segunda-feira, 30 de outubro de 2017

A C NÉRY

  Caríssima Amiga

A iniciativa da Associação Mulher Migrante de comemorar, em abril, o dia da comunidade luso-brasileira, com colóquios, exposições, etc é uma organização da Associação e não de uma ou outra das associadas. Este ano, eu não quis levantar a questão da omissão da "Mulher Migrante" como organizadora (ou, quando muito, co-organizadora) do evento,até porque o programa já estava impresso. Mas a Associação não vai aceitar futuramente essa exclusão. Não é a mesma coisa a participação de dirigentes, a título individual, seja a Arcelina, ou eu, ou qualquer outra. O título "Brasil/Portugal - a Descoberta contínua" pertence à "Mulher Migrante" e eu não posso cede-lo, não tenho esse direito. 
Por isso, parece-me muito bem alterar a designação, Contará, evidentemente, sempre com a minha colaboração, a título individual, tal como aconteceu este ano,  E não tenho qualquer dificuldade em me deslocar a Aveiro - é perto e é barato (de comboio). Ótima escolha!
Bjinhos

terça-feira, 8 de agosto de 2017

A SETA DEIXOU-NOS

1 - ERA UMA VEZ. UMA GATINHA LINDA...
Um dia, no verão de 2001, encontrei no pequeno jardim das traseiras da casa da Rua 7, em Espinho uma ninhada de gatinhos lindíssimos, trazidos pela progenitora, também ela muito bonita, preta e branca, sociável, grande. Já minha conhecida, pois, como vários outros gatos vadios, passeava de telhado em telhado, (telhados de anexos térreos, que abundam nesta parte norte da cidade) e descia, facilmente, para o muro baixo, robusto e largo, que separava a vivenda dos meus Pais, o nº 307, da da família do famoso fotógrafo espinhense, Sr Evaristo, o nº 115 (ele morou décadas no prédio onde tinha o estúdio, na Rua 8, e, já reformado, mudara-se-se para aqui). Gente boa, amiga dos animais, que eram igualmente bem recebidos dos dois lados do muro. Em cima dele faziam fila, quando pressentiam que eu estava por perto, disposta a alimenta-los. A dita ninhada foi alojar-se na arrecadação dos fundos do quintal, que, de dia, estava sempre de porta aberta. Contudo, ficaram muito tempo. Quando contei à minha Mãe que tínhamos visitantes ela quis logo ir vê-los, e não só vê-los, mas também agarra-los, todos, de uma só vez, com as mãos. Coisa que eu não teria tentado, porque, é claro, eles assustaram-se e reagiram vigorosamente, apesar da pouca idade, arranhando-a... E gata-mãe tratou logo de os levar consigo para sítio mais tranquilo. Todos menos uma pequenina, cinzenta e branca, magríssima, que decidiu, definitivamente, abandonar. A boa surpresa é que já comia de tudo, com apetite. Ninguém procurava pegar-lhe, porque era esquiva, brava, bufava, escondia-se. Só deixava aproximar-se o nosso gato amarelo, o Mandarim, que manso e amável. Quem lhe levava a paparoca era eu - ou a Olívia, nas minhas ausências de Espinho. A bichana parecia-me muito frágil, pouco saudável. Comecei a desconfiar que a razão do abandono materno podia ser essa. Embora fugisse de mim, eu ficava, de longe a observa-la e falava-lhe, continuamente, em longos monólogos. De dia para dia, fui-me aproximando, mais e mais, até ficar com a mão sobre a sua cabeça, mas sem lhe tocar. Por fim, numa inesquecível manhã, ela mesma se soergueu até à palma da minha mão e eu pude fazer-lhe festas. Momento mágico! Sabia que desse momento em diante éramos amigas, me faria inteira confiança. Peguei-a aos colo e trouxe-a para dentro da casa. A gatinha triste e solitária, de repente, tornou-se alegre e prazenteira, aprendeu a brincar, com bolas de borracha e a correr loucamente, por debaixo de cadeiras, mesas e qualquer móvel que estivesse um palmo acima do chão. Impressionadas com os seus "sprints" e a sua estonteante velocidade, a Mãe e eu decidimos chamar-lhe seta ou flecha. Seta soava melhor, SETA ficou.
2 -UMA GATA TIPO GENTE E OS OUTROS GATOS O ciclo de vida dos felinos é como o nosso, só mais curto. Mas nem todos são como a Seta, que parecia gente - na inteligência, nas emoções, até na sua evolução da infância à idade adulta e à velhice. Os outros de pequenos e brincalhões, tornaram-se simplesmente mais gordos e pachorrentos, mais dados a longas sestas. Ela não. De uma infância que se pode resumir em três "efes" (Formosa, feliz e frágil), tornou-se uma adolescente caprichosa, temperamental, pronta a zangar-se se era contrariada.... Incrível. Os olhos revelavam exatamente o sentimento dominante em cada momento. Eram lindos, verdes, olhos verdadeiramente humanos, por onde perpassava toda a gama de estados de alma, que vai da indignação à complacência ou satisfação. Cada vez mais senhora de si. Um porte imperial. Solitária, afastada de todos os outros gatos da casa, numa relação exclusiva com as pessoas - e poucas. Uma "loner"! Contrariada, fugia e desaparecia até que a fúria passasse. Havia que falar-lhe em tom cordato, sobretudo para a remover do inconveniente lugar onde estivesse. "Parece a reencarnação de uma dama de duvidoso passado, que anda a penar pecados velhos", dizia eu quando a víamos mal-disposta com tudo e todos. Era tão independente e imprevisível connosco, quanto distante com os companheiros. Ignorava-os, nunca tomou a iniciativa de atacar, mas era poderosa a defender-se...
Depois que os filhos cresceram, só condescendia na aproximação do Mandarim, que, desde a primeira hora, a recebeu bem, educando-a "paternalmente", nos seus tempos de menina - gata e, logo que a viu chegada à idade adulta - cedo demais, hélas! - procriou com ela duas formosas ninhadas. Tão cedo que, da primeira vez, ela nem sequer sabia como amamentar o único gatinho que sobreviveu - um preto, todo preto. Mistérios, pois o Mandarim era um de um lindo amarelo e ela de uma cor muito branca, sobre a qual se estendiam, num perfeito design, manchas cinza, irregulares. Escondeu-se para o parto, no fundo do sotão, no canto mais inacessível e inesperado. Só tarde demais nos apercebemos, depois de uma busca em que foi a Olívia que encontrou o tesouro... Estava já a Seta deitada sobre um bébé desastradamente morto (igual a ela, esse!), e sem saber como cuidar do outro. Tínhamos de ser nós (eu, sempre que estava em Espinho) a colocá - lo a jeito para a mamada, colaboração que a Seta aceitava de bom grado.
Não me surpreende nada que esse seja, ainda hoje, já velhinho, com o seu focinho negro matizado de pelos branco, a criatura mais chegada a mim... Chamo-lhe o meu gato "tipo cão". Segue-me para onde quer que vá. Responde ao chamamento que os demais ignoram, olimpicamente. Seu nome, Guilherme (como o Guilherme Gayoso): Willy- Willy, no dia a dia.
No ano seguinte, nos fins de primavera de 2003, a família aumentou: um menino gordo, cinza e branco, muito mais branco do que ela, o Deco (homenagem ao "Mágico" do futebol), e um tigrado, ágil e magro, com um desenho perfeito de estrias escuras, o Jão-Jão. Nasceram a 31 de maio, dia de anos do João Miguel, que, em criança recebeu dos irmãos esse diminutivo. Duo encantador!
Distintos de temperamento e atitude perante a vida, o Jão-Jão, dócil e manso, como nenhum dos outros, mas um vadio, sempre pronto a desaparecer nos telhados, de onde só voltava, cansado das guerras, à noite, depois de a Olívia berrar por ele, durante uma hora. O Deco era caseiro, sociável, sempre pronto a dialogar através de sons imaginativos e estranhos, que pareciam de outros animais (um poliglota?). Uma equipa da RTP, que veio, por duas vezes, fazer uns apontamentos filmados no jardim e o ouviu, sem o ver, da segunda vez, insistia que eu tinha ali, para além dos gatos, um papagaio. Eu dizia que não e eles respondiam-me que o som se ouvia na gravação. De facto, ouvia-se, mas era o Deco...
Entretanto, uma gata branca, selvagem, refugiara-se no quintal, com a cumplicidade dos animais da casa e recusava-se a sair. E nunca mais saiu. E outra, delicada, elegante, muito pequenina (nunca haveria de crescer, é quase anã) também veio para ficar. Tal como a Seta, de pelo branco, com manchas cinza sobre o dorso, e os olhos rasgados, com traços quase orientais. Enigmática, insinuante. A Tita, como a famosa Tita da Avó Olívia, uma majestosa gata francesa. Esta de majestoso não tem nada. Dá uns passinhos curtos e, se for surpreendida a fugir, deixa uma pata no ar, hesitando no passo seguinte. É muito esperta, embora desastrada. parte coisas na passagem e, quando escapa para os telhados, há que ir tirá-la de lá, porque, aparentemente, tem medo de descer. Pede festinhas, procura colo, e, se a deixarem, mama, disfarçadamente, nos tecidos das camisolas, calças ou saias (a Maria do Carmo deixava-a sempre, à noite, lamber o seu roupão azul - gostava tanto dela que a queria levar para Olhão). No dia em que aqui se refugiou, debalde a Olívia a tentou expulsar, colocando-a, de 5 em 5 minutos, em cima do muro, de onde proviera. Ela reaparecia, de imediato, miando de inspirar dó. Ganhou um teto. Meses depois, encheu a casa com mais mais um gato residente, o super-inteligente e beligerante Dragão Derlei (honra o nome, mesmo sendo mais conhecido apenas por Dragão).
3 - O FIM DA ERA DOS NAMORADOS... A conselho do Paulo foram todos "neutralizados", menos a selvagem em que nunca mão humana assentou. Foi melhor assim, para evitar dar a pílula às meninas e numa tentativa de tornar os meninos mais sedentários. Resultou com todos menos com o Jão Jão, gato manso, que apanhava sovas terríveis dos gangsters dos telhados, que lhe apareciam na disputa do território. Não creio que a Seta tenha apreciado o povoamento excessivo do espaço que partilhava com o patriarca amarelo, antes pelo contrário. Nem com os filhos era compatível, depois que eles cresciam. Só mesmo com o Mandarim, amável com todos e, em particular, com a selvagem. A Branquinha era, como viemos a descobrir, uma albina, de olhos azuis, uma perfeição! Acabaria por morrer, ao fim de uns anos, de cancro da pele. Domesticada, protegida do sol, dentro de casa, teria sobrevivido, mas para tanto nunca confiou na raça humana e era impossível te-la presa numa loja, o dia inteiro. Como não pode ser castrada, e nem sempre tomava a pílula, teve descendência de gatos de fora, que atravessavam o muro para namorar a beldade. Nenhum sobreviveu, porque ela não sabia cuidar deles- er a louca, mesmo! A Seta, embora não apreciasse muito a maternidade, melhorou muito da primeira para a segunda vez. No extremo oposto, a Tita era uma excelente progenitora, por pura vocação. Que bem tratava o seu filho lindo, todo preto, salvo por umas manchas brancas nas patinhas dianteiras, que pareciam luvas, e por um um triângulo branco no peito. Dir-se-ia que anda sempre de "smoking". Não sei se isso tem a ver com o processo educativo, a verdade é que continuam a manter uma relação excelente de proximidade. Sempre juntos, de preferência, noite e dia. Depois da morte do Mandarim, o Dragão disputava o cetro do comando com a Seta e o Willy. Uma inquietação! Havia que mantê-los sempre separados, de contrário o Dragão atacava, ainda que acabasse sempre a perder. O Willy tem o dobro da seu peso e a Seta era, quando provocada, uma guerreira poderosa. Num último confronto, antes do seu definitivo declínio, o ano passado, deixou-o quase cego de um olho - tão expressivamente verde!. A pálpebra fechou, sobre um globo ocular raiado de sangue. (Um susto...). A paz entre os dois só foi estabelecida quando ela já cambaleava pelos corredores. 4 - A VIDA POR UM FIO O estranho abandono da gatinha por uma mãe que tão bem cuidava do resto da ninhada, tinha que ter alguma explicação. Depressa havíamos de descobrir o porquê, quando a vimos acabrunhada, a fungar, com dificuldade respiratória e cheia de tosse. Ficou assim durante uns dia em que fui a Lisboa. A minha mãe mandou a Olívia por-lhe a cama na lavandaria, que é o compartimento mais frio de todos. Sabe-se lá porquê, toma decisões muito bizarras. De tempos a tempos, clama que os gatos são para estar à solta, fora de casa, dando os exemplos da sua infância na Villa Maria. Não era um grande exemplo, porque toda uma geração de gatos persas desapareceu assim - o último foi roubado durante as festas da Senhora do Rosário, os outros tambem terão tido o mesmo destino. Não sendo de raça, não era este o risco que corriam os nossos, mas a lista de outros perigos não tem fim. Apercebi-me da gravidade do estado da Seta quando a levei para a minha cama e ela não saltou em cima da protuberância que os meu pés formavam sobre a coberta branca, quando eu os movia, em ar de desafio... Falei a uns amigos, a Andreia e o Fernando, a perguntar o nome de um veterinário, Deram.me o número do Paulo, que atendeu a chamada prontamente, Examinou-a e não deu grandes esperanças. Se fosse a pneumonia típica dos gatos vadios não tinha salvação. Se fosse coisa menor, talvez... Foi um mês de batalha. Vinha todos os dias dar-lhe antibióticos injetáveis e soro. Salvou-lhe a vida e, em seguida, os olhos, que estavam encovados, e cobertos por uma membrana. O primeiro filhote teve problemas semelhantes, constipação e um olho sumido por detrás da membrana. A certa altura, houve que o operar. Mais um sucesso. Idem, com as castrações. E com a gravíssima pneumonia do Deco, que lhe afetou um dos pulmões. Tinha, então, pouco mais de um ano e, ainda hoje, quando piora, ouve-se ao longe a sua ruidosa respiração. Todavia, é um bem disposto, sempre de cauda no ar, e pronto para o diálogo , com os sons heterodoxos, que inventa criativamente, para chamar a atenção. Como era dado a travessuras e desastres, ao contrário do seu gémeo, sempre mais bem comportado eu coloquei-lhes alcunhas condizentes: Jão-Jão "o gato todo bom", e Deco- Deco o "gato todo mau". Exagerando... Um dia a Docas observou: "Não é bem assim, o Jão-Jão também faz muita asneira. Sim, e o Deco, por seu lado, é simpático, cordial e engraçado. Mas o JJ tinha um outro porte e era de uma suavidade sem igual. Escondia-se para saltar sobre as pernas das pessoas, enlaçando-as com as patas dianteiras. E, com a patinha direita dava sapatadas inesperadas na minha cara, contudo, sempre de unhas encolhidas, para não arranhar. Um querido! Não era assim com todo o mundo, só com a dona. Já o Deco andava atrás de qualquer um. Quando tive de reconstruir a casa do lado, a do Sr Evaristo que, por pressão da Mãe, fui praticamente obrigada a comprar logo que se soube estar à venda, (porque ela não queria vizinhos desconhecidos), o meu medo era que os oito gatos fossem molestados. Não houve incidentes nem acidentes, porque todos os trabalhadores estavam avisados que se tratava de animais de altíssima estimação. Aliás, nenhum deles se aproximava das obras, enquanto decorriam, salvo o Deco, que passava lá o dia, em confraternização. Um verdadeiro "gato operário". Sobre a saúde de todos velava o Paulo - gripes, vacinas, faltas de apetite, parasitas, lesões (o Willy rasgou a cauda num espeto qualquer num telhado, a Tita, durante uma fuga, quase sofreu uma perfuração de intestinos, numa outra saliência de metal, depois o Willy apareceu a mancar, com uma pata inchada...).
Entre eles, o Paulo não era, como é óbvio, muito popular, mas passou a pertencer, definitivamente, ao círculo da família Aguiar. 5- ESPLENDOR NA RELVA Nada a ver com o filme, que tinha esse título e que vi, há uma eternidade. A Seta era mesmo esplendorosa e adorava o seu jardim, de onde nunca quis fugir, e onde tinha a sua árvore favorita, a primeira das japoneiras (quatro) que ocupam todo um quintal demasiado exíguo para tantos ramos e folhagem.
Pedia companhia para brincadeiras, para os exercícios de salto em altura, junto ao tronco dessa japoneira: um pauzinho ou uma fita colorida, colocada nos ramos se cima, que ela procurava alcançar, em escalada vertiginosa, ou pulando. Ai de nós, se não retirássemos a mão a tempo, largando pau ou fita! Nunca se cansava. Pedia mais e mais, ainda que poucas vezes atingisse o alvo.. Dentro de casa, bolas de borracha ou de papel serviam o mesmo propósito. Era a viva imagem da felicidade.! Depois, mudou (com a maternidade, a traumática cirurgia?), mostrava o mau feitio, a má disposição, o desagrado connosco, na intensidade do olhar - como nunca vi em gato algum. Mas se não fosse contrariada ( e até a minha mãe fazia muita cerimónia com ela), socializava amavelmente, sentava-se ao colo, ou em cima das nossas camas, onde dormia as sestas. Quando nos apanhava a jeito, nos sofás, vinha sorrateira por detrás, junto á parede, e mordia-nos os cabelos. Nova metamorfose na velhice: mais de bem com a vida, mais meiga, até também com as visitas, que selecionava (a Xana, a Docas, a Zé). Teimosa e obstinada era muitíssimo. Ia para onde lhe apetecesse, e até portas abria, saltando com as patas dianteiras fechadas, em arco, sobre os puxadores - só mesmo os redondos lhe escapavam. 6- O PRAZER DA SUA COMPANHIA
Foram 16 anos cheios de boas recordações, de boa companhia. Tinha personalidade e beleza! Era ainda pequena, quando a mâe viu num jornal uma notícia sobre "a gata mais bonita do mundo". Recortou e mostrou à Olívia, perguntando: "Sabes quem é?" Resposta pronta: "É a Seta!" Não era, mas parecia. Não há fotos da sua infância, talvez porque foi breve e logo marcada pela doença, mas, depois,desabrochou, fez-se uma beldade, e conservou o aspeto quase até ao seu desaparecimento. O princípio do fim, os últimos onze meses, foi desencadeado por súbitos ataques e convulsões. O Paulo veio logo e levou-a à clínica veterinária onde dá colaboração. Fez análises - tudo bem. Com a idade que já tinha, optei por não a submeter a um TAC, com a inevitável anastesia. Ou era epilepsia, doença bem mais rara nos gatos do que nos cães, ou um tumor cerebral. Nunca saberemos, mas eu inclino-me para o tumor fatal. Tomou "luminal" (metade menos um terço de pastilha, de manhã à noite, que lhe dei pontualmente, durante onze meses, disfarçado na pasta da suas latinhas preferidas) e, de começo, melhorou. Os ataques desapareceram, até data muito recente. No mês passado, ainda ninguém diria que lhe restava tão pouca vida. A sua paixão pelo jardim manteve-se até ao último dia, quando deixou de se alimentar, mas não deixou de se arrastar para perto das roseiras. Mal abria a porta da sala, era a primeira a sair. De tarde, tentei dar-lhe soro, a desafia-la para uma 7ª vida. Adormeceu no meu quarto. Está agora no jardim sob uma japoneira, junto ao Mandarim. Não longe do Jão- Jão e da Branquinha. Restam quatro, todos, em boa verdade, já velhotes. Até o Dragão, que será sempre "o pequenino" anda nos 13 anos. Quando o solto no jardim, não manifesta grande vontade de arejar nos telhados. Mas eu vigio, porque em gatinhos "nunca fiando"... A imprevisibilidade é parte do encanto desta espécie. O facto da Seta ser menos imprevisível do que todos os outros, mais tranquila e estável, nos seus hábitos e manifestações, no seu trato muito "civilizado" (nada de pular para cima das mesas, ou de assaltar os pratos de comida alheios, ou até de disputar os dos companheiros, ou de fugir do seu sítio, à falsa fé) era parte da sua quase humanidade. Uma de nós...

quarta-feira, 2 de agosto de 2017

NARRATIVA DO PRIMO ANTÓNIO REIS

Muito mais tarde,já trintão, numa estada em Lisboa, António conheceu a Amélia Soares de Albergaria, que seria a sua duradoura paixão - o casal nunca passava despercebido, onde quer que fosse, Ela era e ainda é, com mais de 80 anos, muito bonita, alta, loira, atraente e simpática, com seu sorriso doce, sempre impecavelmente vestida e penteada. Amélia tornou-se, de imediato, uma prima muito querida, família nossa, como se sempre o tivesse sido. Os padrinhos do casamento, celebrado na Sé do Porto, foram os meus pais. Do Porto, o cortejo nupcial regressou, numa longa fila de carros, a Avintes, para o banquete no casarão dos tios Reis, no cimo da Rua 5 de Outubro, onde é agora a sede e, suponho, o auditório do grupo de teatro "Os Plebeus". Horas deliciosas passámos ali, em ruidosas reuniões de família. Havia sempre muitos cães - a Maria Angélica , irmã do António, chegou a fazer criação de "pequinois" do mais puro "pedigree" (quando fiz 7 anos, ofereceu-me um cachorrinho, que eu escolhi de uma ninhada numerosa, um inesquecível presente). Atrás, o jardim acabava na parte de quinta agrícola, que era guardada por cães, nem sempre afáveis. A cave da casa era toda ela reservada à adega, ao lagar, onde me lembro de ver grupos de homens de calças arregaçadas acima do joelho a pisarem as uvas, cantando em coro. Parecia-me sempre uma cena de teatro, uma coreografia, embora a prova do vinho novo mostrasse o contrário. Da principal porta de entrada para dentro todas as salas estavam, tão acolhedora e urbanamente decoradas,tão cheias de bonitos quadros e estatuetas, jarrões "deco", veludos escuros, que ninguém adivinharia o mundo rural que coexistia, lá em baixo! Nada de raro,contudo, nessa época, nas vilas e aldeias rurais, à volta do Porto. Embora num estilo arquitetónico diferente, a casa em que nasci, em Gondomar, também somava as duas realidades. mas a festa do lagar não era tão popular com a dos Tios Reis- uma verdadeira romaria Do mesmo lado da rua, a poucos metros, para sul, morava o Francisco (Chico) Marques, numa casa branca, que tinha sido dos meus tetraavós, da mãe do Avô Manuel, onde passaram a infância alguns dos Marques, que viriam a notabilizar-se como entalhadores, escultores e arquitetos. Não é difícil imaginar os primos João Moreira, António e Maria Angélica Reis, Francisco e Corinto Marques (que viria a casar com Maria Angélica, já ambos na "meia idade") em constantes convívios numa e noutra dessas casas, E é provável que Celina se juntasse a eles muitas vezes, porque era prima de primos dos Reis, como a Maria Argentina - (através da qual consegui duas fotografias de Celina. Todos vizinhos e apar De Celina, na residência dos meus Avós, ficou, para além das memórias, um retrato, numa enorme moldura de prata, que se destacava em cima de uma mesa oval. A sala de visitas era mesmo só para visitas de " cerimonia", e não usada no dia a (ao contrário do que acontecia em casa da outra Avó, sobretudo, suponho, por causa do piano, que a convertia em "multiusos", sala de estudos de música, de ensaio de coros, de concertos das meninas, ou, simplesmente, de festa, com muita música e canto à mistura. Estava sempre aberta , até para as crianças, que, só por milagre não destruíram, por completo, os aparentemente frágeis, mas muito resistentes, sofás e cadeiras "arte nova" de nogueira clara e estofos de veludo verde. Não assim em Avintes, pelo que essa sala, que se nos oferecia raramente - recordo-o como sendo cinzento, numa atmosfera de penumbras, melancolia e mistério, simbolizados naquele retrato de uma mulher fascinante, num vestido de gala, de amplo decote, com os longos cabelos escuros, soltos, caindo, num penteado artístico, sobre os ombros. Dir-se-ia uma rainha, ou um vedeta de Hollywood, fitando a posteridade com uns olhos expressivos. Mas eu sabia que uma doença fatal a tinha derrotado aos 20 anos... E não parecia uma jovem assim tão jovem, mas uma Senhora... Sempre que se esqueciam de fechar a porta, eu entrava e ficava a olha-la, com tristeza, porque ali estava tão cheia de graça e de vida e, afinal, tinha partido deste mundo, pouco depois. A minha mãe era muito ciumenta e não partilhava das emoções que o retrato me despertava, e ainda menos dos sentimentos dos meus Avós por essa outra nora, tão querida. Havia outras fotografias de Celine, que foram sendo guardadas, face aos reiterados protestos da minha Mãe e, mesmo aquela, ali resguardada do convívio quotidiano, acabou por ser retirada, no auge de uma crise maior. Eu, com os meus 6 ou 7 anos, achei tudo isso muito mal. A casa, a sala, o retrato e as memórias - tudo era dos meus Avós. Uns anos depois, quando contava esta história a alguém, mais consonante com as reações de minha Mãe do que com as minhas, ouvi esta pergunta, que não precisava de resposta: "Tens a certeza de que não és filha da Celina"? Náo sou, nem preciso de ser para ver as coisas assim. Morrer aos 20 anos, que absurdo! Iria acontecer com a minha irmã Madalena, em 1964. Lindíssima, cheia de vida! Leucemia, no seu caso. Toronto. O António confirmou o que eu pressentia, uma vida tão breve de uma mulher que tanto amava a vida e que tinha tudo o que queria para ser feliz. Desportiva, divertida. Contava-me o António, de um dia ela apareceu, de repente, aos amigos reunidos no sotão da casa, entrando pelo telhado. Curiosamente, minha Mãe seria bem capaz de fazer o mesmo..., Tal como na geração seguinte, a minha irmã, primas e eu própria - todas useiras e vezeiras em saltar das árvores, dos terraços, das janelas do 1º andar da "Villa Maria", por sobre canteiros de rosas de pé alto (exercício arriscado...). Deslizar nos telhados da "casa do forno" ou da "casa da eira", para olhar em volta ou apanhar araçás de outro modo inacessíveis - araçás brancos, araçás vermelhos, que tinham vindo do Brasil, com o Avò Aguiar.... Celina, Maldalena...Por duas vezes, o Pai viu partir pessoas tão especiais, tão próximas, a mulher, uma filha, aos 20 anos, quase do mesmo modo, com doenças, cuja cura estava em vias de ser descoberta. A dimensão dos grandes desgostos e das maiores alegrias, a dimensão de "sonho" foi preenchida pelo meu Pai no círculo da família e dos amigos, na paixão pela música e pelo desporto, pelo mar, pelas artes, pelo cinema, pelo estudo, pelo debate - não certamente na vida profissional, como funcionário público, e, depois, dirigente de uma agremiação (a Associação ou Grémio dos Ourives do Norte). Não eram cargos muito empolgantes, nem davam remunerações milionárias, mas ele cumpriu-os de forma exemplar . Há pouco tempo, por acaso, encontrei num colóquio em Gondomar, terra da filigrana, um ourives que o tinha conhecido e me veio falar dele com toda a simpatia, mas acrescentando: "Só tinha um defeito, era excessivamente honesto". Se a honestidade pode ser excessiva, se a figura existe, ninguém cabe melhor nela do que o meu Pai. Em síntese: no dia a dia. o ambiente de trabalho era tranquilo, a burocracia uma constante, as pessoas simpáticas, mais mulherea do que homens. entre elas a Dona Corina. excecional funcionária, que se tornou grande amiga nossa e a Fernanda Lobão, que era de Gondomar, prima da minha mãe, muito inteligente e viva, embora me parecesse naqueles trabalhos de secretariado. E, a espaços, havia alterações das rotinas, que agradavam ao Pai, como organização de exposições de ourivesaria, de, catálogos, parcerias com o vespertino Diário do Norte, do qual na última fase, o Pai chegou a ser administrador, e, por via do qual, uns anos antes, porque o jornal era patrocinador da corrida, participara numa "Volta a Portugal" em bicicleta, integrado num qualquer "comité". Não sei porque razão, também o Tio Manuel Aguiar, pertenceu à mesma instância. Andaram juntos e muito divertidos. Por duas ou três vezes, a Mãe foi ao seu encontro, e a Madalena e eu tivemos a sorte de ir com ela, ficámos nos mesmos hotéis, fascinadas com a dinâmica e o frenesim, que cercava os ciclistas, de quem bem gostaríamos de nos aproximar - coisa que não foi possível. Tínhamos de nos contentar com os relatos do Pai. Só me recordo de pormenores sobre a alimentação - muita!- , a ponto de espantar o Pai, que, nessa altura,por sinal, comia bastante ( parco só no vinho....). NASCIDO EM AVINTES "Deixa aqui escrito o seu nome O célebre João de Avintes" (in " Apresentação") João. O menino que nasceu em Avintes, numa casa com vista para o Douro, numa colina verde, a que chamam, com propriedade, "o outeiro" . No dia 6 de junho de 1918. O nome dificilmente poderia ter tido outro. O Avô paterno era João Dias Moreira, o Avô materno João Capela. Foi o primeiro neto de ambos. Um herdeiro robusto, muito branco e loiro, como se pode ver na sua primeira fotografia, tirada num estúdio do Porto, como era, então, costume. Não tinha, é certo, os olhos muito azuis do Avô Capela, mas prometia a compleição nórdica do Avô Dias Moreira, com os seus imponentes quase dois metros de altura - a mesma estatura do seu meio irmão, o Tio Padre Manuel Pinto da Silva. Essa família de gigantes parecia vinda dos "Highlands" da Escócia. E, talvez, remotamente, viesse, fruto do encontro de povos que provocaram as invasões francesas, mais a aliança luso-britânica. Soldados inimigos e aliados, todos andaram por ali. Gramido, note-se, fica face ao Outeiro, do outro lado do Douro. Sempre achei curioso que em Avintes, nos tempos da minha infância, ainda se pronunciasse o "L" à francesa.... Mas sobre essa possível ascendência nada sei em concreto, para além desses traços fisionómicos pouco latinos, e de uma anglofilia declarada, que passou de geração em geração, com o seu ponto alto nas duas guerras europeias do século, a que então terminava e a que havia de acontecer duas décadas depois. De concreto, sabe-se que eram chamados os "patrões", provavelmente descendiam de antigos donos deestaleiros que existiram na ribeira de Avintes. Foram-se os estaleiros, mas ficou a alcunha. O meu Pai ainda foi o "Joãozinho Patrão", filho do Manuel Patrão e neto do João Patrão. A linha terminou comigo, pois que mesmo em Avintes, sou simplesmente Manuela Aguiar. Na era digital, em que me alfabetizei já depois de ter deixado a Assembleia, em 2005, iniciei-me com um blogue sobre a família, para que os mais novos saibam sobre todos estes antepassados alguma coisa mais do que o seu nome. E é ao blogue que vou buscar, para estaa "memórias" as imagens e os textos em que lembro meu Pai... É muito mais o que ficou por dizer, do que aquilo que escrevi, para lutar contra o esquecimento, com armas que são,apenas, fotografias e palavras. A primeira imagem, possivelmente de fins de 1918, mostra um menino gordo, a olhar em frente, olhos bem abertos, muito sério, entre os pais, os meus Avós Olívia e Manuel. Tem a mesma expressão, poucos meses depois, já sozinho, sentado nos veludos de um estúdio, face à câmara, vestindo apenas uma diáfana camisa de cambraia branca, o cabelo escondido numa touca de renda, a cara redonda . Era comum, então, os meninos posarem nus, como os anjinhos do céu, mas imagino que a Avó Olívia o quis poupar a tamanha exposição e fez bem. O traje escolhido, sumário, leve e gracioso é mais etnográfico do que a nudez. (Tão religiosa a Avó... Se pudesse, vestiria até os anjinhos, tanto nas esculturas como nos óleos das igrejas...) Quatro ou cinco anos passados, vemos um rapazinho, que continua a não sorrir para a câmara, de pé, em poses artificiais, pouco convincentes - de perfil, com calção curto e "blazer", encostado a uma coluna, ou de frente, com indumentária semelhante, junto a um brinquedo de praia, artesanal. Nos estúdios da famosa Fotografia Evaristo, em Espinho (havia, depois, de manter a tradição, levando as filhas ao mesmo estúdio).. Não é criança que desperte uma empatia imediata - nem é particularmente bonito ou expressivo, apesar de ser filho de uma mãe de beleza exótica (dir-se-ia indiana, oriental, embora fosse) e de um pai que, para além de ator de teatro (no "Grupo Mérito Avintense"), podia bem ser ator de cinema. O menino estaria, talvez, contrariado, farto de seguir as instruções do fotógrafo, desconfortável sob os holofotes (como a Madalena e eu, 30 anos depois...). Mas também podemos pensar que refletisse o ambiente triste, em que terá crescido em casa, com a morte ainda recente dos irmãos mais novos, os gémeos, Alberto e Manuel e a irmã Maria, os três vítimas de complicações que hoje se resolvem facilmente com transfusões de sangue. Saudável e forte só mesmo ele, o primogénito. Criado entre adultos, objeto de todas as atenções e de todos os cuidados, até ao dia de ir para a escola, Mais precisamente, para um excelente colégio privado. Decisão paterna, pela certa. O Avô Manuel, que não teve autorização do seu pai para fazer estudos académicos (único filho varão, estava destinado a tomar conta das muitas terras que iriam ser suas), prezava mais a cultura das Letras do que a agricultura. A mim, lembro-me bem do que me disse, por mais do que uma vez: "a melhor herança que podes ter é um curso universitário". Ao filho, terá dito precisamente o mesmo... Na altura, não sei se a ideia agradou à Avó Olívia, que, parecendo dócil e serena nos retratos, não era fácil de contrariar na vida real. Terá sido convencida pelo Padre Luís, um grande amigo do casal - e um santo, que eu ainda conheci, muito velhinho, no Colégio do Sardão - ou pelo Abade de Avintes, que era, como foram todos, sucessivamente, visitas da casa... Na época do Colégio dos Carvalhos, o Pai já tem, enfim, algumas parecenças com a pessoa de que eu me lembro, noutra idade, naturalmente. Já sorri, no meio de muitos amigos, todos irradiando boa disposição. Podia ser fingimento, encenação, "fazer de conta", mas não era! O internato, onde passou onze anos, foi mesmo para ele, um lugar perfeito. As amizades que aí fez, duraram para o resto da vida. Era um excelente atleta, um aluno despreocupado, que cumpria os mínimos em ciências e se dedicava de bom grado às letras, com uma inclinação para os autores latinos (recordo o pasmo com que o ouvia dizer que lia Virgílio e Ovídio, por gosto, no original - eu não, faltava-me, em partes iguais o saber e a satisfação). Do seu tempo do colégio são inúmeras as histórias engraçadas que nos contou. De Avintes, os relatos divertidos começam com a chagada dos novos vizinhos, donos da quinta que confinava com a sua casa: a família Genelieu - Novais e Silva. O Coronel Novais e Silva, a mulher (de origem farncesa, descendente de um dos engenheiros que acompanhara Eifel na construção da ponte sobre o douro) e os filhos , FALTA UM PARÁGRAFO É um bonito homem, com o seu ar britânico, na fase do namoro com a minha mãe (que nunca permitiu a sobrevivência de fotos de outros namoros e, ainda menos, de um primeiro casamento romântico que terminou com a lindíssima noiva a morrer aos 20 anos de tuberculose) e, depois, connosco, as duas filhas, e a família da mulher, bem mais numerosa do que a sua, onde foi prontamente adotado, Mas as imagens que mais me encantam são as do velho senhor amável e comunicativo dos últimos retratos. Envelhecer bem, física e mentalmente, eis uma arte, ou, talvez, uma recompensa que mereceu numa caminhada de 78 anos, Ninguém o definiu melhor do que o nosso amigo Padre Manuel Leão. Em Espinho, na Capela de Nossa Senhora da Ajuda, em 14 Abril de 1996. Dois minutos bastaram. Nunca vi pessoa capaz de dizer tanto em tão pouco tempo... Foi na chamada "missa de 7º dia" - o primeiro momento bom, depois da súbita morte do Pai no domingo de Páscoa. Pelas palavras do Padre Leão (que pena não as ter gravado, embora no essencial permaneçam em memória) - mas também pelo encontro com uma comunidade de igreja, a que o pai pertencia, naquela capela, e que, tanto a Mãe como eu, só conhecíamos de vista, pois em Espinho toda a gente se conhece, pelo menos assim - de vista... (família atípica, onde as mulheres se consideram católicas, mas é o homem que, no dia a dia, 3 vezes ao dia, ou mais, se recolhe, em meditação, nos bancos da capela). Ali mesmo, em frente ao altar de Nossa Senhora da Ajuda, onde rezava, a fila de cumprimentos, geralmente cerimonial lúgubre, de adensar tristezas, foi o contrário. Mulheres e homens que com ele tinham partilhado a missa de Páscoa, a comunhão, falavam da sua alegria, do seu sorriso. De um homem feliz. Gente de fé, exatamente como ele. Ficaram no quadro global da cerimónia, já sem rostos definidos. Sensação da abertura à transcendência, da visão de outros reinos e destinos, que invadiu, por momentos, todo o nosso espaço, cheio da emoção pesada de muitas dúvidas e de uma perda definitiva. E ficou a imagem daquele seu amigo, já emaranhado ou desprendido de qualquer identidade sua ou alheia, definitivamente senil, que perguntava onde estava o João, que o queria dar-lhe um abraço, antes de ir embora. E ficou, sobretudo, uma síntese de 78 anos de vida ou de uma escolha de vida, na palavra breve e definitiva do Padre Leão. - um homem culto, inteligente e justo, que sempre preferiu apagar-se, muito pensadamente, e nunca quis fazer o que podia ter feito ou ser o que poderia ter sido. E que nunca, também, e antes do mais, exibiu o que realmente foi realizando, à sua maneira discreta, com competência e com humor e simpatia. 20 anos mais tarde, por acaso, em Fânzeres, no Centro Republicano, um ourives, que com ele conviveu no "Grémio" da sua profissão (onde o Pai era secretário-geral), fechou, a seu modo, com uma simples frase, aquele desenho do perfil , em dois traços, rigorosamente esboçado num elogio fúnebre. "O seu Pai era excessivamente honesto!" (e mais não disse, mas repetiu várias vezes, com a força que lhe dava ter bebido uns copos - o Pai que gostava do seu latim, e raramente bebia, teria dito "in vino veritas"...), Aqui estava o fio condutor para o meu completo entendimento do que deixara antever o Padre Leão. Demasiadamente honesto e demasiadamente inteligente… 2 - A família Dias Moreira é grande, mas não o nosso ramo. Desde o bisavô João, ao longo de mais de dois séculos, os nascidos em cada geração não passam de um ou dois. Há os que não tiveram filhos ou cujos filhos não sobreviveram até à idade adulta. No século XXI, apenas uma trineta de 20 anos, fazendo, com distinção, um curso na McGill em Montreal - brilho não raro entre os parentes que chegaram à universidade ou fizeram carreira académica. Chloe Randle-Reis, é canadiana, nada e criada em Toronto, tão longe das águas matriciais do Douro. Ela tem hoje nas suas mãos, talvez sem o saber, como eu o sei, todo o nosso futuro... Não o nome, que já não chegou a ela, mas o resto, que conta mais. O pai, esse recebeu o nome completo do Avô mítico - João Dias Moreira (com um apelido materno de permeio que só usava no BI). O Avô imenso - imenso na estatura, avolumada pelos seus capotes largos de inverno, como o descrevia um dos seus antigos caseiros, que encontrei emigrado no Transval, nos anos 80 do século passado. Imenso na sagacidade de homem de bem, de bens e de negócios É em traje do dia e dia na sua casa, e não numa pose solene de estúdio, com um dos seus fatos completos, que o vemos nos únicos retratos, em que aparece. Sozinho ou com a mulher. Esperemos que algum parente, um dia, nos surpreenda com alguns outros). A bisavó, Quitéria Francisca Pinto, era do centro de Avintes. A casa dos seus pais era discreta e airosa, no início da Rua 5 de Outubro, (mais tarde pertenceu a duas gerações de artistas, o pai e o avô do Primo Francisco (Chico) Marques). Os Marques são escultores, entalhadores, desenhadores, arquitetos (na geração do meu Pai, o último, foi o Corinto, que casou com uma prima dele e nossa, a Maria Angélica). Parece que o trisavô Pinto foi emigrante no Brasil, e, no regresso, investiu num pequeno estaleiro de barcos do rio. Não creio que fosse muito rico, não o suficiente para o padrão dos Dias Moreira… Arrastou-se o namoro de Francisca e João até ao dia em que ela lhe lançou um ultimato: ou casavam em vida da mãe dele, ou não casavam nunca, porque não queria que todos julgassem que tinha estado à espera da morte da velhinha… Não queria facilidades, exigia dele a capacidade de afrontamento que ela tinha. Mas não reclamava a vida em comum. Dava-lhe a liberdade de continuar em casa da mãe. Cada qual em seu sítio, se preciso fosse, mas casados na igreja, perante Deus e o mundo. E assim foi, até que a sogra adoeceu e lhe pediu auxílio. E a partir daí todos se entenderam surpreendentemente bem. Está tudo dito sobre o carácter da pequena e enérgica bisavó, a grande contadora de histórias, a protagonista de infindáveis horas de cantigas ao desafio… E, diz -se mais: que em menina se vestia de homem e ia para as feiras jogar varapau. Atendendo a que era muito pequena (1,50…) magra e franzina, é de espantar… Mas ela era de espantar – todos os relatos que chegaram até hoje vão no mesmo sentido João Dias Moreira e Francisca Pinto eram os avós de meu pai que moravam ao lado, aqueles com os quais foi criado. Não na mesma casa - cada um apreciava demais a sua independência - nem na quinta do Pena, ali em frente e , então, desabitada, mas na colina que vai descendo para o Douro e o Araínho e a que chamam precisamente "Outeiro". Não sei com exatidão onde ficava, nem se ainda existe - coisa improvável. Dela ouvi vagamente falar com alguma nostalgia e imagino uma alvura de paredes entre ramagens verdes e uma soberba vista de rio e de vale de espigas douradas (onde agora não há mais do que cimento clandestino...). Enfim, um lugar romântico como os Avós recém casados, num casamento, que, tal como o dos bisavós, foi escolha só deles. Mais contrariado o primeiro do que o segundo (a trisavó era viúva, vivia com aquele filho e queria nora mais rica, se é que não queria, fundamentalmente, nora alguma....) Essa moradia, onde nasceu o primeiro filho, de Olívia e Manuel era com certeza arrendada, pois não consta da lista de bens familiares - e, nesse tempo, gente abastada comprava, não vendia nunca propriedades. Parece que o bisavô fazia a sua contabilidade de novas aquisições, como num jogo, onde ganhava pontos, e essa vertente quantitativa, acabou fazendo o seu curriculum para a posteridade - com o nº auspicioso de 99. Mas vinha sempre junto à estatística um perfil de empresário agrícola, com o seu pioneiro recurso à mecanização e à compra a crédito - tão avessa à mentalidade rural da época... E crédito era o que menos lhe faltava - até sem papel escrito, porque a sua palavra era um seguro contra todos os riscos... Eram, de qualquer modo, os avós que moravam ao lado. Não na mesma casa - cada um prezava demais a sua independência - nem na quinta do Pena, ali em frente e , então, desabitada, mas no Outeiro, a colina verde, que vai descendo para o Douro. Não sei precisamente onde ficava, nem se ainda existe - coisa improvável. Dela ouvi vagamente falar, com alguma nostalgia, e imagino uma alvura de paredes entre pinhais e uma soberba vista de rio e de vale de espigas loiras (onde agora não há mais do que uma aridez de cimento clandestino...). Enfim, um lugar romântico, como os Avós recém casados, num casamento, que, tal como o dos bisavós, foi escolha só deles. Mais contrariado o primeiro (a trisavó era viúva, vivia com aquele filho e queria nora mais rica, se é que não queria, fundamentalmente, nora alguma....) Essa residência, onde nasceu o primeiro filho, era com certeza arrendada, pois não consta da lista de bens familiares - e, nesse tempo, gente abastada comprava, não vendia nunca propriedades. O bisavô parece ter gerido sua contabilidade de novas aquisições, como num jogo, onde marcava pontos, e essa vertente quantitativa, acabou fazendo curriculum - com o número auspicioso de 99 propriedades, muitas compradas a crédito - um perfil de empresário agrícola mais do que de lavrador tradicional. O número sempre presente, tal como o seu pioneiro recurso à mecanização e ao crédito - tão avesso à mentalidade rural da época...Crédito era o que menos lhe faltava e sem papel escrito, porque a sua palavra bastava... Foi um seu antigo empregado, emigrante na África do Sul quem acabou por me dar aquilo de que fiz uma imagem mais precisa desse bisavô: Ele, atravessando os campos, com o seu largo capote de inverno. Ele, presidindo aos almoços, com todo o seu pessoal, numa mesa de pedra retangular, que ainda hoje existe e é motivo de pasmo: talhada numa pedra com mais de 3 metros de comprido e mais de um de largo. Coisa tão rara, que era e é objeto de quase veneração... Mesa rara e mesa farta. Corria o ditado, que o emigrante sabia ainda de cor: Mais vale ser cão em casa do João Patrão do que criado na Quinta de... (a maior de Avintes, mas eu não apontei o nome e agora só poderia inventar...) Era m homem que não receava confraternizar com os seu empregados, que os tratava bem, mas exigindo, com certeza, bom trabalho - tudo o que ainda hoje se exige de um gestor competente. O que os resultados provam que foi... A faceta da generosidade, essa adivinho-o noutro relato de alguém da família, talvez a filha, Tia Francisca: nos seus últimos anos, já não passeava pelo meio das searas. O reumatismo, agravado pela humidade da beira rio, tornou-o praticamente enfermo. preso a uma cadeira. Passava muito tempo à janela do quarto, com vista para as suas terras, que se estendiam no vale do Douro, no caminho do rio para a foz. Daí observava e dirigia ainda os trabalhos, certamente. E, quando passava um mendigo, a pedir esmola, lançava da janela, preso por um longo cordel, um cesto de pão (e o mais que ali tinha para dar), e logo recolhia o cesto, até que viesse o próximo necessitado. Alguns seriam "os do costume"... Mas dele não ficaram palavras concretamente ditas, expressões peculiares, tom de voz, os seus gostos na música, nas cores, nos fatos, cartas suas, escritos... Ficou muito pouco da vida tão cheia do único grande empresário deste ramo da família ...(essa imagem levou o meu primo do Canadá, bisneto como eu, a dizer, quando arriscou um investimento na área de Toronto: "É preciso retomar o espírito empresarial, que anda perdido na família há 3 gerações" Deixou, pois, o Bisavô João um exemplo que ainda agora nos desafia a fazer coisas... Mas que pena tenho de não ter um registo de conversas, ao seu próprio jeito.... De um lado e outro da família é só a palavra das mulheres que resiste....e de uma palavra concreta se faz um retrato mais vivo. Como o da bisavó Francisca, apenas em duas ou três pequenas quadras dos milhares que saíram da sua veia repentista... Ou na decisão que tomou de se opor a um dote excessivo para o casamento da filha Francisca, como exigia a família do noivo e que comunicou ao marido nestes precisos termos: "Não assino, João! Seria o mesmo que deserdar o nosso filho. Não assino, quero ficar de bem com Deus e com a minha consciência". E a escritura não se fez com aquela abundância de bens, mas com o que achou correto. E o casamente foi por diante nas condições que ela impôs. A mulher tem no círculo familiar a força que tem, não a que lhe conferem leis e convenções A esta sobrava coragem e pragmatismo e por isso levava a sua por diante. Coragem e bom senso em partes iguais. O homem. que era um grande homem, começava por lhe ter respeito.... Assim o Avô Manuel contava uma das história da Mãe que tão bem o soubera proteger e que ele admirava mais do que qualquer outra pessoa à face da terra. Outra tirada que sobreviveu foi a que pôs termo a um período de namoro que se arrastava: "Não quero que esta gente diga que estive à espera que a tua mãe morresse, para me casar contigo. Ou é agora ou não é". Sintética e precisa. Neste caso o filho terá ouvido a frase da sua própria boca. A grande anotadora de lendas e de crónicas, também, às vezes, falava de si.... À casa do lugar do Paço chamava "o torrão". A partir do núcleo inicial de uma casa de pedra pequena e antiquíssima (do sec XVI ou XVII), se acrescentara outra bem maior, cujas obras terminaram em 1901. E depois se comprara a vizinha Quinta da Pena, as Nogueiras e muitas das terras da ribeira do Douro, para poente... E há ainda o insuspeito testemunho da minha mãe, que vivia em conflito constante com os sogros e de pouca gente gostava em Avintes, mas simpatizava, incondicionalmente, com aquela velhinha prodigiosa, de olhos grandes e azuis. Só ela mesmo a poderia criticar. "Menina, usas as saias muito curtas. Parece mal

MUR

Hoje quase tive o privilégio de cumprimentar a Dra. Manuela. Estava a falar com Sarabando, quando olhei, já não a encontrei. Tive pena. A Dra. Manuela “é senhora de Amizades e eu tenho-lhe muita. Não só pelo seu conhecimento eu é muito, mas pela maneira de ser. Uma Grande Mulher, gosto muito da Manuela, tenho-lhe grande Amizade”, foi assim que o Miguel descreveu a Dra. Manuela, depois de um lhe dizer que eu gostava muito da Dra. Pensando eu que o Miguel não a conhecia. Gostei muito de a ver no funeral, se o meu respeito era muito agora não há dúvida que é muito maior. Depois de ter uma vida sempre a correr tirar um tempo para se despedir de um Amigo, comunista é uma atitude muito louvável, bonita e Democrata. Com uma grande comoção, Bj, Guida Rodrigues

O PRIMO ANTÓNIO REIS

Muito mais tarde,já trintão, numa estada em Lisboa, António conheceu a Amélia Soares de Albergaria, que seria a sua duradoura paixão - o casal nunca passava despercebido, onde quer que fosse, Ela era e ainda é, com mais de 80 anos, muito bonita, alta, loira, atraente e simpática, com seu sorriso doce, sempre impecavelmente vestida e penteada. Amélia tornou-se, de imediato, uma prima muito querida, família nossa, como se sempre o tivesse sido. Os padrinhos do casamento, celebrado na Sé do Porto, foram os meus pais. Do Porto, o cortejo nupcial regressou, numa longa fila de carros, a Avintes, para o banquete no casarão dos tios Reis, no cimo da Rua 5 de Outubro, onde é agora a sede e, suponho, o auditório do grupo de teatro "Os Plebeus". Horas deliciosas passámos ali, em ruidosas reuniões de família. Havia sempre muitos cães - a Maria Angélica , irmã do António, chegou a fazer criação de "pequinois" do mais puro "pedigree" (quando fiz 7 anos, ofereceu-me um cachorrinho, que eu escolhi de uma ninhada numerosa, um inesquecível presente). Atrás, o jardim acabava na parte de quinta agrícola, que era guardada por cães, nem sempre afáveis. A cave da casa era toda ela reservada à adega, ao lagar, onde me lembro de ver grupos de homens de calças arregaçadas acima do joelho a pisarem as uvas, cantando em coro. Parecia-me sempre uma cena de teatro, uma coreografia, embora a prova do vinho novo mostrasse o contrário. Da principal porta de entrada para dentro todas as salas estavam, tão acolhedora e urbanamente decoradas,tão cheias de bonitos quadros e estatuetas, jarrões "deco", veludos escuros, que ninguém adivinharia o mundo rural que coexistia, lá em baixo! Nada de raro,contudo, nessa época, nas vilas e aldeias rurais, à volta do Porto. Embora num estilo arquitetónico diferente, a casa em que nasci, em Gondomar, também somava as duas realidades. mas a festa do lagar não era tão popular com a dos Tios Reis- uma verdadeira romaria Do mesmo lado da rua, a poucos metros, para sul, morava o Francisco (Chico) Marques, numa casa branca, que tinha sido dos meus tetraavós, da mãe do Avô Manuel, onde passaram a infância alguns dos Marques, que viriam a notabilizar-se como entalhadores, escultores e arquitetos. Não é difícil imaginar os primos João Moreira, António e Maria Angélica Reis, Francisco e Corinto Marques (que viria a casar com Maria Angélica, já ambos na "meia idade") em constantes convívios numa e noutra dessas casas, E é provável que Celina se juntasse a eles muitas vezes, porque era prima de primos dos Reis, como a Maria Argentina - (através da qual consegui duas fotografias de Celina. Todos vizinhos e apar De Celina, na residência dos meus Avós, ficou, para além das memórias, um retrato, numa enorme moldura de prata, que se destacava em cima de uma mesa oval. A sala de visitas era mesmo só para visitas de " cerimonia", e não usada no dia a (ao contrário do que acontecia em casa da outra Avó, sobretudo, suponho, por causa do piano, que a convertia em "multiusos", sala de estudos de música, de ensaio de coros, de concertos das meninas, ou, simplesmente, de festa, com muita música e canto à mistura. Estava sempre aberta , até para as crianças, que, só por milagre não destruíram, por completo, os aparentemente frágeis, mas muito resistentes, sofás e cadeiras "arte nova" de nogueira clara e estofos de veludo verde. Não assim em Avintes, pelo que essa sala, que se nos oferecia raramente - recordo-o como sendo cinzento, numa atmosfera de penumbras, melancolia e mistério, simbolizados naquele retrato de uma mulher fascinante, num vestido de gala, de amplo decote, com os longos cabelos escuros, soltos, caindo, num penteado artístico, sobre os ombros. Dir-se-ia uma rainha, ou um vedeta de Hollywood, fitando a posteridade com uns olhos expressivos. Mas eu sabia que uma doença fatal a tinha derrotado aos 20 anos... E não parecia uma jovem assim tão jovem, mas uma Senhora... Sempre que se esqueciam de fechar a porta, eu entrava e ficava a olha-la, com tristeza, porque ali estava tão cheia de graça e de vida e, afinal, tinha partido deste mundo, pouco depois. A minha mãe era muito ciumenta e não partilhava das emoções que o retrato me despertava, e ainda menos dos sentimentos dos meus Avós por essa outra nora, tão querida. Havia outras fotografias de Celine, que foram sendo guardadas, face aos reiterados protestos da minha Mãe e, mesmo aquela, ali resguardada do convívio quotidiano, acabou por ser retirada, no auge de uma crise maior. Eu, com os meus 6 ou 7 anos, achei tudo isso muito mal. A casa, a sala, o retrato e as memórias - tudo era dos meus Avós. Uns anos depois, quando contava esta história a alguém, mais consonante com as reações de minha Mãe do que com as minhas, ouvi esta pergunta, que não precisava de resposta: "Tens a certeza de que não és filha da Celina"? Náo sou, nem preciso de ser para ver as coisas assim. Morrer aos 20 anos, que absurdo! Iria acontecer com a minha irmã Madalena, em 1964. Lindíssima, cheia de vida! Leucemia, no seu caso. Toronto. O António confirmou o que eu pressentia, uma vida tão breve de uma mulher que tanto amava a vida e que tinha tudo o que queria para ser feliz. Desportiva, divertida. Contava-me o António, de um dia ela apareceu, de repente, aos amigos reunidos no sotão da casa, entrando pelo telhado. Curiosamente, minha Mãe seria bem capaz de fazer o mesmo..., Tal como na geração seguinte, a minha irmã, primas e eu própria - todas useiras e vezeiras em saltar das árvores, dos terraços, das janelas do 1º andar da "Villa Maria", por sobre canteiros de rosas de pé alto (exercício arriscado...). Deslizar nos telhados da "casa do forno" ou da "casa da eira", para olhar em volta ou apanhar araçás de outro modo inacessíveis - araçás brancos, araçás vermelhos, que tinham vindo do Brasil, com o Avò Aguiar.... Celina, Maldalena...Por duas vezes, o Pai viu partir pessoas tão especiais, tão próximas, a mulher, uma filha, aos 20 anos, quase do mesmo modo, com doenças, cuja cura estava em vias de ser descoberta. A dimensão dos grandes desgostos e das maiores alegrias, a dimensão de "sonho" foi preenchida pelo meu Pai no círculo da família e dos amigos, na paixão pela música e pelo desporto, pelo mar, pelas artes, pelo cinema, pelo estudo, pelo debate - não certamente na vida profissional, como funcionário público, e, depois, dirigente de uma agremiação (a Associação ou Grémio dos Ourives do Norte). Não eram cargos muito empolgantes, nem davam remunerações milionárias, mas ele cumpriu-os de forma exemplar . Há pouco tempo, por acaso, encontrei num colóquio em Gondomar, terra da filigrana, um ourives que o tinha conhecido e me veio falar dele com toda a simpatia, mas acrescentando: "Só tinha um defeito, era excessivamente honesto". Se a honestidade pode ser excessiva, se a figura existe, ninguém cabe melhor nela do que o meu Pai. Em síntese: no dia a dia. o ambiente de trabalho era tranquilo, a burocracia uma constante, as pessoas simpáticas, mais mulherea do que homens. entre elas a Dona Corina. excecional funcionária, que se tornou grande amiga nossa e a Fernanda Lobão, que era de Gondomar, prima da minha mãe, muito inteligente e viva, embora me parecesse naqueles trabalhos de secretariado. E, a espaços, havia alterações das rotinas, que agradavam ao Pai, como organização de exposições de ourivesaria, de, catálogos, parcerias com o vespertino Diário do Norte, do qual na última fase, o Pai chegou a ser administrador, e, por via do qual, uns anos antes, porque o jornal era patrocinador da corrida, participara numa "Volta a Portugal" em bicicleta, integrado num qualquer "comité". Não sei porque razão, também o Tio Manuel Aguiar, pertenceu à mesma instância. Andaram juntos e muito divertidos. Por duas ou três vezes, a Mãe foi ao seu encontro, e a Madalena e eu tivemos a sorte de ir com ela, ficámos nos mesmos hotéis, fascinadas com a dinâmica e o frenesim, que cercava os ciclistas, de quem bem gostaríamos de nos aproximar - coisa que não foi possível. Tínhamos de nos contentar com os relatos do Pai. Só me recordo de pormenores sobre a alimentação - muita!- , a ponto de espantar o Pai, que, nessa altura,por sinal, comia bastante ( parco só no vinho....). NASCIDO EM AVINTES "Deixa aqui escrito o seu nome O célebre João de Avintes" (in " Apresentação") João. O menino que nasceu em Avintes, numa casa com vista para o Douro, numa colina verde, a que chamam, com propriedade, "o outeiro" . No dia 6 de junho de 1918. O nome dificilmente poderia ter tido outro. O Avô paterno era João Dias Moreira, o Avô materno João Capela. Foi o primeiro neto de ambos. Um herdeiro robusto, muito branco e loiro, como se pode ver na sua primeira fotografia, tirada num estúdio do Porto, como era, então, costume. Não tinha, é certo, os olhos muito azuis do Avô Capela, mas prometia a compleição nórdica do Avô Dias Moreira, com os seus imponentes quase dois metros de altura - a mesma estatura do seu meio irmão, o Tio Padre Manuel Pinto da Silva. Essa família de gigantes parecia vinda dos "Highlands" da Escócia. E, talvez, remotamente, viesse, fruto do encontro de povos que provocaram as invasões francesas, mais a aliança luso-britânica. Soldados inimigos e aliados, todos andaram por ali. Gramido, note-se, fica face ao Outeiro, do outro lado do Douro. Sempre achei curioso que em Avintes, nos tempos da minha infância, ainda se pronunciasse o "L" à francesa.... Mas sobre essa possível ascendência nada sei em concreto, para além desses traços fisionómicos pouco latinos, e de uma anglofilia declarada, que passou de geração em geração, com o seu ponto alto nas duas guerras europeias do século, a que então terminava e a que havia de acontecer duas décadas depois. De concreto, sabe-se que eram chamados os "patrões", provavelmente descendiam de antigos donos deestaleiros que existiram na ribeira de Avintes. Foram-se os estaleiros, mas ficou a alcunha. O meu Pai ainda foi o "Joãozinho Patrão", filho do Manuel Patrão e neto do João Patrão. A linha terminou comigo, pois que mesmo em Avintes, sou simplesmente Manuela Aguiar. Na era digital, em que me alfabetizei já depois de ter deixado a Assembleia, em 2005, iniciei-me com um blogue sobre a família, para que os mais novos saibam sobre todos estes antepassados alguma coisa mais do que o seu nome. E é ao blogue que vou buscar, para estaa "memórias" as imagens e os textos em que lembro meu Pai... É muito mais o que ficou por dizer, do que aquilo que escrevi, para lutar contra o esquecimento, com armas que são,apenas, fotografias e palavras. A primeira imagem, possivelmente de fins de 1918, mostra um menino gordo, a olhar em frente, olhos bem abertos, muito sério, entre os pais, os meus Avós Olívia e Manuel. Tem a mesma expressão, poucos meses depois, já sozinho, sentado nos veludos de um estúdio, face à câmara, vestindo apenas uma diáfana camisa de cambraia branca, o cabelo escondido numa touca de renda, a cara redonda . Era comum, então, os meninos posarem nus, como os anjinhos do céu, mas imagino que a Avó Olívia o quis poupar a tamanha exposição e fez bem. O traje escolhido, sumário, leve e gracioso é mais etnográfico do que a nudez. (Tão religiosa a Avó... Se pudesse, vestiria até os anjinhos, tanto nas esculturas como nos óleos das igrejas...) Quatro ou cinco anos passados, vemos um rapazinho, que continua a não sorrir para a câmara, de pé, em poses artificiais, pouco convincentes - de perfil, com calção curto e "blazer", encostado a uma coluna, ou de frente, com indumentária semelhante, junto a um brinquedo de praia, artesanal. Nos estúdios da famosa Fotografia Evaristo, em Espinho (havia, depois, de manter a tradição, levando as filhas ao mesmo estúdio).. Não é criança que desperte uma empatia imediata - nem é particularmente bonito ou expressivo, apesar de ser filho de uma mãe de beleza exótica (dir-se-ia indiana, oriental, embora fosse) e de um pai que, para além de ator de teatro (no "Grupo Mérito Avintense"), podia bem ser ator de cinema. O menino estaria, talvez, contrariado, farto de seguir as instruções do fotógrafo, desconfortável sob os holofotes (como a Madalena e eu, 30 anos depois...). Mas também podemos pensar que refletisse o ambiente triste, em que terá crescido em casa, com a morte ainda recente dos irmãos mais novos, os gémeos, Alberto e Manuel e a irmã Maria, os três vítimas de complicações que hoje se resolvem facilmente com transfusões de sangue. Saudável e forte só mesmo ele, o primogénito. Criado entre adultos, objeto de todas as atenções e de todos os cuidados, até ao dia de ir para a escola, Mais precisamente, para um excelente colégio privado. Decisão paterna, pela certa. O Avô Manuel, que não teve autorização do seu pai para fazer estudos académicos (único filho varão, estava destinado a tomar conta das muitas terras que iriam ser suas), prezava mais a cultura das Letras do que a agricultura. A mim, lembro-me bem do que me disse, por mais do que uma vez: "a melhor herança que podes ter é um curso universitário". Ao filho, terá dito precisamente o mesmo... Na altura, não sei se a ideia agradou à Avó Olívia, que, parecendo dócil e serena nos retratos, não era fácil de contrariar na vida real. Terá sido convencida pelo Padre Luís, um grande amigo do casal - e um santo, que eu ainda conheci, muito velhinho, no Colégio do Sardão - ou pelo Abade de Avintes, que era, como foram todos, sucessivamente, visitas da casa... Na época do Colégio dos Carvalhos, o Pai já tem, enfim, algumas parecenças com a pessoa de que eu me lembro, noutra idade, naturalmente. Já sorri, no meio de muitos amigos, todos irradiando boa disposição. Podia ser fingimento, encenação, "fazer de conta", mas não era! O internato, onde passou onze anos, foi mesmo para ele, um lugar perfeito. As amizades que aí fez, duraram para o resto da vida. Era um excelente atleta, um aluno despreocupado, que cumpria os mínimos em ciências e se dedicava de bom grado às letras, com uma inclinação para os autores latinos (recordo o pasmo com que o ouvia dizer que lia Virgílio e Ovídio, por gosto, no original - eu não, faltava-me, em partes iguais o saber e a satisfação). Do seu tempo do colégio são inúmeras as histórias engraçadas que nos contou. De Avintes, os relatos divertidos começam com a chagada dos novos vizinhos, donos da quinta que confinava com a sua casa: a família Genelieu - Novais e Silva. O Coronel Novais e Silva, a mulher (de origem farncesa, descendente de um dos engenheiros que acompanhara Eifel na construção da ponte sobre o douro) e os filhos , FALTA UM PARÁGRAFO É um bonito homem, com o seu ar britânico, na fase do namoro com a minha mãe (que nunca permitiu a sobrevivência de fotos de outros namoros e, ainda menos, de um primeiro casamento romântico que terminou com a lindíssima noiva a morrer aos 20 anos de tuberculose) e, depois, connosco, as duas filhas, e a família da mulher, bem mais numerosa do que a sua, onde foi prontamente adotado, Mas as imagens que mais me encantam são as do velho senhor amável e comunicativo dos últimos retratos. Envelhecer bem, física e mentalmente, eis uma arte, ou, talvez, uma recompensa que mereceu numa caminhada de 78 anos, Ninguém o definiu melhor do que o nosso amigo Padre Manuel Leão. Em Espinho, na Capela de Nossa Senhora da Ajuda, em 14 Abril de 1996. Dois minutos bastaram. Nunca vi pessoa capaz de dizer tanto em tão pouco tempo... Foi na chamada "missa de 7º dia" - o primeiro momento bom, depois da súbita morte do Pai no domingo de Páscoa. Pelas palavras do Padre Leão (que pena não as ter gravado, embora no essencial permaneçam em memória) - mas também pelo encontro com uma comunidade de igreja, a que o pai pertencia, naquela capela, e que, tanto a Mãe como eu, só conhecíamos de vista, pois em Espinho toda a gente se conhece, pelo menos assim - de vista... (família atípica, onde as mulheres se consideram católicas, mas é o homem que, no dia a dia, 3 vezes ao dia, ou mais, se recolhe, em meditação, nos bancos da capela). Ali mesmo, em frente ao altar de Nossa Senhora da Ajuda, onde rezava, a fila de cumprimentos, geralmente cerimonial lúgubre, de adensar tristezas, foi o contrário. Mulheres e homens que com ele tinham partilhado a missa de Páscoa, a comunhão, falavam da sua alegria, do seu sorriso. De um homem feliz. Gente de fé, exatamente como ele. Ficaram no quadro global da cerimónia, já sem rostos definidos. Sensação da abertura à transcendência, da visão de outros reinos e destinos, que invadiu, por momentos, todo o nosso espaço, cheio da emoção pesada de muitas dúvidas e de uma perda definitiva. E ficou a imagem daquele seu amigo, já emaranhado ou desprendido de qualquer identidade sua ou alheia, definitivamente senil, que perguntava onde estava o João, que o queria dar-lhe um abraço, antes de ir embora. E ficou, sobretudo, uma síntese de 78 anos de vida ou de uma escolha de vida, na palavra breve e definitiva do Padre Leão. - um homem culto, inteligente e justo, que sempre preferiu apagar-se, muito pensadamente, e nunca quis fazer o que podia ter feito ou ser o que poderia ter sido. E que nunca, também, e antes do mais, exibiu o que realmente foi realizando, à sua maneira discreta, com competência e com humor e simpatia. 20 anos mais tarde, por acaso, em Fânzeres, no Centro Republicano, um ourives, que com ele conviveu no "Grémio" da sua profissão (onde o Pai era secretário-geral), fechou, a seu modo, com uma simples frase, aquele desenho do perfil , em dois traços, rigorosamente esboçado num elogio fúnebre. "O seu Pai era excessivamente honesto!" (e mais não disse, mas repetiu várias vezes, com a força que lhe dava ter bebido uns copos - o Pai que gostava do seu latim, e raramente bebia, teria dito "in vino veritas"...), Aqui estava o fio condutor para o meu completo entendimento do que deixara antever o Padre Leão. Demasiadamente honesto e demasiadamente inteligente… 2 - A família Dias Moreira é grande, mas não o nosso ramo. Desde o bisavô João, ao longo de mais de dois séculos, os nascidos em cada geração não passam de um ou dois. Há os que não tiveram filhos ou cujos filhos não sobreviveram até à idade adulta. No século XXI, apenas uma trineta de 20 anos, fazendo, com distinção, um curso na McGill em Montreal - brilho não raro entre os parentes que chegaram à universidade ou fizeram carreira académica. Chloe Randle-Reis, é canadiana, nada e criada em Toronto, tão longe das águas matriciais do Douro. Ela tem hoje nas suas mãos, talvez sem o saber, como eu o sei, todo o nosso futuro... Não o nome, que já não chegou a ela, mas o resto, que conta mais. O pai, esse recebeu o nome completo do Avô mítico - João Dias Moreira (com um apelido materno de permeio que só usava no BI). O Avô imenso - imenso na estatura, avolumada pelos seus capotes largos de inverno, como o descrevia um dos seus antigos caseiros, que encontrei emigrado no Transval, nos anos 80 do século passado. Imenso na sagacidade de homem de bem, de bens e de negócios É em traje do dia e dia na sua casa, e não numa pose solene de estúdio, com um dos seus fatos completos, que o vemos nos únicos retratos, em que aparece. Sozinho ou com a mulher. Esperemos que algum parente, um dia, nos surpreenda com alguns outros). A bisavó, Quitéria Francisca Pinto, era do centro de Avintes. A casa dos seus pais era discreta e airosa, no início da Rua 5 de Outubro, (mais tarde pertenceu a duas gerações de artistas, o pai e o avô do Primo Francisco (Chico) Marques). Os Marques são escultores, entalhadores, desenhadores, arquitetos (na geração do meu Pai, o último, foi o Corinto, que casou com uma prima dele e nossa, a Maria Angélica). Parece que o trisavô Pinto foi emigrante no Brasil, e, no regresso, investiu num pequeno estaleiro de barcos do rio. Não creio que fosse muito rico, não o suficiente para o padrão dos Dias Moreira… Arrastou-se o namoro de Francisca e João até ao dia em que ela lhe lançou um ultimato: ou casavam em vida da mãe dele, ou não casavam nunca, porque não queria que todos julgassem que tinha estado à espera da morte da velhinha… Não queria facilidades, exigia dele a capacidade de afrontamento que ela tinha. Mas não reclamava a vida em comum. Dava-lhe a liberdade de continuar em casa da mãe. Cada qual em seu sítio, se preciso fosse, mas casados na igreja, perante Deus e o mundo. E assim foi, até que a sogra adoeceu e lhe pediu auxílio. E a partir daí todos se entenderam surpreendentemente bem. Está tudo dito sobre o carácter da pequena e enérgica bisavó, a grande contadora de histórias, a protagonista de infindáveis horas de cantigas ao desafio… E, diz -se mais: que em menina se vestia de homem e ia para as feiras jogar varapau. Atendendo a que era muito pequena (1,50…) magra e franzina, é de espantar… Mas ela era de espantar – todos os relatos que chegaram até hoje vão no mesmo sentido João Dias Moreira e Francisca Pinto eram os avós de meu pai que moravam ao lado, aqueles com os quais foi criado. Não na mesma casa - cada um apreciava demais a sua independência - nem na quinta do Pena, ali em frente e , então, desabitada, mas na colina que vai descendo para o Douro e o Araínho e a que chamam precisamente "Outeiro". Não sei com exatidão onde ficava, nem se ainda existe - coisa improvável. Dela ouvi vagamente falar com alguma nostalgia e imagino uma alvura de paredes entre ramagens verdes e uma soberba vista de rio e de vale de espigas douradas (onde agora não há mais do que cimento clandestino...). Enfim, um lugar romântico como os Avós recém casados, num casamento, que, tal como o dos bisavós, foi escolha só deles. Mais contrariado o primeiro do que o segundo (a trisavó era viúva, vivia com aquele filho e queria nora mais rica, se é que não queria, fundamentalmente, nora alguma....) Essa moradia, onde nasceu o primeiro filho, de Olívia e Manuel era com certeza arrendada, pois não consta da lista de bens familiares - e, nesse tempo, gente abastada comprava, não vendia nunca propriedades. Parece que o bisavô fazia a sua contabilidade de novas aquisições, como num jogo, onde ganhava pontos, e essa vertente quantitativa, acabou fazendo o seu curriculum para a posteridade - com o nº auspicioso de 99. Mas vinha sempre junto à estatística um perfil de empresário agrícola, com o seu pioneiro recurso à mecanização e à compra a crédito - tão avessa à mentalidade rural da época... E crédito era o que menos lhe faltava - até sem papel escrito, porque a sua palavra era um seguro contra todos os riscos... Eram, de qualquer modo, os avós que moravam ao lado. Não na mesma casa - cada um prezava demais a sua independência - nem na quinta do Pena, ali em frente e , então, desabitada, mas no Outeiro, a colina verde, que vai descendo para o Douro. Não sei precisamente onde ficava, nem se ainda existe - coisa improvável. Dela ouvi vagamente falar, com alguma nostalgia, e imagino uma alvura de paredes entre pinhais e uma soberba vista de rio e de vale de espigas loiras (onde agora não há mais do que uma aridez de cimento clandestino...). Enfim, um lugar romântico, como os Avós recém casados, num casamento, que, tal como o dos bisavós, foi escolha só deles. Mais contrariado o primeiro (a trisavó era viúva, vivia com aquele filho e queria nora mais rica, se é que não queria, fundamentalmente, nora alguma....) Essa residência, onde nasceu o primeiro filho, era com certeza arrendada, pois não consta da lista de bens familiares - e, nesse tempo, gente abastada comprava, não vendia nunca propriedades. O bisavô parece ter gerido sua contabilidade de novas aquisições, como num jogo, onde marcava pontos, e essa vertente quantitativa, acabou fazendo curriculum - com o número auspicioso de 99 propriedades, muitas compradas a crédito - um perfil de empresário agrícola mais do que de lavrador tradicional. O número sempre presente, tal como o seu pioneiro recurso à mecanização e ao crédito - tão avesso à mentalidade rural da época...Crédito era o que menos lhe faltava e sem papel escrito, porque a sua palavra bastava... Foi um seu antigo empregado, emigrante na África do Sul quem acabou por me dar aquilo de que fiz uma imagem mais precisa desse bisavô: Ele, atravessando os campos, com o seu largo capote de inverno. Ele, presidindo aos almoços, com todo o seu pessoal, numa mesa de pedra retangular, que ainda hoje existe e é motivo de pasmo: talhada numa pedra com mais de 3 metros de comprido e mais de um de largo. Coisa tão rara, que era e é objeto de quase veneração... Mesa rara e mesa farta. Corria o ditado, que o emigrante sabia ainda de cor: Mais vale ser cão em casa do João Patrão do que criado na Quinta de... (a maior de Avintes, mas eu não apontei o nome e agora só poderia inventar...) Era m homem que não receava confraternizar com os seu empregados, que os tratava bem, mas exigindo, com certeza, bom trabalho - tudo o que ainda hoje se exige de um gestor competente. O que os resultados provam que foi... A faceta da generosidade, essa adivinho-o noutro relato de alguém da família, talvez a filha, Tia Francisca: nos seus últimos anos, já não passeava pelo meio das searas. O reumatismo, agravado pela humidade da beira rio, tornou-o praticamente enfermo. preso a uma cadeira. Passava muito tempo à janela do quarto, com vista para as suas terras, que se estendiam no vale do Douro, no caminho do rio para a foz. Daí observava e dirigia ainda os trabalhos, certamente. E, quando passava um mendigo, a pedir esmola, lançava da janela, preso por um longo cordel, um cesto de pão (e o mais que ali tinha para dar), e logo recolhia o cesto, até que viesse o próximo necessitado. Alguns seriam "os do costume"... Mas dele não ficaram palavras concretamente ditas, expressões peculiares, tom de voz, os seus gostos na música, nas cores, nos fatos, cartas suas, escritos... Ficou muito pouco da vida tão cheia do único grande empresário deste ramo da família ...(essa imagem levou o meu primo do Canadá, bisneto como eu, a dizer, quando arriscou um investimento na área de Toronto: "É preciso retomar o espírito empresarial, que anda perdido na família há 3 gerações" Deixou, pois, o Bisavô João um exemplo que ainda agora nos desafia a fazer coisas... Mas que pena tenho de não ter um registo de conversas, ao seu próprio jeito.... De um lado e outro da família é só a palavra das mulheres que resiste....e de uma palavra concreta se faz um retrato mais vivo. Como o da bisavó Francisca, apenas em duas ou três pequenas quadras dos milhares que saíram da sua veia repentista... Ou na decisão que tomou de se opor a um dote excessivo para o casamento da filha Francisca, como exigia a família do noivo e que comunicou ao marido nestes precisos termos: "Não assino, João! Seria o mesmo que deserdar o nosso filho. Não assino, quero ficar de bem com Deus e com a minha consciência". E a escritura não se fez com aquela abundância de bens, mas com o que achou correto. E o casamente foi por diante nas condições que ela impôs. A mulher tem no círculo familiar a força que tem, não a que lhe conferem leis e convenções A esta sobrava coragem e pragmatismo e por isso levava a sua por diante. Coragem e bom senso em partes iguais. O homem. que era um grande homem, começava por lhe ter respeito.... Assim o Avô Manuel contava uma das história da Mãe que tão bem o soubera proteger e que ele admirava mais do que qualquer outra pessoa à face da terra. Outra tirada que sobreviveu foi a que pôs termo a um período de namoro que se arrastava: "Não quero que esta gente diga que estive à espera que a tua mãe morresse, para me casar contigo. Ou é agora ou não é". Sintética e precisa. Neste caso o filho terá ouvido a frase da sua própria boca. A grande anotadora de lendas e de crónicas, também, às vezes, falava de si.... À casa do lugar do Paço chamava "o torrão". A partir do núcleo inicial de uma casa de pedra pequena e antiquíssima (do sec XVI ou XVII), se acrescentara outra bem maior, cujas obras terminaram em 1901. E depois se comprara a vizinha Quinta da Pena, as Nogueiras e muitas das terras da ribeira do Douro, para poente... E há ainda o insuspeito testemunho da minha mãe, que vivia em conflito constante com os sogros e de pouca gente gostava em Avintes, mas simpatizava, incondicionalmente, com aquela velhinha prodigiosa, de olhos grandes e azuis. Só ela mesmo a poderia criticar. "Menina, usas as saias muito curtas. Parece mal mariamanuelabarbara moreira aqui vai ---------- Mensagem encaminhada ---------- De: Maria Manuela Aguiar Data: 21 de junho de 2017 às 16:23 Assunto: parte da 1ª versão Para: Maria Manuela Aguiar Muito mais tarde,já trintão, numa estada em Lisboa, António conheceu a Amélia Soares de Albergaria, que seria a sua duradoura paixão - o casal nunca passava despercebido, onde quer que fosse, Ela era e ainda é, com mais de 80 anos, muito bonita, alta, loira, atraente e simpática, com seu sorriso doce, sempre impecavelmente vestida e penteada. Amélia tornou-se, de imediato, uma prima muito querida, família nossa, como se sempre o tivesse sido. Os padrinhos do casamento, celebrado na Sé do Porto, foram os meus pais. Do Porto, o cortejo nupcial regressou, numa longa fila de carros, a Avintes, para o banquete no casarão dos tios Reis, no cimo da Rua 5 de Outubro, onde é agora a sede e, suponho, o auditório do grupo de teatro "Os Plebeus". Horas deliciosas passámos ali, em ruidosas reuniões de família. Havia sempre muitos cães - a Maria Angélica , irmã do António, chegou a fazer criação de "pequinois" do mais puro "pedigree" (quando fiz 7 anos, ofereceu-me um cachorrinho, que eu escolhi de uma ninhada numerosa, um inesquecível presente). Atrás, o jardim acabava na parte de quinta agrícola, que era guardada por cães, nem sempre afáveis. A cave da casa era toda ela reservada à adega, ao lagar, onde me lembro de ver grupos de homens de calças arregaçadas acima do joelho a pisarem as uvas, cantando em coro. Parecia-me sempre uma cena de teatro, uma coreografia, embora a prova do vinho novo mostrasse o contrário. Da principal porta de entrada para dentro todas as salas estavam, tão acolhedora e urbanamente decoradas,tão cheias de bonitos quadros e estatuetas, jarrões "deco", veludos escuros, que ninguém adivinharia o mundo rural que coexistia, lá em baixo! Nada de raro,contudo, nessa época, nas vilas e aldeias rurais, à volta do Porto. Embora num estilo arquitetónico diferente, a casa em que nasci, em Gondomar, também somava as duas realidades. mas a festa do lagar não era tão popular com a dos Tios Reis- uma verdadeira romaria Do mesmo lado da rua, a poucos metros, para sul, morava o Francisco (Chico) Marques, numa casa branca, que tinha sido dos meus tetraavós, da mãe do Avô Manuel, onde passaram a infância alguns dos Marques, que viriam a notabilizar-se como entalhadores, escultores e arquitetos. Não é difícil imaginar os primos João Moreira, António e Maria Angélica Reis, Francisco e Corinto Marques (que viria a casar com Maria Angélica, já ambos na "meia idade") em constantes convívios numa e noutra dessas casas, E é provável que Celina se juntasse a eles muitas vezes, porque era prima de primos dos Reis, como a Maria Argentina - (através da qual consegui duas fotografias de Celina. Todos vizinhos e apar De Celina, na residência dos meus Avós, ficou, para além das memórias, um retrato, numa enorme moldura de prata, que se destacava em cima de uma mesa oval. A sala de visitas era mesmo só para visitas de " cerimonia", e não usada no dia a (ao contrário do que acontecia em casa da outra Avó, sobretudo, suponho, por causa do piano, que a convertia em "multiusos", sala de estudos de música, de ensaio de coros, de concertos das meninas, ou, simplesmente, de festa, com muita música e canto à mistura. Estava sempre aberta , até para as crianças, que, só por milagre não destruíram, por completo, os aparentemente frágeis, mas muito resistentes, sofás e cadeiras "arte nova" de nogueira clara e estofos de veludo verde. Não assim em Avintes, pelo que essa sala, que se nos oferecia raramente - recordo-o como sendo cinzento, numa atmosfera de penumbras, melancolia e mistério, simbolizados naquele retrato de uma mulher fascinante, num vestido de gala, de amplo decote, com os longos cabelos escuros, soltos, caindo, num penteado artístico, sobre os ombros. Dir-se-ia uma rainha, ou um vedeta de Hollywood, fitando a posteridade com uns olhos expressivos. Mas eu sabia que uma doença fatal a tinha derrotado aos 20 anos... E não parecia uma jovem assim tão jovem, mas uma Senhora... Sempre que se esqueciam de fechar a porta, eu entrava e ficava a olha-la, com tristeza, porque ali estava tão cheia de graça e de vida e, afinal, tinha partido deste mundo, pouco depois. A minha mãe era muito ciumenta e não partilhava das emoções que o retrato me despertava, e ainda menos dos sentimentos dos meus Avós por essa outra nora, tão querida. Havia outras fotografias de Celine, que foram sendo guardadas, face aos reiterados protestos da minha Mãe e, mesmo aquela, ali resguardada do convívio quotidiano, acabou por ser retirada, no auge de uma crise maior. Eu, com os meus 6 ou 7 anos, achei tudo isso muito mal. A casa, a sala, o retrato e as memórias - tudo era dos meus Avós. Uns anos depois, quando contava esta história a alguém, mais consonante com as reações de minha Mãe do que com as minhas, ouvi esta pergunta, que não precisava de resposta: "Tens a certeza de que não és filha da Celina"? Náo sou, nem preciso de ser para ver as coisas assim. Morrer aos 20 anos, que absurdo! Iria acontecer com a minha irmã Madalena, em 1964. Lindíssima, cheia de vida! Leucemia, no seu caso. Toronto. O António confirmou o que eu pressentia, uma vida tão breve de uma mulher que tanto amava a vida e que tinha tudo o que queria para ser feliz. Desportiva, divertida. Contava-me o António, de um dia ela apareceu, de repente, aos amigos reunidos no sotão da casa, entrando pelo telhado. Curiosamente, minha Mãe seria bem capaz de fazer o mesmo..., Tal como na geração seguinte, a minha irmã, primas e eu própria - todas useiras e vezeiras em saltar das árvores, dos terraços, das janelas do 1º andar da "Villa Maria", por sobre canteiros de rosas de pé alto (exercício arriscado...). Deslizar nos telhados da "casa do forno" ou da "casa da eira", para olhar em volta ou apanhar araçás de outro modo inacessíveis - araçás brancos, araçás vermelhos, que tinham vindo do Brasil, com o Avò Aguiar.... Celina, Maldalena...Por duas vezes, o Pai viu partir pessoas tão especiais, tão próximas, a mulher, uma filha, aos 20 anos, quase do mesmo modo, com doenças, cuja cura estava em vias de ser descoberta. A dimensão dos grandes desgostos e das maiores alegrias, a dimensão de "sonho" foi preenchida pelo meu Pai no círculo da família e dos amigos, na paixão pela música e pelo desporto, pelo mar, pelas artes, pelo cinema, pelo estudo, pelo debate - não certamente na vida profissional, como funcionário público, e, depois, dirigente de uma agremiação (a Associação ou Grémio dos Ourives do Norte). Não eram cargos muito empolgantes, nem davam remunerações milionárias, mas ele cumpriu-os de forma exemplar . Há pouco tempo, por acaso, encontrei num colóquio em Gondomar, terra da filigrana, um ourives que o tinha conhecido e me veio falar dele com toda a simpatia, mas acrescentando: "Só tinha um defeito, era excessivamente honesto". Se a honestidade pode ser excessiva, se a figura existe, ninguém cabe melhor nela do que o meu Pai. Em síntese: no dia a dia. o ambiente de trabalho era tranquilo, a burocracia uma constante, as pessoas simpáticas, mais mulherea do que homens. entre elas a Dona Corina. excecional funcionária, que se tornou grande amiga nossa e a Fernanda Lobão, que era de Gondomar, prima da minha mãe, muito inteligente e viva, embora me parecesse naqueles trabalhos de secretariado. E, a espaços, havia alterações das rotinas, que agradavam ao Pai, como organização de exposições de ourivesaria, de, catálogos, parcerias com o vespertino Diário do Norte, do qual na última fase, o Pai chegou a ser administrador, e, por via do qual, uns anos antes, porque o jornal era patrocinador da corrida, participara numa "Volta a Portugal" em bicicleta, integrado num qualquer "comité". Não sei porque razão, também o Tio Manuel Aguiar, pertenceu à mesma instância. Andaram juntos e muito divertidos. Por duas ou três vezes, a Mãe foi ao seu encontro, e a Madalena e eu tivemos a sorte de ir com ela, ficámos nos mesmos hotéis, fascinadas com a dinâmica e o frenesim, que cercava os ciclistas, de quem bem gostaríamos de nos aproximar - coisa que não foi possível. Tínhamos de nos contentar com os relatos do Pai. Só me recordo de pormenores sobre a alimentação - muita!- , a ponto de espantar o Pai, que, nessa altura,por sinal, comia bastante ( parco só no vinho....). NASCIDO EM AVINTES "Deixa aqui escrito o seu nome O célebre João de Avintes" (in " Apresentação") João. O menino que nasceu em Avintes, numa casa com vista para o Douro, numa colina verde, a que chamam, com propriedade, "o outeiro" . No dia 6 de junho de 1918. O nome dificilmente poderia ter tido outro. O Avô paterno era João Dias Moreira, o Avô materno João Capela. Foi o primeiro neto de ambos. Um herdeiro robusto, muito branco e loiro, como se pode ver na sua primeira fotografia, tirada num estúdio do Porto, como era, então, costume. Não tinha, é certo, os olhos muito azuis do Avô Capela, mas prometia a compleição nórdica do Avô Dias Moreira, com os seus imponentes quase dois metros de altura - a mesma estatura do seu meio irmão, o Tio Padre Manuel Pinto da Silva. Essa família de gigantes parecia vinda dos "Highlands" da Escócia. E, talvez, remotamente, viesse, fruto do encontro de povos que provocaram as invasões francesas, mais a aliança luso-britânica. Soldados inimigos e aliados, todos andaram por ali. Gramido, note-se, fica face ao Outeiro, do outro lado do Douro. Sempre achei curioso que em Avintes, nos tempos da minha infância, ainda se pronunciasse o "L" à francesa.... Mas sobre essa possível ascendência nada sei em concreto, para além desses traços fisionómicos pouco latinos, e de uma anglofilia declarada, que passou de geração em geração, com o seu ponto alto nas duas guerras europeias do século, a que então terminava e a que havia de acontecer duas décadas depois. De concreto, sabe-se que eram chamados os "patrões", provavelmente descendiam de antigos donos deestaleiros que existiram na ribeira de Avintes. Foram-se os estaleiros, mas ficou a alcunha. O meu Pai ainda foi o "Joãozinho Patrão", filho do Manuel Patrão e neto do João Patrão. A linha terminou comigo, pois que mesmo em Avintes, sou simplesmente Manuela Aguiar. Na era digital, em que me alfabetizei já depois de ter deixado a Assembleia, em 2005, iniciei-me com um blogue sobre a família, para que os mais novos saibam sobre todos estes antepassados alguma coisa mais do que o seu nome. E é ao blogue que vou buscar, para estaa "memórias" as imagens e os textos em que lembro meu Pai... É muito mais o que ficou por dizer, do que aquilo que escrevi, para lutar contra o esquecimento, com armas que são,apenas, fotografias e palavras. A primeira imagem, possivelmente de fins de 1918, mostra um menino gordo, a olhar em frente, olhos bem abertos, muito sério, entre os pais, os meus Avós Olívia e Manuel. Tem a mesma expressão, poucos meses depois, já sozinho, sentado nos veludos de um estúdio, face à câmara, vestindo apenas uma diáfana camisa de cambraia branca, o cabelo escondido numa touca de renda, a cara redonda . Era comum, então, os meninos posarem nus, como os anjinhos do céu, mas imagino que a Avó Olívia o quis poupar a tamanha exposição e fez bem. O traje escolhido, sumário, leve e gracioso é mais etnográfico do que a nudez. (Tão religiosa a Avó... Se pudesse, vestiria até os anjinhos, tanto nas esculturas como nos óleos das igrejas...) Quatro ou cinco anos passados, vemos um rapazinho, que continua a não sorrir para a câmara, de pé, em poses artificiais, pouco convincentes - de perfil, com calção curto e "blazer", encostado a uma coluna, ou de frente, com indumentária semelhante, junto a um brinquedo de praia, artesanal. Nos estúdios da famosa Fotografia Evaristo, em Espinho (havia, depois, de manter a tradição, levando as filhas ao mesmo estúdio).. Não é criança que desperte uma empatia imediata - nem é particularmente bonito ou expressivo, apesar de ser filho de uma mãe de beleza exótica (dir-se-ia indiana, oriental, embora fosse) e de um pai que, para além de ator de teatro (no "Grupo Mérito Avintense"), podia bem ser ator de cinema. O menino estaria, talvez, contrariado, farto de seguir as instruções do fotógrafo, desconfortável sob os holofotes (como a Madalena e eu, 30 anos depois...). Mas também podemos pensar que refletisse o ambiente triste, em que terá crescido em casa, com a morte ainda recente dos irmãos mais novos, os gémeos, Alberto e Manuel e a irmã Maria, os três vítimas de complicações que hoje se resolvem facilmente com transfusões de sangue. Saudável e forte só mesmo ele, o primogénito. Criado entre adultos, objeto de todas as atenções e de todos os cuidados, até ao dia de ir para a escola, Mais precisamente, para um excelente colégio privado. Decisão paterna, pela certa. O Avô Manuel, que não teve autorização do seu pai para fazer estudos académicos (único filho varão, estava destinado a tomar conta das muitas terras que iriam ser suas), prezava mais a cultura das Letras do que a agricultura. A mim, lembro-me bem do que me disse, por mais do que uma vez: "a melhor herança que podes ter é um curso universitário". Ao filho, terá dito precisamente o mesmo... Na altura, não sei se a ideia agradou à Avó Olívia, que, parecendo dócil e serena nos retratos, não era fácil de contrariar na vida real. Terá sido convencida pelo Padre Luís, um grande amigo do casal - e um santo, que eu ainda conheci, muito velhinho, no Colégio do Sardão - ou pelo Abade de Avintes, que era, como foram todos, sucessivamente, visitas da casa... Na época do Colégio dos Carvalhos, o Pai já tem, enfim, algumas parecenças com a pessoa de que eu me lembro, noutra idade, naturalmente. Já sorri, no meio de muitos amigos, todos irradiando boa disposição. Podia ser fingimento, encenação, "fazer de conta", mas não era! O internato, onde passou onze anos, foi mesmo para ele, um lugar perfeito. As amizades que aí fez, duraram para o resto da vida. Era um excelente atleta, um aluno despreocupado, que cumpria os mínimos em ciências e se dedicava de bom grado às letras, com uma inclinação para os autores latinos (recordo o pasmo com que o ouvia dizer que lia Virgílio e Ovídio, por gosto, no original - eu não, faltava-me, em partes iguais o saber e a satisfação). Do seu tempo do colégio são inúmeras as histórias engraçadas que nos contou. De Avintes, os relatos divertidos começam com a chagada dos novos vizinhos, donos da quinta que confinava com a sua casa: a família Genelieu - Novais e Silva. O Coronel Novais e Silva, a mulher (de origem farncesa, descendente de um dos engenheiros que acompanhara Eifel na construção da ponte sobre o douro) e os filhos , FALTA UM PARÁGRAFO É um bonito homem, com o seu ar britânico, na fase do namoro com a minha mãe (que nunca permitiu a sobrevivência de fotos de outros namoros e, ainda menos, de um primeiro casamento romântico que terminou com a lindíssima noiva a morrer aos 20 anos de tuberculose) e, depois, connosco, as duas filhas, e a família da mulher, bem mais numerosa do que a sua, onde foi prontamente adotado, Mas as imagens que mais me encantam são as do velho senhor amável e comunicativo dos últimos retratos. Envelhecer bem, física e mentalmente, eis uma arte, ou, talvez, uma recompensa que mereceu numa caminhada de 78 anos, Ninguém o definiu melhor do que o nosso amigo Padre Manuel Leão. Em Espinho, na Capela de Nossa Senhora da Ajuda, em 14 Abril de 1996. Dois minutos bastaram. Nunca vi pessoa capaz de dizer tanto em tão pouco tempo... Foi na chamada "missa de 7º dia" - o primeiro momento bom, depois da súbita morte do Pai no domingo de Páscoa. Pelas palavras do Padre Leão (que pena não as ter gravado, embora no essencial permaneçam em memória) - mas também pelo encontro com uma comunidade de igreja, a que o pai pertencia, naquela capela, e que, tanto a Mãe como eu, só conhecíamos de vista, pois em Espinho toda a gente se conhece, pelo menos assim - de vista... (família atípica, onde as mulheres se consideram católicas, mas é o homem que, no dia a dia, 3 vezes ao dia, ou mais, se recolhe, em meditação, nos bancos da capela). Ali mesmo, em frente ao altar de Nossa Senhora da Ajuda, onde rezava, a fila de cumprimentos, geralmente cerimonial lúgubre, de adensar tristezas, foi o contrário. Mulheres e homens que com ele tinham partilhado a missa de Páscoa, a comunhão, falavam da sua alegria, do seu sorriso. De um homem feliz. Gente de fé, exatamente como ele. Ficaram no quadro global da cerimónia, já sem rostos definidos. Sensação da abertura à transcendência, da visão de outros reinos e destinos, que invadiu, por momentos, todo o nosso espaço, cheio da emoção pesada de muitas dúvidas e de uma perda definitiva. E ficou a imagem daquele seu amigo, já emaranhado ou desprendido de qualquer identidade sua ou alheia, definitivamente senil, que perguntava onde estava o João, que o queria dar-lhe um abraço, antes de ir embora. E ficou, sobretudo, uma síntese de 78 anos de vida ou de uma escolha de vida, na palavra breve e definitiva do Padre Leão. - um homem culto, inteligente e justo, que sempre preferiu apagar-se, muito pensadamente, e nunca quis fazer o que podia ter feito ou ser o que poderia ter sido. E que nunca, também, e antes do mais, exibiu o que realmente foi realizando, à sua maneira discreta, com competência e com humor e simpatia. 20 anos mais tarde, por acaso, em Fânzeres, no Centro Republicano, um ourives, que com ele conviveu no "Grémio" da sua profissão (onde o Pai era secretário-geral), fechou, a seu modo, com uma simples frase, aquele desenho do perfil , em dois traços, rigorosamente esboçado num elogio fúnebre. "O seu Pai era excessivamente honesto!" (e mais não disse, mas repetiu várias vezes, com a força que lhe dava ter bebido uns copos - o Pai que gostava do seu latim, e raramente bebia, teria dito "in vino veritas"...), Aqui estava o fio condutor para o meu completo entendimento do que deixara antever o Padre Leão. Demasiadamente honesto e demasiadamente inteligente… 2 - A família Dias Moreira é grande, mas não o nosso ramo. Desde o bisavô João, ao longo de mais de dois séculos, os nascidos em cada geração não passam de um ou dois. Há os que não tiveram filhos ou cujos filhos não sobreviveram até à idade adulta. No século XXI, apenas uma trineta de 20 anos, fazendo, com distinção, um curso na McGill em Montreal - brilho não raro entre os parentes que chegaram à universidade ou fizeram carreira académica. Chloe Randle-Reis, é canadiana, nada e criada em Toronto, tão longe das águas matriciais do Douro. Ela tem hoje nas suas mãos, talvez sem o saber, como eu o sei, todo o nosso futuro... Não o nome, que já não chegou a ela, mas o resto, que conta mais. O pai, esse recebeu o nome completo do Avô mítico - João Dias Moreira (com um apelido materno de permeio que só usava no BI). O Avô imenso - imenso na estatura, avolumada pelos seus capotes largos de inverno, como o descrevia um dos seus antigos caseiros, que encontrei emigrado no Transval, nos anos 80 do século passado. Imenso na sagacidade de homem de bem, de bens e de negócios É em traje do dia e dia na sua casa, e não numa pose solene de estúdio, com um dos seus fatos completos, que o vemos nos únicos retratos, em que aparece. Sozinho ou com a mulher. Esperemos que algum parente, um dia, nos surpreenda com alguns outros). A bisavó, Quitéria Francisca Pinto, era do centro de Avintes. A casa dos seus pais era discreta e airosa, no início da Rua 5 de Outubro, (mais tarde pertenceu a duas gerações de artistas, o pai e o avô do Primo Francisco (Chico) Marques). Os Marques são escultores, entalhadores, desenhadores, arquitetos (na geração do meu Pai, o último, foi o Corinto, que casou com uma prima dele e nossa, a Maria Angélica). Parece que o trisavô Pinto foi emigrante no Brasil, e, no regresso, investiu num pequeno estaleiro de barcos do rio. Não creio que fosse muito rico, não o suficiente para o padrão dos Dias Moreira… Arrastou-se o namoro de Francisca e João até ao dia em que ela lhe lançou um ultimato: ou casavam em vida da mãe dele, ou não casavam nunca, porque não queria que todos julgassem que tinha estado à espera da morte da velhinha… Não queria facilidades, exigia dele a capacidade de afrontamento que ela tinha. Mas não reclamava a vida em comum. Dava-lhe a liberdade de continuar em casa da mãe. Cada qual em seu sítio, se preciso fosse, mas casados na igreja, perante Deus e o mundo. E assim foi, até que a sogra adoeceu e lhe pediu auxílio. E a partir daí todos se entenderam surpreendentemente bem. Está tudo dito sobre o carácter da pequena e enérgica bisavó, a grande contadora de histórias, a protagonista de infindáveis horas de cantigas ao desafio… E, diz -se mais: que em menina se vestia de homem e ia para as feiras jogar varapau. Atendendo a que era muito pequena (1,50…) magra e franzina, é de espantar… Mas ela era de espantar – todos os relatos que chegaram até hoje vão no mesmo sentido João Dias Moreira e Francisca Pinto eram os avós de meu pai que moravam ao lado, aqueles com os quais foi criado. Não na mesma casa - cada um apreciava demais a sua independência - nem na quinta do Pena, ali em frente e , então, desabitada, mas na colina que vai descendo para o Douro e o Araínho e a que chamam precisamente "Outeiro". Não sei com exatidão onde ficava, nem se ainda existe - coisa improvável. Dela ouvi vagamente falar com alguma nostalgia e imagino uma alvura de paredes entre ramagens verdes e uma soberba vista de rio e de vale de espigas douradas (onde agora não há mais do que cimento clandestino...). Enfim, um lugar romântico como os Avós recém casados, num casamento, que, tal como o dos bisavós, foi escolha só deles. Mais contrariado o primeiro do que o segundo (a trisavó era viúva, vivia com aquele filho e queria nora mais rica, se é que não queria, fundamentalmente, nora alguma....) Essa moradia, onde nasceu o primeiro filho, de Olívia e Manuel era com certeza arrendada, pois não consta da lista de bens familiares - e, nesse tempo, gente abastada comprava, não vendia nunca propriedades. Parece que o bisavô fazia a sua contabilidade de novas aquisições, como num jogo, onde ganhava pontos, e essa vertente quantitativa, acabou fazendo o seu curriculum para a posteridade - com o nº auspicioso de 99. Mas vinha sempre junto à estatística um perfil de empresário agrícola, com o seu pioneiro recurso à mecanização e à compra a crédito - tão avessa à mentalidade rural da época... E crédito era o que menos lhe faltava - até sem papel escrito, porque a sua palavra era um seguro contra todos os riscos... Eram, de qualquer modo, os avós que moravam ao lado. Não na mesma casa - cada um prezava demais a sua independência - nem na quinta do Pena, ali em frente e , então, desabitada, mas no Outeiro, a colina verde, que vai descendo para o Douro. Não sei precisamente onde ficava, nem se ainda existe - coisa improvável. Dela ouvi vagamente falar, com alguma nostalgia, e imagino uma alvura de paredes entre pinhais e uma soberba vista de rio e de vale de espigas loiras (onde agora não há mais do que uma aridez de cimento clandestino...). Enfim, um lugar romântico, como os Avós recém casados, num casamento, que, tal como o dos bisavós, foi escolha só deles. Mais contrariado o primeiro (a trisavó era viúva, vivia com aquele filho e queria nora mais rica, se é que não queria, fundamentalmente, nora alguma....) Essa residência, onde nasceu o primeiro filho, era com certeza arrendada, pois não consta da lista de bens familiares - e, nesse tempo, gente abastada comprava, não vendia nunca propriedades. O bisavô parece ter gerido sua contabilidade de novas aquisições, como num jogo, onde marcava pontos, e essa vertente quantitativa, acabou fazendo curriculum - com o número auspicioso de 99 propriedades, muitas compradas a crédito - um perfil de empresário agrícola mais do que de lavrador tradicional. O número sempre presente, tal como o seu pioneiro recurso à mecanização e ao crédito - tão avesso à mentalidade rural da época...Crédito era o que menos lhe faltava e sem papel escrito, porque a sua palavra bastava... Foi um seu antigo empregado, emigrante na África do Sul quem acabou por me dar aquilo de que fiz uma imagem mais precisa desse bisavô: Ele, atravessando os campos, com o seu largo capote de inverno. Ele, presidindo aos almoços, com todo o seu pessoal, numa mesa de pedra retangular, que ainda hoje existe e é motivo de pasmo: talhada numa pedra com mais de 3 metros de comprido e mais de um de largo. Coisa tão rara, que era e é objeto de quase veneração... Mesa rara e mesa farta. Corria o ditado, que o emigrante sabia ainda de cor: Mais vale ser cão em casa do João Patrão do que criado na Quinta de... (a maior de Avintes, mas eu não apontei o nome e agora só poderia inventar...) Era m homem que não receava confraternizar com os seu empregados, que os tratava bem, mas exigindo, com certeza, bom trabalho - tudo o que ainda hoje se exige de um gestor competente. O que os resultados provam que foi... A faceta da generosidade, essa adivinho-o noutro relato de alguém da família, talvez a filha, Tia Francisca: nos seus últimos anos, já não passeava pelo meio das searas. O reumatismo, agravado pela humidade da beira rio, tornou-o praticamente enfermo. preso a uma cadeira. Passava muito tempo à janela do quarto, com vista para as suas terras, que se estendiam no vale do Douro, no caminho do rio para a foz. Daí observava e dirigia ainda os trabalhos, certamente. E, quando passava um mendigo, a pedir esmola, lançava da janela, preso por um longo cordel, um cesto de pão (e o mais que ali tinha para dar), e logo recolhia o cesto, até que viesse o próximo necessitado. Alguns seriam "os do costume"... Mas dele não ficaram palavras concretamente ditas, expressões peculiares, tom de voz, os seus gostos na música, nas cores, nos fatos, cartas suas, escritos... Ficou muito pouco da vida tão cheia do único grande empresário deste ramo da família ...(essa imagem levou o meu primo do Canadá, bisneto como eu, a dizer, quando arriscou um investimento na área de Toronto: "É preciso retomar o espírito empresarial, que anda perdido na família há 3 gerações" Deixou, pois, o Bisavô João um exemplo que ainda agora nos desafia a fazer coisas... Mas que pena tenho de não ter um registo de conversas, ao seu próprio jeito.... De um lado e outro da família é só a palavra das mulheres que resiste....e de uma palavra concreta se faz um retrato mais vivo. Como o da bisavó Francisca, apenas em duas ou três pequenas quadras dos milhares que saíram da sua veia repentista... Ou na decisão que tomou de se opor a um dote excessivo para o casamento da filha Francisca, como exigia a família do noivo e que comunicou ao marido nestes precisos termos: "Não assino, João! Seria o mesmo que deserdar o nosso filho. Não assino, quero ficar de bem com Deus e com a minha consciência". E a escritura não se fez com aquela abundância de bens, mas com o que achou correto. E o casamente foi por diante nas condições que ela impôs. A mulher tem no círculo familiar a força que tem, não a que lhe conferem leis e convenções A esta sobrava coragem e pragmatismo e por isso levava a sua por diante. Coragem e bom senso em partes iguais. O homem. que era um grande homem, começava por lhe ter respeito.... Assim o Avô Manuel contava uma das história da Mãe que tão bem o soubera proteger e que ele admirava mais do que qualquer outra pessoa à face da terra. Outra tirada que sobreviveu foi a que pôs termo a um período de namoro que se arrastava: "Não quero que esta gente diga que estive à espera que a tua mãe morresse, para me casar contigo. Ou é agora ou não é". Sintética e precisa. Neste caso o filho terá ouvido a frase da sua própria boca. A grande anotadora de lendas e de crónicas, também, às vezes, falava de si.... À casa do lugar do Paço chamava "o torrão". A partir do núcleo inicial de uma casa de pedra pequena e antiquíssima (do sec XVI ou XVII), se acrescentara outra bem maior, cujas obras terminaram em 1901. E depois se comprara a vizinha Quinta da Pena, as Nogueiras e muitas das terras da ribeira do Douro, para poente... E há ainda o insuspeito testemunho da minha mãe, que vivia em conflito constante com os sogros e de pouca gente gostava em Avintes, mas simpatizava, incondicionalmente, com aquela velhinha prodigiosa, de olhos grandes e azuis. Só ela mesmo a poderia criticar. "Menina, usas as saias muito curtas. Parece mal