serão os primeiros”). Natália e Francisco eram os meus oradores favoritos, tanto pela construção do discurso, como pela sua expressiva interpretação – ambos usavam o hemiciclo como o palco de um grande teatro. Para além disso eram amigos com quem sempre me divertia em conversas de corredor. Voltava a um lugar de trabalho onde fora feliz, porém numa veste muito diferente, e já não na ativa oposição aos poderes constituídos do meu próprio partido, mas, pelo contrário, como uma espécie de bandeira do seu progressismo feminista. Não que quisessem apresenta-lo como tal. Entendiam as quotas como incompatíveis com o mérito, enquanto eu penso que, bem pelo contrário, pressupõem o mérito, e constituem uma presunção inilidível de discriminação misógina no campo da política. Se as mulheres ascenderam em outros setores, em especial nas universidades, na investigação, nas diversas profissões, a sua ausência nas cúpulas partidárias só pode explicar-se por barreiras artificiais.Certo é que os meus correligionários ficavam irritadíssimos quando eu dizia que me tinham escolhido por ser mulher, pelo que estava a preencher uma quota (ainda que inconfessada). Eu achava saudável e natural desempenhar esse papel, como fizera no Ministério do Trabalho e no MNE. Já concretamente quanto à minha competência parlamentar tinha fundadas dúvidas, mas sem fazer a tentativa não podia prova-lo. Olhando para trás, acho que, pelos padrões masculinos dominantes, não terei representado o meu género tão mal quanto temia. Era, mais ou menos, igual os outros três O pior era mesmo a presidência das sessões plenárias. O do PCP era excecional, dirigia os trabalhos com mestria e benevolência, tinha uma longa prática do lugar e uma espontânea simpatia. Eu não… pecava por excesso de rigidez e severidade na aplicação do regimento, sinal seguro da minha insegurança. De facto, no meu normal, tendo para a extrema imaginação e ousadia no campo da hermenêutica jurídica. Como uma vez, falando, em geral, da classe política emergente, dizia o Prof Adriano Moreira, citando a sabedoria popular: “Desconfiai de paredes velhas e autoridades novas: caiem-nos sempre em cima”. No alto da mesa da presidência eu, era, sem dúvida, uma autoridade nova…. Em tudo o resto estava em solo mais familiar e julgo que me saía bastante melhor – na intensa vida social, num sem número de almoços, receções e jantares nas embaixadas de Lisboa, no relacionamento externo com outros parlamentos, na chefia das delegações. E gozava de uma larga e simpática cobertura mediática. Porventura excessiva, e com indesejáveis efeitos no relacionamento, antes tão cordial, com o Presidente Vítor Crespo. Apesar de ser um político e académico de elevado curriculum, não era propriamente muito popular e começou a olhar-me de lado, como se eu andasse envolvida em manobras de bastidores. Alguma imprensa dava-se conta que ele me deixava com as “batatas quentes na mão” (sic). E, realmente, no seu entendimento das hierarquias, ou a, nº 2, servia, nomeadamente, para isso. Tal como eu, gostava pouco de dirigir os sempre imprevisíveis plenários e ainda menos os previsivelmente problemáticos - por exemplo, uma alteração de fundo do Regimento da AR, cuja discussão durou uma tarde e uma noite inteira, e que ficou a meu cargo, com alguma ajuda dos meus colegas de Mesa, entre as dez da noite e as dez da manhã do dia seguinte, no meio de um constante tumulto de oratória, em que eram mais os incidentes do que os discursos corridos. Ele foi dormir o sono dos justos e eu, milagrosamente, fui resistindo, com uma vintena de chávenas de café. A meu ver, ainda mais estranho foi não ter dado o menor destaque ao momento em que eu subi à Mesa da Assembleia pela primeira vez. Nem sequer me chamou pelo nome, fez-me um sinal, lá de cima, e eu lá fui. Era um fumador inveterado e estava na hora do seu cigarro. Pessoalmente, eu até preferia que não dessem por mim, para não ter de fazer agradecimentos. Lembro-me que estava Basílio Horta no uso da palavra, em pacífica intervenção, a prometer remanso. Porém, Natália e Helena Roseta estavam atentas. Levantaram-se, a aplaudir ruidosamente, e logo foram seguidas por toda a Câmara. Sentada no cadeirão entre os secretários (ambos e, sobretudo, o Reinaldo, felizmente com a vasta experiência regimental que me faltava), ainda mal tinha tido tempo de apreciar a vista panorâmica do hemiciclo e já o meu olhar era atraído pelo ponto central da bancada, onde Natália majestosamente se erguia. Inesquecível… O mais surpreendido com a longa “standing ovation, era Basílio, mas quando relaçou os olhos para cima, compreendeu a sua razão de ser e juntou-se ao aplauso consensual. Claro que foi a primeira e a última ovação solene e unânime na minha longa permanência parlamentar Não tinha discurso preparado, e, prudentemente, poupei nas palavras. Saiu, das profundezas do meu embaraço de tímida, qualquer coisa como: “Muito obrigada! As vossas palmas não são para mim, mas para todas as Mulheres que há muito deviam ter ocupado este lugar”. Menos de 15 segundos! Só muito mais tarde, em 2010, já noutra veste, (Vereadora da Cultura na Câmara de Espinho e responsável pelas comemorações do centenário da República), andei a ler, intensa e extensivamente, textos das nossas sufragistas e descobri que, na altura de depositar o seu mítico e solitário voto em urna, sendo muito aplaudida pelos presentes, a Doutora Carolina Beatriz Ângelo agradeceu dizendo, no essencial, a mesma coisa. De entre os comentários escritos sobre esse meu momento único na vida, o que mais me tocou foi o de Elina Guimarães (publicado, salvo erro, no DN do dia seguinte). Agradeci-lhe com um pequeno cartão e recebi dela uma carta muito gentil, escrita com a letra já trémula de uma idade avançada. Guardo como verdadeira relíquia, que é, o escrito da última feminista viva da sua geração. Da vez seguinte que a minha presença na Mesa da presidência fez manchetes, o motivo não podia ser mais díspar. O “escândalo Cicciolina”! A vedeta “porno”, que acumulava a profissão menos decorosa com um mandato de deputada italiana, veio a Lisboa dar espetáculo e nada melhor para o promover do que um apontamento de antevisão, tipo “film trailer” no cenário VIP de São Bento. Ainda hoje não sei como tal coisa pode acontecer. A esta distância o aspeto lúdico supera tudo o mais, e recordo a sucessão do “filme” que todos protagonizamos, a rir, irresistivelmente. Na altura, não achei graça nenhuma. Antes de mais, porque houve a mais estranha cumplicidade do responsável dos serviços da Assembleia, que não informou a Mesa, como devia, da presença de uma visitante, porque, regimentalmente, o acesso aos camarotes VIP tem de ser autorizado pelo Presidente. Eu teria mandado averiguar tudo isso, de imediato (“dura lex, sed lex”), mas o Prof Crespo, eminente químico e brando político, preferiu abafar o caso Cronologicamente, foi este o desenrolar dos acontecimentos, tal como os vivi: apercebi-me de uma súbita tensão na sala, enquanto o Reinaldo segredava, discretamente. “A Cicciolina…Manuela, olha!”. Eu, furiosa, com a invasão de camarote pela visitante “clandestina”, respondi: “Não olho!” E fitei a bancada em frente, firmemente, mas por pouco tempo, pois a agitação de cabeças atingiu um novo pico na bancada, enquanto um CDS (Nogueira de Brito, talvez) se levantava, gritando um protesto. Qualquer coisa forte como “Indignidade”. Quando olhei, já um vulto branco batia em retirada. A mulher vestia o fato de trabalho de “artista”, não um “tailleur” de parlamentar, ou seja, vestido comprido e decotado, coroa florida a enfeitar a cabeça e um ursinho ao colo – razão mais do que suficiente para lhe barrar a entrada… Com a minha voz mais fria, que era sempre a minha em ocasiões quentes, disse apenas: “Está interrompida a sessão”. Lá em baixo, a barafunda era total, extravasava do hemiciclo para os “Passos Perdidos” e os corredores. Dei 15 minutos para acalmar os ânimos, em particular os do CDS e a euforia de Natália, enquanto fui ao gabinete do Prof Crespo, saber se queria ser ele a retomar os trabalhos. Não queria aparecer e também não queria tirar consequências da quebra de protocolo. Lá fui eu, fazer baixar a pulsação dos homens excitados e das mulheres jubilosas, encerrando o capítulo secamente com mais ou menos isto: “Situação inadmissível. Esperava-se que uma deputada, nesta Casa, e vestisse e comportasse como deputada”. Era o ponto final, ali, nos media a mal reputada festa continuaria A “batata quente” que se seguiu foi bem mais problemática e arriscada, uma longa prova a dar a milhares de milhas de distância de São Bento: uma visita oficial ao Japão. A primeira na história dos dois parlamentos e a primeira chefiada por uma mulher. A visita fora cuidadosamente preparada na anterior legislatura, como sempre acontece, em se tratando do Japão. Essa anterior legislatura acabou marcada por uma guerra sem precedentes e inimaginável entre a AR e o MNE. O Presidente de estão, o Dr. Fernando Amaral tinha chefiado uma Delegação à URSS, que incluiu uma das Repúblicas Bálticas e convidara o seu amável homólogo a vir a Lisboa. Porém – um tremendo “porém”! – durante as diligências preparatórios, um anónimo diploma júnior levantou um impedimento definitivo: Portugal não reconhecia a anexação dos Estados Bálticos pela Rússia soviética! Logo, o “ocupante” soviético da República em causa não podia ser oficialmente convidado para o nosso País (quanto a outras Repúblicas, igualmente anexadas, nada havia de semelhante). O Dr. Amaral, que não pertencia à classe da rapaziada partidária e era um verdadeiro campeão da ética e da compostura na política, e fora dela, não aceitou o desenterrar de um dossier que andava esquecido há décadas, nas relações normais mantidas com os países Bálticos. Antes demitir-se da presidência do que voltar com a palavra atrás e perder a face. Graves foram as consequências políticas e institucionais, uma das quais o corte de relações com o MNE. Era duvidoso se a nova legislatura herdara o imbróglio, ou se ele estava olvidado em memória curta. Na dúvida, o Prof Crespo, receando a hostilidade da nossa Embaixada e melindres de vária ordem, optou por mandar para a frente da eventual tormenta a sua substituta… Eu! Inevitavelmente eu. Era uma missão de risco e de peso, levava na comitiva os líderes parlamentares dos maiores partidos, PSD (Correia Afonso), PCP (Otávio) e CDS (Narana). O PRD enviava um Vice-Presidente (Rui Silva). Ainda em Lisboa, já eu estava em muito amigáveis conversações com antigos Embaixadores portugueses no Japão, que me deram preciosos conselhos. Houve um que me recomendou que cuidasse da apresentação dos presentes, pois um embrulho vistoso importava mais do que o conteúdo. E todos me recomendaram que levássemos muitos cartões de visita, porque havia que dar reciprocidade a constantes entregas de cartões. Ah, e sempre que recebesse um cartão devia olhá-lo com delicada atenção, antes de o fguardar e agradecer com uma vénia. Como era de prever, eu calculei bem as precisões, por largo, e, depois de passar pela Tailândia e pela Malásia, ainda trouxe um lote de volta. Os meus colegas, não. A certa altura, Narana Coisssoró disse-me: Olhe, Manuela, eu resolvi o problema da falta de cartões. Distribuo à tarde os que me dão de manhã”. Bem, imagine-se como fiquei horrorizada, achava-o capaz disso. e como o exortei, em nome da Pátria, a não pôr assim em causa a amizade luso-nipónica. E, de seguida, ele confessou que tinha feito isso apenas uma vez, e por engano… Outra das minhas preocupações foi ler Wenceslau de Morais e o não menos famoso Embaixador Janeira e com eles enchi os discursos de citações. A última precaução que tomei foi a de convencer os ilustres componentes da Delegação parlamentar a não levarem as suas mulheres na visita oficial. Não estavam convidadas e a dificuldade de separação de contas de hotel podia gerar desnecessária confusão. Como se sabe, a prática da Assembleia em matéria de viagens era laxista, permitindo a troca de bilhetes de 1ª classe para económica, a fim de que os deputados pudessem fazer-se acompanhar dos cônjuges. Não simpatizava com essa tese - certo que não tinha cônjuge, só um “ex”, de qualquer modo, por vezes, levei comigo primas/sobrinhas, mas à minha custa… No caso concreto, não quis revolucionar o processo, nem para tal tinha competência, apenas impor regras na “minha” Delegação. Não houve discordâncias. Para lá, fomos juntos e repousados no conforto hoteleiro da 1ª classe, para cá vieram todos em “roda livre” e apenas um me fez companhia – o líder do PCP. Os outros, alojados lá nos fundos do avião, nunca mais os vimos, até chegar a Bangkok, onde as “caras-metades” os esperavam no aeroporto. O nosso alto representante em Tóquio era o Embaixador Melo Gouveia, que eu conhecia bem. Homem encantador e apaixonado pelo Oriente. Em missão anterior na Tailândia foi um dos mais ativos diplomatas, estreitou as relações bilaterais, com uma série iniciativas culturais, e muitas das suas conferências, foram objeto de publicações, que nunca se esquecia de me enviar. Nada nos faltou para que a visita fosse coroada de êxito: o apoio do Embaixador, que nos acompanhou, incansável, para todo o lado e ofereceu, na residência, uma bela e concorrida receção aos nossos anfitriões (o que não foi coisa pouca, num dos países mais caros do mundo…) e a imensa simpatia nipónica. Tinham-me dito que os japoneses eram difíceis, muito rigorosos na pontualidade, muito rígidos e exigentes no protocolo e no trato. Havia quem os chamasse os germânicos do Oriente, o que não me assustava - sempre me entendi bem com alemães (primos, por afinidade, amigos, políticos). Pontualidade e rigor são muito do meu agrado. Preveni toda a Delegação: “À hora certa eu estou no encontro e os japoneses também. Quem se atrasar fica para trás”. Sabendo que eu não invento em serviço, a ameaça terá resultado, porque quase sempre compareciam a horas, embora nem sempre acompanhassem o passo rápido do grupo da frente. Onde se portavam pior era à mesa e não por inabilidade a usar os pauzinhos, porque talheres ocidentais eram providenciados. Muito à portuguesa, não gostavam de peixe cru, nem de carne crua (das vacas massajadas com cerveja, uma delícia…) e nem sequer de chá verde. Não sei como disfarçavam, porque eu, que achava tudo ótimo, evitava olhar para eles. Onde me dei conta da inadaptação deles foi na cerimónia do chá, num templo, com um monge a presidir. O chá polvilhado de pó (coisa muito agradável, tal como o chamado café turco, ou arménio, ou grego, que para mim sabem ao mesmo) era delicioso, servido em tijelas grossas e antiquíssimas, que rodávamos, imitando os gestos do monge, para depois beber em pequenos tragos. No fim, vira-se a tijela para baixo, mostrando que está vazia. O meu “timing” foi perfeito. O deles, incluindo o Embaixador, aparentemente também, sincronizados a pousarem no chão os preciosos recipientes, mas voltados para cima…cheios! Tipicamente “nanban”… Em Tóquio tivemos agenda muito preenchida de contactos oficiais, receções, almoços e jantares de trabalho, com o Primeiro-Ministro, os líderes do Parlamento e das Comissões Parlamentares –com almoço de trabalho e jantares de gala. Tudo perfeito. A Delegação excedeu as minhas expetativas, todos muito disciplinados e atentos ao modo de intervir dos japoneses - se, do outro lado os oradores eram muitos, eles intervinham, se apenas o chefe tomava a palavra, deixavam- fazer as despesas da conversação em “tête a tête” (tenho de lhes fazer este elogio, porque o contrário se verificou na principal delegação feminina que chefiei, ao Iraque, durante a guerra Irâo/Iraque, em que as colegas tomavam a palavra, sem contemplação por protocolos…). Julgo que todo o esquema da visita, até aos mais pequenos detalhes foi proposta nipónica, que nos mereceu inteira concordância. Eu apenas avancei com o pedido de uma reunião com as mulheres parlamentares, para naturalmente, fazermos um balanço da situação de igualdade – ou desigualdade. Ao que parece era coisa inédita, mas, vendo uma mulher à frente da Delegação, ter-me-ão atribuído a excentricidade, no que não estavam errados. Organizaram um almoço de trabalho, onde tivemos mais de duas horas para falarmos da magna questão e os deputados portugueses puderam mostrar-se bastante progressistas. Onde não me acompanharam foi na lição de “ikebana”, que as artistas japonesas, esplendorosamente trajadas deram a uma discípula pouco hábil. Só para mulheres… O programa estava, inteligentemente, muito centrado numa perspetiva diacrónica das relações entre os dois países, com a História sempre muito presente. Que fabulosa sensação a de estar num país de requintada Cultura, onde, talvez porque nunca fomos potência colonial, somos olhados como diletos aliados de sempre, e onde há heróis portugueses, cujos nomes lá são incontornáveis e andam por cá tão esquecidos – os Jesuítas que escreveram a primeira História do Japão, as suas primeiras gramáticas e os seus primeiros dicionários (de japonês/português), e construíram o primeiro hospital de medicina ocidental – um Luís Fróis. um João Rodrigues, um Luís de Almeida… e tantos outros. Lembrados são também os que introduziram no país as armas de fogo e, com isso, mudaram o equilíbrio de poder interno e o curso da história, sem nunca terem disparado um tiro contra um japonês – como os nossos anfitriões salientavam.. O nosso roteiro incluiu Kyoto, a antiga capital, e as cidades que são património histórico comum, Nagasaki e Omura. À frente da Câmara de Omura estava um católico, descendente dos cristãos secretos, que guardaram a religião dos mártires setecentistas, através das gerações. Na maravilhosa Nagasaki, a cidade dos Jesuítas, tão europeia no seu descer das colinas para o mar, e tão barbaramente arrasada por uma bomba atómica americana, prestámos homenagem às vítimas e celebramos um passado extraordinário, um encontro em que comércio e tecnologia se entrecruzaram com proselitismo religioso… E seria a força da propagação da fé, e não a das armas, que levou ao fecho dramático desse primeiro e memorável ciclo de abertura nipónica ao ocidente europeu. O moderno Japão recebeu-nos de braços abertos, por todo o lado onde fomos. Primeiro Ministro e Parlamento, Governadores, autarcas, académicos nas suas universidades, monges nos seus templos antiquíssimos, associações empresariais… Portugal não imagina a dimensão afetiva que tem no Extremo- Oriente e, em especial, naquelas paragens. Sabem a História que nós esquecemos… o jesuíta que escreveu a 1ª história do país, o que organizou a 1ª gramática da língua, os pacíficos comerciantes, a introdução das armas de fogo, que mudaram o eixo do poder dos senhores da guerra. Dois acontecimentos inesperados marcaram a nossa estada – um dramático, a grave doença do Imperador, o outro feliz, a vitória de Rosa Mota na maratona olímpica de Seul. Quando se espalhou a notícia sobre a saúde do monarca e a comoção nacional foi imensa. Todos os altos dignatários rumaram a Tóquio, num preito que parecia mais de natureza religiosa do que política. A partir daí sentíamos um ambiente geral de pesar e só encontrávamos segundas figuras… Estávamos em Nagasaki e já em fim de périplo. O Imperador morreu duas ou três semanas depois, já tínhamos regressado a casa e fomos apresentar as nossas condolências à Embaixada, em Lisboa. Outra faceta que pudemos testemunhar é a paixão japonesa pelo desporto. Os jogos olímpicos de Seul estavam a ser seguidos com enorme entusiasmo e o triunfo de Rosa Mota na prova maior que é a maratona fez de nós os legatários da sua glória. Até nas lojas quendo nos perguntavam a nacionalidade e dizíamos que éramos portuguesas, em vez de falar de Tanegashima falavam de “Mota, Mota!” (pronunciado “môta”). No Hotel onde a Delegação pernoitava, serviram-nos champagne “Moet et Chandon”…. O que mais nos impressionou no gesto foi sabermos o preço astronómico de um tal presente. O nosso Embaixador não estava em guerra com o Parlamento (Crespo bem poderia ter voado para o Oriente…). Estava, sim, em guerra com o MNE e queria fazer de nós bons aliados. O motivo do seu descontentamento era justíssimo: o parco vencimento e as miseráveis ajudas de custo não estavam ajustados aos espantosos preços do Japão, que batiam todos os recordes. Na verdade, os critérios de avaliação do Ministério só podem ser considerados enigmáticos. Nesta crucial questão financeira, o altíssimo nível de preços do Japão estava equiparado à vida barata da Coreia do Norte… Uma explicação possível é a equiparação ter sido fixada muitas décadas antes e manter-se por inércia. Para suscitar o nosso sentimento de indignação e solidariedade, informava-nos meticulosamente, do custo de cada almoço, de cada bebida, de cada chocolate. Tudo astronómico. Uma simples maçã equivalia, pouco mais ou menos, a um jantar no Tavares rico… Imaginávamos o custo de cada gota de Moet et Chandon e bebíamos a nossa taça de líquido milionária com um residual sentimento de culpa… Viajamos de e para Tóquio em comboios de última geração a altíssima velocidade e ficámos em hotéis sumptuosos – tudo com certeza a altíssimos preços. Não me recordo de um só momento, lugar ou pessoa a que pudéssemos pôr defeito. A parte japonesa que nos acompanhava era chefiada por um diplomata do Protocolo, que, desde a primeira hora, foi de uma amabilidade extrema, igualada pela sua competência. De princípio mais formal, depois, à medida que o programa avançava, ia-se integrando no grupo, e, por fim, já parecia um de nós. A natureza humana, a este e oeste é a mesma, e, se dermos simpatia, recebemos simpatia. Isso constatei no Japão e na África e na Oceânia e em todo o lado por onde andei. Fazer amigos era a minha especialidade. Ali, concretamente, melhor será falar no plural: a nossa especialidade, pois ninguém desafinou. Gerou-se até uma solidariedade, que eu diria quase coimbrã, académica, e nesse clima de mal contida euforia e chegaram a pregar-me partidas, numa das quais pouco faltou para eu chamar a polícia: deram sumiço à minha carteira, aproveitando o facto de eu ser muito distraída, provocaram uma espécie de caça ao tesouro em que todos procuravam o item desaparecido, incluindo os diplomatas (o português e o japonês, os únicos que estavam inocentes do conluio) e só quando eu me preparava, muito a sério e muito apreensiva, para participar o roubo às autoridades é que, no meio de grande risota, me restituíram a preciosa malinha de mão, de que as mulheres não prescindem. Mas em tudo o que foi solenidade e programa oficial portaram-se muito bem, disciplinadamente, sem interferir na condução das conversações, que me cabia. Se protocolarmente do outro lado só falava o líder, cabia-me, a mim, responder, só falavam e sem se atropelarem, quando o uso da palavra se generalizava. Não é coisa tão pacífica quanto parece, como constatei, pouco meses depois, ao chefiar uma Delegação 100% feminina ao Iraque… Dissemos adeus ao fabuloso Japão com pena de partir. Fora tudo tão superlativo e tão harmónico, o tempo dera para muito, para estabelecer pontes, mas passara a correr. Dos encontros no Parlamento trazíamos a incumbência de constituir um Grupo Parlamentar de Amizade, dando reciprocidade ao que em Tóquio já existia e fora nosso anfitrião. De Tóquio voamos para a Tailândia. A partir daí, estávamos por nossa conta, sem custos para a Assembleia. Octávio regressou a Lisboa, os outros tinham à espera as suas mulheres. Embora a visita fosse privada, mantivemo-nos ao serviço do bom relacionamento exterior da Pátria, com programa organizado por um muito colaborante Embaixador, (que voltava a desmentir os pavores de Crespo…). Fomos recebidos, com toda o devido cerimonial, pelo presidente do Parlamento e deputados das várias bancadas e tivemos uma longa conversa, em que percorremos, num relance, vários séculos de história e chegamos ao presente. Estávamos, afinal, no antigo Reino de Sião! Por cá, quem quer saber disso? Ao da minha geração, talvez, se tiverem visto o divertido filme com Yul Brinner e Deborah Kerr E, no entanto, a nossa História perdida, na Ásia, ainda rende dividendos: somos o único Estado que recebeu naquele Reino o presente se uma antiga feitoria instalar a sua Embaixada – mansão histórica, no centro da cidade, com jardins que se estendem até às margens do rio. Uma joia da coroa! Numa das extremidades confina com um luxuoso Sheraton. Bom vizinho, que para ter vistas para um jardim bem tratado tem um acordo com a Embaixada para o cuidar (se dependesse de verbas do Orçamento português, virava matagal cheio de fauna rastejante… Um outro ato de boa vizinhança é fazer grandes descontos aos hóspedes recomendados pela Embaixada. Ao preço de um quarto comum, vimo-nos em estupendas suites, com um gigantesco cesto de fruta a dar as boas vindas em cima de uma mesa. Tudo fruta de aspeto tão exótico e enigmático, que recendo confundir o fruto com a casca, inicialmente não ousei servir-me. Fiz bem. Em situação semelhante o Primeiro Ministro Cavaco Silva e Senhora (como enunciam os convites do Protocolo de Estado) ousaram – pelo menos ele ousou – e caiu em alguns enganos pouco agradáveis. Contou-me com muita graça, (note-se: o Prof. por vezes tem sua graça – e de inspiração britânica, quiçá, apurada desde os tempos da juventude em York!). Só depois viu o cardápio da fruta, com fotos a cores de cada espécie e uma descrição fiável do que se come e do que se deita fora. Esse colorido catálogo que, também eu, ao retardador, acabei por descobrir, foi a salvação. Nos meus dois dias de Tailândia dizimei, sozinha, o cesto gigante! Que experiência… não havia um só fruto que não fosse delícia de sabor incomparável. Tentadores para qualquer turista são, também, as as vendas de rua, os relógios de todas as grandes marcas “made in Thailand” a preço inconcebivelmente baixos. Aliás, para quem chega do Japão, tudo é tem essa caraterística. Só o espaço na mala nos impedia de comprar mais e mais. No país seguinte, a Malásia, o mesmo panorama de mercado de rua ou de loja. Para Koala Lumpur o grupo reduzira-se, já só éramos cinco, Jorge Lacão, Rui Silva, as esposas e eu. Narana Coissorá e Correia Afonso haviam partido para a sua Goa ancestral. Na capital nem chegamos a entrar. Esperava-nos, para nos levar a Malaca, o Padre Pintado, pároco da Igreja de São Pedro e distinto estudioso da história e do dialeto luso –malaio. Já o conhecia de congressos em Portugal, com o seu espírito missionário e a sua paixão pelo Oriente. Um homem caloroso, sempre bem-humorado, muito querido pela comunidade de descendentes dos velhos navegadores. Tivemos direito a tudo, receção, discursos, abraços e dança – o grupo folclórico “Tiru-liru” - num mundo que ainda sobrevivia na pequena comunidade piscatória instalada à volta do “Portugueses Settlement”, que era cartaz turístico, com vida genuína. O foco inicial eram eles, os nossos irmãos de sangue e língua, misturados em outros, mas resistentes, que se contam entre os que Sena canta nas estrofes proféticas: “Solúvel e insolúvel este povo/Na memória dos outros e na sua mesma”. Porém, a inesperada e esplêndida receção do “Chief Minister” de Malaca alterou-nos os planos. Ele tinha estado em Portugal no ano anterior e fora meu convidado ainda na veste de SECP. Julgo que a nossa hospitalidade tem o seu “quê” , por regra, de oriental e a minha, em particular, era sempre cordial e expansiva, porque nasci expansiva e não há como mudar isso .E, talvez por isso, ele quis retribuir, em grande. Fomos convidados de honra, despida a veste de turistas “ocidentais”, para representarmos a descendência dos Gamas e dos Albuquerques. Nem no Japão, os sinais exteriores da nossa passagem foram tão exuberantes. Circulávamos com um cortejo de batedores para todo o lado, éramos convidados, dia após dia, por diferentes Ministros (Turismo, Cultura, Comércio…), para almoços e jantares, com uma agenda pensada para as relações bilaterais. A história está bem presente na fisionomia arquitetónica em Malaca, período a período, o português (em destaque o que resta da muralha, a “famosa”), o holandês, o britânico e o Governo mostrava enorme empenho em mostrar os traços de multiculturalismo que persistem na paisagem e no povo, nos seus projetos de futuro. Foi um fechar de périplo fantástico, porque tivemos “visita guiada” por especialistas que nos mostraram muito mais do que esperávamos ver, no capítulo do turismo cultural e nos vimos embaixadores de ideias de colaboração possível. Pena que, do nosso lado, não tivesse havido quem as quisesse apropriar. Na verdade, enquanto estive “no ativo”, a única entidade que olhou para Malaca e fez alguma coisa de útil pela comunidade foi a Fundação Calouste Gulbenkian… A comunidade, sobretudo no pequeno reduto piscatório é, nesta passagem tão feliz, a recordação mais emotiva numa girândola de encontros afetivos. Depois de termos estado na grande festa com que nos receberam no “Portuguese Settlement”, alguém sugeriu que voltássemos lá, para tomar um café, acompanhado de um pastel de nata, no ambiente de todos os dias. Às 10h00 de uma manhã de meio de semana, eram poucos os frequentadores da nossa praça. Gozando o sol e o calor, saímos em direção ao mar, e, nesse preciso momento, cruzamo-nos com dois pescadores regressados da faina. Reinava a boa disposição e conversávamos, descontraidamente, em voz alta. Ao ouvirem a sonoridade do português, os homens correram para nós, de braços erguidos, como se fossemos mensageiros providenciais, a dizerem, na sua fala antiga que chamam o papiamento “Kristang”, tão finamente rendilhada e ainda tão percetível, qualquer coisa como:” Temos aqui, hoje, a nossa gente!”. Um abraço tão sentido, uma alegria tão natural levou-nos, de novo, às lágrimas. Talvez nunca, na história das delegações parlamentares, tão abundantes lágrimas de comoção tenham sido vertidas! Este encontro ocasional era a prova provada de quanto a receção da véspera fora a expressão de sentimentos de afeição profunda e genuína, de laços de família que resistem a 500 anos de separação. E assim regressamos a São Bento só com boas notícias para dar. De Tóquio chegara, entretanto, uma missiva do Embaixador altamente elogiosa. A leitura do seu teor em pleno hemiciclo fechava, em definitivo, o caso bélico AR/MNE herdado da legislatura precedente. Estava cumprida a minha missão de cobaia, e aberto o caminho para o Presidente Crespo chefiar as futuras Delegações Parlamentares. Em todo o caso, ainda sobraram para mim duas presidências., uma à Hungria ainda soviética, mas já surpreendentemente liberal e à Suíça, esta em situação híbrida, eu comecei, a meio chegou o Professor e tomou a “braçadeira de capitão”. Foi, sem dúvida, a mais fácil das minhas incumbências parlamentares, essa de manter diálogo externo e harmonia no interior do grupo, maioritariamente masculino. Em alguns países, a presença de mulheres ainda pareceu ser inesperada – e não tanto no Extremo Oriente, mas no centro da Europa. Nestas ocasiões há sempre troca de presentes e, na Suíça, não fiquei muito surpreendida ao receber, tal como os meus colegas, um relógio de homem… Para além de um sinal da normalidade da ausência feminina, nada mau, levava um belo “souvenir” da viagem para o meu pai”. Entre os funcionários que nos acompanhavam havia uma senhora, e foi evidentemente a única a aperceber-se da pequena “gaffe”. Muito expedita, na hora da despedida, comprou numa loja do aeroporto um lindíssimo lenço Cartier, que me veio oferecer dizendo: “Não está certo terem-se esquecido de lhe dar um relógio de senhora”. Quando uso o lenço, e uso bastante, lembro-me daquela jovem helvética atenta como eu a pequenas discriminações, que, afinal, revelam, o estado da questão… Na menos chamativa qualidade de membro de Delegação participei, por indicação partidária, em várias outras visitas oficiais. A mais espetacular foi certamente aquela em que estive na enorme comitiva do Presidente Soares pelas Repúblicas soviéticas da Rússia, Arménia e Azerbaijão. Aí o meu estatuto de VP só veio ao de cima para me dar canseiras. Os outros deputados entregaram-me a chefia da componente parlamentar, ou seja, ser a sua porta-voz para protestar. E não faltou ocasião para isso Embora se vivesse já o tempo de degelo de relações Este/Oeste, com a ascensão de Gorbatchev ao poder, a. Instituição parlamentar na escala de valores soviéticos não subira ao patamar que ocupa nas nossas democracias do ocidente europeu e, consequentemente, nós éramos sistematicamente marginalizados pelo Protocolo. O Doutor Soares estava atento a esses anacronismos e, numa intenção pedagógica, levou com ele uma comitiva parlamentar tão numerosa e pluripartidária quanto possível. Em vez de seguir o critério da proporcionalidade de representação, a Assembleia, respeitando o seu pedido, escolheu um membro de cada um dos grandes, médios ou pequenos grupos parlamentares. E, naquelas Repúblicas de partido único, deleitava-se, apresentando cada um dos partidos ali presentes, através dos deputados, da esquerda mais à esquerda, até à direita mais à direita, em todas as gradações...Porém, o protocolo local, em vez de nos distribuir em, pelo menos, três "limousines" pretas, acumulava-nos numa vulgar carrinha ou "mini-bus", que, inevitavelmente, ocupava a cauda do cortejo automóvel, como o tradicional "carro-vassoura" no ciclismo. Depois, como o Presidente se recusava a iniciar qualquer cerimónia sem a nossa presença, era uma correria para chegarmos junto dele. O atraso parecia culpa nossa. Tanto protestva com o protocolo anfitrião (perante a total inércia dos diplomatas portugueses) que resolvia o problema, mas só ao 2º dia, em cada uma das três Repúblicas. E não me queixei nunca ao Presidente, para não despertar a sua justa ira... Bem vistas as coisas, foi uma viagem esplêndida, apesar de, ao degelo das relações internacionais, não corresponder o degelo climatérico. Mal conseguíamos caminhar no chão branco de Moscovo. Logo no aeroporto, assisti a várias quedas e exercícios de patinagem, que são sempre muito divertidos de presenciar. Eu própria, tão habituada às neves do inverno parisiense e norte-americano, me vi a escorregar perigosamente durante os dias que passei na Rússia - até voarmos para a Arménia e Azerbaijão. O que limitou solitários passeios a pé, e de metro, que são o meu forte. Fiquei confinada aos percursos coletivos, apoiada nos transportes. Claro que o Doutor Soares procurava, ele também, ver coisas ao natural, fora da programação do protocolo – cafés, livrarias… e, por vezes, conseguia e lá estávamos nós, os parlamentares, com ele. Isso desesperava os burocratas soviéticos, que, em tudo o mais, davam provas de boa vontade – como no curioso exemplo de um dos convidados presidenciais que, em Helsínquia, onde tínhamos pernoitado, num primeiro "stop" em rota, dormira pesadamente e perdera o avião presidencial! Nem sequer o passaporte tinha com ele (estava nas mãos de um qualquer jovem diplomata), pelo que entrou em Moscovo, num voo regular, com um simples cartão de visita. Houve um sem número de momentos inesquecíveis nesse longo périplo… Sempre gostei muito de acompanhar a Dr.ª Maria Barroso e, uma vez por outra, troquei o programa do marido pelo dela. Perdi, por exemplo, uma visita a um poço de petróleo para presenciar um evento curiosíssimo da agenda feminina: uma passagem de modelos no Azerbeijão! Digna de figurar no “Baile dos Bombeiros” de Milos Forman. A minha maior contribuição durante esses dias não foi o fazer o “braço de ferro” pelo direito às nossas “limousines”, mas uma chamada de atenção, em voo. Ia à janela, muita atenta às reconfigurações das nuvens no preciso momento em que, de entre elas, irrompeu o cume branco do monte Ararat. Gritei: "Ararat! Que beleza!" E o Presidente e toda a gente. ao menos na cabine VIP, pode contempla-lo, reverentemente. Na verdade, eu podia ter conhecido a URSS cerca de dez anos antes, na comitiva do Primeiro-ministro Soares, durante o governo do "Bloco Central”, Nessa altura, entre 83 e 85, morreram, um após outro, vários líderes soviéticos e o Doutor Soares foi aos seus sucessivos funerais. Estava ele na primeira dessas solenes exéquias, quando o Doutor Mota Pinto (Vice-Primeiro Ministro e Ministro da Defesa) me informou: "Nem a Manuela imagina do que eu a livrei! Deste funeral de Moscovo - horas e horas, de pé, com um tempo gélido! O Primeiro-Ministro sugeriu o seu nome, em representação dos membros do governo do PSD, mas eu disse-lhe que do PSD não ia ninguém". Contou-lhe ainda que o Doutor Soares lhe tinha dito que preferia que fosse eu a acompanhá-lo, porque me achava divertida. Fiquei muito contente, porque a recíproca era mais do que verdadeira – eu achava-o divertidíssimo, e teria sido voluntária nessa comitiva, arrostando com as intempéries moscovitas. Na minha fase de Vice-presidência da AR viajei muito para além das três Delegações parlamentares à Ásia e Europa que chefiei. Foram em número muito superior as visitas a longínquas comunidades portugueses, sempre com o beneplácito do Prof Crespo, decerto lembrado dos seus tempos de doutorando da Califórnia. Estava de acordo em que andasse pelo mundo em representação da “Casa”, desde que fosse a expensas minhas, ou da entidade anfitriã. Também recebi diversos convites de Embaixadas a países particularmente interessantes (em si e pela sua situação de periculosidade potencial ), como o Iraque, em guerra com o Irão, ou Israel. Neste somatório de convites e oportunidades de contacto internacional, os mais inesperados decorreram da minha presidência da Comissão Parlamentar da Comissão Feminina. Embora as minhas funções, em regra, me afastassem da participação em outros trabalhos parlamentares, o líder da bancada do PSD, Montalvão Machado, talvez por achar que eu era a feminista mais “high profile” ou por supor que não seria tarefa demasiado absorvente, instou-me a assumir a chefia da dita Comissão. Porém, como não é do meu feitio fazer coisas pela metade, nem perder oportunidades de agitar águas paradas, lancei mãos à obra. Tinha um muito bom “plantel”, como se diz em desporto: uma Natália (PRD), uma Helena Roseta (PS), uma Luísa (PCP)… E, no meu próprio quadrante partidário, um berbicacho a resolver: uma maioria de homens, que escolheram a Comissão para gozar, com graçolas de meninos de liceu. Quanto a ter uma boa quota masculina naquela comissão, eu, sendo adepta da paridade, regozijava-me, mas não para fazer daquelas figuras. Dentro da sala de reuniões fui advertindo e travando quanto pude, o que ficou manifestamente aquém do desejável, e cá fora, convidei-os, todos (eram dois ou três), a pedirem a saída definitiva. O que eles fizeram. De seguida, tratei da substituição na ala sindicalista do PSD, que não brincava nestas matérias. E começámos, enfim, a remar, todos, para o mesmo lado. Estávamos num domínio em que a cooperação internacional, se procurada e aceite, era intensa. E nós não hesitamos em ter voz em reuniões e fóruns internacionais. Em outros campos se poderia, é claro, fazer o mesmo, mas a nossa Assembleia mantinha-se muito fechada sobre si… E, por isso, rapidamente o nosso dinamismo destoou no conjunto, com ampla participação em conferências do Conselho da Europa, da EU (por exemplo, a convite da presidência espanhola, ao contrário da nossa, muito ativa neste terreno), da OIT, de Embaixadas (do Iraque, de Israel, já referidas, da URSS…). Lembro-me que a Luísa, do PCP, esteve no Afeganistão, ainda em plena guerra... Nada parecia poder travar-nos, mas isso ia mesmo acontecer. Havia quem não gostasse de tanto palco e êxito coletivamente femininos. O PSD, maioritário, no ano seguinte, impôs uma reestruturação das comissões para eliminar a da Condição Feminina… Em Portugal são assim as maiorias absolutas – quero, posso e mando… A deriva direitista do partido estava em marcha, desde o fim do Bloco Central. E, como é sabido, as questões de género não são gratas a nenhuma espécie de direita, com a extraordinária exceção do Prof Marcelo Rebelo de Sousa, que já então era um defensor “à outrance” do sistema de quotas. Como eu, que não sendo de direita, não sou exceção. A Comissão foi liquidada e só ressurgiu no fim do “cavaquismo”, com Guterres, que, ao mesmo tempo criou o pioneiríssimo Ministério da Igualdade, entregue a Maria de Belém. De nada valeram, então, os nossos protestos. O Prof. Crespo estava na jogada, e, quando, no seu gabinete, bradei contra a eliminação, deu-me a pior das justificações: o facto de a Comissão “das Mulheres” ter muito mais contactos internacionais do que a Comissão de Negócios Estrangeiros causara mal-estar – engulhos no brio masculino. Ou seja: se a nossa Comissão fosse invisível, irrelevante, teria tido vida mais longa… À macha liderança parlamentar não ocorrera nivelar por cima, pôr a Comissão de Negócios Estrangeiros a funcionar do mesmo modo. E não era difícil, bastava recorrerem a uma das enérgicas Deputadas da Comissão extinta. De qualquer modo, aproveitámos, em cheio, a nossa breve existência (talvez dois anos, já não me recordo de datas precisas). As duas saídas mais badaladas foram as visitas das delegações femininas à URSS e ao Iraque. Não estive na primeira, porque o Embaixador soviético contactou-me diretamente para conseguir, via Comissão, uma resposta positiva, mas quis reservar-se a faculdade de escolher as convidadas, entre as quais me não contava. Era coisa invulgar, embora não inédita e eu dei todo o meu apoio. Quem foi, adorou, até porque Natália estava na lista e, com ela, tudo tomava uma outra dimensão de aventura… A do Iraque não foi menos espetacular e teve mais enfoque mediático, porque estivemos em teatro de guerra. A guerra Irão- Iraque. A nossa ida tinha o significado inequívoco de uma tomada de posição por um regime laico e defensor da igualdade de mulheres e homens contra o radicalismo misógino e abjeto dos “aiatolas”. Em causa estavam, não somente um mas vários conflitos bélicos e um deles, o que, para nós, sobrelevava os demais, era uma “guerra de sexos”. O desfecho da guerra teria, para as mulheres, consequência muito diversas conforme o vencedor! A Federação das Mulheres Iraquianas (General Federation of Iraqui Women, GFIW) era a nossa anfitriã em Bagdad, para um programa de uma semana inteira cheia de contactos oficiais e de visitas no terreno. Partimos a 6 de abril de 1988, num Boing 747 que ligava o Rio de Janeiro a Bagdad com uma paragem em Lisboa. Éramos cinco e a 1ª classe ia por nossa conta… Talvez o “super Boing” transportasse no seu imenso bojo mais do que a inocente bagagem dos passageiros, mas sobre isso não alimentávamos suspeitas. Chegámos com enorme atraso e foi já de madrugada que nos alojaram no Al-Racheed Hotel, que a guerra do Golfo havia de tornar mundialmente famoso. Já era um cartaz da moderna Bagdad, que, devo dizer, arquitetonicamente não me deslumbrava. Suponho que o hotel era o melhor, todo o pessoal impecável, os nossos aposentos enormes. Vista retrospetivamente, aquela foi a “viagem de todos os perigos”, aos quais, porém, com a nossa boa estrela, escapámos incólumes. Logo na primeira noite uma cena de guerra se desenrolou em frente às janelas dos nossos quartos. Aviões inimigos, reais ou imaginários – o que está ainda por averiguar, embora eu me incline para esta última hipótese – cruzaram os céus de Bagdad e desencadearam uma reação bélica frenética, com um ruído ensurdecedor de baterias antiaéreas e o espetáculo visual das balas tracejantes. Toda a cidade acordou, todas as deputadas portuguesas, também. A exceção fui eu. Dormi tranquilamente. Só posso testemunhar o que as outras me contaram ao pequeno almoço… A reação mais comum foi a de buscar refúgio debaixo das camas, ou num recesso interior, mas uma houve (a social-democrata de Santarém Natalina Pintão) que abriu a cortina, de par em par, e assistiu ao espetáculo, que nos descrevia, descontraidamente, como um deslumbrante “fogo de artifício”. Ao fim da manhã dessa 5ª feira, 7 de abril, quando regressávamos das reuniões ao hotel, um míssil atingiu a cidade aí a uns 500 metros de distância. Para míssil é muito perto…. Levantou-se sobre a cratera aberta pela explosão uma densa coluna de fumo e sentimos um abalo de tremor de terra. E nada mais. A guerra Irão Iraque abeirava-se do termo, entrava em modo de poupança de munições. Disseram-nos que já só esperavam um míssil por dia. A pergunta obrigatória que fazíamos era:. “Já caiu o míssil, hoje?” Se sim, ficávamos à vontade, porque o dia estava ganha, não vinha a caminho mais nenhum Até à nossa partida, numa 4ª feira, 13, não presenciamos mais nada de bélico. Sossego completo. O ser humano a tudo se habitua. Não sentíamos medo, vivíamos o novo normal. As ruas eram pacíficas, as pessoas amabilíssimas, comerciantes, empregados de restaurantes e cafés, transeuntes…. Olhavam-nos, sorriam, talvez com saudades dos turistas, que, em tempo de mísseis pelo ar escasseavam. As mulheres andavam vestidas como nós, de saias pelo joelho (nada de véus ou de burcas, excetuando uma ou outra nos subúrbios, nas zonas rurais). Muitas eram as que circulavam sozinhas, a pé ou de carro… Saddam, laico e socialista, foi o grande “modernizador”, o Ataturk iraquiano. Ditador, sim, com certeza, como praticamente todos à sua volta, naquela zona do planeta. Porém, como homem-bandeira da tolerância religiosa e da emancipação das mulheres, marcava pontos face aos seus iguais na repressão e na violência contra os opositores. Como eles, impunha o culto da personalidade. Não havia loja nem lojeca que não exibisse a sua foto na parede. Ele estava por todo o lado, em variadas poses e indomentárias, de farda verde, ou de fatos sobriamente ocidentais, com ou sem óculos “Ray-Ban”…. Para nossa sorte e deleite estético, um homem fotogénico, agradável à vista! Com um pouco de boa vontade, comparável ao “Che” dos posters da “Cité”, de Paris, anos sessenta. A nossa “entourage” era maioritariamente feminina – as dirigentes e militantes da Federação que nos acompanhavam para todo o lado não se distinguiam pelo fulgor intelectual, nem pela abertura de espírito. Eram “malta” de cartilha e slogans, como também há por cá em todos os partidos, mas as das profissionais que encontramos em lugares de topo deixaram-nos muito melhor impressão. Entre as mulheres, como entre os homens o Iraque de Saddam Hussein mostrava-se como um país de gritantes contrastes, lado a lado o melhor e o pior conviviam…. No grupo das nossas vigilantes guias, o melhor encarnava, inteirinho, numa das intérpretes, que era uma senhora culta, pensante, independente e cosmopolita. Não tinha ligações partidárias, era casada com um médico proeminente e, sempre que sozinha connosco, falava à vontade. Ajudou-nos, de uma forma convincente, a compreender as contradições do regime, sem menorizar a força reformadora de Saddam no que respeita a imposição de novos paradigmas dos papéis de género. Um exemplo simples: pegar numa criança ao colo em público era tarefa de mulher, imprópria de macho que se prezasse – até ao dia em que o grande líder se deixou filmar para a televisão, segurando um bebé nos braços. No dia seguinte, os iraquianos, vestidos à civil, encheram as ruas com os filhos igualmente nos braços. Porém, não os militares, que viam na farda impedimento absoluto a um gesto tão familiar. Isso até ao histórico momento em que o ditador surgiu no grande ecrã fardado a rigor, pegando em meninas e meninos que o rodeavam. A partir de então, os pais em uniforme imitaram-no de imediato…. Virou moda, definitivamente. Assim era em tudo… mimetismo, e obediência cega, ajudada, para os mais renitentes, pelos métodos brutais com que a polícia e o exército impunham a ordem “saddamiana” dentro de fronteiras. E assim se mudavam não só leis costumes, como, também, decisões do foro íntimo. Durante a nossa semana em Bagdad, constatamos uma percentagem espantosa de jovens mulheres grávidas, incluindo entre as que nos acompanhavam. Até a presidente da Federação, que já se abeirava da meia idade, e nos parecia simplesmente uma senhora gorda, estava de esperanças e, por isso, desmaiou a meio de uma reunião connosco… A guerra ceifava homens, o regime preparava o futuro, de guerra ou de paz, pela reconstituição do tecido demográfico… na geração seguinte. As mulheres respondiam ao apelo, retribuindo em filhos um estatuto de direitos raro naquela parte do mundo. Coitados dos bebés de oitenta, hoje, os que sobreviveram já quarentões… que medonho futuro lhes coube em sorte, depois fatal invasão de Bush (ou do mentor Dick Cheney…) Gostei tanto do Iraque e daquele povo amável e acolhedor, que, por alturas dessa nefanda guerra que mudou o mundo para pior, me senti sempre na obrigação de levantar a voz, fosse em Portugal, fosse na Assembleia do Conselho da Europa para condenar o assalto americano alicerçado na mentira mais idiota. Era óbvio, que um homem racionalmente laico e politicamente prudente, como o ditador do Iraque, mesmo que tivesse armas de destruição maciça (e não tinha) nunca as usaria contra quem, de seguida, facilmente o destruiria. É que ele não acreditava na receção celeste de um comité de virgens à sua espera do outro lado… Se nós, as deputadas portuguesas, percebemos isso claramente numa viagem de oito dias, com turismo cultural pelo meio, como podia essa realidade escapar, por completo, à análise de experientes diplomatas e peritos de relações internacionais? O Iraque onde podíamos passear em segurança pelas ruas de Bagdad, e dialogar com mulheres da nossa idade, vestidas como nós, orgulhosas dos seus cargos e carreiras, já não existe, e talvez também já não exista o que restava de lugares onde a História aconteceu, como Hatra, Samarra, Babilónia, Najaf, Kerbala… Em 1988, parecia imparável a ascensão das mulheres iraquianas a lugares de relevo em todos os domínios, em alguns com índices muitos melhores do que os nossos, a começar pelo parlamento onde excediam a quota de 33%, que em Portugal a lei teve de impor, duas décadas mais tarde… O foco da nossa visita era a avaliação do estado da questão feminina no Iraque, e o roteiro das notáveis e seus campos de ação foi tão impressionante como o das cidades históricas! A Drª Najih Al-Rawi, que dirigia o “Bureau” de Investigação Científica, a Juíza-Presidente do Tribunal de Recurso de Rustafa, a Conservadora do Museu do Traje Iraquiano – um original e fantástico museu, onde, através de sumptuoso vestuário feminino, se olhava o longo curso da história no berço da nossa civilização. Ou o pioneiro centro de arte de Widad Al Orfali. Widad resistiu aos mísseis da guerra irão/Iraque, só a guerra americana a obrigou a buscar refúgio na Jordânia, levando consigo para o exílio, as suas preciosas coleções de arte. Ligeiramente menos fulgurantes nos pareceram as nossas colegas parlamentares. O “Speaker” ofereceu-nos um almoço, rodeado de um significativo número de Deputadas. Ele era um senhor cultíssimo, muito simpático, falava um inglês excelente. Elas não, pareciam perdidas na tradução. A nível do Governo, só encontramos homens – o Ministro da Justiça, o Ministro do Planeamento, um Ministro ou Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros… A esta distância não sei quem era quem, mas guardo a memória das abissais diferenças de estilo, de linguagem, de craveira intelectual – o melhor até poesia recitava, o pior pouco faltou para nos insultar, furibundo com as votações pouco simpáticas de Portugal nas Nações Unidas. Já as nossas anfitriãs pareciam todas irmãs gémeas, clonadas…. Ainda por cima, andavam sempre vestidas de verde (o discreto verde das fardas militares), ao que creio, um gesto de solidariedade para com a linha da frente. Liam todas, como disse, pela mesma cartilha. Eram convictas, para não dizer fanáticas, pouco dialogantes ou flexíveis, muito desenvoltas, mas, por vezes, grosseiras. A finesse” não fazia parte do manual de instruções. As boas recordações que do Iraque connosco trouxemos não ficaram a dever-se à sua atuação. À excelência do programa, sim, mas fica a dúvida: era delas ou de outrem (talvez mesmo da Embaixada – do Embaixador em Lisboa, que era uma simpatia). Aliás, elas fizeram o impossível para o atrapalhar. Creio que nos retribuíam uma indisfarçável pulsão antagónica. O cúmulo foi tentarem cortar-nos a última visita, e para nós a mais importante, às ruínas da Babilónia: ida cancelada por razões de segurança. Dado que o míssil quotidiano podia cair em qualquer lado e, tirando esse “pormaior”, reinava a paz e a ordem interna, não era muito plausível. Com um pouco de sorte, troquei-lhes as voltas. No almoço com o “Speaker” falei da nossa agenda no país, com genuíno entusiasmo, e logo acrescentei que o único “senão” fora a não ida a Babilónia por razões de segurança. O senhor olhou-me com espanto e a nossa malévola militante da Federação que nos acompanhava, com o medo estampado na cara, balbuciava justificações, engendradas na hora. Segunda ela, um erro de tradução que nos induzira em erro. Estava tudo preparado para seguirmos dali diretamente para a grande romagem babilónica! E, meu dito, meu feito. Fomos mesmo em linha reta do parlamento para lá… Positivamente, uma solução de 25ª hora. No dia seguinte, embarcamos no 747 da Varig, com um primeiro stop em Larnaca. E aí, sim, vivemos a mais pavorosa das sensações. Ao aterrar, foi, de novo, a predestinada Natalina Pintão, que da sua detetou um animado espetáculo. Eu, como sempre, viajava numa cochia, para poder circular no corredor e as outras dormitavam. Natalina relatava: “Qualquer coisa de muito extraordinário vai acontecer aqui. Ou alguma pessoa muito importante está a chegar. Há centenas de pessoas na pista, grande agitação, jornalistas, imensas câmaras de televisão. O que será?”. E eu, que tinha estado atenta ao noticiário em inglês, respondi: “Então não sabe, Natalina? É o avião sequestrado!” Um assalto em curso, os sequestradores ameaçavam fazer explodir o avião de não lhes dessem via verde para fugirem já não sei para onde… O mundo inteiro acompanhava a tragédia, que parecia inevitável. Num aeroporto muito pequeno, não havia maneira de passar longe daquele alvo potencialmente explosivo… Nunca me senti tão vulnerável numa semana de Iraque em guerra! E, sobretudo, tão perturbada pela ideia de me cruzar com tantos inocentes condenados a uma morte eminente. A proximidade e a visão direta da aeronave tornavam a sua tragédia mais pessoal, mais minha… Por fim, um milagre aconteceu, salvaram-se todos, mas não nesse dia... Aterramos em Lisboa sãs e salvas, depois se quatro angustiosas horas sem notícias do fatídico avião. Poucos meses depois, o Presidente Crespo voltou a entregar-me a chefia uma deleção parlamentar à Hungria – ficou-me a ideia que era tarefa que o maçava. Como o mesmo acontecia com a presidência do hemiciclo, nomeadamente quando o ambiente aquecia, eu começava a duvidar que ele gostasse fosse do que fosse no rol das suas funções. Homem de feitio muito complicado… Mal-habituada a uma longa lista de maravilhosos “patrões” lidei mal com aquele, sobretudo nos primeiros tempos. Entrei em “stress”, fui emagrecendo ao longo de meses, comecei a manifestar bizarras alergias a matérias que sempre consumira em quantidade (com queijo e chocolates), e outros sintomas que o meu amigo da América, Seabra da Veiga, temia que pressagiasse doença de Krohn - não fazia a coisa por menos, e pertencia aquela escola que confronta os pacientes com a verdade... A pretexto de uma comemoração das muitas que organizava em Connecticut, “obrigou-me” a fazer uma bateria de exames médicos na sua clínica de Waterbury, entre elas uma colonoscopia. Torturas medievais, a que não consegui escapar. Ele era a pessoa mais bondosamente teimosa que conheci, e usou, q. b., os meus pontos fracos de hipocondríaca. Ao cabo de uns dias de “suspense”, os resultados finais apontavam para uma quarentona invejavelmente saudável. E na questão “intestinal” estava classificada na categoria “AAA”… No dia em que recebi a boa nova, fui festejar, em animado grupo, a um restaurante italiano, para pôr um fim abrupto à dieta prolongada. Vi Adriano um pouco preocupado com a minha pressa de normalização, mas eu estava curada. E instantaneamente, a partir do momento em que soube os resultados dos testes médicos. Regressei à Pátria, tendo cumprido, a preceito, a dupla agenda das comemorações comunitárias e dos hospitais, gratíssima a Adriano, meu salvador “malgré moi”. Diga-se que esse excecional médico e filantropo era mais do que reincidente em operações de salvamento de compatriotas, desde a Amália a Zeca Afonso, passando por inúmeros amigos menos famosos – uma espécie de cruzamento entre um João Semana e um Eduardo Barroso, com o qual, aliás, partilhava o “sportinguismo” mais cegamente clubista. Foi através dele que conheci João Rocha, até hoje o único presidente de grande clube, cuja casa frequentei em vários e todos memoráveis jantares, na companhia de Mota Pinto e de alguns antigos capitães de abril, então já coronéis ou generais - todos leoninos. Estávamos no auge de um conflito entre FCP e SCP, com jogadores a transitarem de cidade e camisola, mas disso não se curava ao repasto. Por mim, sempre soube separar as águas da discussão sobre futebol ou política, e da ação concreta. À frente de um pelouro de governo ou enquanto deputada, nunca tratei diferentemente o meu clube e os outros clubes. Para mim, isso, além de um dever, era coisa natural. Mas como na sociedade portuguesa ninguém parece acreditar na humana possibilidade de ser imparcial, muito embora toda a gente tenha clube, muitos são os que não confessam as suas simpatias ou fazem de conta que são praticamente neutrais porque pertencem a um pequeno clube de bairro, ou se segundo plano…. Eu, logo em 1979, na minha primeira entrevista a um jornal, que, por acaso, foi “A Bola”, declarei-me portista filiada e até indiquei o meu número de sócia. Uns anos depois, um jornalista, surpreendido por tanta transparência, perguntou-me se não receava perder votos na emigração, por revelar ser adepta de um clube “minoritário” face aos rivais de Lisboa. Respondi-lhe que não, não receava, se perdesse por ser quem era, com todas as minhas escolhas afetivas, perdia. É a vida… Na realidade, não creio ter, com isso, perdido ou ganho votos. Simpatia, sim, e entre a vasta e plural comunidade da bola redonda. Quase todos achavam graça ao facto de uma mulher gostar tanto de futebol, o que hoje é normalíssimo, mas há meio século, ainda não era. Além disso, eu aceitava por igual os convites vindos das diversas cores. Nos anos 80, uma das associações mais dinâmicas em todo o Canadá, o Benfica de Toronto, reclamava com invulgar frequência a minha presença e eu lá ia, sempre muito saudada, apesar de dizer: “Este Benfica de Toronto é o único Benfica de que eu adoro!” Também o Sporting de Toronto era uma coletividade cultural em ascensão e, na década seguinte, organizaram um jantar comemorativo em que participou a direção do SCP em peso, mais algumas famosas vedetas como o muito saudoso Artur Agostinho e lá fiquei eu, à mão direita do Presidente Roquette! Ainda por cima, vestida de vermelho… o único fatinho que, em fim de digressão canadiana, estava apresentável. Havia um outro, mas era azul e uma superstição antiga impedia-me de o usar em dias de jogo do meu clube (o que era o caso, nesse domingo). Na verdade, a última vez que fora toda de azul e branco equipada ao Jamor, o FCP tinha perdido a Taça por 3-0… Nunca mais repeti a cor. Todavia, incomodava-me estar entre aquela multidão tão verde, e na mesa de honra, vestido com a cor do inimigo. Expliquei as razões, que por todos terão sido entendidas, porque a superstição é assaz comum naqueles terrenos. E logo acrescentei, um toque hilariante: “Aliás, este fato não é bem vermelho, é mais “bordeaux”. Obviamente não era, e logo Duque, o VP do SCP, com muito humor, corrigiu. “É semi-bordeaux!” De qualquer modo, quando fui discursar ao palco, e entregar uma medalha ao presidente, fui longamente aplaudida…. Pouco tempo depois (ou antes, já não me lembro da ordem de precedência de eventos tão próximos), e exatamente no mesmo imenso salão, que pertencia ao sindicato da construção civil, onde os portugueses são poderosos, fui convidada pelo FCP. Não me posso queixar de falta de simpatia ou de aplausos da audiência, que também rondava um milhar de adeptos, mas, como por sinal vi-me relegada, pela organização portista local, para uma mesa de canto, em ostensiva infração protocolar, pois na mesa de honra, ladeando Pinto da Costa, estavam autarcas locais. Nestas situações, não “faço feio”, a menos que adivinhe uma intenção persecutória, ali, com toda certeza, ausente. Não reagi, mas registei, talvez por ter passado tantos anos no MNE, sempre atenta a (importantes) minudências protocolares, para que não ficasse na memória dos meus próprios convidados a marca de uma gafe medonha (era matéria em que, excetuando o superlativamente competente Embaixador Jorge Preto, eu nunca confiava em critério alheio). Até o futebol, devo confidenciar, conseguiu inserção na minha multifacetada história de atritos com o Prof Crespo. A propósito das retumbantes vitórias internacionais do FCP. Nesse ano de 1997, o Porto de Artur Jorge ganhou a final da “Champions” contra o Bayern de Munique, considerado o melhor clube não só da Europa como do mundo, e eu apresentei um singelo voto de congratulação para apresentar no plenário. Ora todos os votos passavam pelo crivo presidencial (levados por ele à Conferência de líderes, suponho). Chamou-me a capítulo e comunicou-me que ia vetar a iniciativa. Entendia que a “dignificação” parlamentar passava por mais rigor na filtragem de homenagens e coisas afins, que estavam caídas em excessos. O futebol era um dos casos mais evidentes, por ser atividade indigna de um gesto de aplauso da vetusta instituição. E nada melhor do que abrir o precedente num caso concreto, em que a proponente era do PSD, partido que ficaria reverentemente calado. Debalde protestei contra tão espantosa subvalorização do desporto (espantosa no seu sentido castelhano!), argumentando que, se o Presidente da República podia o “mais” (condecorar clubes, dirigentes e praticantes), a Assembleia poderia o “menos”, ou seja, mostrar o seu preço por um simples gesto simbólico de reconhecimento. De facto, o PSD não reagiu – e estar em causa o FCP facilitava a vida ao Prof. Crespo, ao contrário do que aconteceria se fosse um dos clubes da capital. Isso mesmo me dizia o único jornalista parlamentar que era “dragão” como eu… Inesperadamente, por fim, ganhei essa guerrilha, visto que o FCP ganhou, logo depois, a Taça Intercontinental, nome dado ao campeonato do mundo de clubes: coisa inédita no futebol português. Eufórica, tratei de reescrever o voto inicial para englobar todos os feitos do “ano de ouro” portista, e Crespo teve de ceder perante tantos triunfos com eco universal…O voto foi aprovado por unanimidade, naturalmente. O mais engraçado é que, no ano seguinte, o SLB foi a uma final europeia (sem poder dar mais um título à glória pátria, porque perdeu…) e Crespo, acompanhado do Chefe de Gabinete, estava lá, tendo decidido prestigiar o evento com a sua dignificante presença. O pequeno escândalo que a aceitação de voo e bilhete desencadeou nas páginas da imprensa nacional foi divertido para quem tinha vivido o episódio anterior…. De qualquer modo, nessa fase inicial do meu trabalho com aquele chefe, ainda me irritava mais do que o devido com as suas constantes implicações do Prof Crespo. Porém, há um antes e um depois do check-up médico a que, muito contra vontade, como contei, tive se submeter-me. Depois, mentalizei-me para uma olímpica atitude de indiferença, o que foi muito mais fácil do que antevia. Realmente, é tudo uma questão de atitude…. Foi como diz o povo “remédio santo”. Tratei de aproveitar, em pleno, o que Crespo tinha de melhor: delegar abundantemente em mim, tudo o que não lhe agradava e que era precisamente aquilo de que eu mais gostava – caso de contactos internacionais, comemorações militares ou de quaisquer outras altas instituições, em regra, acompanhando o PR Mário Soares, que era sempre um prazer acompanhar. Até no 5 de outubro na Câmara de Lisboa, na histórica varanda que dá para o largo, me recordo de representar a AR, a seu lado, com Cavaco Silva relegado para a 3ª posição. De uma das vezes, lembro-me de, tendo notado que eu cantava, com entusiasmo e em rigorosa pose (embora porventura não muito afinadamente) o hino nacional, e aplaudido, o desfraldar da bandeira, o Doutor Soares comentou: “Então a Senhora Dr.ª, que é monárquica, está a aplaudir o hino e a bandeira da República?”. Resposta pronta: “Claro que sim, Senhor Presidente, para mim, são distintamente o hino e a bandeira de Portugal”. Ele riu-se e o Primeiro-Ministro talvez nem tenha ouvido, de tão compenetrado e rígido que estava, ali à minha esquerda. Pensando bem, acabei por concluir que o Presidente da Assembleia tinha alguns motivos para os seus brandos acessos de má disposição, porque era o primeiro a ter de dividir, não obviamente o poder (que continuava indiviso), mas as atenções com a sua nº 2… E é certo que acabou por me dar muito mais “palco” do que qualquer outro deu aos seus “vices”, mesmo que não fosse essa a sua intenção. A chefia da Delegação à Hungria foi um de muitos exemplos… Como todas as outras, correu bem, externamente, e no interior do grupo. Nesses três ou quatro dias de viagens quase sempre se criavam, entre colegas, laços de amizade e entendimento que anos de hemiciclo não conseguiam – para além das ideologias e das… politiquices. A única delegação em que nem tudo foi assim tão idílico terá sido a do Iraque, 100% feminina… Não quero ser politicamente incorreta, dizendo que as mulheres são menos solidárias entre si do que os homens, porque posso dar muitos exemplos do contrário, sobretudo no trabalho em ONG’s. Mas a nível destas delegações, a minha experiência pessoal foi a de que as mistas, ou aquelas em que me vi acompanhada só por homens, foram mais fáceis de dirigir, porque eles davam constante exemplo de disciplina e contenção. Elas não! Todas queriam ter a última palavra, sobretudo as mais novas…. talvez muito mais um caso de excessiva juventude, de geração, do que de género… Da Hungria só trouxe boas memórias. Era, dos países que giravam à volta da Rússia soviética, um dos mais abertos. Por ali, já sopravam os ventos da uma crescente liberdade. Ou, talvez, essa tivesse sido, ao longo dos anos, uma forma de compensar os húngaros invasão de 56, que tanto marcou a minha juventude. Conhecer a belíssima Budapest, livre de tanques soviéticos, com uma vida muito europeia nos cafés, nas lojas, num vaivém de turistas foi uma agradável surpresa. As conversas com os nossos homólogos, num Parlamento sumptuoso, também ajudaram a recriar a imagem dourada de uma progressista capital do Leste. Era mais natural esperar a sua próxima democratização, em fins de século, do que a futura regressão às políticas de um qualquer Órban, em pleno século XXI! Nas horas vagas, não resistimos a ir às compras – no meu caso, sobretudo, de discos de vinil, de excelente qualidade e a preços de saldo. País de músicos! Durante os nossos convívios, um dos colegas, o simpático deputado Herculano Pombo, que estava no auge da fama, tornou-se ainda mais simpático a meus olhos, quando nos confidenciou que, ao casar-se, tinha adotado o apelido da mulher (Cerqueira), como ela adotara o dele. Um praticante da igualdade! E, no meu universo de convívio, caso único, não conhecia nenhum outro homem que tivesse acrescentado ao seu o nome conjugal. Garanti-lhe que, quando estivesse a dirigir os trabalhos do plenário, passaria a chamá-lo Herculano Cerqueira. Ao que ele respondeu: “Não, não faça isso, porque o meu pai faz muita questão que eu use o nome dele!” Solução de compromisso: passei a trata-lo, lá de cima da Mesa da presidência, como “Senhor Deputado Herculano Pombo Cerqueira”. Da primeira vez, ele viu-se na obrigação de explicar o “Cerqueira” …. Está nas atas da sessão… Episódios mais divertidos aconteceram em cerimónias militares, o Dia festivo das Forças Armadas, e de cada um dos seus ramos. O Prof Crespo não tinha feito serviço militar e julgo que receava o impacto mediático de qualquer pequena gafe. Muito avisado…. É claro que as gafes também podiam acontecer comigo, mas em se tratando de uma mulher não escandalizariam ninguém. Não obstante saber isso, procurava preparar-me e o meu consultor nesse capítulo era o capitão de Abril, Marques júnior, do PRD. Um excelente instrutor. Só falhou uma vez, no protocolo de uma sessão em Aveiro. Tinham tido a gentileza de me informar que iria receber “honras militares”, a segunda mulher (depois da Engª Pintasilgo, quando Primeira-Ministra) a ser assim distinguida. Marques Júnior achou impossível esse “upgrade”, não acreditou que fosse “the real thing” e garantiu-me bastaria parar junto da bandeira e fazer uma ligeira vénia. Nada mais. Enganou-se… Chegada ao local, deparei com uma banda militar (com essa ou outra designação), frente à qual fui colocada, num pequeno palanque - um quadrado, talvez de madeira - de costas para a bancada, onde já se encontravam as altas individualidades civis e militares, incluindo Cavaco (depois de mim, a representante da AR, só entraria o Presidente Soares). Deduzi que, finda a peça musical, teria de fazer uma vénia, dar meia volta e dirigir-me à bancada. Até lá, os artistas e eu, ali imóvel e perfilada, com a saia a ondular ao vento, éramos o espetáculo. O espetáculo nunca mais acabava e uma interrogação começou a insinuar-se no meu espírito preocupado: estariam eles à espera de um sinal para encerrarem a exibição? Na dúvida, decidi apostar num meio termo, com uma ligeiríssima vénia, quase impercetível. Sem resultado…. Resignei-me a esperar e, após o que me pareceu uma eternidade, fez-se o silêncio, eu executei a vénia devidamente pronunciada e parti em direção à plataforma dos notáveis. Quando cheguei fui saudada com grandes sorrisos por tudo quanto era alta patente e a interpelação geral era: “Com que então queria apressar o cerimonia?l”. A minha discreta tentativa não escapara à atenção geral, e a gentileza imperava. Estava entre amigos! Era a segunda vez que a perplexidade me assaltava, na matéria não despicienda da componente musical das forças militares ou das forças especiais. Nesse outro caso, a Charanga dos Bombeiros Voluntários de Ovar. Eu ia apenas acompanhar o Vice-Primeiro-Ministro Mota Pinto, em festividades que terminavam num encontro com emigrantes do distrito, mas, por qualquer razão, à última hora, ele não pode estar presente e eu tive de o substituir numa panóplia de cerimónias. E, como ele era, também, Ministro da Defesa o primeiro ato era, naturalmente, a revista à formação dos Bombeiros. Eu, como toda a gente, conhecia esse ritual das transmissões televisivas e avancei afoitamente, até ter surgido, no meu campo visual, a mão enluvada de branco do Comandante, que seguia logo atrás de mim. A indicação apontava a esquerda, pelo que entendi que me devia aproximar um pouco mais da primeira linha de Bombeiros. Assim fiz, continuando em passo firme. Por fim, o Comandante, em vez de mímica, usou a voz: “Por favor, não esqueça a saudação à bandeira”. E, eu, também em voz baixa; “Como”? Resposta pronta: “Pára e faz uma vénia”. Essa parte correu lindamente. A mensagem da luva branca nem tanto: era o sinal para me terminar a revista, e passar ao largo da charanga, para a vénia final às bandeiras. E, como não percebi, passei revista à garbosa fanfarra! Mais tarde, contei essa peripécia a um ilustre militar, o General Firmino Miguel, meu candidato favorito à eleição presidencial de 1985, e, a meu ver, a par do General Eanes, o melhor de todos numa geração extraordinária, que foi a do 25 de Abril democrático. Ele riu-se imenso e tranquilizou-me: “Fez muito bem! Foi uma grande honra para a charanga”. Confesso a minha simpatia por militares com aquele perfil. Os contactos que tive com alguns deles, sobretudo nos tempos de Governo e nestes da Vice-presidência parlamentar, deixaram-me uma certeza de competência e fiabilidade que me parece muito menos comum do lado civil da Administração Pública…. O mais impressionante exemplo foi dado pelo Almirante Sousa Leitão, Chefe do Estado Maior da Armada, nesse ano de 85. Eu acabava de regressar do Havai, de onde trazia uma incumbência bicuda: providenciar à comunidade portuguesa uma réplica, em tamanho natural, de um padrão dos descobrimentos! Estátuas de navegadores, sim, eram um pedido assaz frequente que satisfazíamos graças à relação de amizade do escultor Joaquim Correia com a D.rª Rita Gomes e o marido, o famoso arquiteto Andrade Gomes (ele praticamente oferecia-nos a obra de arte, foi de uma generosidade enorme, sabendo que os orçamentos da SECP eram demasiado parcos. Em Honolulu, o projeto, embora focada na aventura marítima, era inédito. Destinava-se à celebração do 1º centenário da chegada dos primeiros emigrantes portugueses, ao abrigo de um convénio assinado pelos reis de Portugal e do Havai, que haveria de levar para as paradisíacas ilhas muitas dezenas de milhares de famílias, sobretudo dos Açores e da Madeira – caso raro de emigração familiar contratada pelo Estado. Note-se: paradisíaco o panorama, não o trabalho, já que os nossos compatriotas foram os primeiros europeus assim envolvidos na dura labuta das plantações de cana de açúcar…. Em favor do patronato local milita, pelo menos, uma constatação: globalmente, as condições foram cumpridas e os trabalhadores, findo o período de vinculação, puderam investir as poupanças em terra sua – quase todos, ou uma maioria. No início de novecentos já formavam a coluna dorsal do setor agrário do país de acolhimento. Ainda hoje, há cerca de 15% da população que reclama ascendência portuguesa e, nas listas telefónicas, enquanto existiram, saltavam à vista os Bettencourt, os Carvalho ou os Silva. E na história estão muito ilustres, um bispo, empresários, artistas. No Museu Etnográfico é vedeta o cavaquinho que para lá levámos, embora com a designação traduzida para “ukelele”. E, na minha primeira visita, ainda pude reunir com o “Council on the Portuguese Heritage” formado por doze ativas associações e dançar a chamarrita na graciosa igreja do Espírito Santo, doada pela Coroa do Havai, pelo tempo indeterminado em que aí se praticasse o culto. O Cônsul Honorário John Felix foi um esplêndido anfitrião, assim como a Vice Cônsul Linda Cravalho (não é gralha, os nomes nem sempre eram bem escritos e a grafia transmitia-se de geração em geração. O centenário fora celebrado em1978, com a presença do líder açoriano Mota Amaral, (que, alguns anos, depois ainda era referido sempre como “Sua Excelência Dr. Mota Amaral, enquanto eu ao 2ª dia, já era simplesmente Manuela). Porém, o monumento que testemunharia a histórica efemérida estava por fazer. Local nobre já havia, ao lado da catedral católica e face de uma das principais avenidas da cidade. Também já havia aprovação da Câmara Municipal de Honolulu para a estatuária, projeto de um escultor luso-havaiano, que assentaria na bela praça central. Mas (o problema era o “mas”…) a comunidade não se revia na arte abstrata daquele famoso autor. Eu já conhecia, de outras comunidades (como a de San Diego, por exemplo), a falta de sintonia entre a nossa emigração, por mais culta que seja, e a arte abstrata. Tudo o que não fosse o hiper-realismo um rosto ou de uma caravela, ou coisa simbolicamente equivalente não passava… O que era novo era o pedido de um padrão! Embora sem grandes expetativas, resolvi contar o meu imbróglio ao senhor Almirante, durante uma daquelas receções diplomáticas em que todos nos encontrávamos. E ele prontificou-se, de imediato, a intermediar a encomenda de um padrão! Um mês depois, voltamos a cruzar-nos em outra Embaixada e eu guardei-me de perguntar pelo padrão, pois ainda tinha decorrido pouco tempo. Foi o Almirante que vei dar-me a boa nova: a réplica de um padrão de Diogo Cão estava não só pronta e feita como a caminho do Pacífico a bordo de um navio da Armada norte-americana! E sem custos para a SECP! (eu nem queria acreditar….). Com ar muito divertido o eficientíssimo Almirante Leitão contou que, quando pediu ao homólogo americano o favor do transporte, ele se disponibilizou, de imediato, mas pode não ter entendido que era não uma pequena réplica de granito, mas um verdadeiro exemplar em peso e dimensão. Em qualquer caso, o americano não se deu por achado e não recuou na colaboração. Nessa parte, tudo perfeito. O mais complicado foi uma ideia da minha lavra. A escolha de uma mera imitação granítica como imagem da pátria numa ilha que, tanto quanto sabemos, ao contrário da Austrália, não esteve na rota de naus e caravelas, na verdade, não me satisfazia e sugeri um enquadramento do monumento que lhe desse um toque de genuinidade. E mencionei uma calçada portuguesa. A proposta foi recebida com entusiasmo e aprovada, sem contestação alguma, pela Câmara Municipal. Podia ter pedido ajuda a Lisboa. Porém, como descentralizava em tudo o que estava ao meu alcance, dirigi-me antes ao município do Porto, que logo aceitou o repto. Uma arquiteta elaborou o desenho da calçada, da rosa dos ventos e da flor de lis, (símbolos da expansão quinhentista). E, para o executar a calçada, seguiram, pela via marítima, 18 toneladas de cubos de basalto preto e de calcário em vários tons do rosa ao avermelhado e uma rosa dos ventos, e, de avião, dois excelentes artífices de uma técnica tradicional em vias de desaparição: o calceteiro principal Júlio Costa e o seu companheiro Artur Silva. Para todas estas precisões, sirvo-me de uma entrevista que os dois peritos deram, na hora da partida, a 30 de agosto de 1985, ao vespertino lisboeta. Encontrei por puro acaso esse recorte de jornal. Um feliz acaso, não só porque reavivou memórias já adormecidas, mas também porque retrata muito mais do que os rostos dos dois protagonistas, a consciência que tinham da inesperada missão que se lhes ofereceu. Uma página inteira, com uma bela composição fotográfica (grande plano dos fotogénicos calceteiros e do desenho da rosa dos ventos que, por suas mãos, iria ser implantada em solo havaiano) e um texto a revelar as suas expetativas. Tenho a certeza que uma segunda entrevista, em jeito de “relatório de viagem” teria sido ainda mais interessante. Guardo como recordação indelével as histórias que os amigos de Honolulu me contaram sobre a sua singular aventura de seis semanas de permanência na ilha - 45 dias de trabalho apaixonadamente acompanhado por uma comunidade em festa! À chegada foram recebidos como hóspedes de honra, com “lais” e abraços, alojados num simpático hotel e, pelo que sei, nunca lhes faltaram convites para lautos repastos. Embora poucos sejam fluentes em português, isso nunca foi obstáculo. Saíram do Havai como verdadeiros heróis! A entrevista inicial mostra que eles são, realmente, muito especiais: toca-nos a simplicidade com que falavam da surpresa daquele convite, a modéstia com que afirmavam não serem os melhores, admitindo que qualquer colega poderia estar no lugar deles, a franqueza com que confessavam ter medo das longas viagens de avião. Júlio Costa acrescentava: “Aconselhei-me com a minha mulher e ela é que me convenceu a aceitar”. Ambos naturais de Paredes, homens ainda jovens, na casa dos trinta anos, dedicados a um ofício de grande exigência, difícil, mas de baixos salários, antecipavam uma viagem de sonho, entre o receio e fascinação – sentimentos que talvez fossem, igualmente, comuns aos nautas que iam homenagear com o seu labor… Prepararam-se bem, “ensaiando os pormenores do elaborado “design” da rosa dos ventos em terrenos camarários”, perfeitamente conscientes do significado da incumbência. Artur Silva, o chefe do setor, é muito claro: “Vamos fazer uma obra de arte, representar Portugal e dar prestígio aos calceteiros portuenses”. Síntese rigorosa de um plano que seria impecavelmente cumprido. Bem gostaria de ter conhecido estes dois excelentes artífices, ao que obstou apenas o trepidante ritmo do meu próprio trabalho… Este projeto poderia ter saído executado praticamente a custo zero, não fosse o acrescento da calçada portuguesa da minha iniciativa. Não sabia, não podia imaginar que isso seria pretexto para o mais violento e descabelado ataque mediático de que fui alvo em toda a vida (vida política, subentenda-se…). Mas como é óbvio, mesmo que soubesse, não teria desistido, porque continuo convencida que foi uma muito boa ideia. O ataque surgiu no Expresso, pela pena de Joaquim Vieira, já em período eleitoral, após a implosão do governo do Bloco Central. Como o jornalista foi visto, por essa altura, nos corredores das Necessidades, rondando o gabinete ministerial, e como não se preocupou em confirmar comigo os dados, (muitos deles falseados ou incorretos) da sua peça, levei a coisa para o plano de um frenético compadrio eleitoral. E, sendo como era (e, se calhar, apesar da idade ainda sou), passei ao contra-ataque – noutros órgãos de comunicação social, como sempre aconselhava o meu excelente assessor de imprensa Marques de Freitas. Não em “A Capital”, cuja reportagem muito pouco relevo dá à polémica levantada no “Expresso”, referindo apenas “en passant” que a atribuição do subsídio de 3.000 contos da SEE fora “alvo de certa polémica”. “A Capital” não tinha recebido o desmentido do meu gabinete que, antes de mais, negava o pagamento daquele montante: os 3.000 contos eram a verba inicialmente orçamentada, não a efetivamente atribuída, graças ao contributo da Armada, que ofereceu o padrão e providenciou o seu transporte, e ao gesto da comunidade de Honolulu que decidiu suportar as despesas com os calceteiros durante toda a sua estada na cidade. O subsídio foi, por isso, inferior a 2.000 contos. Ora bastante mais do que isso custou ao Ministério da Cultura, no mesmo ano de 85, uma estátua de Camões, da autoria da Clara Menéres (minha amiga de infância, que, por sinal, me convidou a admirar a estátua no seu atelier, antes de seguir para o destino final, Paris. Ainda por cima, o dispendioso Poeta foi parar a um cantinho obscuro da cidade, difícil de encontrar a quem o procure, a quem o procure com afinco, enquanto o Padrão está à vista de todos, de multidões de turistas numa das grandes avenidas de Honolulu, ao lado de uma chamativa catedral. Sensível à minha crítica certeira, Coimbra Martins desabafou em pleno Conselho de Ministros. “Ela tem razão. Paris não nos deu o lugar que o monumento merece.” A estátua da Clarinha, como tudo o que ela fazia, é, realmente, uma belíssima obra de arte, (se bem me lembro, de um esplendoroso e portuguesíssimo mármore róseo). Não tenho nada contra, antes pelo contrário. Nesta perspetiva comparatista, o que me choca é a falta de mundo da nossa intelectualidade, que parece acabar na Europa, com capital em Paris. Gastar mais de 3.000 contos para enfeitar um beco parisiense não lhes merece reparo, menos de 2.000 para um conjunto monumental nas ilhas do Pacífico, num dos lugares mais históricos da nossa emigração oitocentista, e num dos pontos, mais turísticos do planeta, constitui, para eles, um escândalo orçamental… Ainda hoje não consigo imaginar a quem aproveitou semelhante invetiva, que ostensivamente visava para além da mulher, a militante de um dos partidos da coligação desfeita. De facto, iria de novo candidatar-me por um círculo de emigração e os meus eleitores não liam o Expresso…. Desse ponto de vista, era como água em penas de pato. Mas que nas entrelinhas havia laivos de sexismo, havia! Uma das mais espalhafatosas acusações era a da instável criatura ter demitido não sei quantos motoristas - 6, 8 10? Já não me lembro, mas sei que era uma das poucas alegações cuja factualidade estava corretíssima. E é verdade que nenhum posto do meu gabinete foi mais difícil de preencher do que o homem do volante, embora as exigências que fazia me parecessem razoáveis. A primeira era a eficiente e rápida condução. A segunda a pontualidade. A terceira as boas maneiras… Alguns dos dispensados eram demasiado vagarosos (e a condução lenta provoca-me “stress” e dores de cabeça…), outros uns “aselhas”, caso de um idoso, aliás muito civilizado, que “disfarçava” no trânsito da cidade, mas na primeira ida para a estrada, numa longa ultrapassagem, bateu num camião e desfez o guarda –lamas direito – íamos para Miranda do Douro, onde chegámos e de onde regressámos no velho “Citroen do Dr. Sáragga Leal todo amolgado. Seguiram-se dois verdadeiros corredores de “rally”, absolutamente perfeitos ao volante, que, todavia, falharam noutro capítulo: o primeiro desfez o tal Citroen “boca de sapo”, mandando-o para a sucata – e o pior é que não foi em serviço, mas no regresso de uma incursão com amigos na noite lisboeta; o segundo deixou-me à espera na porta do Teatro D Maria II cerca de 45 minutos, em traje de gala, ao frio, sem alternativa, porque as chaves da casa estavam na mala do veículo, dentro de uma pasta de documentos…. Circunstância agravante: eu prevenira que o espetáculo, em honra da Rainha Isabel de Inglaterra seria muito curto e ele não acreditou e foi ver, tranquilamente, a um jogo de futebol ao estádio da Luz… Um 5º homem, por sinal, excelente, atingiu a idade da reforma. As histórias dos demais foram comezinhas, pelo que já não me recordo de pormenores. O importante é que nenhum deles saiu para o desemprego: eram funcionários públicos, só mudaram de serviço…. Para a rua, não mandei ninguém, daí que não entenda o interesse do “Expresso” na dança de cadeiras (ou de assentos) do meu pessoal… Muito mais compreensível foi, por exemplo, a versão falseada do “Diário de Lisboa” sobre o curioso incidente de La Vilette, nesse mesmo ano de todas as “fake news”. O então moderníssimo auditório de La Vilette, nos arredores de Paris já fora palco de arruaça lusitana numa visita presidencial do general Ramalho Eanes, transmitida em direto na televisão. No meu caso, a notícia limitou-se a uma vintena de linhas na última página do vespertino. Tal como no artigo do Expresso, o informe do DL não relata o que se passou, mas o que, em princípio, se deveria ter passado – naquele primeiro caso, uma dotação orçamental que, em vez de ser ultrapassada ou, pelo menos gasta na íntegra, ficou muito aquém do previsto, tramou o autor da peça; na “bagarre” parisiense, a armadilha, tão bem preparada, foi, “hélas”, inesperadamente, desarmadilhada em pleno palco… Tenho de contar como…Foi uma das mais divertidas situações em que me vi, ao longo de 30 anos de andanças por palcos do mundo português. Estava em Paris, uma das capitais da nossa emigração e certamente aquela onde os movimentos de contestação esquerdistas (“les gauchistes” na língua local) são particularmente aguerridos ou, pelo menos, ruidosos. Fui convidada para uma grande festa oferecida à comunidade por uma companhia de seguros, cujo nome para mim é fungível com tantas outras, pelo que, para não errar o omito. Com a música como “prato forte” e apresentação do muito famoso e popular António Sala, excelente profissional, excelente pessoa. A sala de espetáculos era impressionante, grande, moderna, luminosa, magnífica numa moldura humana sem cadeiras vazias. Presentes, ao meu lado, o Embaixador Luiz Gaspar da Silva, (até poucos meses antes, colega de Governo e vizinho de gabinete nas Necessidades e um bom amigo), e os três cônsules da região parisiense, um dos quais era o Dr. Monteiro Baptista, de quem eu tinha (e tenho) uma superlativa opinião. E foi ele que insistiu em ter um minuto de conversa privada para me prevenir se fosse ao palco, como previsto, seria vítima de “hackers” revolucionários, enxovalhada com um coro de apupos, que me impediria de falar. Eu agradeci, mas disse-lhe que, se o Embaixador fosse ao palco, eu também ia. Em vão ele tentou convencer-me que estava tudo demasiadamente bem preparado. Eu acreditei nele, piamente, mas nem por isso me abstive de acompanhar, em passo rápido, a figura majestosa e sereníssima do nosso muito alto, muito forte e muito imponente Luiz Gaspar, descendo da tribuna à boca de cena, onde Sala, incauto e sorridente, nos saudou. Não sei de Luiz Gaspar estava, ou não, a par da manobra. Talvez não. O mais alto personagem, tal como os maridos enganados, é, muitas vezes, o último a saber… Ele fez o seu inspirado discurso, ouvido em perfeito silêncio. Tudo mudou dramaticamente mal eu tomei em mãos o microfone. Uma vaia monumental irrompeu, ampliada pela esplêndida acústica do grandioso espaço… Uma vaia que ameaçava prolongar-se tanto quanto fosse preciso para me calar, mas eu, que nunca abandonei uma boa luta, estava disposta a dar largas oportunidades aos que me queriam calar, porque dali não sairia sem os calar primeiro. Jogava alegremente a partida de “quem cala quem” …. Por sorte, veio-me à memória uma situação semelhante em que se encontrara, nos tempos do PREC, (algures, salvo erro, num estádio), o Doutor Soares. Ao ruído dos protestos, ele respondia, acenando à multidão, em jeito de agradecimento, e quem visse a imagem, sem atentar no ruído de fundo, via um homem triunfante. Fiz exatamente o mesmo, no feminino, levantado ambos os braços, bem alto, em movimento de vaivém. O resultado foi imediato: mais de metade da assistência, desportivamente, irrompeu em genuínos aplausos. Eu ia olhando em todas as direções, avaliando a proporção relativa de palmas e apupos, enquanto ao lado um lívido António Sala não via modo de pôr fim ao desacato. Obviamente ninguém lhe tinha dito que o PREC, dez anos depois, continuava vivo em França… Não sei ao certo quanto tempo durou o espetáculo dentro do espetáculo… foram longos minutos, talvez um quarto de hora, o que num duelo de palmas versus pateada é a eternidade! Possivelmente os sabotadores não contavam com resistência, porque foram esmorecendo aos poucos e cessaram atividade. Falei sem ponta de distúrbio até à última palavra. Avisadamente, fui precisa e concisa, salientando que gostava de estar presente nas comunidades tanto em dias de trabalho, para falar de problemas e soluções, como em dias de festa, como a que todos vivíamos em La Vilette. O que mais me espantou foi o não terem retomado a arruaça no momento em que eu deixava o palco… No dia seguinte, o DL, ignorando o volte-face nos planos dos seus parceiros ideológicos, informava que a Secretária de Estado tinha sido contestada em Paris e impedida de falar na festa da comunidade – o que era manifestamente exagerado…. Só tive uma outra oportunidade, muito diferente e ainda melhor de me sair bem em palco, perante uma audiência que bastante maior - cerca de um milhar de pessoas, felizes e ordeiras. Foi numa conferência integrada na programação do “Camellia Festival” de Sacramento, a capital do Estado da Califórnia. O Festival realizou-se anualmente, ao longo de três décadas, até 1993, com oradores convidados de diversos países, um dos quais Portugal, onde a flor é, igualmente, muito popular. Era considerado o maior evento do género, em todo o mundo. Hoje é continuado, num formato mais modesto, pelo “Camillia Show”, também já com décadas de história. No ano de Portugal, em 84 ou 85, fui eu a representante pátria. Recomendaram-me que fosse breve, porque os americanos dificilmente suportam, como nós, discursos longos e chatos. Ou melhor, para eles sendo longos, são sempre maçadores. Tratei de não exceder os meus 10 a 12 minutos. De flores não falei – e deveria, porque o meu Porto natal e bem-amado foi, na Europa, a primeira “cidade das camélias” e eu própria cresci à sombra das japoneiras do jardim da avó Maria. Em Sacramento, optei por fazer a história muito sintética da expansão marítima, da dispersão universal de um povo acantonado nos confins da Europa, suporte humano e científico da incrível aventura de globalizar o comércio e o convívio mundiais. Disse coisas que todos aprendemos na escola, mas que eram rigorosamente desconhecidas por uma audiência onde predominavam luso-descendentes, provocando um delírio de aplausos e até muitas lágrimas. Muitos me procuraram no final – uma longa fila de cumprimentos! - todos se afirmando mais do que nunca orgulhosos de tais antepassados. Também desta vez fui surpreendida, mas por excelentes razões. Discursos para tão vastas audiências não foram muitos, felizmente, porque eu prefiro as pequenas ou médias, exceto na televisão ou rádio, onde não as vejo… A rádio é mesmo o ideal, porque também não sou vista e, em regra, toda a gente, incluindo os entrevistadores, está muito à vontade. A primeira vez que estive horas seguidas em frente dos microfones foi num programa chamado “Pão com manteiga”, capitaneado por Carlos Cruz, então popularíssimo. Quando o meu assessor de imprensa me informou da extensão do exercício radiofónico, tentei desmarcar, mas, é claro, ele alegou que não era possível, não havia substituições de 25ª hora. Parece-me que, ainda por cima, era um sábado, atrapalhando a minha ida para Espinho… Protestei imensamente com ele… achava impossível ter conversa para tanto tempo, mas, à hora aprazada, lá estava. Stressada, sem razão, e só no início, porque a conversa foi evoluindo sempre e nunca me diverti tanto num programa, nem me senti, assim, parte de uma equipa. Carlos Cruz era, realmente, o máximo! Em 1991, estava o mandato de quatro anos cumprido. Novas eleições, nova maioria absoluta de Cavaco. Dessa vez, a Comissão Política, que só interfere nas escolhas locais, para indicar o topo das listas, deslocou-me do Porto para Aveiro. Como eu tinha casa em Espinho, estava no meu distrito. E é um distrito bem simpático! Acolheram-me muito bem, embora contra a vontade de Oliveira e Costa, que era o grande chefe - a antipatia dele não me incomodava, porque a retribuía…. Andei em campanha, por montes e vales. O Prof Cavaco arrastava multidões, distribuía retratos por todo o lado. Andávamos com pacotes na mão e algumas velhinhas pediam: “Oh, menina, dê.me um santinho!”. E eu dava, sem discutir a qualificação. Em matéria de ofertas, era a loucura – lápis, esferográficas, capas de chuva, aventais, calendários …(nada de frigoríficos, isso só em Gondomar, onde me recusei a fazer lista com o Major Valentim – a minha complacência não chega a tanto…). Um dos mais curiosos desse leque de oferendas foi dado em Espinho, num dia de muito calor, à beira-mar: gelados cor de laranja! Os “jotinhas” que os distribuíam como aperitivos de discursos batidos, viram-se assaltados por todos os lados, r já não controlavam a distribuição. Uma senhora alta e de cabelo oxigenado vi eu apossar-se de três ou quatro, que guardou na sua malinha de mão. Cinco minutos depois, imagino a maré cor de laranja que terá submergido todos os pertences guardados na carteira … Em ações de campanha, vi muitas outras coisas bizarras, talvez o entusiasmo fomente a predisposição para comportamentos desviantes. Eu própria não escapei a dar um mau exemplo – nada de comestível, obviamente, pois nisso, sou contida. Aconteceu na Foz, também com mar à vista, num espaço em forma de “u”, delimitado por barreiras amovíveis. Era um concerto “rock” destinado à juventude, que compareceu na noite fria em “jeans” e blusões de couro. As bandas eram várias, e, para mim, todas desconhecidas. O jantar com líderes da minha geração prolongara-se demais e Brochado Coelho e eu chegamos mesmo sobre a hora. Tentamos entrar na extremidade mais próxima, mas a segurança informou que ali não havia entrada – só do lado oposto. Romper, em frente, por entre uma multidão compacta de casacos de couro não era muito bom para mim, que sofro de claustrofobia intermitente (felizmente não entre fãs do futebol, ambiente onde com mais facilidade me misturo). Sugeri ao meu “amigo e companheiro”, (tratamento que no PSD equivale a “camarada” nos partidos um pouco mais à esquerda) que, para encurtar caminho, saltássemos a vedação. “E a Manuela consegue? Claro que sim, qualquer antiga atleta treinada no Colégio do Sardão por Edgar Tamegão conseguia isso e muito mais. Formámos o salto, aterráramos em cima de um grosso feixe de cabos e os meus óculos saltaram ainda mais longe, o que implicou andar de gatas, no escuro a procura-los. Depois, discretamente, lá nos dirigimos ao espaço reservado aos oradores. O espetáculo estava mais atrasado do que nós. Por fim, um homem maldisposto, com ar de técnico de som, subiu ao palco tomou o microfone e explicou a demora: “Corremos o risco de não ter espetáculo esta noite. Uns energúmenos andaram a pontapear os cabos de ligação e estivemos, até agora, a fazer reparações”. Mostrava-se justamente furibundo. Assim adjetivados, Brochado Coelho e eu mantivemos de Conrado o prudente silêncio… até hoje. Conto, sem castigo, ao abrigo da prescrição. Quando um (ou uma) militante deixa um cargo de alguma importância, apenas porque chegou ao fim do mandato, sem colisão com o poder supremo do partido, em regra, oferecem-lhe uma prebenda, que pode, ou não, ser pouco mais do que simbólica. Por isso, ao deixar, ao fim de um ciclo de sete anos, os domínios governamental ou parlamentar da emigração, eu fui candidata pelo Porto, e entronizada como Vice-Presidente da AR, e, ao trocar o Porto por Aveiro, e ao deixar este cargo protocolar na carismática pessoa de Leonor Beleza (Ministra da Saúde cessante), foi-me assegurado um lugar de suplente na Delegação à Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa. Enfim, um trabalho a que eu me candidatava voluntariamente e com entusiasmo! A APCE é o meu género de instituição, porque o seu foco são os Direitos Humanos, as reformas que o seu respeito integral reclama, as convenções vinculativas, as recomendações que chamam os Governos a capítulo - nem todas para cumprir de imediato. Há, ali, um espaço aberto para a utopia de hoje, que haverá-de concretizar-se, um dia, não se sabe quando. Dizia De Gaulle que a APCE era “um parlamento que dorme nas margens do Reno”. Os homens de ação, que querem pragmatismo e resultados “já”, têm pouca paciência para a prospeção de horizontes longínquos. Eu não acho que haja incompatibilidade em jogar nos dois tabuleiros… É certo que a APCE acumula velhas sumidades políticas em declínio (antigos chefes de governo, ministros dos Negócios Estrangeiros, da Justiça e de outras pastas), a par de estrelas em ascensão, e que, ao contrário do PE, não dá qualquer vantagem patrimonial, nem notoriedade em tempo de antena na RTP, mas há quem tenha pertencido às duas instituições e prefira o mais discreto Conselho da Europa, guardião das boas causas, não dos interesses egoístas dos Estados – ou dos partidos. Há um enquadramento partidário extremamente brando, com os deputados em roda livre. Enquanto o PSD pertencia ao Grupo Liberal, sobretudo quando presidido por Russel Johnson, poucas divergências tive com a liderança. Quando mudámos, desgraçadamente, para o PPE (de presidência holandesa, do ultra direitista Van der Linden) passei a ser a “gauchiste” do Grupo (e, era, de facto, comparativamente, a extrema-esquerda do grupo). Numa fase, em que já era a presidente da Delegação Portuguesa e, por inerência, Vice-presidente do “Bureau, (ou direção da bancada), isso notava-se mais. Foi um choque recíproco, mas é curioso constatar como o contacto quotidiano atenua o efeito das diferenças ideológicas. Não tanto com Van der Linden, com quem nunca simpatizei muito, mas com os outros. Pouco a pouco, aqueles jantares de início de sessão, de preparação da semana de trabalho tornaram-se menos incómodos e eu ia, sem mudar de posição, parecendo, talvez, menos excêntrica. Na hora da despedida, foram todos muito simpáticos. Haviam passado mais de treze anos, desde aquele janeiro de 1992, em que voltava ao Palácio da Europa em Estrasburgo, já não na vertente governamental, tão familiar, mas como deputada, a descobrir outras possibilidades de abordar as mesmas temáticas. O Conselho da Europa que reúne Governos e o Conselho da Europa que se constitui em fórum internacional de delegações parlamentares não se cruzam com frequência, e, quando isso acontece, é geralmente através de convites “cerimoniosos”: a APCE envia a sua seleta representação às Conferências Ministeriais (que são, como se sabe muito espaçadas) e, durante as suas sessões, convida sempre um outro Chefe de Estado ou Governante de 1º plano a proferir um solene discurso no plenário, ora seguido de livre debate, ora não. Há quatro sessões anuais, com duração de uma semana, o que perfaz um mês – tudo somado, vivi em Estrasburgo, mais de 400 dias, porque, embora sem a mesma regularidade, havia na bela cidade alsaciana vários outros eventos. Entre os oradores que distintamente recordo estão os portugueses Mário Soares, Presidente, e Durão Barroso, Primeiro-Ministro, o ex Presidente da Polónia Lech Walesa, a Rainha Beatriz da Holanda, Jean Claude Junkers do Luxembrugo, e o Rei Hussein da Jordânia, de todos o mais impressionante. No discurso eram todos parecidos, todos politicamente corretos, nada a apontar. No debate é que podia haver grandes surpresas… Lech, que eu admirava tanto, a responder a perguntas dececionava – era certamente um homem de ação, um heroico guerreiro, mas entre as suas armas não estava a oratória. Já o Rei Hussein brilhou, sobretudo, no debate. Falava um inglês absolutamente perfeito e deu uma assombrosa lição de política internacional. Ainda por cima, foi um dos poucos que se fez acompanhar pela mulher, (a Rainha Noor), que estava sentada ao seu lado. E, coisa nunca vista, porque os Chefes de Estado, Monarcas ou Republicanos, avançam sempre à frente das consortes, este Rei do Médio Oriente insistia em caminhar ao lado ou atrás da sua mulher! Inesquecível foi, também, Jean Claude, por outras razões, que não a “performance”, muito boa, é claro, mas expectável. Eu não o via há muito, tinham passado quase vinte anos desde o nosso primeiro encontro, mais de dez sobre o último. Entretanto, ele ascendera aos mais altos cargos do país e da Europa e eu continuava a luta pelas causas de sempre, uns patamares abaixo (com todo o respeito pelo estatuto de deputada do parlamento nacional, onde, no hemiciclo, tinha poucas oportunidades de me fazer ouvir, e pela APCE, onde, felizmente, tinha bastantes mais, e, sempre na primeira fila, para o que contribuía um apelido começado por “A”. Essa privilegiada situação na geografia do plenário permitiu que, a partir do momento em que Jean Claude iniciou a resposta a perguntas dos deputados, os nossos olhares se cruzassem. Notando que me reconhecera, fiz um discretíssimo gesto de saudação, a que ele, enquanto ouvia um interpelante, correspondeu exuberantemente. E, no fim do debate, enquanto todos os circunstantes subiam as escadas rumo às diversas saídas eu segui em linha reta na direção do orador. Preparava-me para um sóbrio cumprimento, que a solenidade do lugar me parecia exigir, quando me vi levantada a um metro do solo, como um treinador de futebol em dia de triunfo, e, depois, envolvida no mais espalhafatoso dos abraços! Muito simpática a calorosa receção, embora, segundo o detalhado relato que a minha amiga e colega Maria Elisa Domingues deixou lavrado numa das suas habituais crónicas do DN, eu parecesse ligeiramente embaraçada. Só me faltava isso… que a cena, testemunhada por alguns, já poucos, “in loco” chegasse ao conhecimento de muitos mais através de um jornal de referência… Mas não sou de me preocupar com coisas já acontecidas. E compreendo que o acontecido deve ter sido divertidíssimo de ver. Material de reportagem que nenhum jornalista desaproveitaria. E a Maria Elisa era uma profissional fantástica. Eu sempre gostei muito de participar nos seus programas, onde nunca havia o risco de os seus convidados se exporem a embaraços. Ela mesma personificava a sobriedade máxima… Não é o meu caso. Digamos que estou a meio caminho entre Maria Elisa e Jean Claude, embora, se tivesse de escolher um extremo, preferisse o do meu amigo luxemburguês. (parafraseando o Dr. Soares, “mon ami Jean Claude”). Aliás, na minha família mais próxima não faltam excêntricos como ele! A APCE deu-me oportunidade de viver inúmeros episódios lúdicos, de criar laços de camaradagem muito mais espontâneos e conseguidos do que os que se procuram nos corredores de São Bento. E, “last but not least” de me envolver, entusiasticamente, em atrativo trabalho, que nunca me faltou – fui a primeira proponente de não sei quantas moções de recomendação (talvez tenha mesma batido recordes, mas disso não tenho a certeza), uma das mais prolíficas relatoras, sempre pronta a participar nos debates em plenário ou nas comissões. E tudo isto gozando de plena liberdade de expressão (que no parlamento nacional os partidos que se consideram tão democráticos, tentam tantas vezes condicionar – às vezes, disfarçadamente, outras não, com pública imposição da disciplina partidária. No Conselho da Europa, todos partem do zero, pouco importa o passado, vale o curriculum que é feito dentro da própria instituição. E é mais fácil o diálogo transversal aos grupos e partidos– graças ao facto de estes valerem menos. Esse diálogo é fomentado por regras que obrigam, por exemplo, à assinatura pluripartidária das propostas de recomendação. Gozei plenamente o sabor da minha liberdade, nos meus campos de intervenção preferidos - migrações, direito de asilo, refugiados (as guerras dos Balcãs, do Iraque, a independência do Kosovo, as questões da dupla nacionalidade, as mil e uma facetas da igualdade de género… Não me faltaram presidências, vice-presidências, que, diga-se, eram um bem escasso – no caso das Comissões, apenas treze, para centenas de deputados). Antes de mim, (ou melhor, de nós, Pedro Roseta e eu), só António Guterres tinha tido uma presidência, a da Comissão das Migrações e Refugiados e Demografia, justamente aquela para a qual fui eleita e reeleita, a partir de 1994. Pedro Roseta era presidente de Comissão de Cultura, (ou do Ensino, ou das duas coisas…). E, durante os largos anos em que me mantive ativamente no Conselho da Europa, não me lembro de mais nenhum compatriota ter ocupado esse cargo de cúpula. Vice-presidências de Comissões e presidência de Subcomissões, colecionei várias, sobretudo, como era espectável, nos pelouros da Igualdade e das Migrações, mas também, por exemplo, do Regimento (inesquecível porque foi a primeira). E, quase invariavelmente, integrei a Comissão de Assuntos Jurídicos, e, de vez em quando, a Comissão Política, a mais cobiçada. A seguir à titularidade de presidências, o que mais abrilhanta os “curricula” são os relatórios e, como disse, eu candidatei-me, com sucesso, a muitos e variados, alguns para desenvolver e levar até ao fim, as minhas próprias moções de recomendação. Na APCE, todas as Comissões têm o seu Secretário, que coordena o trabalho de técnicos (muito qualificados!) e manda imenso… o equivalente a um diretor-geral no Executivo. E, se a matéria é demasiadamente especializada ou completa, contrata-se um perito de fora. Compreensivelmente esta estrutura gosta de funcionar, de preparar o suporte técnico das matérias em questão e, se os deixarem em roda livre, até de redigir todos os sucessivos “drafts” do relatório até à versão final. Deputados há que não acrescentam uma linha…. Não era o caso português. Guterres e Roseta, para além de brilhantíssimos oradores, insistiam em apoderar-se da escrita. E eu também - sem fulgor oratório comparável, mas com idêntico convicto entusiasmo. Isso provocava sempre alguma inquietação, mas tudo acabava bem. Os textos são discutidos em Comissão, em vários turnos e vão sendo alterados para refletirem os avanços registados. No final, é obra coletiva, com o relator a ter a última palavra dentro do necessário consenso. A última etapa é o debate e votação em plenário, onde, por vezes, há que negociar e transigir, ainda mais, para obter os votos de uma maioria. Normalmente, este processo dura meses. Na AR, a coisa era muito mais complicada. Tinha de passar pelo crivo do partido, que, no meu caso, poucas vezes deu prioridade aos anteprojetos, que eu considerava importantes. Não havia, nem de perto, nem de longe, apoio técnico e jurídico comparável ao da APCE nas Comissões Parlamentares. E nos grupos parlamentares também não. Falo pelo meu…. Creio que os melhores estavam ao serviço do partido, na sede (não foi Rui Rio que se lembrou de reunir os mais sábios à sua volta – isso já acontecia, generalizadamente, no século passado…). Só uma vez, um jurista considerado sénior, me preparou um articulado completo e eu não quis levantar as suas suscetibilidades, com grandes alterações. Consequência: fui mais ou menos arrasada no plenário pelo José Magalhães e outros. Foi “obra”…. Futuramente, preferi elaborar, na íntegra, os meus projetos de diploma – antes só, antes só… Se a APCE estava, neste aspeto, num patamar muito acima da AR, ainda mais o estava a AUEO. Hoje esta sigla já não diz nada a ninguém. Lamentavelmente… A “União da Europa Ocidental” foi, historicamente, a primeira organização pan-europeia no pós-guerra, e abrangia todos os campos em que se enraíza uma democracia moderna – desde a cooperação política e social, com o foco nos Direitos Humanos, até ao esforço comum de defesa. Mas, entretanto, surgiam outros projetos, que se lhe iam sobrepondo, setor a setor, até que, por fim, a acantonaram no sobrante: a Defesa. Foi, sobretudo, o caso do Conselho da Europa, que evoluía no sentido de ocupar mais e mais domínios. Lado a lado, CE e UEO, acabaram por repartir, entre si, as duas metades do espaço de diálogo e solidariedade entre as Nações do ocidente europeu, unindo na vontade de paz os vencedores e os vencidos de 45, para que as guerras fratricidas ficassem enterradas no passado. Ambas as organizações funcionavam na vertente governamental, que reunia os ministros e na parlamentar, com as Assembleias, formada por representantes de cada uma das assembleias nacionais. Curiosamente, a mesma Delegação servia as duas organizações. O propósito de assim lançar uma ponte entre elas, na prática, redundava numa lista de eleitos elaborada muito mais à medida do CE do que da UEO – ao menos no caso português. Raros eram os deputados provindos da nossa Comissão de Defesa, obviamente os grandes especialistas em temáticas militares, que acabavam, todos, nas Delegação da OTAN ou da OSCS. E ficávamos nós, os das Comissões mais “civilistas”, (Assuntos Constitucionais, Negócios Estrangeiros, Educação, etc. etc…), a fazer uma verdadeira aprendizagem, aliás, do ponto de vista pessoal, mais do que fascinante. Já confessei uma afinidade natural com o espírito de pragmatismo e rigor dos militares que fui conhecendo, pela vida fora. E também a minha preocupação de recorrer, sistematicamente, às academias e centros de pesquisa, através de protocolos e parcerias, para dar às politicas o seu suporte científico. Pois bem, a UEO era o melhor exemplo de como tudo isto se conjuga e resulta. As assessorias vinham, tanto do meio militar, como do meio académico, nomeadamente do seu prestigiado Instituto de Investigação. A meu ver, era superlativa a qualidade dos seus pareceres, e a sua capacidade de repensar as estruturas e toda a articulação de meios de defesa europeia. Mas o seu fim aproximava-se, porque, em fins do século passado, era a própria EU, os seus baços burocratas, que a queriam varrer da face da Europa, para fazer muito menos e muito pior. Uma estupidez, entre tantas outras que tornam a EU uma organização sempre aquém dos sonhos e das metas dos pais fundadores, entregue à apagada e vil tristeza dos líderes que lhes sucederam. Na área da Defesa prescindir de se organizar e unir dentro da OTAN significou resignar-se a ser definitivamente o parceiro menor e subordinado dos EUA. Descobri uma nova causa: construir a Europa da Defesa – nada contra a América, apenas o reconhecimento, hoje mais evidente do que então, de que a defesa da Europa já não é a sua prioridade. (Trump seria, duas décadas depois, a prova dos nove). Na UEO, na Avenida Président Wilson, fiz a minha estrada de Damasco e tornei-me uma das reconhecidas ativistas da luta pela sua não dissolução na EU. A Assembleia, onde esta posição mantinha uma maioria, embora curta, resistiu durante uns anos, depois da sua componente governamental ter cedido à Comissão Europeia e fechado portas. Na altura, era Secretário Geral da organização, o Embaixador Cutileiro. Tivemos com ele, em “petit comité”, no centro de Bruxelas, uma conversa tensa e inútil. Ele sentia-se bem no seu papel de coveiro da instituição. Não era certamente o primeiro responsável, apenas um zeloso e convicto funcionário. Para mim, o diálogo de surdos foi uma sensaboria, ainda por cima, penosa. O brilhante e ousado Embaixador que conheci na África do Sul andava perdido na cinzenta Bruxelas… Cutileiro fora, na verdade, o primeiro diplomata europeu a entrar em diálogo com Mandela libertado, e isso me facilitou, na qualidade de deputada visitante do país, o encontro inesquecível com Walter Sisulo. Sempre o tinha tido em grande conta…. Ali, hirto e conformista, limitava-se a confirmar o que já sabíamos: estávamos a viver o crepúsculo de uma instituição condenada. Nestas situações, vem sempre ao de cima o meu lado quixotesco, tão badalado nas entrevistas em se entretinham a analisar o meu perfil. “Morrer, mas devagar”, à antiga portuguesa… O ambiente da AUEO era muito diferente do da APCE. E para melhor. Primeiramente porque funcionávamos num círculo mais seleto e homogéneo, mais familiar – membros de pleno direito eram apenas os representantes de países da NATO e da UEO – isto é, subscritores das obrigações de defesa mútua (Tratados de Washington, caso da NATO, e Tratado de Bruxelas modificado, para a UEO). Ora dos quinze Estados da EU, um terço eram neutrais, recusando dar a sua solidariedade à defesa comum. Assim sendo, não fazia, de todo, sentido transferir para a EU as capacidades da UEO, enquanto entidade coordenadora do esforço de defesa europeia. A base da minha argumentação era simples e realista: havia que manter intacta a UEO enquanto a União fosse parcialmente composta por países não aderentes à NATO. Só assim se garantia a eficácia da coordenação no campo da Defesa. Foi a ideia chave que desenvolvi no ano em que me coube apresentar o mais importante relatório anual, (o de resposta ao Conselho de Ministros). O Secretário da Comissão de Defesa era um perito de alto gabarito. Um alemão discreto e simpaticíssimo, o Dr. Burkhard. Discutimos detalhadamente todas as matérias a desenvolver no relatório. Estávamos 100% de acordo. Entreguei-lhe a redação do texto e não alterei uma vírgula. Perfeito, claro e inequívoco, com as linhas vermelhas rigorosamente traçadas. Deu origem, como eu esperava, a uma grande guerra interna, primeiro na Comissão e, depois, no Plenário. Os inimigos, onde pontificava um grupo de radicais italianos, ao serviço da EU, apresentaram um número recorde de alterações destinadas a desfigurar o relatório – já não me lembro ao certo, mas entre sessenta e setenta! Negociei-as, uma a uma, e cedi, graciosamente, taticamente, em tudo o que não era fundamental. No fim, eles contentaram-se com os fartos ganhos quantitativos e eu, com o qualitativo, sentia-me vencedora em toda a linha… Esse braço de ferro, que patenteava o confronto entre duas visões opostas sobre a construção da unidade europeia na Defesa, foi certamente decisivo para me terem atribuído, em 2005, na hora da despedida da vida parlamentar, pela primeira vez, o título de Membro Honorário. Na APCE, essa distinção era dada a qualquer um, após dez anos de presença contínua. Na AUEO só era outorgada aos antigos presidentes da Assembleia. Nesse ano, decidiram alargar a concessão, não de uma forma indiscriminada, antes com avaliação de desempenho. Não fui a única a receber o diploma, estava acompanhada pelo Pedro Roseta e por um inglês, Terry Davis. De qualquer modo, não mais de três… Curiosa a reação do Presidente da Assembleia, Jaime Gama, que foi a de ignorar, pura e simplesmente, a rara distinção dos portugueses (dois em três homenageados). Apercebemo-nos de que o nosso colega Medeiros Ferreira não ficou muito contente por se ver fora daquele “quadro de honra” e, daí à “partidarização” interna do assunto, foi um pequeno passo. Não tinham razão: o inglês que com o Pedro e comigo compôs o trio de pioneiros, era um proeminente socialista… No mês seguinte, a APCE conferiu a sua costumeira titularização honorária por tempo de serviço aos três portugueses que preenchiam o requisito – Roseta, Medeiros Ferreira e eu. Jaime Gama apressou-se a reconhecer, euforicamente, a subida honraria, e mandou processar o custo das viagens e as ajudas de custo aos três ex-deputados. Devolvi-lhe o cheque, de imediato, explicando porquê: assim como tinha pago a deslocação à UEO para idêntica cerimónia, assim pagava, do meu bolso, a ida ao Palácio da Europa, em Estrasburgo. Nada de novo no meu relacionamento com quase todos os Presidentes da Assembleia, sempre atribulado, pelo menos, no que respeita à matéria fatídica de viagens. A lista inclui Victor Crespo, Almeida Santos, Mota Amaral e, por fim, até um mais inesperado Jaime Gama. Todos tinham pertencido a delegações internacionais, apagadamente, sem deixarem rasto, pelo que a sua sistemática desvalorização da atividade aí desenvolvido pelos outros (os portugueses que intervinham, na linha da frente…) levantava a suspeita de que, durante as deslocações de serviço, se tinham entretido a frequentar livrarias e alfarrabistas, exposições de arte e a outras ofertas de turismo cultural, e de que se maçavam imenso nas reuniões de trabalho. A exceção era o Prof Barbosa de Melo, que trazia para a política, todos os dias, a objetividade e a seriedade do intelectual, do académico. Impensável imaginá-lo a desinteressar-se por uma discussão de ideias e princípios e de procura de soluções na APCE ou em qualquer outro fórum europeu de debate e legiferação. E, por isso, compreendia, naturalmente, o seu interesse e jamais dificultou a nossa ativa participação. Era, em todos os aspetos, um caso raro, como político e como professor, porque era as duas coisas ao mesmo tempo. O outro a quem o comparo, era Adriano Moreira. Ter uma conversa com eles, era sempre aprender algo de novo, dito com rigor e com humor… No polo oposto, estava o Dr. Mota Amaral. Às vezes, sermos muito diferentes, ajuda, estimula, complementa. Não era o caso, e a incompatibilidade, em todo o seu potencial, veio ao de cima durante a sua presidência da Assembleia, a coincidir com a minha presidência da Delegação à APCE/UEO. A primeira conversa pressagiava o pior… Queria ele que eu procedesse à avaliação do interesse de cada deslocação dos representantes naquelas organizações, desse um parecer (negativo ou positivo conforme o meu alto entendimento), a autorizar a saída e, por fim. lhes exigisse relatórios sobre as suas intervenções. Recusei-me, terminantemente. Uma vez eleitos para esses parlamentos, têm obrigações de participação, tal como acontece no plano interno. Faltar a uma sessão, é faltar a uma sessão, seja em Lisboa, Estrasburgo ou em qualquer outra cidade do “mapa-mundi”... A discutir isto passamos duas longas horas. Em comum, temos só a teimosia, nenhum de nós, cedeu um centímetro! Eu não seria a vigilante ou “controleira” dos meus pares. Apesar da discordância de tal controlo pela Assembleia, estava pronta a justificar a necessidade das minhas próprias presenças internacionais e a apresentar os respetivos relatórios e atas, mas jamais interferiria na forma como os colegas cumpriam o seu mandato. Ele terminou com uma frase que me deixou perplexa: “A Manuela ainda não percebeu que eu estou a valorizar o seu papel de presidente?. E, no seu caso, não precisa de apresentar a justificação”. Tinha razão, eu não percebia mesmo, a glória de mandar não me extasiava e não me sentia nada valorizada pela exibição de autoritarismo que me era proposta. De qualquer modo, ele criou um formulário, com um retângulo destinado à justificação da presença em reuniões internacionais por parte do Representante eleito, e outro destinado ao parecer da Presidente, no qual eu passei a exarar, a ritual sentença: “É membro efetivo da Comissão (ou Sessão Plenária), pelo que tem obrigação institucional de comparecer”. As palavras exatas já não recordo, mas o sentido era esse. E também rejeitei a exceção que me era oferecida – preenchia previamente o formulário como toda a gente e, por fim, apresentava o relatório das minhas intervenções. Assim fomos convivendo (mal). Conflito ainda mais aberto, e com outra projeção mediática, emergiu onde menos se esperaria no campo de futebol e tendo no centro o FCP. Se fosse clube da capital, provavelmente, nada do que aconteceu teria acontecido… Mas não era… só o Porto frequentava a alta roda internacional e vencia competições europeias e intercontinentais. A sua primeira final jogou-se em 2003, na tórrida cidade de Sevilha. Muito foram os políticos convidados, deputados, ministros, autarcas… E, também, o primeiro ministro Durão Barroso ou o Presidente Jorge Sampaio, (ou ambos?). Uma grande e prestigiante embaixada! Deputados éramos uns vinte, ou mais, quase todos do PS, por essa altura, já largamente preponderante nas festas portistas… longe ia o tempo em que tinha sido o PSD (com Prof Valente de Oliveira e outros ilustres nortenhos). Sucedeu-lhe, a influenciar o relacionamento do Governo com o clube da invicta cidade, o empedernido sulista Prof Catroga, que teve a pretensão de penhorar o estádio das Antas, mais a a retrete do árbitro. O pormenor da retrete foi a gota de água fatal. O meu contributo para a indignação geral foi a criação de um neologismo: a “catrogada” - sinónimo” de suprema calinada, em que ele era fértil em qualquer campo (lembremos as negociações interpartidárias, que precederam a instaçação da “troyca”). Em Sevilha, o esfriamento de relações entre o FCP e o PSD era visível, com a presença de apenas duas deputadas, a Leonor Beleza e eu, ambas notórias portistas. Viajamos, lado a lado, de Lisboa para Andaluzia, num “charter” muito festivo para lá e, mais ainda, para cá. Eu, por sinal, após receber o convite, logo informei a direção da bancada, que não viu qualquer inconveniente na minha deslocação, antes pelo contrário. Como andava em constante movimentação, tinha sempre o cuidado de garantir que a minha ausência não prejudicava a maioria necessária na hora das votações em plenário. Nesse o meu “curriculum” é imaculado e em virtude de autodisciplina – fácil para a mulher de meia idade que, desde criança, só obedecia a ordens vistas como justas… Em Sevilha, estava, pois, como figurante do meu grupo parlamentar, que sem as duas deputadas, Leonor e eu, seria o grande ausente de uma jornada histórica. Eu sei que um bilhete para a tribuna VIP do futebol é excitante para quase todo o mundo e, por isso, desperta a mais lusitana das invejas. Sou a exceção, porque, me enervo tremendamente, e, se puder, fico em casa, sem ver o desafio em direto. Se o Porto ou Portugal ganharem, então, sim, delicio-me com a gravação. Tal como Deus, já conheço o desfecho. Sevilha 2003, confirmou os meus receios e está no topo dos momentos mais angustiantes da minha vida…. No prolongamento, tentei uma discreta retirada para qualquer lugar longe do relvado, mas os colegas que me ladeavam, o Zé Lello e o Laurentino Dias, duas verdadeiras “torres”, barraram-me a saída. “Deixe-se estar, isto vai correr bem!”. Restou-me a opção de fechar os olhos… até que as “torres” saltaram a festejar o golo definitivo (de Derlei), e eu, com poucos segundos de atraso, saltei também. O fim chegou depressa. Todos eufóricos, incluindo o Zé Lello, que era boavisteiro, e ainda sob um calor sufocante, regressamos rapidamente a Lisboa, numa operação muito bem organizada. E, por isso, pude ainda acompanhar, pela televisão, no tranquilo e refrescante ambiente do meu quarto, na Avenida do Uruguai, o autêntico São João antecipado, que, a 300 km de distância, encheu as ruas do Porto e o estádio do Dragão, até o sol nascer. Depois da bonança, veio a tempestade que ninguém previra - um tumulto parlamentar, que os “media” ampliaram, gostosamente. Por acaso, não foi Mota Amaral a desencadeá-lo, mas o Vice-presidente Manuel Alegre, no uso de delegação de competências para avaliar a justificação das faltas dos deputados. Para fundamentar a sua inédita decisão de considerar “injustificadas” as ausências das dezenas de colegas presentes na final europeia, recorreu ao extraordinário argumento de que ir a um jogo de futebol não cabe na definição de trabalho parlamentar. Dupla falácia: em primeiro lugar porque qualquer atividade social, desportiva, cultural, religiosa ou outra, pode, ou não, enquadrar-se naquela definição, dependendo do propósito (ou da veste) em que se encontra o deputado; em segundo lugar, porque o critério para proceder ao enquadramento, em concreto, cabe aos eleitos da Nação. Em 20 anos de Assembleia, não me lembro de qualquer injustificação de faltas por semelhante juízo de valor em seara alheia! Em regra, o deputado limita-se a comunicar a sua “ausência em trabalho político”, sem mais especificação. Manuel Alegre é um democrata pensante e atuante, para além de ser um estimado colega de curso. Não duvido, pelo que sou levada a considerar que tão insólito despacho terá sido ditado por um reflexo incontrolável de “benfiquismo”. Perante o coro de protestos, Mota Amaral, com o seu perfil de velho mestre escola castigador, secundou o despacho! Houve quem se calasse, talvez por serem de pouca monta as consequências práticas: perda de um dia de vencimento e o início de contagem de faltas sancionadas, que, ao atingir a terceira, implicava perda de mandato. Para mim, a questão era de princípios, pelo que acabei a encabeçar os públicos protestos. Perdi a conta às entrevistas que dei, nos três ramos das forças mediáticas, imprensa, rádio e televisão. Centrei o contra-ataque num exemplo concreto e inequívoco: uma viagem oficial do Presidente Mota Amaral e numerosa comitiva aos Açores, para assistir às festas do Senhor Santo - a convite do Bispo, ou da Confraria, ou do Governo Regional (para o caso, tanto faz…). Ora um evento religioso, católico, tinha de equivaler no “obstat” de Alegre a um “happening” desportivo. Bem, pelo contrário, eu distinguia as situações: se Amaral, fervoroso “Opus Dei”, tivesse comparecido à devoção micaelense, como peregrino, por sua iniciativa, o ato não se integrava no múnus presidencial. Se correspondesse a um convite oficial, passava a integrar! O paralelo entre a solene procissão solene e uma histórica e irrepetível partida de futebol, para o efeito de “justificação de presença” era mais do que evidente: se decidissem partir em excursão para Sevilha, como meros adeptos, não estariam, obviamente, em trabalho parlamentar. Indo a convite oficial passavam a estar (ainda por cima, se, como eu, fossem mandatados pela sua bancada). “Touché”, Amaral guardou-se de negar a minha alegação, mas, criativamente, elaborou nova doutrina: para oficializar a ida a Sevilha, o convite do Clube teria de ser dirigido à presidência da Assembleia, que, em conjunto com as lideranças de bancada, designaria uma delegação parlamentar. Presumi que quisesse escolher a delegação e, quiçá, presidi-la! Era pior a emenda do jurista que o soneto do Poeta... Ao fim de algum tempo, a querela saiu de cena. Dir-se-ia que estava encerrada. Mas não, e a culpa foi do José Mourinho, que não parava de ganhar. No ano seguinte, foi finalista e vencedor da “Champions League”, em Gelsenkirchen. Em São Bento, jogou-se uma nova partida, pouco desportiva, entre Mota Amaral e os mesmos deputados, que aceitaram o convite do Porto e sofreram a segunda falta injustificada. Dessa vez, vi-me numa posição singular: estava no centro da Europa, em missão parlamentar e cheguei à Alemanha, pela Lufthansa, vinda de uma reunião da APCE na Hungria, com direito a ajudas de custo e tudo…Predestinação! Os meus caminhos de regresso à Pátria, em qualquer caso, passavam por Frankfurt, a dois passos do estádio… Mas mesmo sem falta, protestei, abundantemente, em nome dos outros. No ano de 2004, houve, ainda oportunidade para a terceira batalha que, porém, tanto quanto me apercebi, foi evitada por um presidente da Assembleia, em fim de mandato. De facto, o Governo Santana Lopes acabava de ser demitido pelo Presidente Sampaio, a Assembleia estava prestes a fechar portas, e eu tive, com Mota Amaral, uma conversa, que poderá ter pesado alguma coisa. Participei-lhe que, atendendo ao facto incontroverso de o Japão pertencer ao meu círculo eleitoral, faria a viagem como deputada da emigração. Ponto final…. E, em favor dos meus colegas, acrescentei, referindo-me à política, em linguagem futebolística: “Acha que, nesta fase do campeonato, vale a pena desencadear mais uma polémica?”. Não tenho a certeza, mas suponho, que ninguém foi penalizado pela mais longa e duradoura de das deslocações de uma numerosa comitiva parlamentar a uma final de futebol (quase todos do PS – eu era, do PSD, a “avis rara”). De lá voltamos na companhia da “Taça Intercontinental”, mais um vistoso troféu de Museu BMG /FCP. Pelo meio, extracompetições desportivas, houve ainda uma vistosa confrontação direta entre FCP e Mota Amaral/PSD, a propósito da inauguração do estádio do Dragão. Estava convidada para presidir à cerimónia, uma alta figura de Estado, que à última hora, não pode comparecer (o PR ou o PM - não me lembro qual deles). O Presidente da Assembleia entendeu que lhe cabia, a ele, a substituição e mandou o protocolo da “Casa” perguntar aos serviços de protocolo do FCP os detalhes sobre o cerimonial – hora, local de receção, etc. Ao que o Clube prontamente respondeu que Sua Excelência não precisava de se preocupar com esses detalhes, porque não estava convidado… Novo bruaá mediático, alimentado pela declarada solidariedade que o Grupo Parlamentar do PSD dava àquele seu militante, “proibindo” a presença dos deputados na festa do Dragão, apesar de acontecer em fim de semana e território nacional…. Eu, como era expectável, estive lá, na tribuna dos convidados, onde não me lembro de ter visto um só colega de bancada. Sem “stress” e felicíssima, ao lado de Aurora Cunha, a primeira portuguesa campeã e tricampeã mundial de atletismo, assisti a um espetáculo deslumbrante, com um helicóptero a aterrar no relvado, o Pedro Burmester a tocar piano, o Leo Messi a estrear-se pelo Barcelona e o FCP a vencer o desafio, que, amigável, ou não, é bom para vencer. Antes, estive num programa da RTP, em palco montado na atual Avenida dos Campeões Europeus, numa longa entrevista conjunta com o Dr. Pôncio Monteiro. À entrada do estádio, mais entrevistas, breves e monotemáticas, sendo o tema o facto de ignorar o boicote do PSD à inauguração do estádio. Esclareci que estava no uso da plena liberdade de gozar o fim de semana, corresponder ao convite do meu clube, e manifestar discordância ao descabido boicote. Um partido democrático como o PSD não me cercearia essa liberdade. E se o fizesse, e eu tivesse de escolher entre o clube e o partido, escolhia o clube. As verdades são para ser ditas. Sou do FCP, desde que me conheço. Do partido, não! E posso deixar de ser, se o vir por maus caminhos. Houve jornais – por exemplo, o “Público” – que fizeram manchete com essa frase clarificadora e bombástica (como quase toda a imprensa gosta). Toda a gente (sobretudo no mundo masculino da política, (só ligeiramente menos masculino do que o futebol…) tem clube. Não vale a pena disfarçar. Dizê-lo frontalmente é, na verdade, um dever de transparência, que se junta ao dever de imparcialidade num cargo público. Foram obrigações que cumpri com a facilidade de quem acredita na sua bondade. No Governo, no Parlamento, no país, nas comunidades, em relação a grandes e pequenos, profissionais, aos amadores. Nas comunidades do estrangeiro esta convivialidade geral é bem mais comum do que dentro destas fronteiras tão estreitas. As associações de bandeira clubista fazem parte da comunidade como qualquer outra coletividade, com iniciativas culturais, recreativas, beneficentes e eu frequentava qualquer delas, com prazer. Nos anos 80, quando o Benfica de Toronto estava no apogeu fui uma convidada frequentíssima dos seus animados convívios. Começava o discurso da praxe, muitas vezes, proclamando, o que toda a gente já sabia: “Este é o único Benfica de que eu gosto!”. Mais tarde, foi o Sporting Clube de Toronto, a brilhar, e lá estive eu, também, no meio leões, às vezes, amigos recém-chegados da Pátria, o Padre Fontes (companheiro de andanças por Pitões das Júnias e outras aldeias comunitárias Nordestinas), a Maria José Valério, o Artur Agostinho… Na veste de deputada, muitas das minhas visitas a Toronto eram organizadas pela Maria Alice Ribeiro que não me dava descanso, num corrupio entre as festas, que eram às dezenas – um panorama associativo apenas comparável ao do Rio de Janeiro, as suas “casas regionais”, todas sempre em festa. Em Toronto, o FCP foi, dos “grandes” de Portugal, o último a entrar em cena e começou muito bem, com a presidência, então raridade, de uma mulher, a Dr.ª Manuela Vieira. Os sucessores dispensavam a minha presença - “santos da casa não fazem milagres”. Ou talvez a questão fosse outra, tendo mais a ver com cores partidárias do que clubistas, não sei. É certo que no Benfica de Toronto pontificavam alguns dos líderes laranja, como, também, por exemplo, no Sporting de Long Island, que me convidou para a inauguração da casa do clube, lado a lado com uma dirigente, a Drª Trigo Mira, o lendário Damas e a não menos lendária Maria José Valério. Eu andava em missão como deputada pelo leste dos EUA e gostosamente inclui o evento na minha agenda. Fui com o presidente local (e meu correligionário) ao aeroporto de Newark esperar a numerosa delegação enviada por Lisboa e dar um abraço especial à Maria José, vistosíssima com a suas madeixas verdes, num impecável penteado. Na festa, saudei o nascimento de mais uma dinâmica associação portuguesa – que, para mim, era o que relevava, naturalmente, mas o melhor contributo não foi certamente o meu discurso (nunca era…). Estranhei que ninguém pedisse à Maria José para cantar, pelo menos o hino…. Creio que já a viam só como figura de museu… Avancei, de novo, para o palco, tomei o micrófono (assustando, pela certa, parte da audiência, farta de me ouvir…). E fui muito breve, apenas uns segundos, a sugerir que Maria José subisse à cena e cantasse para nós. Ela não se fez rogada. Cantou, cantou… para uma audiência em delírio! E, como levava um “stock” de discos, ou cassetes, para vender, vendeu tudo. Já éramos amigas e mais ficámos. Do mundo do desporto tive mais e mais surpreendentes convites. Da RTP, para participar num programa coordenado por Paulo Dentinho, com um grande leque de comentadores (o José Lello, o Barroso e vários outros), o que espaçava a presença de cada um. Mulher, só eu. Recordo de um programa em que esteve em foco a última polémica de Jardel, então já no SCP. Eu, que defendo, por igual, os portistas e ex-portistas, desde que seja fã, tornei-me ali a única a justificar os pecadilhos do goleador. No intervalo, o Zé Lello interpelou-me severamente: “Manuela, pare de desculpar o Jardel. Parece a Santinha da Ladeiral” Eu gostava de partilhar os microfones ou os ecrãs com ele, porque tudo corria bem, mesmo quando discordávamos. Era divertido e repentista, levava os parceiros a irem pela mesma senda. Estivemos juntos a discutir os mais diversos temas, no Portugal no Coração, com o Malato e a Merche (uma dupla inesquecível!), no “Expresso da meia noite” a comentar um fim de campeonato (ganho pelo FCP), em não sei quantos mais, e, por fim, numa última ronda, na Antena 1 (Monte da Virgem, rádio e televisão), a convite da Maria Flor Pedroso. Foi por altura de um 10 de junho, pouco tempo antes de ele nos deixar… Maria Flor, além de uma ótima jornalista, é, também, pessoa muito bem-disposta. Para além do significado do Dia de Portugal, fora do País, e das nossas perspetivas sobre o futuro das comunidades, coisas seriíssimas, quis saber, num plano mais ligeiro, o porquê de tantas vezes, ele e eu, nos termos publicamente desaguisado. Respondi, sumariando, que as coisas pareciam sempre mais graves do que eram. Tínhamos em comum sermos do Porto, francos e diretos, muito teimosos, e, no confronto, com tendência para excessos de linguagem. Uma boa síntese, realista, pois, apesar do fragor das batalhas verbais, inclusive no hemiciclo de São Bento, continuávamos, invariavelmente, amigos como dantes…. O curriculum desportivo (para já não falar no político) de Lello é incomparavelmente superior ao meu - foi dirigente do Boavista, Ministro do Desporto e um dos homens do Euro 2004. Eu nunca passei do mais puro amadorismo, e ainda hoje me espanto com as solicitações que tive nesse campo! A colaboração mais durável, cerca de um ano, foi no programa da Rádio Comercial chamado “Os cinco violinos”, em que, apesar da designação, só havia um sportinguista. De segunda a sexta, cada um de nós dispunha de, mais ou menos, cinco minutos de antena. Não creio ter faltado nunca, apesar das minhas constantes viagens. Fazia a gravação por telefone, onde quer que estivesse em Hong –Kong, San Diego, ou quase no Ártico, em Kitimat. Kitimat é, julgo que ainda é, a (pequena) cidade canadiana com maior percentagem de trabalhadores portugueses, onde podemos sempre contar com uma fabulosa receção, tal como no polo sul, Comodoro-Ribadávia, não muito longe do Estreito de Magalhães. No roteiro das entrevistas surpreendentes Manaus ocupa um lugar de destaque, assim como Maracaíbo (Rádio Fé), Melbourne (Carrascalão), New Bedford, Paris (Alpha, campanha PRD) Estocolmo (curso verão – louvor da Suécia), LX (campanha eleitoral, Mª Elisa – trocar rádio por TV, “Pão com Manteiga”,) Porto (Jorge Gabriel – a mulher minhota que rachou a cabeça ao marido violento/ Ivone Ferreira com Mário – cigarros de barba de milho). Manaus à cabeça! Uma palavra sobre uma comunidade muito calorosa, e nos dois sentidos, afetivo e climático. O nosso Cônsul Honorário na Amazónia era e foi, durante largos anos, o Senhor Alfredo Pedras. Eu sei que todos nos somos únicos e irrepetíveis, mas o Cônsul Pedras era mais assim. Ótimo representante do País, com perfeito entrosamento na sociedade brasileira e portuguesa (o que, felizmente, não é raro entre os cônsules honorários os Vice-Cônsules, em su – dos fabulosos Seabra da Veiga e Carlos de Lemos já falei, mas não, por exemplo, de Edmundo Macedo (Los Angeles), que trabalhava por dez, sabia todas as leis e regras do ofício, escrevia à Eça e parecia mais o nosso Embaixador do que o Embaixador em Washington, Eduardo Pereira (León), Raúl Romero (Argentina), Alfredo Pinto Coelho (Recife), filantropo, cineasta, grande amigo de Gilberto e Paulo Freyre… O Senhor Pedras estava sempre zangado com o MNE, que não lhe dava o apoio prometido e muito menos o merecido. O que também acontecia com todos os outros, embora protestassem menos. Como era um empresário rico, ia providenciando, suprindo a falta de meios públicas, para uma área consular, que, conforme me mostrava no mapa, era a mais extensa do Brasil (e, ao que ele julgava, do mundo), abrangendo não sei quantos Estados e cidades. Eu só podia dar-lhe razão e apoio moral, porque não mandava no MNE e estava nas suas boas graças. Organizava esplendidamente as minhas visitas parlamentares, que passavam por uma série de audiências oficiais e entrevistas nos “media” brasileiros (a evidenciar o seu prestígio no Estado), e pelos habituais encontros nas grandes instituições da comunidade portuguesa, o Hospital, o Clube, a sede campestre. É muito comum no Brasil os centros culturais e recreativos, sedeados em antigos edifícios cerimoniais no centro das cidades, expandirem-se em espaços mais vastos, nos subúrbios, onde convivem e praticam desporto nos fins de semana. Dependendo da geografia, à beira-mar, na montanha, no rio, na planície - quase sempre em lugares muito bonitos. Era o caso ali, num frondoso pedaço de selva amazónica, onde fui festivamente recebida na reunião comunitária, onde não faltou a missa, o requintado almoço/piquenique e a emocionante exibição do rancho folclórico de Santa Etelvina. Os componentes, os ensaiadores, os dirigentes eram todos índios da Amazónia, e de traços bem marcados - lindíssimos, elegantíssimos e perfeitos dançarinos. Nunca vi nada de semelhante… imaginem o que dançar o vira, em trajes vianenses, (tecidos para o inverno minhoto), a uma temperatura de mais de 40º à sombra? Adoravam o nosso folclore e o nosso país! E eu bem tentei que fossem convidados a virem exibir-se em Portugal. Não consegui - uma das mil e uma coisas em que falhei… As minhas prioridades (coincidentes com as das pessoas, porque as ouvia) e as dos governos nem sempre eram as mesmas… Das minhas visitas a Manaus, (com uma única exceção, o clima!) só posso dizer maravilhas. Tudo me corria sempre bem Manaus é até ali dei uma entrevista, que terá sido o meu máximo. Aconteceu, por acaso, o tal acaso de que é feita a vida, pelo menos a minha. Não foi a entrevista para a qual estávamos convidados, o Cônsul e eu, mas a seguinte, um “talk-show” desportivo com o sugestivo título de “Rebola a bola”. Quem diria que o animador de um programa com tão hilariante denominação se revelava um mestre do comentário desportivo e…. político?... No momento em que o senhor Pedras e eu nos levantávamos para deixar o estúdio, ele veio ao nosso encontro, perguntando se podíamos continuar no seu “show”. Pelo visto, tinha gostado da nossa “performance” e tratou de nos “arrematar”! Começámos com o futebol, naturalmente. Decorria um campeonato do mundo, que era o tema forte do programa - debruçámo-nos sobre as exibições da seleção brasileira, com uma análise homem a homem Tudo bem. O Sr. Pedras era grande conhecedor da matéria e eu, tendo televisão nos hotéis, estava suficientemente a par das ocorrências mais dramáticas. Mas logo passámos à política portuguesa, brasileira, universal, e eu não cabia em mim de espanto – o entrevistador parecia um distinto constitucionalista, um catedrático de ciência política e Direito comparado. Em Portugal, raras vezes deparei com tanta erudição e finura… Foi, na verdade, um “Rebola a bola azul”, sinónimo de planeta Terra…. Comparável a esse fenomenal brasileiro foi a luso-timorense Dr.ª Gabriela Carrascalão numa rádio australiana aberta às diferentes comunidades étnicas. O programa em português foi, como quase tudo, na fase de crescimento da nossa comunidade de Melbourne, iniciado pelo Dr. Carlos de Lemos, que, algum tempo depois, delegou na jovem jornalista. A nossa longa conversa de uma hora, transmitida para toda a Austrália, foi. como vim a saber muito depois, traduzida em mais de cinquenta línguas e dialetos e premiada. Na altura, gostei logo das questões que me levou a abordar, da forma como conduzia o diálogo. Diz-me uma já longa experiência que quem faz a qualidade da entrevista e sempre muito mais o (ou a), entrevistador (a) do que o, (ou a), entrevistado (a)… Em New Bedford, o jornalista era bom, mas o que tornou o momento memorável, fui eu e o que vim a saber “ex post facto”… Nos cerca de 30 minutos de conversa, em inglês, para uma audiência americana, ou luso americana, debatemos a atualidade da política portuguesa, a sua evolução desde a revolução democrática, as próximas eleições, o sistema eleitoral e partidário, a participação de emigrantes, a dupla nacionalidade, etc. etc – sempre numa perspetiva de comparação com a realidade americana, nas semelhanças e diferenças. Tudo temáticas em que me sentia à vontade e em que me parecia estar a sair-me muito bem. Falei, falei…não me guardei de confessar o meu “Kennedismo” de longa data, e de afirmar que nos EUA seria do Partido Democrata, “liberal”, em sentido americano, assim como em Portugal, o Presidente Kennedy teria sido social-democrata. No fim, já longe das câmaras, o jornalista, que era um jovem luso americano, tarde e a más horas, preveniu-me: “A Dr.ª tenha cuidado quando falar em social-democracia nos EUA. Aqui tudo o que é social, é sinónimo de socialista, de comunista. Acaba de pôr o presidente Kennedy nesse campo!”.Acho que, provavelmente, ele tinha razão. Eu caí no descuido ou pecado de um “eurocentrismo” terminológico, mas ele poderia ter evitado o equívoco, explicitando que o “social democrat” português está politicamente próximo do “liberal-democrat” e não do credo comunista!... Outras duas “gaffes” minhas, ambas nas manhãs da RTP/Porto, deixaram os interlocutores ligeiramente incomodados, mas despertaram-me menos remorsos… Uma foi, há muito anos, num magnífico programa da Ivone Ferreira. Nesse dia, não só era convidada, como levava três convidados, para falarmos, eles e eu, de mim. Imagine-se…. Os três eram o meu primo Mário Caetano Pereira, médico e pioneiro dos transplantes de rins no Porto, um colega e grande amigo do meu pai, o Dr. Fernando Fonseca, um homem divertidíssimo, brilhante advogado, e a Graça Guedes, minha amiga e colega do colégio do Sardão. O Mário, que, ao contrário da prima, era muito avesso a falar para os “media” (até de transplantes, quanto mais de episódios de vida…), nesse diálogo abriu uma exceção. E, quando recordávamos, em comum, as brincadeiras na “Villa Maria” da nossa querida avó do mesmo nome, eis que referimos, os cigarros de barbas de milho, e os “Provisórios”, que fumávamos às escondidas. A Ivone fez-me logo um discreto sinal… daí para diante, evitámos mais confissões de malfeitorias. Havia que pensar nas criancinhas que assistiam à emissão, dar exemplo edificantes… Anos volvidos, já os cigarros de barbas de milho não chocariam tanto, ainda abalava os nossos brandos costumes o exemplo que eu dei no tema que estava em discussão: violência doméstica. Os moderadores da rubrica, incluída na Praça da Alegria, eram os esplêndidos profissionais e simpaticíssimos Jorge Gabriel e Sónia Araújo. Contaram o seu fadaria diversas vítimas, mulheres e, depois, foram sendo aventadas várias vias de resposta e solução, Os casos, como sabemos, na constância da relação infeliz, quantas vezes trágica, são insolúveis, a menos que o agressor faça a sua “estrada de Damasco”. De repente, veio-me à memória uma história verídica, contada, há quase meio século, por uma colega da universidade de Coimbra. Uma cena rural do Alto Minho, um casal de agricultores abastados e já velhotes. O marido era um homem de muito mau feitio e os trabalhadores da quinta presenciavam inúmeras agressões à pobre mulher indefesa. Até que um dia, estava ela na cozinha, a preparar o almoço, remexendo uma panela de ferro preto, e, quando ele, irado, avançou para lhe bater, (como de costume), por uma qualquer trivial discordância ela. (contra o seu costume), pegou no testo da panela, e, com uma pancada certeira, rachou-lhe a cabeça. uma gritaria, mas não da habitual vítima. Quando voltou para a faina, com um penso na cabeça, explicou que tinha caído e batido com a testa num muro e todos fizeram de conta que acreditavam. E, a partir daí, os dois velhinhos minhotos passaram a dar-se muito bem e foram felizes para sempre. A meu ver, se o cônjuge não for um psicopata, mas apenas um cobarde, esta receita tem tudo para dar certa, mas, pelo visto, não era conveniente incitar a vítima a responder ao agressor na mesma moeda… De qualquer modo, ainda bem que pude dar público testemunho da heroína minhota, embora não conseguisse narrar os factos tão bem e com tanta graça como a minha colega de Coimbra… A mais pitoresca entrevista da minha história foi certamente a que dei em Maracaibo, lá no “far-west” da Venezuela à Radio Fé de Maracaibo. Mais de 30 minutos, em “portunhol” de muito fresca data. A primeira experiência fora nas vésperas, durante um almoço com dois senadores “coppeanos” amigos do Luiz Fontoura, que fazia muita questão nesse estreitamento das relações interpartidárias. Restaurante de luxo, dois senhores muito simpáticos, mas comunicação difícil… Não falavam inglês, nem francês, não percebiam o meu português. Eu, sim, estava bem habituado à pronúncia aberta e musical do castelhano das Américas (ou não tivesse vivido um ano na Casa da Argentina em Paris). O que fazer? Rompi o impasse à portuguesa, improvisando a pronúncia local. Sucesso imediato “Que bien que habla. La entendiemos muy bien”. E era verdade – entendiam, o diálogo fluia. Daí que repetir a experiência em Maracaibo fosse uma tentação…. Caí, depois, na asneira de contar essa história na residência do Embaixador e despertei a curiosidade geral. Ameaçavam pedir uma cassete à Rádio Fé… ameacei zangar-me se o fizessem. Até hoje, estou sem saber se os dissuadi. -------------------------------------------------------------------------------------- Só em 1991, me propus, eu própria, como voluntária, para um lugar que verdadeiramente queria: representante da AR na APCE (Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa). Aí, me mantive até abandonar o Parlamento nacional em 2005. Fui bem mais feliz fora do que dentro de fronteiras (tanto na emigração como nas organizações internacionais, a APCE. e a AUEO...). Aí havia menos jogos políticos de bastidores, não se sabia o que era disciplina partidária, era larga a margem de iniciativa pessoal, para intervir, para propor recomendações... Presidi à Comissão das Migrações à Subcomissão da Igualdade e a outras, fui relatora em inúmeras propostas. Defendi a dupla nacionalidade, o estatuto dos expatriados, a não expulsão de imigrantes, o reagrupamento familiar, insurgi-me contra a guerra do Iraque, denunciei a discriminação de género no desporto... Acabei a presidir, entre 2002 e 2005, à própria Delegação Portuguesa à APCE e á Assembleia da UEO – onde fui VP , como poderia ter sido da APCE (não quis retirar do lugar Medeiros Ferreira…). A 1ª a receber um diploma de membro honorário (não havia essa tradição – juntamente com Terry Davis e Pedro Roseta – grande adepta da UEO, como braço europeu da NATO). Amizade com Russel Johnston – dificuldades com Van der Linden – a “gauchiste” do PPE…). Paris, de novo (os tempos em que tinha um gira-discos, com mecanismo de repetição e meia dúzia de discos de 33 rotações, que ouvia, interminavelmente – Serge Reggiani, Barbara, Leo Ferré. Aznavour, Brassens e Nicoletta… paredes decoradas com três enormes posters dos Kennedys, comprados no Blv St Michel, John, Bob e um terceiro com John e Bob. Mais tarde, Annie Bettencourt dir-me.ia: nunca me esqueci dos teus Kennedys. Eram os únicos… Por todo o lado só havia o “Che” (Guevara). Bonito homem… mas não tão popular assim na Casa da Argentina, onde vivi no meu 2º anos de Paris (sentia-me na Argentina, adoro para sempre a Argentina – que diferente da Casa Estudantes Portugueses … pouca política, muita dança, muito música – havia um enorme contingente de executantes de viola, tocavam divinamente, sobretudo a Mercedes (Morita), filha do diretor, o Prof Covian – um democrata cristão, genuinamente democrata, que pouco depois partiria para o exílio em S Paulo… Um outro inesperado e insistente convite me levou, depois, à vereação da Câmara da cidade onde vivo, Espinho... Fui vereadora da Cultura no ano do centenário da República e isso permitiu fazer coisas diferentes e por o enfoque no movimento feminista e republicano. Não que eu seja republicana hoje, mas tenho a certeza que o teria sido em 1910, na companhia da Carolina Beatriz Àngelo, Ana de Castro Osório ou Adelaide Cabete. E feminista sou-o no sentido preciso que lhe davam as nossas sufragistas. (8 de março de 1989, quando era VP da AR e presidente da Comissão da Condição Feminina – proposta de Natália… escolhi Ana de Castro Osório. Finalmente, falaram pelas nossas vozes Também nunca tive complexos de inferioridade por preencher, eventualmente, um espaço aberto pela "quota" , mais ou menos larvada. No meu caso, nunca explicita, nem mesmo no cargo de VP da AR e sempre rejeitada como tal pelos opositores das quotas do meu partido. Quando eu dizia: "escolheram-me para Vice-Presidente da AR, porque queriam uma Mulher" (o que para mim era evidente, estava certo e só pecava por ser decisão tardia), respondiam-me: "Manuela, não diga isso! Está nas funções pelo seu mérito"