quarta-feira, 28 de agosto de 2019

terça-feira, 27 de agosto de 2019

MARIA ANTÓNIA aos 98 anos

NOS ÚLTIMOS 3 ANOS

Nunca pensámos que não festejaria os 99, os 100 e, depois, mais alguns.
Ficam as imagens dos tempos em que este dia era sempre uma alegre reunião de família....












LEMBRANDO O TIO ZÉ - UM POUCO DA SUA HISTÓRIA


JOSE AUGUSTO BARBOSA AGUIAR
Menino vivaço, moreno, de incisivos olhos esverdeados, mais franzino do que os irmãos, e cedo deixando antever que seria o excêntrico dos excêntricos, radical, indomável, aventureiro, folgazão.
Um médico, talvez o pediatra brasileiro, terá dito aos pais que  ele era um sobredotado, que só poderia tornar-se uma notabilidade, para o bem ou para o mal...  (antecipando anos e décadas, diga-se que seria sempre das hostes do bem, numa trajetória extraordinária de anonimato -  nem cientista, nem homem de Letras, nem empresário de coisa alguma, não preenchendo, assim, as categorias de sucesso oficialmente reconhecido. 
Em criança, muito gabarola, faceta nunca totalmente perdida, numa tendência aberta e denunciada de divertir os outros, fantasiando ou exagerando crónicas da primeira pessoa do singular - ou não, porque algumas, apesar de inverosímeis, correspondiam à realidade. Deixava sempre, propositadamente, na dúvida, os interlocutores...
De pequeno, ficou a paradigmática história da caçada, quando disse aos irmãos: "Hoje fui à caça e matei um leão" O mano Manuel, que passava o tempo a implicar com todos e, em particular, com ele, provocou-o de imediato: "Oh Zé, vi agora mesmo um leão debaixo da tua cama!" . O Zé apavorado começou a gritar: Mamã, mamã, está um leão no meu quarto"
E lá veio a Mãe, subindo as escadas a correr, não de caçadeira em punho, mas zangadíssima, separando-os, um em cada quarto, de castigo. Acontecia muitas vezes ter de apartar aqueles dois. Manuel dormia com António Maria, em divisões comunicantes por uma larga porta, a nascente com vista para a rua, o Zé  na outra ponta, com janela bucólica para o pomar. Depois que o Pai morreu, a Mãe mudara-se para o 1º andar com as meninas (e as criadas, um universo integralmente feminino), deixando lá em cima a turbulenta república dos rapazes.
Em criança, o Zé foi fácil de assustar pelos mais velhos, mas em adulto tornou-se o mais destemido dos sete. Numa propriedade cujos muros eram acessíveis ao salto de pequenos larápios de fruta, de galinhas, de alfaias, várias vezes se detetaram intrusos e o Zé,  com o seu 1.60 m, era o primeiro a sair em perseguição, munido de uma lanterna, porque luz exterior não havia, e de um simples pau. Uma noite, alta madrugada, obrigou o cunhado João, acordado de um sono profundo e pouco disposto a bater-se com ladrões de galinhas, a acompanha-lo numa perseguição. Deixou-o  a guardar a frente, junto ao portão, enquanto percorria os cantos e recantos das traseiras. O cunhado, discretamente franqueou o portão ao delinquente, que não mais foi visto..
Revolucionário nato, laico e republicano (na voz do povo "foram as bençãos do padrinho", José Barboza Ramos, o famoso polemista, advogado, deputado e, por fim, magistrado e juiz conselheiro, era um, com fé ou sem fé religiosa, uma alma verdadeiramente cristã. Já aos 14 ou 15 anos dava aos pobres a sua melhor roupa, muito contra a vontade da própria mãe. Memorável, o caso da doação de um sobretudo, caríssimo, que ela tinha comprado no Porto,e que estranhava não o ver a usar.. Quis saber porquê. Resposta pronta: "Dei-o a um amigo, que precisava dele"
 - Fizeste bem, mas porque não lhe deste o sobretudo velho?"
 - E porque havia ele de ficar com o velho? Em que é que eu sou mais do que ele?"
Levava a coerência à prática mais radical, sempre, dos oito aos oitenta anos.. Enquanto a irmã Carolina cuidava dos pobres do Barredo, ele convivia, ali, mais perto, com os do Vinhal. A irmandade Aguiar troçava, chamando-lhe "o rei do Vinhal". Era, pelo menos, muito popular no bairro, sempre pronto a prestar serviço. No seu 5º ano do liceu, quando uns colegas lhe pediram explicações, logo ele montou um esquema perfeito de sala de aulas, arranjou de empréstimo uma sede, e arvorou-se em mestre principal, com a ajuda de uns poucos voluntários, arrastados pelo seu entusiasmo. Segundo contava o irmão Manuel, berrava muito, impaciente, com os discípulos/condiscípulos, quando erravam qualquer resposta - ouvia-se ao longe! - mas, por fim, os esforços foram recompensados, os seus discípulos/condiscípulos passaram todos. Ele foi o único conseguiu chumbar.! Nada que o deixasse abalado, até porque , em compensação, ficou com mais uma história incrível para entreter audiências futuras. Não perseguia, definitivamente, nem louros nem fortuna, apenas e só o lado lúdico de coisas boas ou más Um despreocupado boémio, para grande preocupação de sua mãe. Muitas namoradas, em novo e em velho, nos diversos países e continentes, geralmente raparigas altas e vistosas, e nenhum casamento. Em Portugal, teve sempre empregos precários, chegou a trabalhar com o cunhado Serafim, como vendedor, até que optou pela antiga saída portuguesa para os filhos segundos - partir para longe, único Aguiar emigrante da sua geração, primeiro, no seu Rio natal, depois, com a abertura dada pelo passaporte brasileiro, em Nova York. No Rio de janeiro, foi sócio do Clube de Regatas Vasco da Gama, clube do coração dos portugueses, e reencontrou as primas Pereira de Aguiar, todas lindas, simpáticas e divertidas. Não encontrou foi o trabalho que procurava (na joalharia, seguindo a tradição paterna?). Talvez, porque em NY, para surpresa da família, fez carreira como "diamond settler". Persiste a dúvida sobre como e onde terá aprendido a arte (uma hipótese é ter sido mesmo em São Cosme, onde o cunhado Serafim, na altura,não sendo ele mesmo ourives, tinha negócios no ramo. José Augusto, tal como António Maria, era excelente no desenho e muito hábil em trabalhos manuais. Fez-se um talentoso "designer" e cravador de jóias, e foi adotado pelos seus principais clientes,da elite judia novayorkina -  ois ou três joalheiros judeus, que se tornaram os seus melhores amigos. Ao que parece terá sido o único especialista desta arte, do mais alto nível, que, na América, não amealhou fortuna. A sua assinatura numa obra valia dinheiro, dinheiro, que gastava com generosidade, num círculo de convívio de brasileiros, chineses e outros orientais, e alguns portugueses.. 
Assim era o fabuloso "tio das Américas", que tinha três nacionalidades, filiação em dois grandes clubes de futebol, o FCP e o "Vasco" e estava sempre pronto a acolher qualquer amigo de um amigo de um amigo, num pequeno apartamento, um espetacular 40º andar, a poucos minutos dos teatros da Broadway. Cada vez menos convencional, deixou o chapéu, o fato e gravata da meia idade, para adotar bonés, jaquetas coloridas, camisas extravagantes e sapatos de cunha à Sarkozy (avant Sarkozy). Uma diplomata portuguesa de férias em NY, a quem serviu de cicerone, comentou: "À primeira vista, não parece, mas quando começa a falar, na convivência, vê-se que é um senhor" . De facto, pelo aspeto, não parecia. 
Viajou muito, embora não pela motivação comum, para conhecer novos países, e gentes exóticas. Não! Esteve, por diversas vezes, na China Taiwan, no Japão, em Israel, mas levado, apenas e só, pelo prazer de rever amigos queridos, antigos imigrantes regressados às origens. Com eles saboreavaumas jantaradas e bebia uns copos (sobretudo whisky, para sua salvação, com imensa soda), como se estivesse em Nova York ou Newark, sendo-lhes as paisagens e as originalidades arquitetónicas das cidades, completamente indiferentes. A Portugal, depois de uma ausência de mais de 15 anos, passou a vir regularmente, com um saco de "pai natal", cheio de presentes para a mamã e para toda a parentela, tirando o qual quase não trazia bagagem. E, por isso. não queria que lhe dessem nada para levar consigo De uma das vezes em que uma das irmãs lhe ofereceu, na hora da despedida uma bela camisola, acompanhada de um cartão, agradeceu, mas disse que a pequena mala de mão estava cheia, não tinha lugar para mais nada, só para o cartão, que , para ele, tinha muito valor....
 Vivia com ou outros e para os outros, esse alegre e exuberante "santo laico"..








J











  
















sexta-feira, 16 de agosto de 2019



CRESCER NA  VILA MARIA


António Carlos de Aguiar foi, mais do que um grande homem de negócios, um grande homem de família, um bom amigo, expansivo e bem humorado, de uma multidão amigos. Gostava de os reunir, na sua casa, no jardim, na adega, em convívios e festas, que marcaram o regresso a uma terra, de onde parecia nunca ter saído. Com as instituiçõesou com qualquer honesto merecedor de ajuda que a ele recorresse, era, invariavelmente, generoso. Um perfil que vamos traçando sobre detalhes de recordações mais subjetivas dos que lhe foram próximos, e nas entrelinhas de breves e mais objetivas notícias de jornais, em sintomática consonância.  
A morte, aos 46 anos, de repente e sem aviso, três meses após o nascimento de Maria Madalena, mais um bebé desejado, o primeiro nascido na Vila Maria, pesou por largo tempo sobre todos. O imediato era tristeza e saudade e, e sem que isso que então pensassem nisso o horizonte do futuro fechou-se para  todos eles. 
. À viúva não encontrou forma de suavizar o dia a dia das crianças, de enfrentar a tragédia, mulher forte caída em depressão, em prantos silenciosos, em desmaios que obrigavam a chamar o médico, primo e vizinho. Desgosto ostensivo, à vista do mundo, em roupa de um negro intenso, verão e inverno, que, só décadas depois, aliviaria em tons de cinzento e roxo, sua cor preferida. Foi na Igreja, que  procurou e encontrou consolo e esperança, num trabalho com que tentava mudar as coisas à face da terra, para ganhar o céu. A igreja que a levou a sair do torpor e do desânimo em que andava prostrada. A senhora cosmopolita, sociável e comunicativa, mulher feliz de um marido encantador, orgulhosa progenitora de uma prole em aumento quase anual, bem cuidada com a ajuda de amas e criadas, faria caminho solitário, dedicada à missão dupla da maternidade e da beneficência, transitando da esfera privada para a pública, em que percorria a sua "estrada de Damasco", a resposta ao chamamento do destino em que se redescobriu. No lugar de um ícone de beleza e elegância estava a apóstola, vulto escuro, personalidade formidável,  influente, por si, não por ser filha, irmã ou esposa de alguém... Sempre, previsivelmente numa linha conservadora e convencional (a mais revolucionária fora Glória, não Maria...), fator, numa pequena vila concervadora nos costumes, impunha respeito universal. À medida que, com o passar dos anos, inevitavelmente, e esbatia, na memória popular a imagem do marido, o mecenas convivial, firmava-se a dela, e os Aguiar de última geração eram já olhados como os filhos da Senhora Dona Maria 
Na Vila Maria, não vazio de autoridade nas suas ausências por uma boa causa - os tio, os dois casais sem filhos, tanto afetiva como geograficamente próximos, ocupavam-se da tarefa, a contento dos meninos, sempre mais complacentes,e compreensivos ...  Alexandre e Hermínia moravam, do outro lado da rua, precisamente em frente ao mirante da Villa Maria. Rosaura e Manuel Marques, na casa da Pedreira, a  poucos minutos de distância, feita por caminhos estreitos, aqui e ali ladeados por silvados, que se enchiam de medronhos,Se a Leninha passava os dias em casa de Alexandre, a Mariazinha era visita frequente da Pedreira, para onde ia pela mão da Maria Póvoas, ao serviço da Tia Rozaura. Adora crianças, cães e gatos e era a mais permissiva das vigilantes. A menina colhia os medronhos, tantos quantos quisesse... 
E, assim, a Vila Maria continuaria a ser um pequeno paraíso lúdico da infância e adoleslência para a descendência que António Carlos não veria brincar. Sete notáveis pequenas individualidades, com estilos muito próprios... Quando Maria Aguiar, a matriarca, que até aos 91 anos foi adorada por sucessivas gerações,e, depois, se tornou memória lendária, falava da diversidade dos Aguiar, cujo nome adotara em definitivo, abandonando o seu, decerto incluía nesse universo de polivalência os próprios filhos. Sete, ou oito,  se não esquecermos Augusto, tão cedo desaparecido e só lembrado pela sua beleza angelical e amável feitio.
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OS SETE

CAROLINA ROSA
Os nomes não foram escolhidos ao acaso ou na procura de uma conjugação particularmente harmoniosa, mas por serem os das avós, materna e paterna.
 Brasileira de naturalidade, nascida no centro histórico do Rio de Janeiro, Rua 7 de Setembro, em fevereiro de 1912, perdeu oito anos depois, no regresso definitivo a Gondomar, o bonito sotaque carioca, aprendido no colégio, sem perder nunca o afeto nostálgico pela Pátria grande. 
Criança de uma beleza delicada, pele muito branca, cabelo escuro e olhos imensos, sonhadora e alegre, via-se como a "morgada", com direitos de primogenitura no coração do "Papá". Sabia que ele nunca lhe dizia "não", quando os seus belos olhos verdes, parecidos com os dele, se enchiam de lágrimas.
Em São Cosme não havia externato, perto de casa como no Rio, e, terminado o ciclo primário, para continuar estudos, a solução achada foi um colégio no Porto, que já não se sabe qual foi, mas só podia ser excelente, porque o pai, em tudo, escolhia sempre o que houvesse de melhor, mas onde não ficou por muitos anos.. Com queixas e lamentos conseguiu, por fim, que o Papá a retirasse de lá. Enviava cartas pungentes, pintando o ambiente de um seleto internato, com as cores do inferno, ou de um campo de concentração juvenil. Saiu, a tempo de, gozar, por uns meses. do seu convívio quotidiano, ao ritmo de vida livre e movimentado da Vila Maria, onde novo bébé era esperado. Recebia lições de piano, lia os bons autores e dedicava-se a enfeitar os altares da Igreja e a obras pias, no que foi, afinal, a precursora da própria mãe, então mais ocupada em tarefas familiares e sociais. .
 Para além da prosa delirantemente excessiva, dirigida ao pai (deduz-se que na abertura materna aos seus pedidos de regresso a casa não confiava, de todo), terá escrito sobre o seu desaparecimento? Talvez sim, poemas, à semelhança do irmão António. Só os dele chegaram até nós, único testemunho de época, surpreendentemente realista na descrição de um quotidiano sofrido, que só o tempo foi, de algum modo, suavizando. Porém, as marcas profundas ficaram, fazendo a diferença no percurso de cada um, e mais ainda no de Carolina, que nunca se  nunca se recomporia inteiramente do abalo. Ficou-lhe um sentido trágico da vida, do amor e da morte, um gosto pelo excesso, visível nos seus sonetos românticos, inspirados um Florbela, mestre espiritual de todas as jovens poetisas daquela geração. Os versos perderam-se quase todos, quando os seus livros, onde tinha por hábito deixá-los escritos numa folha onde houvesse espaço em branco, foram , todos, deitados ao lixo, como causa suposta do desequilíbrio emocional e depressão, que os médicos lhe diagnosticavam. Gesto anacrónico, bárbaro, que custa a crer ter sido perpetrado pelo um irmão, o quase médico, o mais próximo em idade e, também, sempre, no relacionamento relacionamento, em parceria com o marido. Restam dois sonetos, salvos pela Mariazinha, talvez copiados da pagina de um dos romances que, muitas vezes, lhe emprestava, e conservados numa gaveta pela habitual guardiã dos tesouros afetivos da familia, (que só não soube conservar os seus,poemas segundo ela, tão bons que até os confundia com os autenticamente saídos da pena de Espanca ...). E, assim, bastante mais abundantes são as epístolas da colegial Carolina, tão  cómicas, roçando pelo seu tom desmesurado, a caricatura, num português infantil e rudimentar, do que as inspiradas composições poéticas da idade madura.. 
O seu sentimento de orfandade também a levou, ao reforço da prática religiosa, Era a única a acompanhar a mãe em ações de voluntariado. Durante a guerra foi enfermeira da Cruz Vermelha, com diploma oficial e louvores obtidos, de que há notícia em jornais portuenses. Sabe-se que, mais tarde, chegava a vender jóias suas para ajudar gente dos bairros pobres do Porto e Gondomar... Excessivamente caritativa, até pelos elevados padrões maternos... Chegou a pensar na vida conventual, que a Mãe, curiosamente, não encorajou, pelo contrário, tratou de a casar, com 17 ou 18 anos, com um jovem muito católico, solista do coro da Igreja de Gondomar, dono de uma voz assombrosa e de muito boa figura. - Serafim Caetano Pereira - sendo que o Pereira não é o mesmo da família da Gandra. Parentesco não havia. Perfeita sintonia também não houve pela vida fora, embora ele a admirasse e apreciasse uma súbita e inesperada tendência para trajar, luxuosamente, vestidos  e capelines vistosos, seguindo o último figurino. Não havia na vila de Gondomar senhora que pudesse rivalizar com ela. Serafim, politicamente conservador e militante monárquico, sentia-se bem ao lado de uma figura aristocrática, sabendo que formava um belo casal. 
Só mais tarde, já os dois filhos eram jovens, na casa dos vinte anos, haveria de descurar, excessivamente, a aparência, e os 11 netos jamais a puderam ver ou imaginar como foi no seu tempo de feliz anfitriã e patrona de boas causas. As festas que dava eram famosas, animadas pela seu entusiasmo juvenil, tocando piano ou cantando com uma bela voz. A presença de padres, seminaristas, gente da igreja foi engrossando, os lanches tornaram-se cada vez mais populares, e, contudo, não resistiram a críticas veladas, mexericos de terra pequena. Serafim, que sempre vira com bons olhos a franca hospitalidade da sua sala de visitas, acabou por ser sensível ao falatório, foi fazendo pressão para pôr termo às benignas tertúlias  já enraízadas na agenda dos convivas  e, em breve, para Carolina, os dias de risos, música e boa mesa e companhia se foram volvendo em rotina solitária, O fim das festas foi o início de uma época negra, agitada por crises de neurastenia.O escape  passou a ser o aumento da frequência das idas ao Porto, ora para cuidar dos seus pobres, ora, apenas, para lanchar na Ateneia, por vezes com a Mariazinha, um hábito que já tinha muitos anos, desde os tempos em que a irmã deixara o colégio, e não fora interrompido pelo seu casamento com o João. Ambas eram leitoras fiéis da romancista portuense Aurora Jardim, uma mulher lindíssima, sempre impecavelmente vestida, com quem se cruzavam, de vez em quando, na pastelaria, sem terem jamais ousado dirigir-lhe a palavra, coisa que as boas maneiras não autorizavam











Manuel Joaquim
O primeiro dos rapazes recebeu, também o nome dos avós, Manuel (ramo Aguiar) e Joaquim (ramo Barboza). Era loiríssimo, com olhos de um azul muito claro, e o mais irrequieto dos sete, o mais criativo, para o melhor, lado que felizmente se foi acentuando à medida que crescia, e para o pior, na infância e na adolescência prolongada. Um líder, um chefe de tribo, orador inspirado e convincente, imaginativo artífice de partidas medonhas, que executava ou mandava executar com infalível eficiência. De facto, a sua lenda negra não ficava muito aquém da realidade. e, assim, naturalmente, tudo o que de insólito acontecia já na escola primária era atribuído aos Aguiar. A cidadã exemplar, que, não obstante. era a mãe dos pequenos malfeitores, passava pelo suplício de reconhecer agravos,  indemnizar eventuais vítimas e castigar, severamente, os infratores. Incorrigíveis, qualquer que fosse a natureza, muito variável, dos desatinos - urinar nos tinteiros, ou, pior ainda, defecar nos trombones da banda de música, partir com fisgas os vidros da vizinhança (modalidade em que brilhava o aparentemente pacato António Maria, um campeão de pontaria), explodir laboratórios de química, (a mais catastrófica  experiência do José, recordista absoluto de expulsões do colégio)...
Manuel Aguiar conseguia compatibilizar estas atividades marginais com outras mais do agrado de sua mãe - a poesia, o teatro amador e, sobretudo, um impecável curriculum académico, desde a primeira classe ao último ano do curso de medicina, quase completado na Universidade de Coimbra.
Como dramaturgo a sua obra, mais representada e celebrada foi uma comédia musical, ou, segundo o cartaz "revista humorística  de usos e costumes regionais"  intitulada "O Nabo" - uma co-autoria com os colegas Abílio Brochado, Mário de Castro e Bismark de Melo, e música de Damião de Almeida e Domingos Monteiro. Estrondoso sucesso, comemorado 24 depois, num  grande almoço, que reuniu, no Monte Crasto, a relembrar, nostalgicamente, a brilhante geração académica de 1933. Ausentes Bismark de Melo e José de Aguiar (um dos atores de "O Nabo" e então já emigrado nas Américas) mandaram mensagens. Já formados, professores, juízes. A Manuel ainda faltava o Dr. O cursos que viria a levar a bom termo, política social e ciências afins, seriam concluídos bastante mais tarde, quando era um especialista nos domínios da previdência ou segurança social. Na década de 30. desistira da formatura no último ano para casar com a paixão da sua vida, uma conterrânea, rapariga de forte personalidade, inteligente e bonita. Perfeita, escolha, mas, aparentemente, não haveria necessidade de tanta pressa. Muitos filhos bonitos - sete. Dois deles seriam os últimos  a morrer  de tuberculose. Ao  menino que se chamava António dedicou na lápide de mármore do jazigo, uma quadra que me ficou sempre na memória, porque é afinal a história da passagem de gerações pela vida 
"Dorme, filho. Em tua graça
Uma virtude consigo
No breve instante que passa
Eu irei dormir contigo" 
A pequena Margarida, de olhos tão azuis como os seus, é recordada numa outra quadra singela, que fala da cor dos céus. Margarida Clara, se chamou a irmã nascida logo depois (todas as filhas eram Claras, como o mãe, uma também de olhos muito azuis, a Manuela Clara
Durante a vida, que o levou para outros terrenos, a sua vocação de médico perdurou - era consultado pela família próxima em caso de doença e mantinha as amizades de quantos médicos famosos do Porto tinham sido colegas em Coimbra, que tratavam os irmãos e os sobrinhos completamente de graça numa gama infinita de especialidades... De Coimbra ficou. também a paixão futebolística pela Académica. Era uma dor de cabeça constante para os portistas da família,  em que ele era a única exceção...


António Maria
Foi buscar os nomes, numa transição geracional, ao Pai António e à mãe Maria. Um moreno, de grandes olhos escuros, aparentemente menino exemplar, pacato, de falar pausado, não muito menos irónico do que os que falavam mais alto, capaz de se acantonar rezar o terço, vituosamente, enquanto os irmãos se batiam à sua volta, impressionando a Mamã, que o olhava como um pequeno santo em crescimento  e grande capacidade de observação. Qualidades que o tornavam o grande favorito da mamã, embora, na verdade, não fosse rapaz acima de toda a suspeita. Distinguia-se dos manos mais nos meios do que nos fins - na prática continuada de ilícitos e contravenções próprias da idade. De uma coisa, pelo menos, era invariavelmente o principal responsável; no apedrejamento repetido dos vidros da vizinhança. Era o tal que, de fisga na mão, não falhava o objetivo. Um campeão da pontaria. O pai pagava a faturas  em dobro, para aplacar a vizinhança (ou porque gostava de pagar tudo fartamente) e castigava-o, sem condescendência.. Não foi por falta de punição que eles não tiveram emenda. Eram mesmo resistentes...Nas meninas, o pai nunca  tocou, como dizia o ditado, "nem com uma flor". Ficavam, para o efeito, nas mãos da mãe, nesses tampos remansosos de casada, ainda muito"passa-culpas".
António depressa de converteu num bonito rapaz, muito dado à poesia e ao romance (na literatura como na vida quotidiana). Terminado o liceu, sem mácula de expulsões no "curriculum", não quis continuar e, talvez por conselho ou influência do tio Alexandre entrou na função pública e, durante décadas correu o continente e ilhas (ou, pelo menos a Ilha da Madeira) como tesoureiro da Fazenda Pública - Funchal, Santo Tirso (onde se apaixonou pela futura mulher, uma lindíssima rapariga de fulgurantes olhos verdes, Maria Antónia do Amaral, sobrinha dos donos da pensão familiar, onde aí morava, que lhe asseguraria uma descendência de rara beleza, três raparigas, ao lado da mãe e um rapaz parecido com ele), Paços de Ferreira e, finalmente, o posto mais desejado, Gondomar. Aposentou-se cedo, dedicou-se aos negócio e enriqueceu. Foi o único!  Sempre amável, bem humorado, fleumático, muito chique nos seus fatos completos, que não dispensavam o colete, chapéu na cabeça e sapatos italianos (dir-se-ia sempre os mesmos, coisa que se explica, porque quando gostava de um modelo, comprava logo, pelo menos, dois ou três). No dia do seu funeral, a dona da pastelaria que frequentava no todos os dias, dizia, melancolicamente: "morreu o último verdadeiro senhor de Gondomar". Tinha mais de 80 anos, e mantinha o seu ar não só jovial, mas verdadeiramente jovem, o seu humor subtil, o seu belo sorriso, que podia ser benignamente trocista sem parecer 

José Augusto
Depois de contemplados avós e pais, chegou a vez dos tios:José (Barboza Ramos)  e Augusto (Aguiar) legarem o nome a mais um filho brasileiro, um rapaz vivaço, moreno, de enormes e incisivos olhos esverdeados, mais franzino do que os irmãos, e cedo deixando antever que seria o mais excêntrico dos excêntricos, talvez o mais inteligente, mas, sem dúvida, o mais genuinamente radical, o indomável... Em criança, muito gabarola, faceta amenizada, mas nunca totalmente perdida, numa tendência para exagerar as crónicas - ou não, porque algumas por inverosímeis que fossem, correspondiam à realidade. Era um revolucionário nato, laico e republicano (na voz do povo "foram as bençãos do padrinho", José Barboza, o famoso polemista, advogado, deputado e, por fim, magistrado e juiz conselheiro), Já o chamámos um "santo laico", porque não havia alma mais genuinamente cristã do que a sua. Já aos 14 ou 15 anos dava aos amigos pobres a sua melhor roupa, para horror da cristianíssima mãe. Memorável, o caso da doação de um sobretudo, bom e caro,  comprado por ela e que ele nunca usava A mamã quis saber porquê. Resposta pronta: "Dei-o a um amigo, que não tinha nenhuml"
 - Está bem, mas porque não lhe deste sobretudo velho?"
 - Mas porque havia de lhe deixar o velho? Em que é que eu sou mais do que ele?"
Assim foi sempre pela vida fora. Enquanto a irmã Carolina cuidava dos pobres do Barredo, ele convivia, mais perto, com os do Vinhal, Os irmãos troçavas, chamavam-lhe "o rei do Vinhal", onde era, de facto muito popular. O seu feito maior foi ter organizado, aí, cursos de explicações" gratuitos, onde ele se improvisou em mestre principal, com a ajuda de vários voluntários, arrastados pelo seu entusiasmo.  Ao que dizem, berrava imenso com os colegas/discípulos, quando não acertavam nas soluções, mas teve sucesso, os seus  alunos passaram todos. Ele, porém, chumbou. Sabe-se lá porquê.   Não terá ficado muito abalado, nunca perseguia nem fortuna nem reconhecimento. Foi sempre um despreocupado boémio, para grande preocupação da mãe. Muitas namoradas, nenhum casamento. A certa altura, decidiu partir para longe, tornar-se o único emigrante da sua geração, primeiro no Rio de Janeiro, depois, com as facilidades de um passaporte brasileiro, em Nova York.  Converteu.se no nosso fabuloso "tio das Américas", sempre feliz por nos acolher num pequeno, e muito bem situado 44º andar, com vista para o Hudson, a poucos minutos dos teatros da Broadway. Cada vez mais excêntrico, com o seu círculo de amigos predominantemente judeus, brasileiros e chineses. Podia ter feito fortuna, coisa para que, definitivamente, não tinha vocação, como "diamond setter" e "designer." de apreciado talento, Fazia, simplesmente dinheiro, que distribuía, generosamente. Um alegre e exuberante "santo laico"...

Augusto 
O José Augusto era afilhado do tio José. Chegara a vez do Tio Augusto ser o padrinho, e, assim, levou igualmente o seu nome, o quinto filho, mais um natural do Rio. De todos, o mais bonito, o mais doce e sorridente. Morreu, com menos de um ano,  nos braços da mãe, fechando os imensos olhos azuis e dizendo a palavra "mamã". De pneumonia...Ela nunca deixou que o esquecessem. Contou a sua breve história, de geração em geração. Ficou na memória, no seu retrato lindo de eterno bébé...

Maria Antónia
Concebida no Brasil, nascida em São Cosme, a menina que tinha um olho de cada cor, um azul e um verde, parecença física com a avó Carolina -  que, na velhice se acentuou, assim como o feitio imperial - e cujo nome voltava a homenagear mãe e pai, no feminino. Impulsiva, aérea, divertida, dotada para a música, as letras e as artes dramáticas, dons que, devidamente aproveitados,como modo de vida em palcos de teatro, a teriam feito mais feliz do que a vida doméstica. Desde criança, manifestou relutância em entrar na divisão grande da casa, chamada "cozinha", de bom grado frequentada pelas manas, que se tornaram muito prendadas no capítulo da culinária, cujos segredos aprendiam com a cozinheira de serviço,  sempre excelente, qualquer que fosse o nome e a idade. Quando, após muito penar no Colégio da Esperança e de muito namorar, casos múltiplos, às vezes simultâneos, ligeiros e breves, casou com o disputado viúvo e poeta de Avintes, não sabia nem sequer fazer um chá. Foi ele que, tendo-se ela sentido mal, durante a primeira gravidez, na casa de Espinho, teve de se encarregar da sua preparação...
Indomável, à maneira do irmão Zé, como ele generosa e completamente descuidada em matéria de dinheiro, deixando o poupado e sensato marido, em demanda difícil e constante do equilíbrio das finanças conjugais. Ao contrário do irmão, um "hippie" (cada vez mais, depois da meia idade) no trajar, vestia-se bem, com um gosto requintado  na escolha de modelos e de cores, como quem compõe uma obra de arte, um retrato para a posteridade. Sempre manteve essa mestria na combinação de cambiantes, ao longo dos quase 99 anos de vida. Linha Chanel, nos sapatos e saias e casacos, sem pôr de lado os italianos. Perfumes e cremes La Prairie (um problema quando, não os cremes, mas os perfume da marca  quase desapareceram do mercado) Cuidada e chique, em toda a paleta de cores, com uma predileção pelo amarelo. Para o casamento de um afilhado gastou de 600 contos num conjunto de vestido e casaco, vistosamente amarelo. liso e solar
Duas filhas, Maria Manuela (esteve para ser Maria João ou Maria Manuel) e Maria Madalena, como a tia materna, nessa altura gravemente doente e que teve, por isso, teve direito a perpetuar nome.

Glória Doroteia
A primeira menina da fase pós-brasileira, era uma beleza muito morena, de expressivos olhos garços - definitivamente "olhos de Aguiar", que conserva, com o brilho da juventude aos 97 anos. Ousada nas decisões e nos impulsos, que comandaram o seu percurso, era boa cavaleira e nadadora, sem grande paciência para lições de piano. No campo musical, compensava a omissão com uma voz maravilhosa. A mamã, nas festas obrigava-a cantar, invariavelmente, a "Avé Maria" de Gounod, embora preferisse fados ou cançonetas em espanhol, a condizer com a transformação do batismal Glória  Doroteia, de uma pompa antiga, no "saleroso" Lola ou Lolita pelo qual sempre foi conhecida, socialmente. Uma paixão duradoura dos 15 aos 40 pelo Eduardo, colega dos irmãos mais velhos, ou seja, uns dez anos mais velho do que ela. De muito boas famílias, o pai era, como notário de Gomdomar, o sucessor direto do avô Mendes Barboza, a mãe a herdeira da "Casa da Torre", em Rio Tinto, um solar, com graciosa capela e santos seiscentistas, que, na tradição gótica dos castelos ingleses, até tinha fantasma residente, um "ghost", benigno.  Não foi, como seria de esperar, um namoro pacífico, mas, bem pelo contrário, tenazmente combatido pela mamã. Faltava ao jovem, em absoluto, o pendor ou a prática religiosa, tinha fama e proveito como boémio e cabulão (formou-se, na verdade,  depois dos trinta anos). um notável desportista, fazia furor em natação e desportos náuticos, passava horas Douro acima e abaixo num barco seu, que partilhava com os amigos, O namoro, cheio de peripécias, de obstáculos e cumplicidades dava, só por si, um romance de costumes portugueses do final dos anos 30 e o casamento, também. O engenheiro de minas Eduardo´Fonseca andou de terra em terra, pelo Portugal mais profundo e mais desconhecido, no extremo norte interior ao Alentejo, sempre com a lolita ao lado, pronta para todas as aventuras e com os meninos, três, um primogénito,  Ernesto António (nomes dos avós paterno e materno - as tradições são para manter - que foi batizado na capela na Casa da Torre e duas meninas Maria Eduarda e Maria Alexandra (tributo ao querido tio Alexandre Barboza), O roteiro só terminaria em minas angolanas, em zona de guerra aberta, nos anos 70, nessa altura já a Lolita não o acompanhava, o divórcio acontecera na década anterior e ela estava em vias de casar novamente - com um segundo engenheiro do mesmo ramo, Gustavo Costa Pereira, mais sedentário, todavia, estacionado em Lisboa, à frente de uma empresa mineira..

Maria Madalena
Enfim, uma Aguiar suave, tranquila, eminentemente sensata. Viria a ser, sem ter tido filhos - um desgosto para o casal harmonioso que formou por meio século com David de Almeida Ribeiro - a autêntica matriarca da família, rodeada da admiração de sucessivas gerações de sobrinhos, que nela viam uma super avó.  Partilhando os genes com os irmãos, pode dizer-se que a Leninha não partilhou o ambiente em que cresceu. Com três meses na data da morte do pai, talvez a precária saúde da mãe, nos meses de depressão e desespero que se seguiram, tenha sido a principal razão para ficar entregue aos cuidados dos tios Hermínia e Alexandre. Tudo foi facilitado pela geografia das moradas, que eram tão próximas que das janelas de uma se podia falar ou acenar mensagens para as da outra. E, embora a mãe teimasse em a ter sempre em sua casa à noite, em convívio com os irmãos, o certo é que a Leninha parecia filha da sereníssima Hermínia e do bondoso Alexandre e prima, a prima bem comportada, dos terríveis manos da Vila Maria.
Apesar de uma saúde mais frágil do que a das robustas irmãs, fez os estudos no colégio Liverpool e foi a única a completar o curso de piano. Muito bonita, com os longos cabelos escuros e os olhos claros, azuis, muitos foram os seus pretendentes gondomarenses, mas o escolhido, foi um portuense, David , que encontrou por acaso nas festas da Senhora do Rosário, no pavilhão da Cruz Branca, onde as meninas de boas famílias providenciavam os lanches ou cafés e, onde, se bem me lembro de ouvir contar, se dançava, também, Maria Madalena  tinha 20 anos, David 15 ou 16 anos mais. A família. era do alto Douro, o pai republicano e sindicalista, legando ao filho uma fama, que se viria a constatar não ter fundamento, de anticlerical, e até também de boémio. Qualquer uma das duas suspeitas, por si só, bastava para o atirar para a lista negra da mamã, Não, porém para a dos tios, sobretudo para a da romântica Tia Hermínia, que foi, durante alguns meses, até a a sobrinha atingir a maioridade, a protetora do noivado secreto. No dia seguinte, a ter, perante a lei o direito de decidir a sua vida, ela não hesitou. Fez a mala e partiu para o Porto. Ao casamento assistiu um reduzido círculo de familiares, e, do lado da noiva, apenas a Mariazinha, o  marido e a Tia Hermínia, Os receios da mamã, que só aceitou uma reconciliação com o casal, passado bastante tempo, talvez mais de ano não se justificaram, de todo. Passaram os, dias, os anos, as décadas como o exemplo de uma perfeita união de amor sem fim. David, homem de trabalho, sabia, igualmente,  divertir-se, em passeios, jantares, teatros, cinemas, corridas de automóveis - um novo membro que se integrou rapidamente na exuberante família Aguiar, participando nas discussões políticas, com posições irredutíveis e no campo contrário ao das antigas previsões - muito à direita, sempre pelos valores tradicionais e conservadores. Muita admiração pelo pai sindicalista, mas do outro lado da situação de classe... Fez,-se com uma pequena unidade industrial de douragem, um empresário muito próspero. Tiveram tudo o que queriam da vida, exceto filhos, mas eram , ambos os mentores e os ídolos de uma multidão de sobrinhos 
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Com o pai, os sete teriam tido outros percursos, oportunidades, escolhas, casamentos, carreiras.... Alguns, certamente, associados aos seus empreendimentos de milhões, todos com outros horizontes, entre São Cosme e Rio, onde mesmo a viver em São Cosme, António Aguiar planeava continuar presente em negócios de banca, com o inseparável amigo Cunha, que haveria de prosseguir sozinho um roteiro ascendente. Manteve sempre o contacto com a família do velho companheiro. Era o padrinho da Lolita, e muito popular entre os Aguiar. Anos depois, proporia casamento à lindíssima e virtuosa viúva, aceitando, de bom grande, a ideia de se tornar o segundo pai dos seus muitos filhos, que vira crescer. Não conseguiu da mãe "sim", que os filhos teriam dado, com entusiasmo, em uníssono. Mas Maria Aguiar estava determinada a seguir a sua estrada de "apostolado", ligada, afinal, à saudade e ao culto de um marido bem amado.
A tragédia da sua perda deixou marcas indeléveis na família inteira, sem destruir, essencialmente  uma vida boa no espaço privilegiado que ele criara, pensando nela. Os rendimentos,  geridos, prudentemente, pelo irmão Alexandre, foram suportando os gastos e os excessos (excessos do seu ponto de vista críticamente anti-clerical) de generosidade com que Maria aos peditórios da paróquia. E haveriam de a manter até ao fim, por mais de meio século, independente e senhora da sua casa grande, embora sem o fausto a que estivera acostumada, com dificuldades que não fora preparada para enfrentar e sem hábitos ou tendência natural  para fazer contas e economias.
Nessa inicial meia década de 20, como nas seguintes, não eram, porém, as financeiras ou materiais que toldavam o ambiente da casa, mais a metamorfose da mãe, o seu vulto negro, mais triste e severa, mais ausente também, na sua nova veste de figura pública, influente, por si, não como a filha, a irmã ou a esposa de homens importantes na vila. Não que isso os incomodasse, pelo contrário, admiravam-na e reviam-se na sua aura, universalmente reconhecida (a imagem do pai foi-se desvanecendo ao nível da notoriedade popular e eles eram conhecidos, simplesmente, como os filhos da imponente Dona Maria Aguiar. 
 Tinham, de resto, o acompanhamento constante e o disciplina  mais complacente dos tios, dos dois casais sem descendência, Alexandre e Hermínia, Rozaura e Manuel. Os mais velhos sentiam mais o vazio que os tios, sobretudo Alexandre, cuidaram de ocupar. 
Carolina era mais próxima do pai, a mais sensível, a menina a quem ele nada recusava, quando os seus lindíssimos olhos verdes, muito parecidos com os dele, se enchiam de lágrimas. Com os argumentos de choros e lamentos, conseguiu coisa que parecia impossível, que ele a retirasse do colégio, de onde lhe escrevia cartas pungentes, pintando o ambiente  de um  internato de excelência, com a cores de um nferno, dantesco, ou de um campo de concentração de meninas perseguidas e miseráveis.... Pouco antes dele desaparecer, com 14 anos, estava  de volta a casa, dedicada ao piano, à leitura de poemas e romances e às obras pias, desfrutando, sem mais compromissos, as alegrias de viver na Vila Maria...  Talvez para além dessa prosa infantil, delirantemente excessiva, dirigida ao pai tenha escrito sobre ele poemas, como o irmão António Maria. Só os deste, porém, se conservaram,  e, assim, constituem o único testemunho, surpreendentemente realista de um quotidiano sofrido, que só o tempo foi suavizando. Exceto para a jovem viúva desde os 36 anos, que fez a sua escolha pela solidão O que os filhos unanimemente lamentavam, sobretudo no que respeita ao estimável Sr Cunha, segundo diziam, até fisicamente era parecido com o amigo António Aguiar. Quando já todos estavam na meia idade de meia, se assunto vinha à conversa, ainda se interrogavam: "Porque é que a Mamã não casou com o banqueiro?" E logo concordavam que fizera muito mal. A mãe, nessa altura também já avó,  questionada, uma vez, ao serão, abriu o véu do mistério, ou se não mistério, pelo menos  do facto consumado,  da decisão definitiva: "Ele era solteiro, mas tinha uma mulher, brasileira". Nada de inesperado e, se estava disposto a deixa-la, não parecia obstáculo de maior... De qualquer modo, a dúvida persistiu e jogou, forte, contra ele... Ou talvez não, talvez o que contou mesmo foi um amor perdido, e sem sucedâneo
.Na recordação dos filhos, dos mais velhos, os que se recordavam, os pais eram um casal cúmplice e feliz. Realçavam sempre os gestos do pai: "o Papá. não sabia o que mais fazer por ela. Adorava-a, não queria que se incomodasse com nada. Insistia em que aceitasse mais uma empregada  - no Brasil eram muitas, e, em São Cosme, pelo menos três, mais o criado, que dormia fora, na chamada "casa do forno", uma  pequena "cottage" de uma só e ampla divisão, com o forno num canto.. Ao tempo da sua morte o criado era um João Pereira, certamente muito dedicado, pois é referido numa notícia de jornal como sendo um dos homens que teve a honra de transportar a urna funerária num dos turnos do percurso até à Igreja.
 Mariazinha e Lolita (e a Leninha, que só o conheceu pelos retratos), foram, pela pouca idade, as mais alheias à extensão da perda. Apesar da diferença de dois anos, eram inseparáveis, comportavam-se como se fossem autênticas gémeas. E até aos 10 anos eram quase da mesma altura, a Mariazinha a deixar antever pequena estatura -  nunca havia de ultrapassar um metro e meio, que, em adulta, compensaria usando sapatos, com saltos enormes. Quando fizeram a comunhão solene, juntas, uma esperando pela outra, já Lolita a começava a ultrapassa-la. Em energia, destreza e espírito de aventura eram iguais. Dividiam, entre si, o terreno da quinta e as árvores, que passavam o dia a trepar,  por pura diversão ou para comerem os frutos, em quantidades ilimitadas e, por vezes, ainda verdes, a provocar dores de estômago e diarreias . Quando queriam saborear os frutos da árvore da outra, pediam licença, que era sempre dada. E não subiam somente pelos troncos das árvores, também ousavam  a escalada de muros e telhados, os da casa do forno ou da casa da eira, de onde havia acesso aos deliciosos araçás no alto de ramos demasiado frágeis para o seu peso. Por vezes, eram descobertas pela Tia Hermínia,  pois das janelas do 1º andar de sua vivenda, avistava uma parte da metade norte dos jardins e da área de hortas e vinhas. Gritava-lhes. de longe, que descessem e las obedeciam, prontamente,  só enquanto a tia se mantinha no "posto de observação". Enfim, meninas terríveis, rivalizavam em proezas atléticas, das quais escaparam ilesas, com um pouco de sorte, com os rapazes, não eram menos aventureiros e muito piores no campo fértil de asneiras, desordens e partidas de mau gosto. Eram famosos por isso, desde os bancos da escola primária e dos colégios. O mais imaginativo e empreendedor era o mais velho, Manuel Joaquim. Tudo o que de insólito acontecia nesses locais de ensino lhe era atribuído, ou mais genericamente aos "Aguiar" , e a mãe, a cidadã exemplar, passava pelo suplício de ter de reconhecer os agravos, indemnizar as vítimas, quando era caso disso, e castigar os infratores. Os desatinos eram de natureza muito variável - algumas vezes, medonhos, como urinar nos tinteiros, ou , pior ainda, uma vez sem repetição, defecar nos trombones da banda de música. Um escândalo... Mais aceitável comparativamente, era partir vidros de janelas à fisga (campeão de pontaria era o só aparentemente pacato António Maria),  ou mesmo fazer explodir um laboratório de química , obra do José, que detinha o recorde de expulsões de colégios do Porto. Das meninas, apenas a Lolita beneficiaria de uma expulsão do Colégio da Esperança. já com 16 ou 17 anos, ficando em casa, definitivamente, como queria...
Era na Vila Maria que todos gostavam de estar. A mãe impunha disciplina rígida, mas aliviada pelo tempo em que se. entregava à ação beneficente. A sua principal preocupação era a de não deixar as meninas fora da "zona de segurança" (ou vigilância),  de um espaço protegido por muros altos, de onde quase só saiam para a missa ou visitas à família. Mas não tinham a sensação de confinamento,  o terreno oferecia infinitas possibilidades de distração, como se fosse uma  ilha auto suficiente. Nada lhes faltava, podiam receber primos e amigas (selecionadas...).  Prisão foi, depois, o colégio... Ali não havia constrangimentos, horários, que não fossem os das estimáveis lições de piano, e os da escola, onde a professora, uma distintíssima Senhora, Aurora Montenegro, era a serena e  amável, amiga e visita da mãe. Em suma, a Vila Maria era uma festa! 
O terreno que circundava o casarão fora comprado a vendedores relutantes, que, sobretudo ali, no centro cosmopolita de São Cosme, a dois passos do Largo do Souto, do Cine teatro e da Igreja Matriz,  não queriam abrir mão de mais. Sem atingir a dimensão de uma grande quinta, incorporava, com largueza bastante, planos e vertentes  diferentes, cantos e recantos, esconderijos, os tanques, as salas sob os mirante, ou a casas da eira e do pão,  que a faziam parecer maior, e a  tornavam um espaço de polivalência e de diversidade. A própria casa era enorme, com os  seus três pisos. No térreo, com lojas, garrafeira, adega, lagar, sem janelas, mas com postigos rasgados na pedra de cantaria e protegidos por grades de ferro trabalhado. No primeiro andar, área de convívio, sala de visitas, sala de jantar, escritório, a cozinha, (onde tudo era avantajado, a banca de mármore beige, os fogões, os armários de madeira clara) e os quartos das criadas. No segundo, os quartos de dormir, oito, espaçosos, sobretudo o chamado "quarto grande", e a celebrada casa de banho das sete janelas, a mais panorâmica das divisões. As escadas interiores do rés- do -chão levavam  ao largo corredor em forma de L, através de uma porta, quase sempre bem fechada à chave. Raras vezes o visitavam, embora gostassem de olhar as grandes pipas de vinho da adega e, no fim das vindimas, assistir ao espetáculo dos homens pisando as uvas no lagar, ao som de cânticos. E vê-los, depois, comer quantidades espantosas de bacalhau e carne de porco. A adega tinha porta grande para o exterior, debaixo da varanda da sala de jantar e, a Mariazinha achava  possível que, no tempo do Pai, fosse local favorito de convívio com amigos, de portas abertas para o jardim.  Mais interessante para ela era a escadaria que ligava os dois andares de habitação, traçada em dois lanços, separados por um patamar cheio de luz, coada por vitrais com mais de três metros de altura e quase dois de largo, De lá, as crianças avistavam todo o casaria e os campos cultivados do sul de São Cosme até à Gândra, à casa que tinha sido dos avós e onde morava, então, o Tio Augusto e a prima Nucha, a professora de piano.. Era aquele um bom lugar para brincadeiras, em dias de chuva,  ou para contemplação - a maioria era, porém, pouco contemplativa. A atração principal era o corrimão que nesse patamar fazia curva estreita e seguia depois para baixo, junto à parede -  ótimo para escorregar, de alto a baixo, ganhando perigosamente velocidade, até ao salto final, sempre perfeito. Não há notícias de desastres. Nem nessa, nem nas futuras gerações,... Excelente exercício de interior. O exterior oferecia, naturalmente, mais variedade  Ladeando a casa, o jardim, onde só era proibido tocar nas preciosíssimas rosas dos roseirais simétricos - o que terminava no mirante e no diospireiro, cujos ramos desciam até ao gradeamento do muro, face à rua principal  e o que dava ligação ao "chalet", destinado a cavalariça ou garagem e que servia de loja de apoio ao  delicado trabalho de tratamento das rosas, todas ostentando pequenas placas redondas de metal, com a identificação, para as crianças, cabalística.. No seguimento do "chalet" e do roseiral sul, onde foi tirada a única foto do Pai com as que eram, então as duas meninas mais novas, Maria Antónia e Lolita, ficavam as casinhas brancas, que não pareciam ser, mas eram, as pocilgas, separadas da casa por um pomar de frutas variadíssimas. laranjas, limas, limões, pereiras e macieiras e, mais para poente, ao longo da divisória do terreno do vizinho Monteiro, alinhavam-se as ramadas, com suporte em bardos, ocupando cerca de metade da área agrícola, também do lado norte, desde a "casa da eira". Ao fundo, o segundo mirante, que dava,  nesse tempo, para campos a perder de vista. Entre as vinhas, havia as americanas, pretas e brancas, (que escaparam sempre ao "massacre". a certa altura decretado por lei, aplicada violentamente contra a vontade do povo do norte...). e uma casta nobre "chance la rose", que o pai reservava exclusivamente para a mulher, por serem as suas favoritas  Os primeiros bardos eram de moscatel de Hamburgo, únicos que ficaram a merecer especial recordação. Lembrados são, ainda, os gatos persas, brancos , de olhos azuis, que chegaram uma prole numerosa. Andavam à solta, eram lindos e mansos e foram sendo roubados, oi último durante uma festa da Senhora do Rosário... E houve, igualmente cães, esses não autorizados a entrar em casa e um papagaio.
 Maria Aguiar gostava de animais e do seu jardim. Tinha sempre um criado para trabalho quotidiano, mas das rosas só ela cuidava, e assim manteve até ao fim da vida, o preciosa legado do marido. Ultrapassados os meses iniciais tão traumáticos da inesperada viuvez, recuperou a vivacidade, o gosto pela música, canto, piano, pelo convívio e movimento, muito centrado, a partir de então, no ativismo católico, na salazarista "Obra das Mães, nos peditórios para a Liga dos Combatentes ou para os bombeiros, ou quaisquer formas de benemerência", próprios de senhoras da sua condição..Organizava excursões a Fátima, a Celorico, à campa de Frei Bernardo, ao encontro de bondosa Sílvia Cardoso... Promovia casamentos de pecaminosas uniões de facto e batizados, visitava os presos e cuidava das suas famílias, dos doentes, e, naturalmente, dos altares da igreja. tarefa em que contava com a ajuda da filha Carolina. Comprou um piano (Riese). Da Alemanha, encomendado pelo irmão Alexandre, (talvez fosse oferta dele, para as meninas), veio numa gigantesca caixa de madeira, que foi desmantelada, com "suspense" e aparato, passado o portão de entrada, de ferro verde e afortunadamente amplo, Servia não só para as lições de piano da prima Nucha, que se estendiam a algumas das amigas, como para ensaios de récitas e coros de igreja, Era, também, de vez em quando emprestado para os espetáculos do teatro. para onde iam e de onde vinham  no tal insólito transporte de carro de bois, que exigia afinação do pesado aparelho em cada uma dessas operações... Teatro amador era. assim, outra das escapatórias permitidas ás meninas, que tocavam, cantavam e representavam primorosamente. Algumas peças saíram da pena do polivalente Manuel Aguiar, que para além de desordeiro imaginativo, era também poeta, dramaturgo satírico e brilhante aluno (do liceu e, depois, da Faculdade de medicina). Uma das suas peças célebres, foi "o Nabo", um dos ex-libris rurais de São Cosme... Noutros casos eram simplesmente atores, contracenando com os melhores amigos, nomes que nos habituámos a ouvir nas rememorações desses bons velhos tempos ou que vieram a ser parte da família, pelo casamento. Assim, vemos num programa extenso que começava por uma paródia à " ceia dos cardeais" (onde atuava Maria Ernestina da Ascenção Fonseca), continuava com "O pavão depenado"", onde Manuel Barbosa de Aguiar e Eduardo da Ascensão Fonseca, futuros cunhados) desempenhavam o papel de estudantes. que, de facto, eram. Na 3ª parte, "Acto de Variedades", entravam também em cena os manos António e José Aguiar e, na 4ª parte "Senhoras e Criadas" vamos encontrar a lindíssima Clara Pereira de Sousa, outra futura cunhada, que, talvez, já fosse namorada  e iria ser a Mulher de Manuel... A música,"Viúva Alegre" e outras alegres sonoridades . foi executada pela "Tuna União de Gondomar" que se apresentava em público pela primeira vez. As manas "gémeas" ainda eram, nesta época, jovens demais para os papéis disponíveis - brilhariam, também, em palco, alguns anos mais tarde. Maria Antónia sempre sonhou ser atriz, porém não teria, nunca, autorização para ir além do palco da "Ala"... Ambição não lhe faltava. Como pianista há indícios seguros de que poderia ter feito carreira. Um namorado (não oficialmente namorado, mas, por algum tempo, quase a sê-lo), o  compositor e maestro Fernando Marques Ribeiro, chegou a convidá-la para dar um concerto com ele no Rivoli do Porto, considerava-a uma intérprete talentosa... Um sonho impossível....
O piano (Riese), onde tocava, horas a fio, viera da Alemanha numa gigantesca caixa de madeira, que foi desmantelada, com  "suspense" e aparato, no jardim, no largo amplo entre os roseirais simétricos. Pelo visto, não abundavam pianos na vila e aquele era, com frequência emprestado ao teatro da Ala Nuno Álvares para espetáculos (no tal insólito transporte de carro de bois, que exigia afinação do pesado aparelho em cada uma dessas operações...). Teatro amador era. assim, outra das escapatórias permitidas ás meninas, que tocavam, cantavam e representavam primorosamente. Algumas peças saíram da pena do polivalente Manuel Aguiar, que para além de desordeiro imaginativo, era também poeta, dramaturgo satírico e brilhante aluno (do liceu e, depois, da Faculdade de medicina). Uma das suas peças célebres, foi "o Nabo", um dos ex-libris rurais de São Cosme... Noutros casos eram simplesmente atores, contracenando com os melhores amigos, nomes que nos habituámos a ouvir nas rememorações desses bons velhos tempos ou que vieram a ser parte da família, pelo casamento. Assim, vemos num programa extenso que começava por uma paródia à " ceia dos cardeais" (onde atuava Maria Ernestina da Ascenção Fonseca), continuava com "O pavão depenado"", onde Manuel Barbosa de Aguiar e Eduardo da Ascensão Fonseca, futuros cunhados) desempenhavam o papel de estudantes. que, de facto, eram. Na 3ª parte, "Acto de Variedades", entravam também em cena os manos António e José Aguiar e, na 4ª parte "Senhoras e Criadas" vamos encontrar a lindíssima Clara Pereira de Sousa, outra futura cunhada, que, talvez, já fosse namorada  e iria ser a Mulher de Manuel... A música,"Viúva Alegre" e outras alegres sonoridades . foi executada pela "Tuna União de Gondomar" que se apresentava em público pela primeira vez. As manas "gémeas" ainda eram, nesta época, jovens demais para os papéis disponíveis - brilhariam, também, em palco, alguns anos mais tarde. Maria Antónia sempre sonhou ser atriz, porém não teria, nunca, autorização para ir além do palco da "Ala"... Ambição não lhe faltava. Como pianista há indícios seguros de que poderia ter feito carreira. Um namorado (não oficialmente namorado, mas, por algum tempo, quase a sê-lo), o  compositor e maestro Fernando Marques Ribeiro, chegou a convidá-la para dar um concerto com ele no Rivoli do Porto, considerava-a uma intérprete talentosa... Um sonho impossível....
... Comprou um piano (Riese). Da Alemanha, encomendado pelo irmão Alexandre, (talvez fosse oferta dele, para as meninas), veio numa gigantesca caixa de madeira, que foi desmantelada, com "suspense" e aparato, passado o portão de entrada, de ferro verde e afortunadamente amplo, Servia não só para as lições de piano da prima Nucha, que se estendiam a algumas das amigas, como para ensaios de récitas e coros de igreja, Era, também, de vez em quando emprestado para os espetáculos do teatro. para onde iam e de onde vinham  no tal insólito transporte de carro de bois, que exigia afinação do pesado aparelho em cada uma dessas operações... Teatro amador era. assim, outra das escapatórias permitidas ás meninas, que tocavam, cantavam e representavam primorosamente. Algumas peças saíram da pena do polivalente Manuel Aguiar, que para além de desordeiro imaginativo, era também poeta, dramaturgo satírico e brilhante aluno (do liceu e, depois, da Faculdade de medicina). Uma das suas peças célebres, foi "o Nabo", um dos ex-libris rurais de São Cosme..  

O COLÉGIO DA ESPERANÇA
Foi, de certo modo, o contrário do título, um lugar de alguma desesperança... Maria Antónia tinha estado dois anos num internato de freiras e só entrou no Esperança, juntamente com a Lolita, quando esta terminou a primária. Ambas, lá dentro, se sentiam confinadas, presas e frustradas, elas criadas na liberdade de saltar sobre telhados e árvores, de correr velozmente pelas veredas do jardim  e pelos carreiros da quinta, de brincar, sem regra nem horários, por recantos da casa, mirantes, esconderijos. À solta, como se estivessem num micro  sertão... 
Não é de admirar que a reação de ambas fosse idêntica. choravam noites inteiras, até caírem no sono profunda da infância. Ficavam em camas seguidas, Planeavam fugas que nunca levaram a cabo, (talvez por saberem que seriam recambiadas de volta, depois de castigadas, sem dó nem piedade (já não tinham o pai para se comover com os seus tormentos e lamentos. Uma via de escape era a escalada dos muros da quinta. outra a capela que dava acesso à liberdade, por uma sólida porta com grades, fechada por uma enorme chave de ferro. Era o meio mais prática e, uma vez, quase o iam fazendo, e foi a colega Maria Laura Horta que as convenceu a desistir... Não se sabe como tencionavam chegar a Gondomar, se a pé, fazendo uns dez ou doze quilómetros, se utilizando,o elétrico. Seria o mais fácil, não lhes faltava dinheiro para pequenas extravagâncias. Sempre que partiam o Tio Alexandre dava 20 escudos a cada uma, Servia-lhes , sobretudo, para encomendas de chocolates, feitas a uma intermediária autorizada.. Outro plano de deserção, mais discreto, mas igualmente inviável, era engendrarem uma doença, uma constipação, para o que andavam de meias e soquetes molhados. Eram demasiadamente resistentes...
Da Esperança, no centro do Porto, a poucos quilómetros de São Cosme, só iam a casa nas férias, Páscoa, verão, Natal, só recebiam vistas à quinta-feira, a mãe, o Tio Alexandre. Nos últimos anos, depois do tio autêntico, também o namorado da Lolita, o Eduardo Fonseca, que era mais velho e parecia ainda mais velho, e se fazia passar por tio, sendo admitido na sala de vistas, nessa venerável qualidade, com natural permissão para dar um beijo na face à falsa sobrinha, qua aparecia, juvelimente, de lacinho vermelhos no cabelo e soquetes ou meias pelo joelho - vermelho era a sua cor preferida, como o amarelo era a da irmã...)  Numa dessas quinta.feiras, a mãe não pode visitá-las, porque estava doente e mandou em seu lugar o Manuel Joaquim com os presentinhos do costume (queijo, marmelada, bolachas chocolates...). A certa altura, subiu a um banco, desatarrachou uma lâmpada e meteu-a no bolso, deixando as manas apavoradas. Mas não o conseguiram arrancar-lha. Não se sabe a razão daquele insólito gesto - talvez uma aposta.
Todavia, no novo habitat, não lhes faltavam amigas, entre colegas e professoras. De qualquer modo, o serem chamadas "os galos doidos" pode dar a ideia precisa e concisa da fama que, com proveito, por lá grangearam. Entre as colega Cavalier (uma das poucas alunas dessa época que faria carreira como médica distinta), Renia Finkelstein (que veio muito pequena da Polónia, de onde trouxe muitos "pins", que lhe oferecia) a Zita Seabra (muito bonita, loira, de olhos azuis, mãe da Zita Seabra, antiga deputada do PCP), Fernanda Málen (que haveria de professar como religiosa), a Olímpia e a Julieta (com quem continuaria a conviver, já depois de casada, em Espinho, onde elas tinham casa de praia), a sensata Maria Laura, que lhes impediu uma fuga destinada a fracasso final,  Manuela Abrantes (aluna externa, que as convidava para festas, numa belíssima casa, ali bem perto . ocasião para saírem da prisão por umas horas, com autorização da mãe, primorosamente falsificada). Curiosa a quantidade de nomes estrangeiros, a dar o toque cosmopolita a um colégio bem conceituado e bem situado, onde as filhas da burguesia se misturavam com meninas orfãs, de qualquer classe sócio-económica. Muitas eram do litoral, havia um importante contingente de Ílhavo, outras de vários pontos do norte e nordeste português. Olímpia e a irmã mais nova, Julieta, por exemplo, eram transmontanas, que veraneavam em Espinho, Não era desse tempo o convívio à beira-mar com as Aguiar, que sempre arrendavam casa na Foz velha, em agosto.
De todo o vasto edifício colegial, as melhores recordações da Mariazinha vão para a sala de piano (as de Lolita, certamente, para a sala de visitas, onde namorava, disfarçadamente, com Eduardo, o futuro marido). O piano, e Chopin, não ainda os rapazes do seu tempo, eram a sua paixão.. A Profª Margarida Portela uma extraordinária executante e pedagoga faz parte desse mundo de memórias. Considerava-a uma aluna muito especial, uma grande pianista em prespetiva. Ofereceu-lhe as valsas de Chopin, com dedicatória. Muitas décadas depois, deu-as à única música da família da nova geração, a Sameiro (que terminou, em simultâneo, os cursos de Medicina e do Conservatório de Música), mas esqueceu-se de copiar a dedicatória, e sempre lamentava o esquecimento. Em programas de festas, as pianistas eram sempre a Maria Antónia Aguiar e a Amélia, uma colega de Avintes - até chegaram a tocar a quatro mãos, Amélia morreu jovem (mais uma vítima da tuberculose, como a inesquecível Tia Glorinha). Nas temporadas que passava em Avintes, depois de casada, a Maria Antónia recorria a uma boa costureira da terra, muito engraçada e bisbilhoteira, que conhecia meio mundo e logo descobriu, em conversa, como descobria tudo o mais, que tendo a nova cliente andado no Esperança fora contemporânea da saudosa Amélia, para cuja mãe fazia os arranjos da roupa e a quem prontamente transmitiu a novidade. Foi a mediadora de um primeiro convite para a Maria Antónia a visitar, seguido de vários outros. Morava, por acaso, muito perto dos seus sogros, Para ela, abria o piano de Amélia, que mais ninguém tinha tocado desde a sua morte,   e ficava a ouvi-la, encantada... 
A professora Margarida era muito bonita e tal como aluna gondomarense, muito míope. Esta, além de míope, condenada a óculos de lentes grossas, (que, por vaidade, tirava sempre que podia, sem risco de tropeçar e cair) era praticamente cega do olho esquerdo, o mais azul, contrastando o direito, esverdeado. Nada que a incomodasse, bem pelo contrário. Chamava mesmo a atenção dos pretendentes (no plural, desde cedo) para a singularidade. Prezava essa diferença, que, contudo tanto incomodara o pai, quando primeiro a detetou, dizendo à mulher, atónito: "Maria, a menina tem um olho de cada cor!". Não era só questão de cor, era também de visão, e grave. A anomalia foi descoberta só na escola e já era tarde para recuperar o olho azulado, que piorara gradualmente, até deixar que o nervo ótico sofresse atrofia irreversível, sem qualquer sinal exterior de declínio, tão brilhante e expressivo como o outro, o verde, que lhe deu, com lentes uma visão completamente  normal.... 
Desastre  no colégio, houve-os. Nem todas as meninas era apenas mal comportadas,  como os "galos doidos", algumas entravam no mundo da criminalidade - ladras. Há sempre uma ou outra ladra, nos melhores ambientes. Imprudência materna, deixar as meninas levar consigo, jóias de valor estimativo.  E, assim, lhe roubaram-lhe uns brincos lindíssimos que tinham sido da Tia Glorinha, dados pela Tia Rozaura. E ela até viu, a rapariga a mexer nas suas gavetas. Mas hesitou - mais expedita a escalar telhados do que a denunciar colegas. Depois, a Miriam Cavaliere (futura médica), que também era amiga da vigarista, pediu-lhe que se calasse. E, com acedeu, nunca mais recuperou os brincos, nem os esqueceu...A ladra não parou por aí e acabou por ser chamada a capítulo, e expulsa, mas sem devolver os famosos brincos. Tinha sido uma espécie de ave de arribação que passou pelo colégio apenas no 3º ano do Liceu, durante o qual ficou no dormitório ao lado da Mariazinha - foi-lhe fácil observar os seus movimentos, saber onde guardava os pertences, em gavetas sem chave. Do outro, estava uma grande amiga a Fernanda Málen futuramente freira)
Anos mais tarde, numa reunião de antigas alunas, olhou em volta e reconheceu a ladra. Talvez tenha sido nessa ocasião, décadas depois do facto consumado, que a Miriam lhe pediu que fizesse silêncio sobre esse escândalo do passado distante... faz mais sentido, pois Miriam era exigente e frontal, não uma "passa culpas", mas mais pragmática do que a vítima do delito..Poucas vezes a Maria  Antónia is a essas reuniões, que achava depressivas. Perguntava por esta ou aquela amiga e respondiam-lhe "morreu", "morreu". Com poucas exceções, como a Miriam, estavam todas irreconhecíveis, pareciam mais muito mais velha do que elas, que aos 90, ainda tinha a vitalidade dos 60, sem rugas, sem doenças visíveis e sem peso a mais...
Os dois dormitórios, o das pequenas e o das veteranas, eram vigiados por uma encarregada, de nome Beatriz,estavam separados pela sala de piano, aquele completamente aberto, sem divisórias, este  com a privacidade relativa de cortinas que podiam fechar-se. A convidativa sala de piano, onde se imaginava num salão de concertos, sonhando a sua utopia .Os únicos palcos que a mãe lhe permitiu pisar foram os do Teatro Nuno Álvares  e os do colégio, mas, pelos anos fora, atraiu com as suas canções, as suas histórias e  benignas excentricidades, toda a família, um grande número de sobrinhos netos e bisnetos. Curioso é que até o seu dentista, o Dr Morris, um dia, sem saber das suas ambições secretas. lhe disse: "Devia ter sido atriz. Vê-se que tem jeito!" Até mesmo na cadeira do dentista representava bem a sua personagem. "tem a certeza de que isto está limpo?  Não usou essa agulha nos dentes do doente anterior?"

"Claro que sim, serve para todos, nunca é limpa" - respondia ele a rir-se. Simpático e bonito. A Maria Antónia gostava de médicos bonitos. E foi tendo vários, ao longo da vida, o antecessor do Dr Morris, o Dr Ferreira Mendes, o Dr Figueiredo, parceiro de brincadeiras de infância na farmácia do Tio Homero, o Dr Guimarães.. ..Até no hospital de Gaia, um mês antes de morrer, o neuro cirurgião era um homem alto, muito nórdico, de expressivos olhos azuis, com quem teve uma conversa surreal. Nessa noite, em que todos os desastres se resolveram bem (depois de uma queda aparatosa na casa de banho), até o motorista do táxi, que a trouxe para Espinho, era,  também, um bonito rapaz, como ela não deixou de reparar.
Ao Doutor, tratou-o por tu, começando com uma interrogação: "És meu sobrinho?", e continuando, depois, no mesmo tom.
Quando ele veio falar comigo, para lhe dar alta, tranquilizou-me quanto ao TAC, e acrescentou: "Está muito bem. Só a achei um bocadinho confusa, porque julgou que eu era um sobrinho".
Esclareci que não era assim tanto anormal, pois era senhora de muitos sobrinhos, alguns médicos. Não adiantei mais - que, provavelmente nem sequer estava confusa. aquela foi uma maneira "teatral" de iniciar conversa com um jovem interessante, que poderia ser, mas não era da família.
No tempos de estudante, era considerada de saúde frágil (fragilidade que não se confirmaria na idade adulta, até muito depois dos noventa), o que lhe dava direito a uma dieta especial, com doses reforçadas de bifes, comendo, muitas vezes, na mesa da Diretora, um modelo de sofisticação e simpatia. Nos estudos, tinha inteira liberdade de escolha de matérias e de ritmos de aprendizagem. Os diplomas não lhe eram exigidos. Era boa aluna nas disciplinas que selecionava - português, francês, inglês, geografia e história, desenho. Fez o 9º ano, "singulares" , ou seja, com avaliação final apenas nessas cadeiras. Excelente no piano, executou o programa completo até ao 6º ano, mas sem fazer exames oficiais. No desporto, era a campeã de ping-pong. nas férias gostava de nadar e de andar de bicicleta. Pequena, magra e ágil foi sempre (no dia dos seus 88 anos, ainda se exibiu, deslizando suavemente por sobre o curto e sólido corrimão da sua casa de Espinho, deixando a gente nova boquiaberta).    
E compunha poemas, saudosa da sua terra ali tão perto do desterro em que se achava...

Oh, meu Gondomar, minha linda terra
Tu que embalaste o meu 1º amor
Porque não levar-te presa nos meus braços
oh, meu Gondomat, para onde eu for?

Encantamento que nunca esqueci
roseiral em flor desse meu jardim
tanta rosa murcha pelo chão caída.
mas tanto botão a abrir para mim...

Gondomar, meu berço, capital do mundo
És a minha casa, és o meu jardim
Foste tu que viste os meus primeiros passos
E irás guardar-me, ao chegar ao fim. 
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Procuro-me e não me encontro
E fico parada assim
A chorar, meu Deus, porquê?
Por ter saudades de mim!
 Lolita escrevia muito bem, com uma letra firme e bem desenhada, decidida e bonita como ela, e também sobre sentimentos profundos despertados pela vivência no Esperança, mas sempre em prosa. As ementas dos repastos, a falta de maneiras de uma nova diretora do colégio (punha os cotovelos em cima da mesa, medíocre sucessora de uma senhora distintíssima ( a estimada e compreensiva Senhora Dona Maria Luísa) eram temas muito inspiradores e sobre os quais teve muito a detalhar. Apreendido o caderno de crónicas, não houve uma serena aceitação da liberdade de expressão e de crítica pela parte da visada e a autora foi expulsa, juntamente com a Tina Ramalheira e a Gracinda Andrade, certamente discípulas da mesma opinião. Não seria o único delito grave, ao que parece todas elas encontraram expediente de namorarem, em conversa romântica,  por um postigo que dava para a rua lateral... Um pouco tarde, já sem a companhia da irmã quase gémea (que terminara, auspiciosamente, o 5º ano por disciplinas singulares (correspondente ao 9.º do curriculum atual), ela acabava de descobrir uma solução da categoria"ovo de Colombo" para regressar à Villa Maria!  E a mãe achou por bem, não sei se por solidariedade com a filha, uma mera solidariedade de clã, retirar de lá a mais nova, Maria Madalena) ainda no início do segundo ciclo do liceu, A opção foi o Colégio Liverpool, na Rua dos Bragas. 
Maria Antónia prosseguia os estudos de piano, com a prima Nucha, tão simpática quanto excêntrica. (No inverno usava dois sobretudos um a apertar atrás, outro virado para a frente, como é normal). E começava a colecionar namorados, no círculo de convivência dos irmãos, todos filhos de respeitável gente da terra


NAS RUAS DO PORTO
A mãe era um visitante frequente do comércio portuense. O elétrico de São Cosme ao Bolhão, o nº 10, com dois traços, tinha paragem em frente ao portão da Villa Maria e a viagem era demorada mas muito agradável. E o Bolhão estava rodeado de lojas de toda a espécie, e de algumas das suas confeitarias preferidas, como a Villares, a dois passos de Santa Catarina e Santo António. O Grande Hotel do Porto era, também, lugar de boas recordações, o escolhido pelo marido quando, de longe a longe, decidiam passar uma noite na cidade, para jantar e ir ao teatro.
Levava com ela as filhas, quando estavam de  férias, para provarem vestidos na modista, para fazerem compras, para lanchar na Villares. Eram excursões animadas, mas não tanto como quando eram convidadas para programas semelhantes pelo Tio Alexandre, mais liberal e complacente. Tratava-as como filhas, comprava-lhes vestidos, sapatos, livros... A Lolita era sempre rápida nas escolhas. A Mariazinha não gostava de nada. Corriam ruas inteiras das lojas da "baixa", sobretudo sapatarias, antes que ela decidisse o que queria. O tio, muito paciente, sugeria: : "Vai olhando e quando vires uma menina com uns sapatos de que gostes, diz.me e eu pergunto à mãe onde os comprou e levo-te lá".
Menina complicativa... 
Não sei como a caraterizariam, então, os irmãos, as amigas, a mãe, os tios., mas ela própria se descreveria assim, anos mais tarde: 
"Não sou bonita, nem feia, sou simpática, fui sempre muito simpática (isto não é narcisismo...). É verdade. E fui em tempos, há muitos anos, uma rapariga 
interessante, pequena, bastante pequena, mas cheia de saúde, extuante de vida, vida e alegria, que transbordava por todos os poros do meu corpo. Diziam até que eu tinha muita graça, aquela graça natural de uma rapariga que da vida só queria a vida e nada mais. E o fulcro da vida era o amor. De uma sensibilidade doentia, muito sincera, expansiva e nada egoísta."
. Na verdade, o auto-retrato, pelo menos no que respeita à beleza física,  pecará por excessiva modéstia. A Tia Rozaura dizia que era a rapariga mais bonita da sua geração, na sociedade gondomarense, o tio Alexandre achava-a parecida com uma irmã do futuro cunhado António Aguiar, segundo ele, lindíssima, por quem fora apaixonado na juventude (Florinda?), João, o futuro marido, quando a conheceu, notou as suas semelhanças com a famosa atriz Paulette Godard.   


FOZ e VIZELA
Ao longo dos anos de rebeldia e de "inconseguimento" de libertação, as férias, sobretudo as longas férias de verão levavam-nas ao triângulo São Cosme, Foz e Vizela.
A  partida para a Foz era antecedida pelas excitantes tarefas da compra de vestidos novos, chapéus e fatos de banho. Não no "pronto a vestir",  a que a mãe seria avessa toda a vida, mas começando pela compra dos tecidos no Porto, depois pelas provas na modista, também do Porto, evidentemente, pois em São Cosme não havia alta costura, só costureiras para tarefas mais modestas. A decisão da mãe preponderava invariavelmente, ao contrário do que acontecia quando das expedições de compras nos Clérigos a convite do complacente Tio Alexandre,
Nas palavras da própria Maria Antónia " a Mamã gostava de imaginar os modelos dos nossos chapéus de praia, cortava os moldes, com muita habilidade e mandava-os  à Maria Folhelha para cozer e enformar as abas, que ficavam impecáveis. Abas largas, para proteger do sol.  Era igualmente uma artista a tricotar (perfeccionista e perfeita em tudo, reconheciam as filhas - dos bordados, em ponto de pé de flores, rendas de bilros, às maravilhosas compotas de cereja e de chila, que abundava nos seus terrenos ou até, também, na poda das rosas, herdadas do marido, nas quais nenhum jardineiro era autorizado a tocar....).  Pelo visto, perdeu-se, igualmente, uma talentosa estilista, que se limitava a trabalhar para as filhas, que ainda recordam os seus chapéus de ráfia, muito engraçados, a condizer com as cores dos trajes de praia. Os fatos de banho eram de malha, comprada a metro e feitos numa competente modista portuense. Curtos, mas sem exageros, pelo meia da coxa, alças largas e decote pequeno, sempre de cores neutras. Por baixo, usávamos calções justos à perna". Agosto era o mês do mar, de passeios, de lanches nas confeitarias qua a mãe não dispensava, aí mais à vontade do que sobre a areia, com os seus vestidos invariavelmente escuros - impensável a austera viúva em fato de banho. Arrendavam sempre a mesma casa grande, onde tudo já era familiar
Setembro era sinónimo de Vizela, para onde a mãe partia só com as filhas, mais novas, uma corte feminina. Deixava os rapazes em Gondomar com o tio Alexandre - eram mais velhos e talvez não apreciassem as termas. E quase sempre ficava na mesma pensão, que pertencia a um casal muito acolhedor, o Sr João  e a Senhora Mariquinhas, pais da Aurora, a quem achava graça, Coisa de admirar pois era uma bonita ruiva, divorciada. O divórcio era, então, raridade e, ao menos na mulher, razão de ostracismo. Aurora, não, por qualquer motivo era bem vista, possivelmente na medida em que o ex-marido o não seria. Situação insólita a ficar na memória só, num dos anos, a história de um rapaz tolinho (há sempre um , em cada aldeia) que veio contar que vira uma mulher nua nas águas da Mourisca. Mulher nua, porém, não identificada, e descrita só pelo pateta, não tirando a Vizela a sua fama de terra virtuosa.

AMIGAS
Do círculo de amigas e colegas das lições de pianos d pequena Mariazinha faziam parte as "Paciências", encantadoras filhas de um dos vendedores das terras onde se implantou a Vila Maria, e as irmãs Maria Amélia e a Madalena da Estrela. Não era apelido, mas alcunha -  o pai tinha construído um palacete original, em  forma de... estrela.. (Antecipando o futuro em alguns anos, poderá, desde já dizer-se que há muitas fotografias do casamento de estadão da Maria Amélia, com quem, depois, perderam contacto. porque foi viver para Viana. Madalena uniu o destino a um rapaz de Avintes, contra um coro de opiniões adversas. Gostava dele, e não quis saber de mais nada. Não se conhece o desfecho, pois também lhe perderam o rasto. A Felismina viria a ser uma rapariga bonita, alta e loira e a primeira a casar, com um Ramos, a quem chamavam o "Ramitos". Contou às colegas das, pormenores pedagógicos sobre a noite de núpcias, e deixou um conselho: "Não vale a pena gastarem dinheiro na camisa de noite de núpcias. Não vale mesmo a pena...).  

NAMORADOS
Duas gémeas na proximidade, nas confidências  e nas aventuras, na audácia, mas muito diferentes no temperamento, nas escolhas sentimentais e na vida que viveriam pelos casamentos. Lolita foi a primeira a prender-se a um namorado, que seria o único. Não o único marido, mas a única paixão da juventude, pela qual desafiou a mãe,  para quem ele, o Eduardo d´Ascensão Fonseca, embora de boas famílias, com quem socialmente convivia, era um perigoso ateu e boémio. Mais ou menos como dois dos seus três filhos, que, porém, não podiam, naturalmente ser enjeitados ou rejeitados como os pretendentes de teimosa adolescente  de 15 anos. Eduardo não tinha pressa de acabar o curso, era também um desportista polivalente, muito voltado as modalidades náuticas, nadador de poderosa braçada e velejador. No rio Douro tinha uma canoa para dois tripulantes, que fazia sucesso entre os amigos. Até que o amigo Licínio caiu ao rio e morreu afogado. No funeral, Eduardo chorava e só dizia: "Foi no meu barco!". Não quis mais ver a canoa. Vendeu-a. ( morte foi muito sentida na terra e, ainda hoje, a sua fotografia está guardada nos albúns - pela imagem parece um rapaz sereno e amável)
.Mariazinha, que seria casada com João por mais de meio século, teve uma longa fila indiana de namorados (nem sempre assim tão indiana, pois alguns o foram simultaneamente. Os mais lembrados eram o Albino (não se esquece o primeiro beijo, furtivo, na varanda grande e recatada da sala de jantar), o Adriano e o João.  Tal como Albino, este era de São Cosme Jacinto, ambos de São Cosme, com acesso à Villa Maria, pela camaradagem com os rapares da casa. Embora a vizinhança desaconselhasse a simultaneidade, a Maria Antónia correu o risco. E, entretanto, surgiu um terceiro e o mais interessante de todos. Fernando Marques Ribeiro, um grande amigo de Eduardo, mas, ao que parece, menos dado a "farras" na noite portuense. Era um pouco mais velho e já um pianista notável, a quem se adivinhava grande futuro. Compositor e maestro, haveria de ser conhecido como o "Chopin português" (o que introduz a dúvida quanto à questão de saber se a paixão da Mariazinha por Chopin, começou no génio polaco ou no brilhante português, mas qualquer que fosse a origem, não teve fim - foi a música de fundo que se ouviu, o tempo todo, discretamente, baixinho, no seu velório, em 2019, no ano em que ia completar 99 anos)
Albino estava na tropa e, quando terminou o serviço militar foi festejar com Jacinto e outros camaradas e contaram um ao outro que namoravam a bonita Aguiar. Seguiu-se uma barulhenta discussão sobre "quer era quem" para ela  e, sem mais argumentos, envolveram-se numa cena de pancadaria, digna de um filme do "far-west". Um dos circunstantes, Licínio, por coincidência amigo íntimo do João Moreira, que ainda não entra nesta história, e também do Marques Ribeiro, que nela já tem papel central, resolveu satisfazer a curiosidade e perguntar à jovem, que era o pomo da discórdia. Ela olhou-o. encolheu os ombros e disse-lhe. "Olhe, Licínio, eu gosto dos dois". Contudo,  acabou logo com o Albino, e, umas semanas depois, com o o Jacinto. Seguiu-se o Adriano de Rio Carreira, sobre o qual não forneceu muitos detalhes. Foi relação de pouca dura. Entretanto, todos aquelas desventuras e anomalias, tinham chegado aos ouvidos de Marques Ribeiro, que numa última visita à Vila Maria, onde era sempre bem recebido pela Senhora Dona Maria Aguiar, encantada por poder ouvi-lo tocar piano, a repreendeu severamente,  mostrando-lhe que era muito acriançada e que voltaria a procurar a sua companhia quando fosse mais ajuizada.  Já lhe tinha dirigido um convite para atuar com ele num concerto no Porto  - a que a mãe se opôs firmemente - mas pensava, com certeza noutras parcerias mais duradouras. E se tivesse casado com ele, decerto que o caminho para os palcos lhe estaria aberto. Todavia, ele, (que continuava a carreira em Lisboa), voltaria tarde demais, já ela estava há uns meses consorciada com o João, o seu poeta particular. Da música para a literatura...  Pensando nesses tempos, deixaria um pequeno texto em que lembra as ilusões de então, que só verdadeiramente se perderam nos anos 60, ao fim de duas décadas de casamento:
"Sonhos meus, audaciosos, inquietantes, insatisfeitos - como eu, uma insatisfeita - sonhos belos de um amor quase perfeito. Mais de uma vez desci o Crasto num voo pleno de graça e leveza. Senti mesmo os pés a levantarem-se do solo e voei acima daqueles queridos pinheirais, eucaliptos e mimosas, voava em direção a minha casa...
Mas fiquei diferente, sim, depois que perdi a minha querida filha. Ela era a minha alegria e a minha vida, era minha, e roubaram-ma. Fiquei perdida num deserto, fiquei sozinha. Que me perdoem todos os que ficaram comigo, ficaram muitos, ficámos todos,menos ela. Que me perdoem, mas eu fiquei sozinha. (uma leucemia levou a Madalena aos vinte anos, em 19