terça-feira, 27 de agosto de 2019

LEMBRANDO O TIO ZÉ - UM POUCO DA SUA HISTÓRIA


JOSE AUGUSTO BARBOSA AGUIAR
Menino vivaço, moreno, de incisivos olhos esverdeados, mais franzino do que os irmãos, e cedo deixando antever que seria o excêntrico dos excêntricos, radical, indomável, aventureiro, folgazão.
Um médico, talvez o pediatra brasileiro, terá dito aos pais que  ele era um sobredotado, que só poderia tornar-se uma notabilidade, para o bem ou para o mal...  (antecipando anos e décadas, diga-se que seria sempre das hostes do bem, numa trajetória extraordinária de anonimato -  nem cientista, nem homem de Letras, nem empresário de coisa alguma, não preenchendo, assim, as categorias de sucesso oficialmente reconhecido. 
Em criança, muito gabarola, faceta nunca totalmente perdida, numa tendência aberta e denunciada de divertir os outros, fantasiando ou exagerando crónicas da primeira pessoa do singular - ou não, porque algumas, apesar de inverosímeis, correspondiam à realidade. Deixava sempre, propositadamente, na dúvida, os interlocutores...
De pequeno, ficou a paradigmática história da caçada, quando disse aos irmãos: "Hoje fui à caça e matei um leão" O mano Manuel, que passava o tempo a implicar com todos e, em particular, com ele, provocou-o de imediato: "Oh Zé, vi agora mesmo um leão debaixo da tua cama!" . O Zé apavorado começou a gritar: Mamã, mamã, está um leão no meu quarto"
E lá veio a Mãe, subindo as escadas a correr, não de caçadeira em punho, mas zangadíssima, separando-os, um em cada quarto, de castigo. Acontecia muitas vezes ter de apartar aqueles dois. Manuel dormia com António Maria, em divisões comunicantes por uma larga porta, a nascente com vista para a rua, o Zé  na outra ponta, com janela bucólica para o pomar. Depois que o Pai morreu, a Mãe mudara-se para o 1º andar com as meninas (e as criadas, um universo integralmente feminino), deixando lá em cima a turbulenta república dos rapazes.
Em criança, o Zé foi fácil de assustar pelos mais velhos, mas em adulto tornou-se o mais destemido dos sete. Numa propriedade cujos muros eram acessíveis ao salto de pequenos larápios de fruta, de galinhas, de alfaias, várias vezes se detetaram intrusos e o Zé,  com o seu 1.60 m, era o primeiro a sair em perseguição, munido de uma lanterna, porque luz exterior não havia, e de um simples pau. Uma noite, alta madrugada, obrigou o cunhado João, acordado de um sono profundo e pouco disposto a bater-se com ladrões de galinhas, a acompanha-lo numa perseguição. Deixou-o  a guardar a frente, junto ao portão, enquanto percorria os cantos e recantos das traseiras. O cunhado, discretamente franqueou o portão ao delinquente, que não mais foi visto..
Revolucionário nato, laico e republicano (na voz do povo "foram as bençãos do padrinho", José Barboza Ramos, o famoso polemista, advogado, deputado e, por fim, magistrado e juiz conselheiro, era um, com fé ou sem fé religiosa, uma alma verdadeiramente cristã. Já aos 14 ou 15 anos dava aos pobres a sua melhor roupa, muito contra a vontade da própria mãe. Memorável, o caso da doação de um sobretudo, caríssimo, que ela tinha comprado no Porto,e que estranhava não o ver a usar.. Quis saber porquê. Resposta pronta: "Dei-o a um amigo, que precisava dele"
 - Fizeste bem, mas porque não lhe deste o sobretudo velho?"
 - E porque havia ele de ficar com o velho? Em que é que eu sou mais do que ele?"
Levava a coerência à prática mais radical, sempre, dos oito aos oitenta anos.. Enquanto a irmã Carolina cuidava dos pobres do Barredo, ele convivia, ali, mais perto, com os do Vinhal. A irmandade Aguiar troçava, chamando-lhe "o rei do Vinhal". Era, pelo menos, muito popular no bairro, sempre pronto a prestar serviço. No seu 5º ano do liceu, quando uns colegas lhe pediram explicações, logo ele montou um esquema perfeito de sala de aulas, arranjou de empréstimo uma sede, e arvorou-se em mestre principal, com a ajuda de uns poucos voluntários, arrastados pelo seu entusiasmo. Segundo contava o irmão Manuel, berrava muito, impaciente, com os discípulos/condiscípulos, quando erravam qualquer resposta - ouvia-se ao longe! - mas, por fim, os esforços foram recompensados, os seus discípulos/condiscípulos passaram todos. Ele foi o único conseguiu chumbar.! Nada que o deixasse abalado, até porque , em compensação, ficou com mais uma história incrível para entreter audiências futuras. Não perseguia, definitivamente, nem louros nem fortuna, apenas e só o lado lúdico de coisas boas ou más Um despreocupado boémio, para grande preocupação de sua mãe. Muitas namoradas, em novo e em velho, nos diversos países e continentes, geralmente raparigas altas e vistosas, e nenhum casamento. Em Portugal, teve sempre empregos precários, chegou a trabalhar com o cunhado Serafim, como vendedor, até que optou pela antiga saída portuguesa para os filhos segundos - partir para longe, único Aguiar emigrante da sua geração, primeiro, no seu Rio natal, depois, com a abertura dada pelo passaporte brasileiro, em Nova York. No Rio de janeiro, foi sócio do Clube de Regatas Vasco da Gama, clube do coração dos portugueses, e reencontrou as primas Pereira de Aguiar, todas lindas, simpáticas e divertidas. Não encontrou foi o trabalho que procurava (na joalharia, seguindo a tradição paterna?). Talvez, porque em NY, para surpresa da família, fez carreira como "diamond settler". Persiste a dúvida sobre como e onde terá aprendido a arte (uma hipótese é ter sido mesmo em São Cosme, onde o cunhado Serafim, na altura,não sendo ele mesmo ourives, tinha negócios no ramo. José Augusto, tal como António Maria, era excelente no desenho e muito hábil em trabalhos manuais. Fez-se um talentoso "designer" e cravador de jóias, e foi adotado pelos seus principais clientes,da elite judia novayorkina -  ois ou três joalheiros judeus, que se tornaram os seus melhores amigos. Ao que parece terá sido o único especialista desta arte, do mais alto nível, que, na América, não amealhou fortuna. A sua assinatura numa obra valia dinheiro, dinheiro, que gastava com generosidade, num círculo de convívio de brasileiros, chineses e outros orientais, e alguns portugueses.. 
Assim era o fabuloso "tio das Américas", que tinha três nacionalidades, filiação em dois grandes clubes de futebol, o FCP e o "Vasco" e estava sempre pronto a acolher qualquer amigo de um amigo de um amigo, num pequeno apartamento, um espetacular 40º andar, a poucos minutos dos teatros da Broadway. Cada vez menos convencional, deixou o chapéu, o fato e gravata da meia idade, para adotar bonés, jaquetas coloridas, camisas extravagantes e sapatos de cunha à Sarkozy (avant Sarkozy). Uma diplomata portuguesa de férias em NY, a quem serviu de cicerone, comentou: "À primeira vista, não parece, mas quando começa a falar, na convivência, vê-se que é um senhor" . De facto, pelo aspeto, não parecia. 
Viajou muito, embora não pela motivação comum, para conhecer novos países, e gentes exóticas. Não! Esteve, por diversas vezes, na China Taiwan, no Japão, em Israel, mas levado, apenas e só, pelo prazer de rever amigos queridos, antigos imigrantes regressados às origens. Com eles saboreavaumas jantaradas e bebia uns copos (sobretudo whisky, para sua salvação, com imensa soda), como se estivesse em Nova York ou Newark, sendo-lhes as paisagens e as originalidades arquitetónicas das cidades, completamente indiferentes. A Portugal, depois de uma ausência de mais de 15 anos, passou a vir regularmente, com um saco de "pai natal", cheio de presentes para a mamã e para toda a parentela, tirando o qual quase não trazia bagagem. E, por isso. não queria que lhe dessem nada para levar consigo De uma das vezes em que uma das irmãs lhe ofereceu, na hora da despedida uma bela camisola, acompanhada de um cartão, agradeceu, mas disse que a pequena mala de mão estava cheia, não tinha lugar para mais nada, só para o cartão, que , para ele, tinha muito valor....
 Vivia com ou outros e para os outros, esse alegre e exuberante "santo laico"..








J











  
















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