quarta-feira, 27 de novembro de 2019

No centenário de meu Pai MEMÓRIAS NOSSAS 15 nov 2018





15 nov  NO CENTENÁRIO DE MEU PAI -   MEMÓRIAS NOSSAS DAS SUAS MEMÓRIAS  

1 -NASCIDO NUMA TERRA ANTIGA

 O pai nasceu há precisamente um século, em Avintes, a 6 de junho de 1918. Às 11.00 da manhã de uma quinta-feira, em casa dos avós paternos, na Rua do Paço. Até meados de novecentos, (quase) toda a gente vinha a este mundo, com a ajuda de uma parteira, em casa da família.
Foi um dia feliz, um parto normal de uma mãe jovem, que tinha a idade do século. Ali, a poucas centenas de metros, as águas do Douro corriam tranquilas, longe, muito longe das terras que a grande guerra, a meses do seu termo, ainda devastava. O País chorava os mortos do massacre de La Lys e Sidónio Pais, que fora opositor da nossa desastrada intervenção militar na Europa e na África, enfrentava vagas de contestação e revolta, no que seria o seu último verão. Tempos de incerteza e de angústia. Católicos, conservadores, monárquicos, meus avós Olívia e Manuel, de quem era o primeiro filho, e os bisavós paternos, Quitéria Francisca e João Dias Moreira, e maternos, Joaquina e João Fernandes Capela, de quem era o primeiro neto, aceitavam Sidónio como "presidente - rei", ou como mal menor. Naquela manhã, contudo, esqueciam os destinos de Portugal e do planeta inteiro e sonhavam, simplesmente, o destino de um menino forte e perfeito. Nome já tinha. O de ambos os avós: João.

Chegava cerca de dois anos depois do casamento dos pais, celebrado na Igreja de Avintes, em 24 de setembro de 1916. Casamento simples, apenas com a presença da família e amigos próximos. A mãe, Olívia, alta, magra, pálida, no seu vestido branco, muito bonita,  beleza exótica, olhos grandes e cabelos negros, sorriso doce, dezasseis anos apenas, menos dez do que o loiro e melancólico Manuel, homem bem parecido e elegante. 
O noivo gostava de seguir os cânones da moda, era frequentador do Clube Recreativo Avintense, ator do Grupo Dramático Mérito, melómano, desportista. A noiva não girava nos mesmos círculos. Tímida e modesta, profundamente religiosa, quase se limitava a ir de casa para a igreja, com a mãe e a irmã mais velha, Clementina, que haveria de ser sempre mais dada à vida social e naturalmente mais "chique". Nas missas de domingo se cruzaram Olívia e Manuel. Foi amor "à primeira vista", que durou pela vida fora, como num filme com final feliz. Ele continuaria a frequentar as tertúlias, as salas de concertos e os cinemas, onde ela raramente o acompanhava. Saía para o que verdadeiramente a movia - para ir  à missa e às novenas, para visitar a mãe, que morava não longe da Igreja, para os convívios com a família e as amigas, quase todas senhoras mais velhas. Dentro das paredes da casa, sim, sentia-se confortável, uma anfitriã graciosa, sempre pronta a receber convidados, em grandes almoços e jantares, onde, muitas vezes, pontificavam os senhores abades. Esse era o seu domínio, cozinhava por prazer.  As criadas, moças rudes vindas do interior, nunca passavam do estatuto de ajudantes, para tarefas marginais. Não lhes dava ensinamentos nem oportunidades.
João aparece na sua fotografia mais antiga, possivelmente de fins de 1918, sereno e confiante perante as câmaras, entre os pais. Olha em frente, sem sorrir (um "bébé sério", como haveria de dizer, por graça, na década de 90, do seu sobrinho-bisneto mais querido, o António José). Com a mesma expressão o vemos meses depois, sozinho, sentado, vestindo uma diáfana camisa de cambraia branca, o cabelo loiro escondido numa touca de renda. Fotos de época, de fotógrafo profissional, que nos falam apenas de uma família burguesa, orgulhosa do pequeno sucessor. Pormenor sem importância, mas revelador da faceta puritana da mãe, em matéria de modas e costumes, o menino está vestido. Era comum, então, retratar os bebés nus, como os anjinhos do céu, mas ela não admitia tamanha exposição. Se pudesse, vestiria até o menino Jesus nos presépios e os anjinhos nas esculturas e nas telas dos templos. Uma faceta que nunca perdeu , embora fosse, em tudo o mais, diplomaticamente tolerante. Em qualquer caso, o traje escolhido para a foto, sumário e leve, é mais interessante e etnográfico do que a simples nudez. Do batizado, a 21 de junho desse ano, não há imagens. No livro de apontamentos, forrado a seda vermelha, o pai, apenas regista a data e o nome dos padrinhos, João Dias Moreira e João Fernandes Capela -  ambos os avós, sem referência a madrinhas.
Cinco anos ou seis passados, o rapazinho, que viria a ser um homem tão jovial e sorridente, continua de semblante fechado para a câmara, nas poses artificiais ensaiadas por um esforçado profissional. De perfil, com calção e "blazer", encostado a uma coluna, ou de frente, junto a um brinquedo de praia. Recordação de mais um verão em Espinho. Foto Evaristo.
Nesse ano, (1924, provavelmente) já não existiriam os seus três irmãos nascidos a 28 de janeiro de 1922, Maria, a única menina, e em 1923, a 9 de outubro , dia de anos do pai, os gémeos Alberto e Manuel - todos desaparecidos com poucos meses de vida, de doenças nessa época fatais, e agora facilmente combatidas com antibióticos de uso corrente. Deixaram muitas saudades e o pequeno João regressado à condição de filho único. Os primos-irmãos, com quem convivia, frequentemente, eram seis. Do lado paterno, filhos da tia Maria Francisca Reis, o António e a Maria Angélica, dois e três anos mais novos, e da tia materna Clementina Fernandes Capela, o Alberto (1922), a Alda (1923), o Manuel (1924) e a Maria Helena (1925).
Todos avintenses de naturalidade e de residência. Reinava entre eles o bom entendimento- nem rivalidades, nem rixas os dividiam. A roda de amigos incluía outros primos. o Francisco e o Corinto Marques e primos desses primos, como a Maria Argentina, o Carlos e o Fernando Reis. Crianças alegres, bem comportadas -  o quanto bastou para não deixarem um rasto de histórias extravagantes para a posteridades. Decerto a razão para, desse tempo, recordar mais as casas, os ambientes, sentimentos difusos de bem-estar, do que episódios concretos. A sua terra era ainda nos anos 20, e continuaria a ser, nas décadas seguintes, uma das mais encantadoras que o Douro percorre, situada numa das curvas do seu curso, ali já mais largo e tranquilo, tão perto do Porto e da Foz. Paisagem tranquila, que contemplava da janela do seu próprio quarto. Os pais moraram, nos primeiros anos de casados, no Outeiro, colina verde, por onde descia para a ribeira, até uma das mais belas propriedades da família, a quinta da Pena. Encurtou essa distância, muitas vezes, em correria, rua abaixo. A quinta era ponto de encontro com os primos, em visitas aos avós, que viviam em frente, numa casa rústica, com altos muros de pedra,  acompanhando a estrada na subida até à quinta do Paço. Um conjunto de edificações de épocas diferentes, a mais antiga, talvez, dos inícios do século XVII, a mais moderna terminada cerca de 1900, data gravada na pedra da entrada principal.
Na quinta da Pena, a casa estava desabitada. Inicialmente, teria sido destinada aos feitores da quinta do Paço, até ser comprada por um famoso advogado do Porto, por sua morte, herdada por um coletivo de sobrinhos e vendida ao avô João Dias Moreira. Era pequena e discretamente senhorial, paredes de pedra caiadas de branco, janelas altas a pequena distância, entre si, linhas retas à face da rua do Paço, o seu acesso e vivência voltados para o pátio das traseiras, para o que restava dos jardins, em redor da carranca antiga, incrustada num paredão de pedra. Às crianças parecia mais um altar de igreja erigida a entidade enigmática. A carranca lançava um fio de água sobre um lago retângular talhado no granito, simples espelho de água e foi cenário de muitas aventuras infantis e de piqueniques da família. Ali tinha, nos seus últimos anos, algumas vezes, celebrado missa campal, para um círculo íntimo, o tio Padre Manuel Pinto da Silva, contavam os mais velhos. E essas reminiscências acrescentavam à "capela" uma aura de misticismo e magia, propício à invenção de enredos e de personagens por rapazes cheios de imaginação e energia. As meninas eram mais novas, uma diferença de idades na infância considerável, e, por isso, não entram nas suas memórias do lugar. O jardim, sombreado pelo arvoredo, perdera muito terreno para a lavoura do novo proprietário, que desciam até às margens do Douro. Os milheirais quase entravam pela água adentro. Antes do abandono da agricultura e da invasão do cimento clandestino sobre essas terras baixas e férteis, a ribeira de Avintes era cenário idílico, na singularidade desse encontro entre o rio e as searas, que nele deixavam, ao sabor da brisa, um reflexo ondulante. Searas altas, onde os meninos se escondiam, como numa floresta. Numa zona de transição entre as terras de cultivo e as matas, a casa da quinta era livremente usada por eles, esconderijo ideal, à vista de todos os que deviam vigia-los. Sentavam-se nos bancos de pedra que ladeavam as janelas, arrumavam os brinquedos nos fogões de sala dos quartos, vazios de mobília. A privacidade desse espaço só deles contrastava com o movimento da casa dos avós, do outro lado da rua estreita. Os avós Quitéria e João habitavam no andar de cima, a norte, na parte mais moderna, os moços contratados para os trabalhos dos campos - ao menos, os solteiros - ficavam na ala antiga, com entrada separada. As portas, ao todo cinco, davam para o mesmo terreiro. No nível inferior, com portão para a rua e acesso ao terreiro por largas escadas de pedra, ficavam as lojas para máquinas e alfaias e a adega, com o lagar grande. No terreiro, protegido por altos muros de pedra, erguera o avô João um edifício de quatro andares, a acompanhar os desníveis do terreno - em baixo, aidos para o gado, em cima, a eira, o espigueiro. O granito predominava nas paredes, nos muros, nas escadarias, e até no chão, onde a pedra irregular alternava com a terra batida. O exterior da casa fora rebocada numa cor beige, pouco contrastando com a pedra. 
O pai tinha uma predileção pela quinta, com a moldura verde das suas árvores, a frente aberta para o areínho e rio, onde, porém, nunca viveu.  Os pais preferiam viver no alto do Outeiro, e, depois, na Rua 5 de Outubto. Talvez por ser menos longe do centro urbano de Avintes. Longe relativo. A perceção da distância tem menos a ver com a geografia do que com a sensação de isolamento, que ainda hoje, um século depois, persiste no lugar do Paço - salvo nos meses de verão, quando a baixada se transforma em praia fluvial, para multidões de turistas dos arredores. O conceito de praia fazia, então, pouco a pouco, o seu percurso, mas à beira-mar, não ali. O rio era, sobretudo, caminho para o comércio entre Porto e o interior, que já fora mais intenso, quando  dezenas de embarcações, cruzavam as suas águas durante o dia inteiro. Avintes tinha tido prósperos estaleiros, mas em breve, os automóveis e as camionetes iriam ganhar espaço. Deixaram o rio quase deserto, por muitas décadas, até ser redescoberto, em fins do século XX, por barcos de cruzeiro e de desporto.
Para o pai e os primos, na década de vinte, a diversão fluvial limitava-se à travessia do Douro, de vez em quando. Viagem curta, e nem por isso menos excitante. O barqueiro, estacionado em Gramido, chamava-se de Avintes, gritando e gesticulando. E ele, (mais tarde, na década de 40, ela, uma rapariga nova),  vinha a remar, compassadamente. Nesse vaivém tranquilo, há uma exceção, envolta em tão nebulosa narrativa, que se pode duvidar da sua existência. Tem por protagonista o menino João aos dois ou três anos de idade. Alguém o terá deixado, por momentos, sozinho, dentro do grande barco, rodeado de água. Partida estúpida, de um miúdo mais velho? Só poderá ter acontecido, se aconteceu, na breve ausência do barqueiro. O susto, diz a lenda, foi tal que o menino voltou para casa, gaguejando. E, daí em diante, não mais se livrou da gaguez, que se acentuava em situações de nervosismo e quase desaparecia, se e quando descontraído. Ele próprio não se lembrava de nada, apenas de "ouvir dizer", imprecisamente. Caso único na família. Se verdadeiro, de qualquer modo, não deixara outros traumas, nem mesmo a envolver barcos, águas fluviais ou marítimas. O pai um hábil mergulhador nas ondas batidas do mar de Espinho, embora, facto insólito, não soubesse nadar. Contava que o banheiro, em dias de maré viva, só deixava entrar na água os que considerava  nadadores experientes e sempre lhe deu "luz verde",  nunca se  tendo apercebido das suas limitações. Mergulhava, afoito e com estilo, retomava pé, de imediato - conhecia bem aquele ponto concreto do Atlântico. Também flutuava pelo tempo que quisesse, mas não se podia permitir movimentos de braços, sem afundar. Um mistério... Espinho era a sua  terra de verão, nos longos dias de sol e férias, com esse mar de vagas altas, as esplanadas, os cinemas, o casino, os cafés, onde se reunia com muitos colegas dos Carvalhos.  Tinha ao dispor a pequena casa de praia que os avós Capela compraram, na rua 7, nos começos do século, e que foi servindo para veraneio das filhas e netos. . 
Espinho estava na moda e ficava perto. O primeiro pároco da nova estância balnear em ascensão tinha sido o Padre Manuel Pinto da Silva, meio-irmão do avô Dias Moreira. Não se sabe se isso teve importância na escolha dos Capela e de numerosos outros conterrâneos. Certo é que o contingente de Avintes, como o dos espanhóis que o comboio trazia do interior peninsular, de Salamanca a Madrid, era significativo
Nos anos 40 e 50, quando, junto do pai, mergulhava nas ondas da praia azul, pela manhã, gozava as "matinés" nos cinemas, jogava dominó nos cafés, e ingressava, vestida a preceito, no vai-vem das multidões na "Avenida", já não havia vagas de turistas espanhóis (eles que tinham sido os criadoras, na Avenida 8, da "movida", tão tradicional nas suas praças quanto invulgar nas nossas - com os amigos caminhando em grupos, devagar, de um  para o outro lado). Esse turismo estrangeiro, há muito, dera lugar quase exclusivo ao nacional e dizia-se, com nostálgica ironia, que Espinho estava cheio de "espanhóis de Avintes",,,
Quanto ao Padre Pinto da Silva, nos anos em que esteve à frente da paróquia, na última década do século XIX, parece não ter tido a missão facilitada. Por razões políticas, provavelmente. Era monárquico, pouco dado a transigências, sempre pronto a confrontar ideias e posições. Numa vila nova, onde o sentimento republicano parecia já enraizado nas elites, não terá entre elas feito amigos. Próximo do Bispo do Porto, o Cardeal .D Américo Ferreira dos Santos, de quem foi secretário, mantinha distância com os poderes ascendentes. Passou os últimos anos retirado no lugar do Paço, junto ao meio-irmão. Podemos imagina-los a passear junto ao rio, dois gigantes, com quase dois metros de altura, o padre de batina preta, o empresário rural não menos imponente no seu longo capote alentejano. Concordante, certamente, na condenação dos novos tempos políticos. O Padre ainda teria a energia para lançar, em 1915, um jornal de combate, "A Aurora". Morreu em 1917, sem conhecer o sobrinho neto - o epílogo da guerra mundial, o fim definitivo do império do Czares, com a revolução de outubro ou as aparições de Fátima.
Curiosamente, não seriam figuras patriarcais, as que mais marcaram a infância do pai e dos primos António e Maria Angélica. A suave simpatia desse avô, famoso pela honestidade e pelo  empreendedorismo, foi, afinal, suplantada pela personalidade da mulher Quitéria Francisca. Reconheciam que esse avô fora um homem admirável, lavrador de mentalidade moderna, que, em décadas de atividade, pelo trabalho e pela boa gestão, comprou 99 propriedades, entre as mais extensas, quintas e pinhais, e courelas pequenas, confinantes com as suas terras. Homem de palavra, de uma lisura rigorosa nos negócios e de uma proverbial generosidade para com os seus trabalhadores. Foi através do neto António que recolhi o ditado, que, nesses tempos, corria em Avintes: "Mais vale ser cão em casa do João Patrão, do que criado na quinta da Gândara" (grende quinta, que pertencia a familiares seus, e que seria dada como termo de comparação apenas por isso, por ser tão importante). A  mesa de João "Patrão" era sempre farta. Presidia aos almoços com os seus homens, à cabeceira de uma mesa de pedra gigante, (um bloco único com mais de dois metros e meio), que ainda hoje existe, sem serventia, pousada no chão, paralelamente ao lago da carranca. 
Como conseguiu a pequena e franzina avó Quitéria Francisca, com o seu metro e meio e os seus perspicazes olhos, muito azuis, avultar, assim, no afeto dos netos?
O seu mito construiu-se com outros feitos - era a fantástica contadora de histórias, a guardiã de uma tradição de oralidade, pela qual narrativas, provérbios e lendas se perpetuavam. Tinha sido, quando jovem, a mais temível parceira a cantar ao desafio, nas festas da terra. Com uma memória prodigiosa, podia reconstituir noites inteiras das suas prestações: "ele disse, eu disse"... As quadras populares brotavam, em sequências infindáveis. Os netos ouviam, fascinados, mas só o António foi ainda capaz de reproduzir algumas, décadas e décadas depois. E eu registei uma:
 Ele:
Onde ides com tanta pressa
Que levais tanta canseira?
Alevantai os pés do chão
Que fazeis muita poeira
Ela:
Eu ia com muita pressa
Só para vos encontrar.
Agora que vos encontrei
Já dou a pressa ao vagar

Consta que não só pela palavra se revelara uma guerreira, tinha sido igualmente exímia a jogar varapau nas feiras. Vestia-se de rapaz e, compensando a pequena estatura com imensa destreza, levava pela frente os mais fortes. No casamento, onde imperou a paz e a concórdia, sabiamente transmitida aos dois filhos, ambos exemplos de afabilidade e simpatia, sempre soube ter a última palavra quando entendeu que o marido levava a transigência longe demais. Fica por determinar a importância real que teve no percurso de sucesso, que leva o perfil do famoso bisavô João. À casa do Paço, a partir da qual, com projetos e trabalho, as suas propriedades foram crescendo chamava "o torrão". De lá nunca quis sair, nem mesmo para a bela quinta da Pena, do outro lado da rua. Só depois da morte do marido, em janeiro de 1934, aos 82 anos, aceitou a inevitabilidade de mudar para junto da filha e do genro, com quem viveria por mais de 12 anos. Independente, ativa e espirituosa, até ao fim. Morreu de causas naturais. Deitou-se, bem disposta, numa noite como as outras, e adormeceu, para não acordar de manhã. Estava a quatro anos do seu centenário.

2 - ONZE ANOS FELIZES NUM COLÉGIO 

Os 6 anos de meu pai foram de grandes mudanças, que "o levaram de casa de seus Pais" para um internato, o colégio dos Carvalhos. Ao contrário do que poderia esperar-se, sem lágrimas nem lamentos.  E aí começou, afinal, a sua involuntária mas definitiva rotura com o paraíso rural da ribeira do Douro, dando passos irreversíveis no mais mais citadino dos futuros. Os pais estavam já na Rua 5 de outubro, numa casa situada na reta que começa na ponte sobre o Febros, o formosíssimo afluente do Douro, entretanto soterrado em cimento.
 O avó Manuel queria para o filho o que tinha idealizado para si, um título académico, um curso de Direito, de preferência, uma carreira na magistratura ou no notariado. Era notário era o melhor amigo de mocidade, cujo percurso seguiu com a nostalgia das suas próprias oportunidades perdidas. Por oposição do pai, compreensível, não tendo outro continuador para a sua obra de lavrador moderno e abastado. Diferentes mentalidades, sonhos diversos. Quando chegou a hora de herdar as terras, ele entregou-as a caseiros, que nelas honestamente fizeram fortuna. Uma resposta tardia, mas definitiva à imposição paterna, com a qual nunca, afinal, se conformou. Valorizava bem mais a cultura do que a agricultura... Ao filho oferecia a formação académica num excelente colégio privado. Disse-lhe, com certeza, a frase que eu própria ouviria, muitas vezes, trinta mais tarde: "a grande herança que te posso deixar é um curso na universidade".
 A avó Olívia, que, apesar da aparência amável e recatada, não era submissa nem fácil de contrariar, esteva de acordo. O Colégio dos Carvalhos era próximo e dirigido por padres. Terá pesado, também, a pronta a aceitação do filho, menino alegre e popular, talhado para a vida em comunidade. Fazia amigos com naturalidade. Nas fotografias dessa época já tem parecenças com a pessoa em que se converteu na idade adulta. Sorri, no meio dos colegas, todos irradiando boa disposição Um desportista nato (futebol, atletismo) e um aluno despreocupado, que cumpria os mínimos em ciências e se dedicava entusiasticamente às letras, com inclinação para os autores latinos. Lia Virgílio e Ovídio no original, "por gosto" .na sua própria expressão. O que infundiria respeito às filhas - à Madalena, que nunca estudou latim e a Manuela, que fez a disciplina, penosamente, nos últimos anos do liceu, sem ter lido uma só frase, por puro gosto, no original.
É também um pouco vaga a memória sobre outras situações, que terão sido frequentes, e aconteceram em cenário variados, feiras, lojas,ou cafés onde o grupo de amigos não fosse conhecido. A diversão consistia em representarem o papel de acompanhantes e tradutores de um estrangeiro, que era sempre o João, muito credível, com as suas melenas loiras, os "blazers" de "tweed", e um inglês desembaraçado.. Num tempo em que os turistas estrangeiros eram raridade, e idolatrados pelos autoctenes, a farsa estava destinada a ter sucesso. Só uma vez  correu mal, e logo numa feira concorrida: o pretenso turista tropeçou e pelos ares ecoou o seu brado em calão português! Pouco faltou para que todos, o falso inglês e os falsos tradutores, fossem sovados. 
O pai não era dado a escrever diários, nem a guardar cartas, notas ou mesmo os poemas. Do colégio, resta uma mostra de sabor popular, na senda da famosa avó Quitéria Francisca, a repentista. 
É um híbrido, uma espécie de auto-retrato/ caricatura:

"Sou cá de Avintes... 
é terra de boa gente, afinal
 Nasci em mil... já lá vão dezoito anos e tal!
Tenho altura regular
 - Mais esperto que um onagro
 nariz grande e recurvo
 carão vermelho e não magro 
Para comer valho por sete
 para beber por trinta e um
 para escrever uns sete ou oito
 como eu não valem um...
Mas, afinal, meus amigos,
 sou filho de boa gente.
 Tenho alma e vou tentar
 dizer-vos o que ela sente.
 Se alguma coisa quiserdes
 De mim, meus caros ouvintes, 
deixa aqui escrito o seu nome
o célebre
 João de Avintes

 Encontrei, também, no singular, um breve apontamento, escrito no verso de uma fotografia de grupo: "Em horas de alegria, junto a um monumento religioso onde figura o Crucificado". 
O humor discreto não surpreende quem o conheceu, exceto, talvez, nele, sempre católico praticante e homem de fé ortodoxa e inabalável, aquela juvenil irreverência.... Verdes anos, 14 ou 15. 
Houve, contudo, um hiato nos onze anos de colégio, uma época escolar, no sétimo ano do liceu, então, o último. Influenciado, talvez, pelos primos, insistiu em se matricular no Liceu Rodrigues de Freitas, com o argumento de que assim, melhor faria a transição para a universidade. 
Novas rotinas!Tomava, de manhã, a camionete para o Porto à porta de casa, onde havia uma conveniente paragem, e seguia viagem no meio de um ruidoso bando de colegas. Que belo tempo de liberdade, de deambulações pela cidade grande, de conversas à mesa dos cafés portuenses! Sabemos que, às vezes, a troco de um café escrevia sonetos para os amigos surpreenderem as namoradas pela sua inesperada veia poética. Também redigia, em prosa, cartas bonitas, ao correr da pena. 
No fim do ano, um chumbo! Para tudo há uma primeira vez. Queixava-se da sanha persecutória do professor de alemão. Confessava que partilhavam uma irresistível atração por uma jovem portuense, que sempre deixou no anonimato. Foi ela a involuntária fonte de um conflito, fatal e de todo alheio ao curriculum académico. 
Paixões juvenis, devaneios sentimentais, só mencionava os dos outros, com exceção desse caso -  justificação pouco comum de "insucesso escolar". Não sei se nos convenceu, inteiramente, à minha irmã e a mim. Conseguiu, sim, deixar-nos a suspeita de que não lhe faltavam namoradas, num vasto plural. Aos 17, 18 anos era um rapaz bem-humorado, desembaraçado, comunicativo,( apesar de ligeiramente gago!), elegante, desportista de várias modalidades, "sprinter" nas corridas, extremo no futebol, seu desporto favorito, como praticante, ou como espetador..
 Face ao desastre académico, não hesitou em fazer "mea culpa", e pedir aos pais para voltar ao colégio. Na irresistível boémia portuense, não lhe seria tão fácil corrigir a trajetória, como foi na branda e protetora clausura dos Carvalhos.
 Do Liceu Rodrigues de Freitas, nesse ano de 1934/35, ficou-lhe, como uma das melhores recordações, Leonardo Coimbra,  o melhor professor que teve na sua vida , e a cujo nível, só colocava Vasco Pulido Valente, que lhe deu aulas em Lisboa, cerca de trinta anos depois, aquando do regresso tardio aos bancos da Faculdade. Improvável dueto de vultos que fascinavam meu pai...
 Foram dessa breve fase do Rodrigues de Freitas outras divertidas aventuras partilhadas com o primo António. O tio António Reis era funcionário superior das Finanças no Porto, para onde vinha no seu carro, que deixava estacionado por perto, na rua. Reis filho, exímio em abrir portas e acionar motores, sem chaves, de vez em quando dava-lhe secreta utilização, para uns passeios até à Foz. Convidava o primo, os amigo e partia à aventura. Não sei se já tinha carta de condução, mas conduzia muito bem. Retornava o automóvel, sempre em estado impecável ao lugar de estacionamento. Mesmo que não fosse rigorosamente o mesmo lugar, o pai, muito distraído, (caraterística que ele herdara), não notava a deslocação. Reparava, sim, no consumo excessivo de gasolina e trocou de carro por causa desse defeito. Não sei se também trocou o seguinte, ou se os rapazes passaram a dar passeatas mais curtas. Uma vez, apareceu um polícia, quando o António estava se preparava para a irregular abertura do carro... Nada que o embaraçasse. Chamou a autoridade para o ajudar, dizendo que tinha perdido a chave. O polícia, amavelmente, condescendeu. O António tinha, de facto, ar de dono daquilo tudo!
 Outra história, em mais do que um sentido, bombástica, deste primo encantador, (na altura aluno do Colégio João de Deus), contou com a colaboração de um colega chamado José Augusto Aguiar. Quatro ou cinco anos depois, seria cunhado do primo João, mas na altura só os laços de camaradagem os uniam. Ambos fizeram explodir parte do laboratório, numa experiência em que falhou um qualquer pequeno detalhe. Os pais pagaram o prejuízo, e parece que não houve outra espécie de sanções, apesar dos antecedentes do José Augusto, que já fora expulso de alguns de colégios da cidade. Do historial disciplinar de João Dias Moreira, não consta nada de semelhante...
A Avintes voltava nos fins de semana e nas férias., à casa da Rua 5 de Outubro, onde, desde os anos do ensino primário, tinha novos vizinhos, os donos da quinta que confinava com os terrenos da casa dos pais: o Coronel Novais e Silva, a mulher Haydée (descendente de um dos engenheiros que acompanharam Eifel na construção da ponte sobre o Douro) e os filhos, Maria Beatriz e António Júlio. Uma família encantadora, que, por alguns anos, trocou a cidade por um recanto de aldeia milenária e tranquila, numa colina com esplendorosa vista sobre telhados e campos de milho, com águas plácidas do Douro,  em fundo. A mesma vista de que ele desfrutava das janelas do 1º andar da casa dos pais. As propriedades eram separadas por uns metros de declive, mais acentuado, à medida que se descia vários lances de escadas de pedra, para o interior da quinta. Entre as casas, a divisória era apenas um muro alto, onde colocaram, de ambos os lados, escadas de madeira para um trânsito fácil, no convívio quotidiano. Maria Beatriz era um pouco mais velha e António Júlio um pouco mais novo do que ele, Eram tratados como irmãos pelas duas famílias. O Coronel. naturalmente, mais severo com os rapazes
do que com a menina impunha-lhes regras de disciplina a que o pai não estava habituado. Aquele foi o contacto mais estreito que manteve com o universo militar. Apesar de muito gostar muito do Coronel, de quem sempre falava com admiração,  na sua presença sentia-se um pouco intimidado. tendia a gaguejar mais e  falhar em pequenas coisas, na altura deprimentes, retrospetivamente vistas como muito divertidas. Coisas como picar com o garfo uma azeitona que se escapava e corria por sobre uma bela toalha branca...
 A relação de grande amizade entre as famílias havia de manter-se depois dos Novais e Silva retornaram ao centro do Porto. 
A quinta foi comprada por um casal minhoto, sem filhos, que manteria as escadas de ligação sobre o muro e as boas relações de vizinhança. Nada de comparável, todavia Eram mais velhos dos que os meus avós. Nos seus últimos anos, tentaram, em vão, que a avó Olívia deles cuidasse até ao fim, em compensação lhe doando a quinta e mais património. A avó teria certamente aceite o encargo se não tivessem família. Não lhe faltavam colaboradores para os cuidar. O factor decisivo foi o conhecer os sobrinhos, achar que não era justo deserdá-los e que com eles ficariam melhor. Quod erat demonstrandum... mas a avó, tão prestável quanto inflexível nos seus julgamentos morais. não cedeu. Já só conheci a casa vazia, sempre ao cuidado da minha avó e posta seu inteiro dispor pelos sobrinhos minhotos. Nós só podíamos entrar quando uma das criadas (expressão, ao tempo, ainda socialmente correta) ia fazer as limpezas de manutenção. E usávamos a parte social, os salões, maiores e elegantes do que os dos avós, excecionalmente para festas (que me lembre, os banquetes da comunhão solene das meninas, a Madalena e eu). 
Ao meu olhar atento de feminista precoce, o que mais me surpreendia nas reminiscências do pai era o facto de referir rapazes e raparigas do seu círculo. no mesmo plano - a Maria Beatriz, as primas, as colegas, com que conviveu, no colégio dos Carvalhos. Colegas no feminino, não sei por que razão, nesse ano (o último, o antigo 7.º), admitidas num internato católico masculino, num tempo em que até os liceus laicos era segregados por sexo. Poucas, é claro, uma delas corajosa oposicionista à ditadura (seria Virgínia de Moura? Falava dela com estima, mas pode tê-la conhecida mais tarde, talvez, através de Armando de Castro, um dos seus melhores amigos). Todavia, outra categoria feminina, as namoradas, era cuidadosamente omitida. Nunca o questionámos... Com a mãe por perto, podia dar aso a polémica, na sua ausência, pareceria deslealdade filial. Isto não obstante a mãe alardear, sem complexos, a lista longa dos seus pretéritos e platónicos amores. 
 A diacronia das paixões não deveria jamais ser um problema, é coisa natural, ao ritmo de novos ou velhos encontros, no curso da vida. É com a simultaneidade que alguns, entre os quais me conto, não condescendem facilmente. Uma sociedade sexista, praticante de moral dupla, é, neste capítulo, regra geral, bem menos intransigente com homens do que com mulheres. Avaliando porventura, diferentemente, o grau de intensidade do romance, a valoração do que é apenas sexo ou amor e paixão. Na fronteira entre conceitos,  ou entre práticas, a mulher, pensava eu, em comunidades tradicionais, ficava sempre a perder. Todavia, para a infinita surpresa de quem, como eu, aos 14 ou 15 anos, supunha que a modernidade de relacionamentos mais livres e plurais ia em crescendo,  o Avô Manuel ensinou-me que podia não ser assim. No seu tempo de juventude e até mesmo, no dos seus pais, numa aldeia, regida por costumes antigos, um desses costumes era os rapazes "fazerem a corte" e  as raparigas corresponderem, num quadro lúdico de pluralidade de parceiros (antes do casamento, entenda-se). Ambos os sexos podiam, pois, ter a sua extensa lista de "conversados" ou "conversadas". Termo caído em desuso, ainda que primasse pela precisão, pois era pressuposto não irem os pares além da conversa...
 Curiosamente, nesses remotos anos 20 e 30 do século XX, a mesma atitude avançada, mas em rotura com tradições e preconceitos imperantes, tomava o primo António, reagindo, até onde podia, às limitações impostas à irmã, como a proibição (que hoje poderíamos adjetivar de "saudita") de conduzir carro e tirar carta de condução. Ensinou-lhe os rudimentos da arte, às escondidas, confiava-lhe o volante do carro, em estradas cheias de curvas perigosas, nas subidas e descidas da estrada de Avintes para Oliveira do Douro, onde pelo menos uma vez, bateu num obstáculo... Em compensação, ela deixava-o tocar o "seu" piano. Para o conservadorismo da família Reis, o guiador do automóvel era para mãos masculinas, tal como o piano para as femininas. Na verdade, o pianista mais talentoso era precisamente o António, autodidata que tocava, com as suas belas e compridas mãos, um vasto repertório de Chopin a Mozart. 
O primo João também queria um piano. O pai, reconhecido melómano, que igualmente tocava música clássica ou popular "de ouvido", ofereceu-lhe um pequeno violino no lugar de um grande piano -  como a Jacob "em vez de Raquel lhe davam Lia", no soneto camoneano. Ao contrário de Jacob, logo se conformou, mas não se converteu em exímio executante. Do muito badalado e tão gracioso instrumento musical sentiu a falta, sobretudo, depois de o ter imprudentemente emprestado ao amigo de um amigo, que lhe deu sumiço.
 Ao som do violino, do piano ou do coro familiar, a cantar à capela, eram os nossos serões em Avintes, como os de Gondomar modos de outro viver em família, hoje ás vezes,  mas raras vezes reencontrado em festas de anos, ou de Natal. E quando a conversa a  predominar, vinham ao de cima, entre risos e sorrisos, as narrativas das gerações mais velhas, que nos entusiasmavam, por muito que fossem já do nosso conhecimento. 
Verdadeiramente triste só a tragédia dos saguís, sobre a qual davam, os dois primos, António e João uma infinidade de detalhes, protestando a sua completa inocência no desenlace fatal, credível, sendo ambos, como eram, amigos dos animais. Resumindo: os pequenos macacos engraçados, trazidos dos trópicos pelo tio Laurentino Reis, médico de bordo de navios, em longas viagens intercontinentais, estranhavam os invernos europeus. Os macaquinhos, as suas momices e brincadeiras, eram descritos com imensa graça - o seu desconforto no confinado horizonte de um casarão cinzento e frio. Solução, com a marca mais do António do que do João, aparentemente: aquece-los, por alguns minutos nas partes laterais, espécie de "rechaud" do grande fogão, para onde o calor perpassava, sem queimar. Os saguís davam espetáculo, coitados, saltitando lá dentro, sobre as chapas quentes, até serem restituídos ao exterior, à temperatura ambiente. Para surpresa dos rapazes, o remédio não resultava em pleno. E, logo de seguida, poucos dias depois, os macaquinhos adoeceram subitamente e morreram. O sobrinho Mário, a quem, numa tarde de conversa, em Gondomar, deu todos esses e mais detalhes, fez o diagnóstico médico, sem hesitações: vítimas de pneumonia, provocada pela alternância de calor sufocante e frio de enregelar.
 Os dois primos não eram fisicamente parecidos - António, magro, longuilíneo, o rosto anguloso, as suas artísticas mãos de pianista, que serviram de modelo a um escultor, cujo nome lamentavelmente esqueci. Um Gary Grant mais aristocrático do que o de Hollywood e igualmente carismático, (o que explica a boa cooperação daquele tal polícia que o ajudou numa benigna "tomada de empréstimo" do automóvel do pai). O João, mais entroncado, mais atlético, ar menos ousado, menos afirmativo, sorriso mais fácil. Quem era o mais alto? De pé, sem dúvida, o António, com o seu 1, 80, mas sentado o João, que andava por 1,75. Discutir essa curiosa constatação, era coisa que os divertia na juventude e de que ainda se riam quando já eu tinha idade para me lembrar do debate. Muito semelhantes eram numa caraterística, talvez hereditária, partilhada na geração seguinte - grandes distraídos, perdedores de objetos, "res"... Guarda-chuvas, luvas, chapéus, canetas, pastas, tudo o que não estivesse vestido ou calçado, ficava esquecido em elétricos, salas de cinema ou mesas de café. O pai raras vezes usou, fora de casa, o isqueiro "Ronson" de ouro, a caneta Monblanc, ou mesmo um qualquer guarda-chuva de estimação, (que, por prudência, nem sequer estreava). 
O exemplo mais esquisito é do António numa conversa telefónica com o Coronel Novais e Silva,  com quem o primo João nunca fora além de "gaffes" frequentes mas menores. O António, tão desenvolto, pouco intimidado pela personalidade forte do ilustre militar, ligou-lhe nessa manhã e começou por falar, com ligeireza, sobre uma enfiada de trivialidades. Como a conversa se fosse prolongando, perguntou-lhe o Senhor Coronel se, lá em casa, estavam todos bem de saúde. "Sim, felizmente,  todos bem, muito obrigado", respondeu António. O interlocutor insistiu, então, em saber o motivo da chamada e, de imediato, o supremo distraído respondeu: "Senhor Coronel, venho participar o falecimento da minha Avó". Não era falta de amor e respeito pela velha Senhora, que lhe era especialmente querida. Apenas pura distração.

3 -  O ENIGMA DA "SENHORA DO RETRATO"

Dos seus dez aos vinte e tal anos, o pai, parecia tudo rememorar e narrar, com prazer. Tudo menos um primeiro casamento ainda antes dos vinte...
A exceção acicatava a curiosidade. Desde pequena, (cinco, seis anos) me apercebi desse tabú, rodeado de mistério. E fui colhendo dados a partir de meias palavras ditas em diálogos ou discussões que não eram para os ouvidos da criança. Mas eu lá estava no sítio imprevisto, na sombra de uma parede, atrás de uma porta, indiscretamente escutando e discretamente guardando , para mim, informações, somando-as, uma a uma. 
A primeira mulher do pai era um verdadeiro mito para os meus avós e seus sogros. Tinha morado numa das casas que tornavam elegante e harmónica a alta da Rua 5 de Outubro, onde passávamos, vezes sem conta, para visitar os tios Reis. logo adiante.  Vivera, depois, com o marido, em casa dos sogros. Morrera tuberculosa aos 21 anos (havia, então, pouco mais de uma década. Chamava-se Celina. A sua imagem permanecia bem viva na memória dos avós e olhava-nos, de frente, num retrato esplêndido, emoldurado em prata, que se destacava, enorme e solitário, numa mesinha oval, num canto da sala de visitas - onde eu entrava, sempre que podia para a contemplar, lindíssima num vestido de gala branco, decotado, cabelos longos, levemente ondulados, caídos sobre os ombros. Porém, raramente conseguia infiltrar-me no "santuário", para ver a "Senhora do Retrato"... A sala estava quase sempre fechada,  abria-de apenas para receber "visitas de cerimónia". 
Celina - personagem radiosa e inacessível, como as estrelas dos cartazes que enchiam as paredes do Teatro São Pedro, em Espinho.
A certa altura, não sei precisar quando, cansados dos remoques e hostilidade da segunda nora, os sogros cederam e retiraram da sala para lugar desconhecido,  a fascinante fotografia da Senhora que a morte levara tão cedo, e que eu gostava de admirar, com tristeza. A heroína de tragédia, e não de ficção ou filme, mas da tremenda realidade. 
Quando muito mais tarde, estudante em Coimbra, confidenciava estas rememoradas sensações de infância a uma amiga, ela estranhou tanto que me perguntou: "Tens a certeza de que não és filha da Celina?"
 Esqueci até o nome da colega, mas não a sua extraordinária reação. O meu interesse por Celina, julgava eu, era coisa normal. Pensava nela,  na fatalidade de uma doença terrível e incurável e da partida, que devia ser proibida aos 20 anos - precisamente o acontecera com Glória, uma tia materna de minha mãe. também ela lindíssima, também ela através de um grande retrato de parede, perpetuada na saudade de gerações que não a conheceram.
 Celina, (como Glória) estava no centro da tragédia. Ela e não o viúvo, que continuava vivo, casado de novo, e pai de filhas. De novo, feliz.
O seu relacionamento com Celina só podia ter sido verdadeiro e sincero, porque afrontaram, corajosamente, ambos, a doença dela, já declarada... Que pena esconder esse romance, assim deixando das suas circunstâncias um rasto longo de interrogações...
Teriam brincado, na infância? Pertencido ao mesmo grupo de amigos? Provavelmente (ela era prima da Maria Argentina, prima dos primos Reis, e vizinha, também). O namoro, começara quando? E a doença? O que é preciso para um rapaz de 19 anos arriscar o risco grande de contágio - mais coragem ou mais paixão? Ambas, com certeza. 
Algumas décadas depois, "Love story" era sucesso nas salas de cinema. Passei a considerar Celina como protagonista de um enredo parecido, passado em Portugal, nas margens do Douro. Com semelhanças e diferenças - maior o "glamour" da noiva, o noivo, poeta loiro, que tocava violino e lia os seus clássicos... Um casal cercado do afetos e de apoio incondicional da família e amigos - sempre  a seu lado, numa luta perdida contra a sombra da morte, da separação.  
De concreto, porém, sobre este "filme" da vida real, só dispunha dos dados parciais e dispersos,  acumulados como peças de um "puzzle" .  O quarto grande do primeiro andar, tinha sido o deles, como era o de meus pais, quando ficavam, por uns dias ou umas temporadas em Avintes. Uma enorme divisão, com um frente a frente de janelas, as da frente para a rua, as de trás para o rio. O rio Douro.
 A decoração e mobília mantiveram-se ainda por uns anos. até serem remodeladas ( por volta do ano em que da sala de visitas se baniu o retrato). "Queen Anne", contra "arte nova", não propriamente uma  melhoria.
 Outro pormenor que retive pela via de uma sibilina alusão materna, foi o engodo de Celina pela moda, os muitos vestidos que deixou, em provas, na modista, quando faleceu. Onde a mãe via vaidade feminina (ela, mulher moderna que não menos gostava de de roupa nova e chique) adivinhava eu o sinais de uma constante luta, sem desesperança contra a a iminência da desgraça, uma crença que a terá levado a afrontar cada dia, como se nada de mal lhe fosse acontecer - e tão depressa. 

AVINTES ERA UMA FESTA

Avintes tinha, nessa década de 30, intensa vida social. Era um micro-cosmos, em que se harmonizavam as componentes, citadina e incipientemente industrial com a ruralidade antiga, com os seus rituais centenários, religiosos e laicos - de trabalho e  divertimento, desfolhadas, danças, jogos tradicionais. O do varapau, ou o da competição de rodar os sinos da igreja, manejados à corda, arte em que o avô Manuel era o melhor de todos, e cuja técnica, exigindo muita força e destreza, ele meticulosamente explicava, sem que eu jamais tenha entendido as suas explicações. 
A família de meu pai distribuía-se por essas duas principais componentes, que se foram misturando por casamentos e pela formação académica dos mais jovens. Aldeia, depois, vila, que pode bem orgulhar-se de invulgares elites intelectuais - uma pleiada de artistas plásticos, de académicos, gente de profissões liberais, grandes proprietários - grandes quintas muradas formando círculos de convívio exclusivo E, também, o seus "brasileiros de torna viagem", que deixaram como sinais exteriores da aventura de sucesso, na longa enfiada de palacetes na alta da rua 5 de Outubro. E o Clube Avintense, cenário de tertúlias elitistas e de faustosas galas.
  Em 1938/39, quando o pai terminou o curso do liceu e se matriculou na Universidade do Porto os tempos eram de incerteza, da Alemanha de Hitler chegavam os ecos dos movimentos que iam desencadear nova guerra mundial. Internamente, a Ditadura alicerçava-se para durar o seu meio século de contas públicas a caminho do acerto, num fundo de pobreza sem remédio, apenas aliviada pela emigração.
. O pai não guardava grandes recordações da agitação e instabilidade que enterraram a 1ª República, nem do nascimento do "Estado Novo". Afinal, em 1926, tinha apenas oito anos. 
Não conhecera o tio padre, vigoroso polemista anti-republicano. Em casa, não se discutiam mais essas questões de regime. Os pais e avós eram salazaristas anónimos, como tantos outros, que tinham suportado, em constante sobressalto as vicissitudes de 16 anos de República. Os filhos não. E cada vez menos, sem, contudo, andarem pelas trilhas da luta revolucionária. As suas prioridades de jovens estudantes eram bem mais ligeiras. Para eles, "Avintes era uma festa", no círculo mais alargado de companheiros de diversão ou no quarteto formado por João, António, Francisco (Chico) e Corinto, em que até os nomes se interligavam, em cadeia: António Dias -Dias Moreira (João) -Moreira Marques (Chico) - Marques Ribeiro (Corinto).
A sequência dos apelidos cria a suposição de uma pluralidade de ligações nas árvores genealógicas, mas, de facto, provinham todos do mesmo ramo, o do Bisavô "brasileiro", pai de duas meninas de forte personalidade, para sempre lembradas tanto pelo caráter, como pela contagiosa alegria de viver: Quitéria Francisca, a dos olhos muito azuis (avó de João, António e Maria Angélica) e Esperança, a dos olhos muito verdes (avó de Francisco e  Corinto). Uma casou com Dias Moreira, o bom gigante, que era lavrador abastado, a outra num família de 
artistas, os Marques. Uma longa lista de Adolfos. ao menos desde início do século XIX, o que pode confundir quem queira traçar, a partir de Avintes o percurso de várias gerações de entalhadores, escultores e arquitetos...
O primeiro Adolfo que alcançou notoriedade pelo seu trabalho (as esculturas de Dom Quixote, do Cristo e dos Apóstolos na última ceia e tantas outras, que ainda pude admirar em casa do primo Chico) foi o marido da tia Esperança Francisca Pinto, pais de Manuel Marques (arquiteto, formado no anos de 1912, prémio Soares dos Reis, no ano seguinte, e professor das Belas Artes, no Porto, depois de muitos anos de trabalho em Paris -  o pai de Corinto), e de Adolfo Marques, entalhador, escultor, professor na Escola Industrial de Gondomar - o pai do Chico,).
O António e a Maria Angélica, pelo lado dos Reis, bem podem orgulhar-se doo pioneirismo dos antepassados noutro domínio, em Avintes. Eram ambos professores primários e em terreno por eles doado, se levantou a primeira escola da terra. 
  Os alegres primos - João, o poeta, Chico, o cineasta, António, o filósofo, Corinto, o imparável contador de ditos e anedotas!  Eram, na década de trinta, vizinhos na 5 de outubro acima do Cruzeiro, onde nessa rua entronca a que desce para a Igreja, à vista do elegante edifício do Clube Avintense - a exceção era meu pai, habitante na mesma rua, na outra extremidade. A residência dos Tios Reis (onde está agora instalado o teatro dos "Plebeus Avintenses") ficava junto à dos primos Marques (herdada do Bisavô Pinto). Um pouco abaixo, a vivenda dos pais da Maria Argentina, e a dos pais da Celina. Adentro do grupo alguns devaneios românticos se foram tecendo, e três houve que chegaram aos altares da Igreja: a Çelina e meu pai, Carlos Reis e Hilda, da Quinta da Gândara, e, anos mais tarde, a Maria Angélica e o Corinto (que foram  casar-se à Sé do Porto, tal como, anos antes, o António Reis e a Amélia  (Soares de Albergaria). 
A amizade pode bem volver-se em paixão e dar em casamentos duradouros e felizes... Breve e marcante na memória daquela geração, só o de Celina. Há alguns anos, a Maria Argentina ofereceu-me duas pequenas fotos dessa lendária prima. Perdido o inesquecível "retrato da senhora", eis a senhora do retrato, mais informal, no seu quotidiano - com um cãozinho ao colo no portão da casa, e, numa outra, sorrindo, em fantasia de carnaval.
Pequenas fotos tiradas, por altura do casamento, quando ela tinha 20 anos

 TORONTO, SÉCULO XXI - UMA NOVA VISÂO DA " SENHORA DO RETRATO" 

 Cerca de 70 anos depois do casamento de Celina e João, uma inesperada testemunha lançou nova luz sobre essa história antiga: o primo António (Reis).
 António emigrou para o Canadá, na década de sessenta, com a mulher, Amélia, e o filho, António Manuel, um rapazinho de oito anos. Com desgosto os vimos partir para tão longe. Havia muito, praticamente duas gerações, que a emigração cessara na família. Ele era uma exceção, a outra exceção sendo o tio José (Aguiar), ido, pouco antes, para o Brasil, de onde haveria de reemigrar para Nova York - o nosso fabuloso "tio  das Américas", (o tal que fora cúmplice na explosão do laboratório do colégio).  
Meu pai, apesar dos empregos pouco aliciantes em que gastou a primeira parte de um trajeto profissional, nunca considerou como remédio o salto para destinos longínquos. 
O abandono prematuro da Universidade fechou aos primos a progressão em carreiras de funcionalismo e nenhum deles mostrou vocação para o mundo dos negócios. Dos quatro inseparáveis de uma juventude despreocupada e brandamente boémia, só o Corinto terminou, nesse tempo, o curso de arquitetura. Por razões desconhecidas, o Chico, aluno do mesmo curso, desistiu no último ano e, por falta de diploma académico, acabou a trabalhar como desenhador no gabinete de arquitetura de um colega. Meu pai, na Universidade do Porto parece não ter feito nada além da matrícula, e só viria a retomar os estudo (outros estudos) nos anos setenta, em Lisboa. Quanto ao António nem sei se chegou a matricular-se na Faculdade de Ciências.  
Quatro rapazes sonhadores e brilhantes; João, o poeta, António, o filósofo, Chico, o cineasta, Corinto, o artista. Os planos que traçavam à mesa do café nunca fizeram, todavia, pragmaticamente, caminho na vida real. Para um bom português, a solução que acaba por se insinuar como a melhor é, quase sempre, uma mudança de país... O primeiro candidato à emigração foi o Chico. O Canadá pedia desenhadores. Com dois filhos pequenos, o Adolfo e a Esperança desistiu da viagem transoceanica e migrou, cá dentro, do Porto para Lisboa, terra da mulher, a prima Nini. Foi o António, desenhador de fresca data, com qualificações alcançadas em estágio relâmpago, mais para efeito de satisfazer os requisitos das leis canadianas do que por vocação, que decidiu cruzar o Atlântico, em vez do primo... Não voltaria de lá, exceto nas férias de verão, divididas entre Espinho e Avintes e Lisboa. Visitas da família, em Toronto, as minhas, breves e frequentes, e as da irmã Maria Angélica, longas e muito espaçadas. 
No fim das minhas viagens de trabalho na América do Norte, sempre que podia, ficava um ou dois dias na sua casa de Martha Eaton Way, perto do Aeroporto Internacional. Numa dessas ocasiões que o tema surgiu, a propósito da produção poética do meu Pai, que se perdeu, quase toda. Os versos para Celina foram rasgados pela minha mãe... E como "abismus abissum invocat" - espero ter acertado no latim, que o pai saberia aprovar ou corrigir...- e o marido ciumento deu exatamente o mesmo destino a uma composição musical inédita do pianista Marques Ribeiro dedicado à Mariazinha, pelo talentoso compositor e ex- namorado... 
Nesse serão canadiano. António tentou recordar os sonetos inspirados por Celina. Já só conseguiu recitar um, e incompleto. Depois, falou dela, longamente - de uma jovem moderna, extrovertida, ícone da  moda, alta, elegante, muito bonita, sempre cercada por uma corte de admiradores. Entre estes, ali o confessava perante uma Amélia complacente, ele próprio! Com dezasseis, dezassete anos, estava perdidamente apaixonado. Dois primos, cada qual o mais atraente, em disputa pouco fraternal pela mesma dama! Inimaginável... Celina, obviamente, não levava a sério o mais novo, novo demais. Confidências nostálgicas a trouxeram, da distância de um Olimpo, de figura recriada a partir de uma pose teatral, com um "glamour" de "mulher fatal",  para uma jovem amável e irreverente e uma ágil desportista, que um dia chegou a uma reunião de amigos, num sotão da casa, entrando por um postigo de telhado! Pensei: tão parecida com a minha Mãe, que fazia coisas perigosamente semelhantes, como subir ao telhado da "casa da eira" e inclinar-se na esquina para apanhar os araçás mais inacessíveis. Ou saltar do 1º andar da Vila Maria por sobre canteiros de roseiras de pé alto - simplesmente para competir, ou vencer uma aposta...( Na geração seguinte, eu faria o mesmo).
 Do casamento de Celina com meu pai não existem imagens. Perderam-se, não vi nunca uma só, nos álbuns dos Avós. 
Segundo o primo António, foi um casamento de estadão, a noiva de vestido branco, sumptuoso, banquete nos salões da mansão dos Viana, uma multidão de convidados. Memorável. O António descrevia a cerimónia com todos os detalhes, inclusive o discurso eufórico e emotivo do avô Manuel, que parece ter sonhado tanto com aquele casamento como os próprios noivos. 
António, sentindo-se o ser mais infeliz do planeta, recuou-se a participar da festa. Mas, como não se falava em Avintes de outra coisa, durante os dias que se seguiram, ficou a par do que se passara, como toda a gente, entre presentes e ausentes.
De meu pai, sobre esse casamento efémero, ficaram duas quadras de um soneto:
"Amo-te, como se ama a luz irreal vivida/ do sonho que acalenta o coração de um triste/. Eu sou o eco morto, longo em que partiste/ Numa canção morrente em longa despedida
 Quero-te, como se quer a um bem que não existe/ Que apenas se sonhou e nada mais, querida/ Um bem que se entrevê na ilusão da vida /que ao derradeiro sopro de quimera assiste."


Apenas duas quadras, que vou sempre ouvir,  como foram ditas, nessa noite,  na bela voz de na dicção perfeita de António, (que o levaram, durante algum tempo, aos microfones de rádios comunitárias, como locutor). Então, a voz já ligeiramente rouca de octagenário, que conservava o seu charme discreto de sempre. Ao lado, Amélia sorria, muito loira e linda, parecendo definitivamente incapaz de envelhecer. 
São, muitas vezes, as mulheres que melhor se adaptam a sociedades estrangeiras, E os filhos também. Amélia manteve-se por décadas na "boutique" mais elitista do "Holt Renfrew"- Yorkville. Ninguém dava mais "chique" à famosa loja do que ela própria. 
 O António Manuel, que passou a Tony Reis, pronunciado "Ris",  já aos 8 anos era um "caso de sucesso";  ganhou um ano na escola primária, de tão avançado que se mostrou nas matemáticas e de tão depressa que aprendeu inglês! Exímio praticante de todos os desportos locais, foi campeão universitário do Canadá em futebol (americano), pela universidade onde, mais tarde, completou i o seu mestrado. E de Portugal foi porta bandeira nas Olimpíadas de Inverno de Calgary, concorrendo na exótica e vertiginosa modalidade de "bobsleigh". Poliglota, o português fluente continua a ser uma das suas línguas, Em Avintes mantém os amigos de infância. 
A neta do António Manuel, Chloe Randall Reis, é a única descendente direta dos trisavós João Dias Moreira e Quitéria Francisca. Luso-canadiana com antepassados idos de Portugal, da Escócia e da Ucrânia, fez os seus estudos, com distinção, na Mc Gill, em Montreal e na London School of Economics e ingressou, logo de seguida, numa multinacional, em Londres. Parte das nossas novas história da emigração...

 NOVA VIDA
 Em 1940, o viúvo tinha 20 anos e um emprego rotineiro, sem ânimo para recomeçar estudos, para se lançar na procura de outros horizontes. O melhor do seu tempo era passado em tertúlias de café, nos cinemas ou nos estádios de futebol. Até que, no outono desse ano, num belo dia de sol, se encontrou dentro da capela do Monte da Virgem com a que viria a ser, ao longo de mais de meio século, a mulher da sua vida - Maria Antónia, a Mariazinha. 
O Monte da Virgem fora lugar ermo, de vegetação selvagem, que um grupo de amigos, inspirados pelo Padre Luis, conseguiu desbravar para aí ser construído um monumento em honra de Nossa Senhora - a que se seguiu uma capela, aberta ao culto em     . 
A esse bondosíssimo sacerdote e grande pedagogo estavam  muito ligados o meu pai e dois dos seus amigos, ambos padres, Eduardo e António Pinheiro.
António escolheu a Capela do Monte da Virgem para a celebração da sua "missa nova", nesse domingo de outubro .
A Mariazinha estava ali, com a mãe e as irmãs, a convite da irmã do Padre António, Maria Luisa, que fora sua colega no colégio  
Conta a mãe que dois bonitos rapazes, apesar de muito devotos, passaram a missa a olhar para ela, o moreno Fontes e o loiro João. Ambos, assim, à primeira vista lhe agradavam, . Cá fora no adro, antes mesmo de serem formalmente apresentados, já ele lhe pedia para aceitar uma lembrança do dia da "missa nova" do amigo comum, comprada numa tendinha, que vendia terços, imagens da Virgem e anjinhos, a par de pequenas peças de artesanato - reduto em que o Pai escolheu a sua simbólica oferta. Presente estava também a tia Arminda (mais propriamente tia da Nucha Aguiar, professora de piano das primas mais novas), que morava em Avintes, e era amiga comum da avó Olívia, e da Avó Maria, que visitava, quando estava de passagem em Gondomar, na Casa da Gândara, berço dos Aguiar, que pertencia, então ao tio Augusto Aguiar, que a mãe lembra, sobretudo, pelos seus grandes olhos azuis e pela sua joalharia na rua das Flores. Enquanto as três cristianíssimas senhoras conversavam, João contava a Maria Antónia que estava entusiasmado com a perspetiva de ir, no dia seguinte, a Lisboa, com o primo António, à exposição do "Mundo Português". De lá lhe escreveu um postal, a enviar um soneto, em que, discretamente, falava de amor que se procura. O que começa assim: "Lancei o meu olhar sobre esse imenso Tejo, À noite semeado de um encanto vago E vi em cada onda uma sombra, um lampejo Dessa história de heróis, que no meu peito trago" Dir-se-ia que toda a inspiração vem da temática da "expo", mas não, na última estrofe o A. sente o irreprimível desejo de lançar às ondas o seu coração em busca de um amor.. . que, pelo visto, até já estava encontrado e à primeira vista. A correspondência continuaria, e, depois, os encontros em Gondomar, no Porto, num roteiro de terras, como Brânzelo ou Santo Tirso, onde, por coincidência, a Maria Luísa Pinheiro dava aulas num colégio e o tio António, irmão da Mariazinha, como lhe chamavam, era tesoureiro da Fazenda Pública. Morava numa pensão e namorava a sobrinha dos donos, uma beldade de olhos verdes (Antónia ou Toninha, com quem viria a casar). A Mariazinha passou a visitar o irmão, mais vezes, ficava na mesma pensão, encontrava-se com a amiga dos tempos do colégio e com o namorado - que tinha, evidentemente. de escolher outra pousada. O irmão era tão severo como a mãe, embora com agenda mais preenchida, abrandasse a vigilância durante o horário de trabalho. Passeavam pelas ruas e parque, sempre acompanhados pela Toninha. Entretanto, o pai já era amigo de toda a numerosa, alegre e turbulenta família Aguiar. Sete irmãos, os mais velhos já casados e com filhos pequenos. Muito diferentes entre si, com uma tradição de confronto e discussão política, que nunca acabava mal, embora ninguém mudasse de campo, ou de opinião. Nas gerações anteriores, uns eram monárquicos, outros republicanos. Nesta, em plena guerra, degladiavam-se, sobretudo, anglófilos/democratas e germanófilos/salazaristas. Felizmente, eram todos também muito dados às artes da música e da dança, facilmente passavam do modo de "tertúlia - debate" para o de tertúlia musical Tocavam piano as senhoras, cantavam todos em coro, com algumas vozes esplêndidas a sobressair. O pai com o seu belo timbre de voz, não gaguejava a cantar, ao contrário do que acontecia no auge das discussões. A futura sogra, tal como a sua mãe era muito religiosa, com uma casa grande. a Vila Maria, muito frequentada pelo pároco, coadjutores, padres de fora, seminaristas, freiras, missionários... Ser o João um crente de missa e comunhão quase diárias, tornou-o, desde o encontro do Monte da Virgem, muito popular na Vila Maria... No verão de 41, a família Aguiar não pode veranear na Foz, como era habitual. Madalena, a mais nova, estava convalescendo de uma "primo infecção" e os médicos aconselhavam os ares da serra, não as nortadas do litoral. Passaram o verão numa quinta de amigos, em Branzelo, numa espécie de "turismo rural". Duas primas do João, a Alda e a Maria Helena foram convidadas da avó. O João vinha, nos fins de semana, mas tinha de procurar quarto numa pensão, convenientemente perto. Eram noivos, sem oposição alguma, (graças ao catolicismo do viúvo, a que acrescia a fama de herdeiro rico), sem, contudo, permitir "liberdades" impróprias, segundo os seus cânones rigidamente conservadores. Todavia, as filhas, sobretudo a dupla Mariazinha/Lolita, sabiam achar mil e uma maneiras de contornar proibições. Cumplicidades nunca lhes faltaram, a de uma com as outra, a das amigas e, particularmente importante, a dos vários e sucessivos empregados ao serviço na "Vila Maria" (ou das criadas e criados, como então se usava dizer). Sobre Branzelo há uma carta do Pai, em versos bem humorados, contando uma atribulada viagem de regresso de fim de semana, em que os convivas tinham sido muitos, incluindo o jovem Padre Vitor Hugo, coadjutor na paróquia de São Cosme, autor uma grande reportagem fotográfica dos acontecimentos... Avintes, tantos de tal daqui fulano de tal etc. e tal Maria: Venho escrever-te/porque o ler também diverte/quem nada tem a ocupá-la.../- E enquanto a pena desliza/A gente sente, imprecisa,/ A sensação de que fala!//Começo por te contar/ Que ainda antes de chegar/ Ao Porto- que forte perda/ O camião de Branzelo/ Furou antes do Covelo/ E teve "panne" na Meda/E assim sem mais novidades/ Cheguei cheio de saudades/ Ao café para engraxar;/ Mas aí, nova surpresa/ Sentado em frente a uma mesa- / Me estava a aguardar.../- Espantei que nem Texugo/...Era o Padre Victor Hugo/ Cheio de fotografias./ Tinha ali toda a excursão/- A Maria e o João/ E mai-las outras Marias!/ A Lolita numa delas/ Está tão só que mete pena./Apenas aos pés, deitada,/Uma galinha coitada (esfolada) Tem pena de não ter penas.../ (Diz a má língua que as outras eu/ As comi- tenham juízo -/ Que alguém as comeu, comeu!/ Quanto a mim estou "indeciso" ...)/ Na da Penha vi: que vento!/ Se me rio mais rebento/ De dar tanta gargalhada - / Quanto a ti minha "migalhas",/ Se te ris mais, escangalhas/ Não se te aproveita nada!/ Agora assunto mais grave/ - A Lolita sempre quer/ Fazer anos quarta-feira?/ porventura ela não sabe/ Que isto de envelhecer/ É grande asneira, ui, que asneira?!/ Ela que tenha juízo/ durma bem e ganhe siso/ Um ano a mais... não vem mais/ A graça morre, se passa.../ Recordar é uma desgraça/ Desgraças já há demais!/ Oh abri alas.../ E a Lena como está?/ Sossegue, sim?- que a Tatá/ Um dia faz-lhe a surpresa!/ Lá quando menos o conte/ Inda o "Sole" "male" desponte/ Na manhã! Ei-lo a ele!que surpresa!/ Oh! abri alas!/ E vocês como estão?/ Não estejam com "cem" cerimónias!/ Por aqui andou toupeira/ Já lambeu a capoeira,/ Sou todo vosso/  João Uma narrativa, que podia ter saído da pena, ou melhor, oralmente, da voz da avó Quitéria Francisca... cheia de pormenores explícitos e sub-entendidos - alguns difíceis de descodificar, mas que nos falam de amizade e boa disposição, de passeios, de romances de verão e de amores que se revelariam duradouros... Nos versos dedicados às futuras cunhadas Lolita e à Lena, a primeira letra de cada estrofe dá-nos uma pista, o nome dos rapazes muito especiais, nesse agosto de 41: Eduardo e Esolino. O primeiro, que viria a ser o querido e divertido tio Eduardo, acabado exemplar "bon vivant", estava na lista negra da Avó por isso mesmo, e por ser católico pouco praticante(apesar das famílias pertencerem ao mesmo círculo social da vila de Gondomar...). O Esolino era vizinho do lado, as propriedade confinavam, o pai era músico, compositor, tocava na igreja, (preenchia uma condição "sine qua non"...), parece que gostava da menina, muito bonita e serena (ao contrário das manas, que eram tão bonitas, quanto temperamentais). E talvez ela lhe achasse graça, mas aos 15 anos, era cedo para se pensar em compromissos. A Tatá que levaria o simpático vizinho a Branzelo era a Tia Hermínia, cunhada da Avó Maria e uma segunda mãe da Tia Lena, sempre pronta a fazer-lhe todas as vontades. Mais enigmática é a menção à galinha retratada numa foto, e às galinhas devoradas. Talvez uma forma de auto-crítica, porque o Pai tinha um apetite muito saudável, que manteve até à meia idade, comia quantidades assombrosos de carne de qualquer espécie. Comia imenso e bebia pouco. O gosto dos contrastes - ele tão alto e tão apreciador de boa mesa, ela tão magra, frugal e pequenina... Quanto ao passeio à Penha, havia de repetir-se muitas vezes, afrontando a ventania, com risos e gargalhadas. (Como os jovens de 20 anos, em Portugal, estavam longe de uma guerra tão próxima, que acompanhavam pela imprensa e pela rádio, mas não entrava no seu quotidiano!).
. O


 casamento civil foi, em Gondomar, a 1 de novembro de 1941. Cada qual continuou em sua casa, pois para as famílias o que contava era a cerimónia religiosa, realizada na Igreja Matriz de Gondomar, duas semanas depois. O "pedido da mão da noiva" tinha sido feito formalmente, à mãe e ao irmão, o Tio Alexandre, o que sempre acompanhou os sobrinhos como um pai, na falta do pai. O Tio defendeu, pois, paternalmente a Maria Antónia, com uma variante de "sermão laico" sobre as suas obrigações como marido (era um republicano anti-clerical - os seus únicos defeitos, do ponto de vista da irmã - e o ser o noivo muito devoto para ele não era virtude que o recomendasse). Lua de mel na bela região do Vouga! Como o noivo ainda não tinha comprado o seu primeiro carro, viajaram no comboio, no famoso "vouguinha", a partir de Espinho, fazendo paragens para pernoitar, aqui e ali, até chegarem a Viseu, cidade onde a minha mãe fez questão de passar uns dias. Era outono, quase inverno, mas o tempo pouco importava. Voltaram a Gondomar - a Avó Maria insistia que ficassem a viver na sua casa enorme, onde já só 

só moravam com ela dois filhos solteiros, o Zé e a Lena. O Pai tinha encontrado uma nova família, grande e divertida - gostava de todos e todos gostavam dele. A Mãe com os sogros nunca se entendeu muito bem - acho que nunca a viram como a filha que tinham encontrado em Celina, e ela retribuía, interpondo cada vez mais distância - mas adotou e foi adotada, facilmente, pelos tios e primos, e até também pela famosa Avó Quitéria Francisca. Achava-lhe a maior graça, mesmo quando a repreendia por usar saias tão curtas (coisa que não toleraria a mais ninguém, com exceção da sua mãe, naturalmente). A uma e outra respondia que "era a moda", que sempre fez questão de seguir, à sua maneira. Curiosamente, nesse aspeto, o Pai não era diferente - embora muito mais comedido em matéria de compras, o seu lema era "pouco, mas bom" - fazendas inglesas, costureiro famoso do Porto (durante muitos anos, o Arménio). Quando iam para Avintes passar uns dias (a casa dos Avós tinha, também, espaço de sobra), o convívio com os tios e primos Reis e Marques, sobretudo, mas também os Capela era uma festa constante. Mas, onde quer que estivessem, o Porto era um ponto de encontro frequente. Para tomar café (no Guarani, no Imperial, no Paládio), para ir ao cinema nas noites de sábado, para deambular por Santa Catarina e Santo António. Curiosamente, os casais frequentavam juntos esses cafés, com os primos solteiros, o que, naquele tempo, não era coisa habitual (seria influência das vivências 

de Espinho, onde isso era a regra?). Mas, claro, as senhoras, quando só entre elas, escolhiam as confeitarias tradicionais, como a do Bolhão, ou a Ateneia. A Mãe e a prima Cristina eram as únicas que se aventuravam no Café Ceuta, que talvez oferecesse um ambiente menos sexista do que os congéneres. Nos fins de semana, aos domingos, os cunhados de Gondomar, eram, muitas vezes, desafiados para passeios pelo verde Minho, sempre à descoberta de um novo restaurante, de estradas secundárias, de vistas espetaculares sobre serras e rios. Seguiam em verdadeiros cortejos de carros, com as barulhentas criancinhas. Pelo Minho, e não só - também pelo Douro interior, por Trás-os-Montes (não perdiam as corridas de Vila Real), mais raramente, em direção ao sul. Muitas excursões eram dirigidas, também, a pequenas terras do interior, onde os antigos coadjutores da paróquia de Gondomar eram senhores abades - como o padre Campos ou o Padre Serafim, muito hospitaleiros e muito divertidos - as favoritas da Avó Maria, que, contudo, não faltava a nenhuma, fosse para onde fosse. Em 1942 nasci eu, na Villa Maria, no ano seguinte, em dezembro, a Madalena. Nessa casa, que para nós era paradisíaca, vivemos os primeiros anos, anos muito felizes


I- A PARTIR DE UM SONETO

(transcrever)

Meus pais, Maria Antónia e João, conheceram-se num domingo de outubro de 1940, na "missa nova" do Padre António Pinheiro. 
No dia seguinte, ele partiu para Lisboa com o primo António Reis, para uma visita à "Exposição do Mundo Português", de onde lhe enviou uma carta, acompanhada de um primeiro soneto, em que fazia uma discreta, e não demasiado subtil, declaração de amor. Para dois quase desconhecidos mandavam os bons costumes essa discrição. Não, porém, excessiva subtileza, que poderia tornar menos enfática a mensagem. O tempo de conversa não fora além de uma escassa hora, à saída da capelinha do Monte da Virgem. A menina de Gondomar, bonita e elegante num conjunto rosa pálido, vestido e casaco comprido, longos cabelos ondulados, e olhos expressivos, muito claros, de cores diversas, mais verde o direito, azulado o esquerdo (singularidade para o qual insistia em chamar a atenção). Franzina (1.50 de altura), um paradigma de graça e vivacidade. Certezas ele não tinha, para além de a achar atraente, com os seus ares de Paulette Godard. Aparentemente também ela, no breve convívio a sós, se sentira atraída pelo seu exotismo nórdico. Se não amor instantâneo, fora coisa afim, de menor ordem de grandeza, mas promissora. Os dois, mais tarde, confessavam que , contudo, não haviam excluído alternativas. Para ela, o rapaz moreno que com ele contrastava, mesmo ao seu lado. Para ele, as irmãs da Maria Antónia, a do cabelo negro, negro, e imensos olhos verdes (que logo viria a descobrir já ter noivado firme, daqueles contrariados e resistentes, à antiga portuguesa) e a mais nova, de serena mirada azul. Tão diferentes e tão bonitas! "Olhos de Aguiar" dizia-se, em São Cosme quando alguém tinha olhos assim, grandes e intensamente claros, como viria a saber, quando se  iniciou na sociedade gondomarense. 
Os encontros entre Mariazinha e João, já não ocasionais, embora alguns se destinassem a dar essa impressão, haveriam de continuar, bem como os sonetos, que os foram assinalando. Ele escrevia com facilidade, ao correr da pena. Poeta repentista, como a avó Quitéria Francisca, a mítica contadora de histórias, que, nas festas e nos serões da aldeia, cantava ao desafio, com rara acutilância e rima sempre certa. E, assim como a avó dizia os seus versos precisos e mordazes, o neto escrevia poemas românticos, por vezes à mesa do café, para si ou para amigos, desejosos de impressionar as namoradas como poetas (que não eram), inspirados por uma paixão (que raramente existia de verdade). 
Não julgava os seus versos dignos do esforço de os guardar. Foram-se perdendo todos, menos os sonetos que dedicou à mulher e ela, sim, tratou de conservar. Era uma colecionadora nata de cartas, postais, fotografias, e de outras coisas ligadas a boas memórias - jarras, terços, caixinhas, chávenas de  de chá, colchas, vestidos antigos de seda, a desfazer-se, objetos com história, que tivessem passado por mãos de várias gerações. 
Apesar de muitas andanças, de terra em terra, de casa em casa, ameaça tantas vezes fatal à salvaguarda deste tipo de espólio, trouxe-o consigo até ao século XXI, dentro  das mesmas caixas, dos velhos albums, do imenso guarda-louça da bisavó Carolina.
Os sonetos, foram achados, meio século depois, manuscritos numa letra bonita e intemporal, em papel amarelecido, mas intactos, num fundo gavetão de cómoda. Achado meu. Levei-os ao autor, para que relesse, ao fim de meio século. E com uma proposta de publicação, que inesperadamente não rejeitou. Até  deu título ao futuro livro: "Íntimo", epígrafe de um dos sonetos. A pronta aquiescência ter.se-à  devido, imagino, ao facto de os ler como obra de outro, do jovem que já não era e que lhe despertava simpatia .Ou apenas com nostalgia. Por essa altura, com os seus setenta e tal anos, numa tarde de sol, passeando à beira mar, confessou-me que tinha pena de ser velho. Estranhei, hoje já o compreendo, Talvez seja preciso atingir a mesma idade para compreender. 
Dividimos tarefas. Cabia-lhe a revisão do texto, acrescentar ou cortar vírgulas, no que era exímio. Eu própria, costumava submeter os meus escritos ao seu superior conhecimento dos segredos e meandros da língua - prosa, naturalmente, sobre questões pouco poéticas, se bem que, para efeito de pontuação, tarefa de natureza semelhante.
Nesse pacto de divisão de trabalho acordada, eu encarregava-me do restante, capa, imagens, tipografia, edição . Todavia, o poeta foi adiando, adiando... Reuniu as folhas soltas, uma para cada soneto, numa pasta de cartolina preta. Às vezes, chegava a sair, com a pasta virtuosamente debaixo do braço, a caminho do Café Palácio, sua segunda residência em Espinho. A intenção era ir burilando estrofes, uma ou outra palavra, aqui e ali, ou uma vírgula, enquanto esperava os amigos. Porém, primeiro, vagarosamente, as páginas do seu jornal - que foi o "O Comércio", era eu criança, e, depois "O Primeiro de Janeiro" . Acompanhava, de perto, as vicissitudes do desporto e da política - bem mais do que a filha, então sempre de partida para reuniões do Conselho da Europa ou para visitas à "Diáspora" da Nação.... Entretanto, chegavam os amigos 
O tempo, para os mais velhos, passa depressa. O dele, esgotava-se em conversas, passeios à beira-mar, diante do ecrã de televisão (horas e horas...), em leitura pela noite fora. Ultimamente mais biografias, os policiais de Sara Paretsky, Ruth Rendel, Amanda Cross (que eu providenciava), ou os seus eternos favorito,Eça e  os divertidíssimos Jerome K Jerome e Guareschi. Ou Umberto Eco, ou autores brasileiros da coleção da mãe, como Amado ou Erico Veríssimo. Curiosa a ausência de poesia, talvez como se pertencesse a um período findo, capítulo encerrado. E havia, também, os encontros em Gondomar, com os sobrinho, mais as missa e novenas e outras orações diárias na capela da Senhora da Ajuda, (o que me levou a dizer-lhe uma vez, irreverentemente, que cumpria as horas canónicas como um frade fora do convento). 
A revisão dos versos não tinha, obviamente, prioridade nesta preenchida agenda de reformado, a viver numa cidade de tertúlias, esplanadas, praias e mar. Não havia pressa - até que a hora de partir veio subitamente,num domingo de Páscoa. O coração parou. Parou mesmo, enquanto conversava, ao jantar, a meio de uma frase... Tão cheio de vida, a comentar um artigo de Marcelo (Rebelo de Sousa), a próxima peregrinação a Fátima, a festa em casa do Mário, onde nunca faltávamos ao "compasso",  tradição bonita, que andava, há muito, perdida em Espinho. 
Já não sei qual era a crónica de Marcelo. Recortei-a, talvez do " Expresso", para logo a perder, como é meu lamentável hábito. Incondicional admirador do cronista, hoje Chefe de Estado, decerto apreciaria o seu estilo na presidência. Dou por mim, muitas vezes, a pensar nos diálogos que teríamos sobre vagas de acontecimentos que se sucederam na sua ausência - vitórias do Porto, derrotas do Porto, Lopetegui e Sérgio Conceição, a "troika", a "geringonça", o Brexit, o bom Papa Francisco e o mau sujeito Trump...
A coletânea dos sonetos foi prontamente publicada, sem revisão alguma. Fernando, o mais jovem dos participantes da tertúlia do Café Palácio, ( que, às vezes, reunia no bar do Casino, ou no "Nosso Café), cuidou da parte gráfica, e acompanhou os trabalhos, numa tipografia dos Carvalhos. A ligação aos Carvalhos, lugar onde viveu onze anos de gratas memórias, no famoso colégio, ter-lhe-ia agradado.

2 - O Porto parece uma aldeia pequena, onde todos se conhecem. O Porto e arredores. Quando não o país inteiro... Exemplo disso é a minha experiência de Montreux, em 68. Era domingo de Páscoa, decorria a final do torneio internacional de óquei em patins. O pavilhão, onde me sentei na primeira fila, com a prima Eduarda (Docas), estava cheio de compatriotas. (Nunca tínhamos visto um jogo de tão perto, nos primeiros minutos seguíamos mais a bola do que o jogo, com medo que nos caísse em cima, hipótese pouco provável, no centro da bancada, ´longe da área de remate à baliza, depois, com a emoção, esquecemos o risco)  Durante os festejos de vitória portuguesa, num pequeno café pacato - pacatamente suíço, até à nossa chegada -  ao fim de apenas alguns momentos de diálogo, descobrimos, sem esforço, um vasto leque de amigos comuns, do liceu, da faculdade, da missa de domingo, do emprego, da praia...  Podia a população global ascender a milhões, mas o círculo em que nos movíamos era uma espécie aldeia global lusitana, com pouca gente e muitas afinidades..
Foi justamente este fenómeno, a rede de amizades tecidas em colégios privados, que esteve na origem do encontro de destinos de meus pais, nascidos a poucos quilómetros de distância, ela norte do Douro, no centro de São Cosme, ele a sul, em frente a Gramido, na ribeira de Avintes. Por sobre o rio que separava geograficamente, os uniu a comunidade escolar. O jovem padre António e o irmão Eduardo, também padre, tinham sido colegas de infância do João, no colégio dos Carvalhos, tal como a Maria Luisa Pinheiro e a Maria Antónia no Colégio das Águas Férreas, dirigido por freiras francesas - amizade que se manteve, depois que as meninas Aguiar se foram para o Colégio da Esperança, junto ao Jardim de São Lázaro, no Porto. E, assim, ambos estavam presentes na capela do Monte da Virgem, para a "missa nova" do Padre Pinheiro, consigo levando as catolicíssimas mães, Maria e Olívia e mais família.
Dentro do templo, o protocolo separou as gerações: as respeitáveis senhoras quinquagenárias mais perto do altar, os jovens, atrás, nas últimas filas. Conta a mãe que se viu, com as irmãs, junto a dois rapazes, que, durante a missa inteira, mais do que para o altar a olhavam para elas - ou, mais precisamente, para ela. É a sua versão e não há mais ninguém, lúcido e vivo, para a contrariar .
Dois homens bonitos, um moreno, o outro loiro. Não sabia bem qual deles achava o mais interessante. Em geral, pensando em galãs de cinema, ia pelos os morenos, ao contrário dos homens, que, segunda consta, nos quatro cantos do mundo, preferem as loiras. Naquele dia, contudo, quem se antecipou, mal saíram para o adro, foi o rapaz das melenas claras... Como parte de um mesmo círculo de íntimos da família Pinheiro, podiam prescindir de apresentação formal,  Disseram os nomes um ao outro, ele perguntou-lhe a idade, mas ela preferiu que ele tentasse adivinhar. 
 -  "15 anos? - " foi o desastrado vaticínio, em forma de interrogação. Com um franzino 1.50, ela prestava-se ao equívoco, mas não tanto. 
- " 20!" - respondeu, acrescentando secamente :
 - "A, si, dou-lhe 35 ou 36! ".
 Do alto do seu atlético 1.77, com apenas 22 anos, não se deu por atingido, precisou a idade e pediu licença para lhe oferecer uma pequena lembrança, comprada ali ao lado, num bazar. Era uma simples miniatura de artesanato, dois soquinhos de couro, ligados por um fio de prata. A música foi terreno mais consensual, onde desvendaram afinidades. Ela pianista, com o 6º ano do Conservatório, e uma paixão obsessiva por Chopin. Ele violinista. Contou que também preferia o piano, mas os pais decidiram que começaria pelo violino, instrumento mais portátil e menos dispendioso, talvez para testar a sua vocação. Vocação que não era assim tão evidente. Do seu repertório, exemplificava com a "valsa da meia-noite", detalhe fatal  na avaliação daquela exigente melómana.
Na roda de apresentações e cumprimentos, formada à porta da capela, pontificava, como elo de ligação, a tia Arminda, senhora que morava em Avintes e  ia, assiduamente, a Gondomar, sendo amiga tanto da avó Olívia, como da avó Maria. Arminda era mais exatamente tia da Nucha Aguiar, (prima e professora de piano da Mariazinha, Lolita e Leninha), visitava com regularidade a casa da Gândara, berço dos Aguiar, nessa altura já pertença do pai da Nucha, o tio Augusto, que a mãe lembra, sobretudo, pelos seus cintilantes olhos azuis, pelos fatos chiques e pela não menos chique joalharia da rua das Flores. 
Maria e João mantinham-se àparte. lado a lado . Ele contava-lhe que no dia seguinte, uma 2ª feira, ia para Lisboa, com o primo António, passar uma semana de férias e ver a famosa Exposição do mundo português. Não era coisa que acontecesse todos os meses, mas dava-lhe, ali e então, por sorte, uma aura de rapaz viajado, um quase explorador das vastidões do Império, ainda que só revisitado à beira Tejo.
De lá, lhe escreveu uma carta, com um um soneto, em que, discretamente, falava de um coração em busca de uma amor.
Começava por se focar, patrioticamente, na história pátria, mas deixava adivinhar uma intenção, muito individual de futuro...:
:
Lancei o meu olhar sobre esse imenso Tejo,
À noite semeado de um encanto vago
E vi em cada onda uma sombra, um lampejo
Dessa história de heróis, que no meu peito trago

Dir-se-ia que toda a inspiração vinha da "expo", da imersão nas suas temáticas Todavia, na última estrofe, o Autor confessa o irreprimível desejo de lançar às ondas do Tejo o seu coração "em busca de um amor". No que não tardaria a ter sucesso..
A correspondência continuou, assim como os encontros em Gondomar, no Porto, num roteiro de terras, como Branzelo ou Santo Tirso. Santo Tirso, onde, por coincidência, a Maria Luísa (Pinheiro) dava aulas num colégio e o António, irmão da Mariazinha,( como era chamada), acabava de ser colocado como tesoureiro da Fazenda Pública. Morava numa pensão e namorava a sobrinha dos donos, uma minhota de olhos verdes (a Antónia ou Toninha, com quem havia de casar). A mana passou a visitar o irmão, com desusada frequência. Havia sempre um quarto para ela na mesma pensão e tempo para passear com a amiga do colégio e o namorado - evidentemente. alojado em outra pousada, como se impunha. O irmão António pretendia ser severo e presente, à imagem da mãe, embora com agenda mais preenchida, abrandasse a vigilância durante o horário de trabalho, enquanto o trio deambulava pelas ruas e pelo parque da vila - eles, os noivos, sempre escoltados, ou pela Toninha ou pela Luísa. 
São Cosme era, de qualquer modo, o lugar mais comum daquele namoro convencial. Mais precisamente, a sala de estar da Vila Maria, tão solene, com os espessos cortinados de veludo escuro, os solenes  retratos de família nas paredes, o piano, os cadeirões e o sofá "arte nova" de veludo verde claro, onde mãe e filha se sentavam distanciadas do pretendente. A mãe lrecorda-se, sobretudo, de longas conversas a três, que, na realidade, alternavam com os alegres convívios de uma família numerosa.  João  era companheiro bem aceite pelos divertidos e turbulentos irmãos Aguiar -  a Carolina, o Manuel Joaquim, o António Maria. o José Augusto, a Glória Doroteia (Lolita), a Maria Madalena (Lena). Para além da Mariazinha, naturalmente! Os dois mais velhos casados, Carolina com Serafim Caetano Pereira, Manuel com Clara de Sousa  e já com filhos pequenos. Todos diferentes entre si, e cultores de uma tradição de confronto e discussões políticas, que jamais acabavam mal, embora raramente alguém mudasse de opinião e  menos ainda de campo (não consta que isso jamais tivesse acontecido). Nas gerações anteriores, uns eram monárquicos regeneradores, outros republicanos  e provavelmente"maçons",  entre eles um anarquista simpático, que esteve degredado em Angola, o tio António Barbosa, enquanto os demais não foram além da prisão no "Aljube", ou da aposentação compulsiva das funções de juiz do Supremo Tribunal de Justiça (um colega de curso de Salazar, o tio José Barbosa Ramos, ou tio José velho, como o chamávamos para o distinguir do tio José novo, irmão de minha mãe, seu afilhado e não menos revolucionário, que, anos mais tarde, acabaria por se "exilar" no Brasil e nos EUA, tornando-se o nosso lendário tio das Américas) . 
Em plena guerra, ou no pós-guerra, na década de quarenta, degladiavam-se, incessantemente, anglófilos/democratas, o pai, os manos Aguiar, versus germanófilos/salazaristas - os cunhados, Serafim e David, futuro marido da Lena, sendo Eduardo Fonseca, que casou com a Lolita em 1942; aparentemente, o mais neutral, e, sem dúvida,  o mais "bon vivant". Sendo todos  muito dados, não só ao acompanhamento da política, mas também às artes da música e da dança, facilmente passavam do modo de "tertúlia - debate" para o de tertúlia musical. As meninas tocavam piano, os demais cantavam em coro. Alguns, como o tio Serafim, solista do coro da Igreja, e as irmãs Carolina, Lólita e Mariazinha, esplendidamente. Lena era  melhor como pianista, fez o curso de conservatório. O pai com o seu belo timbre de voz constituiu uma mais valia - e não gaguejava a cantar, ao contrário do que acontecia no auge de qualquer debate.   
No verão de 41, a família Aguiar não pode ir a banhos para a Foz, como era habitual. Lena estava a convalescer de uma "primo infecção" e os médicos aconselhavam os ares da serra, não as nortadas do litoral. Passaram o verão numa quinta de amigos, cedida ou arrendada, pormenor que se desconhece, em Branzêlo. Duas primas do João, Alda e Maria Helena foram convidadas da avó Maria. O João vinha, nos fins de semana, e tinha de  procurar quarto numa pensão. Eram noivos, sem oposição, (graças ao catolicismo do viúvo, a que acrescia a fama de herdeiro rico), mas fora de questão estava e permitir "liberdades" impróprias, segundo os seus cânones rigidamente  conservadores. Todavia, as filhas, sobretudo a dupla Mariazinha/Lolita, conseguiama engendrar mil e uma maneiras de contornar proibições. Cumplicidades nunca lhes faltaram, a de uma com as outra, a das amigas e, particularmente importante, a dos vários e sucessivos empregados ao serviço na "Vila Maria" (ou das criadas e criados, como então se usava dizer).  
Sobre Branzêlo há uma carta,  contando em vers, uma atribulada viagem de regresso de fim de semana, em que os convivas tinham sido muitos, incluindo o jovem Padre Vitor Hugo, coadjutor na paróquia de São Cosme e autor uma grande reportagem fotográfica dos convívios.


Avintes, tantos de tal
daqui fulano de tal
etc. e tal

Maria:
Venho escrever-te/porque o ler também diverte/quem nada tem a ocupá-la.../- E enquanto a pena desliza/A gente sente, imprecisa,/ A sensação de que fala!//Começo por te contar/ Que ainda antes de chegar/ Ao Porto- que forte perda/ O camião de Branzelo/ Furou antes do Covelo/ E teve "panne" na Meda/E assim sem mais novidades/ Cheguei cheio de saudades/ Ao café para engraxar;/ Mas aí, nova surpresa/ Sentado em frente a uma mesa- / Me estava a aguardar.../- Espantei que nem Texugo/...Era o Padre Victor Hugo/ Cheio de fotografias./ Tinha ali toda a excursão/- A Maria e o João/  E mai-las outras Marias!/ A Lolita numa delas/ Está tão só que mete pena./Apenas aos pés, deitada,/Uma galinha coitada (esfolada) Tem pena de não ter penas.../ (Diz a má língua que as outras eu/ As comi- tenham juízo -/ Que alguém as comeu, comeu!/ Quanto a mim estou "indeciso" ...)/ Na da Penha vi: que vento!/ Se me rio mais rebento/ De dar tanta gargalhada - / Quanto a ti minha "migalhas",/ Se te ris mais, escangalhas/ Não se te aproveita nada!/ Agora assunto mais grave/ - A Lolita sempre quer/ Fazer anos quarta-feira?/ porventura ela não sabe/ Que isto de envelhecer/ É grande asneira, ui, que asneira?!/ Ela que tenha juízo/ durma bem e ganhe siso/ Um ano a mais... não vem mais/ A graça morre, se passa.../ Recordar é uma desgraça/ Desgraças já há demais!/ Oh abri alas.../ E a Lena como está?/ Sossegue, sim?- que a Tatá/ Um dia faz-lhe a surpresa!/ Lá quando menos o conte/ Inda o "Sole" "male" desponte/ Na manhã! Ei-lo a ele!que surpresa!/ Oh! abri alas!/ E vocês como estão?/ Não estejam com "cem" cerimónias!/ Por aqui andou toupeira/ Já lambeu a capoeira,/ Sou todo vosso/ 
João

Narrativa, que podia ter saído da pena, ou melhor, da voz da avó Quitéria Francisca, a mestra da oralidade... Cheia de pormenores explícitos e sub-entendidos, alguns difíceis de descodificar, mas que, no seu conjunto, é uma crónica de boa disposição, aurida em passeios, romances de verão e amores, que se revelariam duradouros. Nos versos dedicados às futuras cunhadas Lolita e à Lena, a primeira letra de cada estrofe dá-nos uma pista, o nome dos rapazes que as cortejavam, nesse agosto de 41: Eduardo e Esolino. O primeiro, que viria a ser o nosso divertido tio Eduardo, o "bon vivant", por excelência, estava na "lista negra" da futura sogra por isso mesmo - classificado como católico pouco praticante, de nada importando que as famílias pertencessem ao mesmo círculo social da vila de Gondomar,  onde o pai de Eduardo, o Dr Ernesto Fonseca, sucedera ao pai da avó Maria, como tabelião. 
O Esolino, um vizinho,que morava na propiedade confinante com a Villa Maria, foi caso passageiro. O pai era músico, compositor, tocava na igreja, logo, preenchia uma condição "sine qua non"... Gostava da menina, que vivia do outro lado do muro, muito bonita e serena, ao contrário das três manas, tão bonitas quanto temperamentais. E talvez ela correspondesse ao brando sentimento, mas aos 15 anos, era cedo para compromissos. Depois, do Porto veio David, já homem feito, anos mais velho do que ela, amor  uma vida inteira. A Tatá que levaria o simpático vizinho a Branzêlo era a Tia Hermínia, cunhada da avó Maria e segunda mãe da Leninha, sempre pronta a satisfazer-lhe a vontade. Mais enigmática é a menção à galinha retratada numa foto e às galinhas devoradas. Talvez uma forma de auto-crítica - tinha um apetite saudável, que manteve até à meia idade, consumia quantidades espantosas de carne, qualquer que fosse a espécie. Comia muito, bebia pouco. O gosto dos contrastes. visível no par de namorados   ele alto, forte, apreciador de boa mesa, ela magra, frugal e pequenina... Quanto ao paso à enha, havia de repetir-se muitas vezes, afrontando a ventania, com risos e gargalhadas.  Os jovens de 20 anos estavam longe da guerra próxima, que, em país de neutralidade mantida com mal assumidas alianças,  seguiam pela imprensa e pela rádio, como um folhetim trágico da vida real.     

  

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A 1 de novembro de 1941, os noivos celebraram, sem celebrações. o casamento civil. em Gondomar. Para a avó Maria o que contava era o compromisso assumido perante  Deus, não face a um funcionário da República, como  a lei exigia, em  tempos pré concordatários. Após a breve e burocrática cerimónia, os recém-casados regressaram a casa de seus pais, em São Cosme e Avintes.
 O Conservador do Registo, Dr Jazelino, marcou o ato para o dia em que, em São Cosme, se evoca a memória dos mortos. A Mariazinha, de casaco debruado a azul marinho, carteira e sapatos da mesma cor, tomou o único táxi da vila para a Conservatória, acompanhada apenas pela mãe. No breve trajeto pela rua principal, cruzaram-se com dezenas de conterrâneos de coroas de flores na mão, e trajes escuros, que faziam caminho em sentido contrário, para o cemitério,
O "casamento a valer", realizou-se na Igreja Matriz de Gondomar, duas semanas depois. O pedido formal da "mão da noiva" tinha sido feito à mãe e ao irmão Alexandre, o republicaníssimo mas conservador nos costumes, tio Alexandre, o mais próximo e mais querido, que fez as vezes do pai, depois da morte do avô António Carlos. O tio, numa variante de "sermão laico", lembrou ao noivo as suas obrigações e o estatuto a que a Mariazinha estava habituada - ou seja, a ser servida, nada de trabalhos de casa.. Laico e anti-clerical não valorizava particularmente a faceta religiosa do candidato a sobrinho. realista, sabia que aquela era, de todas as sobrinhas, a que menos cultivava as prendas domésticas. Na verdade, numa cozinha era um desastre, sabia menos do que ele.
Para a lua de mel escolheram a região centro. O noivo ainda não tinha comprado o primeiro de uma série de velhos carros cinzentos, em que, quando eu era criança, circulávamos no triângulo Gondomar-Porto-Avintes, em curtos passeios à Foz e a Espinho, e em excursões de domingo por vales e serras do Minho e Douro.
Viajaram, pois, de comboio, no famoso "vouguinha", de Espinho a Viseu, fazendo paragens para pernoitar, aqui e ali, até ao fim de linha. Era outono, quase inverno, o que pouco importava. Ainda hoje Viseu é uma das cidades preferidas da minha mãe.
Em Gondomar, passaram a viver, por insistência da avó Maria. Com ela já só moravam, no enorme casarão, os filhos solteiros, Zé e Lena e ela estava habituada a  mais movimento. Era avessa à solidão - quanto mais gente à sua volta, melhor. A relação sogra-genro foi sempre cordial, talvez não muito efusiva, porém, certamente mais cordial do que a da grande matriarca com os outros genros  O pai ganhou uma nova família, mais extensa e festiva do que a sua. Gostava de todos, todos gostavam dele. E a mãe podia dizer o mesmo, no seu convívio com os parentes de Avintes, à exceção - não pequena -  dos sogros, de quem manteve distância, de princípio a fim. Não sei e ninguém sabe porquê. Razões muito subjetivas. Provavelmente simples e insolúvel questão de ciúmes. Ciúmes anacrónicos da primeira mulher do marido, que eles recordavam mais como filha do que nora -  mutação que nunca houve hipótese de acontecer com a segunda....
Na Villa Maria ficaram por mais de oito anos, aí nasceram as duas filhas. Maria Manuela em 1942, Maria Madalena no ano seguinte. Aí deram os primeiros passos. Durante esse período, casou a tia Lena com o tio David (de Almeida Ribeiro) e o tio Zé, um dos irmãos brasileiros, voltou às origens, ao Rio de Janeiro. Saídas compensadas pelo regresso à Villa Maria da filha mais velha, a tia Lina, com o marido e os dois filhos. Dessa vez, com obras que tornaram independentes os dois andares, a maior das quais foi o aproveitamento de parte da casa de banho para uma cozinha - como era um compartimento enorme, com nada mais nada menos que sete janelas, deu facilmente para a divisão) Os tios ficaram em cima, nós no 1º andar, com a avó. Os primos era, doze e dez anos mais velhos do que eu. Ganhei dois irmãos e com eles fiz o tirocínio de menina-rapaz. A Lecas também, mas menos, porque não era tão dada a correrias e atividades desportivas.
Com os pais andávamos constantemente num vaivém de curtas viagens, entre São Cosme e Avintes, onde passávamos muitos fins de semana. No verão, o destino era Espinho, por um ou dois meses - às vezes, mais. 
Nos primeiros anos, o pai manteve emprego na Câmara de Gaia, depois, foi o Porto.o seu local de trabalho. Deixou a Câmara para se lançar, a convite do avó Manuel num negócio de venda de tecidos, na Praça Carlos Alberto. O avô era o sócio capitalista, um tal Oliveira o sócio gerente e o pai, algo de intermédio. A aventura terminou num desastre. O sócio de indústria era um ladrão, fez o desfalque e fugiu para África e nunca mais foi visto. O avô pagou os prejuízos e retiro-.se. definitivamente desses domínios do empreendedorismo comercial e o filho, fez o mesmo. Confiaram demais em quem não merecia e perderam a sua auto-confiança no mundo capitalista. O Grémio dos Ourives foi a entidade patronal do meu pai durante décadas, até à sua reforma, nessa altura, depois de dois tardios bacharelatos, seguidos de uma licenciatura no ISCTE, já no topo da carreira, como Secretário-Geral.

Desde fins da década de sessenta, o Porto foi, também o nosso lugar de residência, num andar pequeno e simpático, na Rua Latino Coelho, perto do Colégio da Paz e do Marquês de Pombal. Solução muito criticada pelos avós dos dois lados, que os queriam nas suas casas grandes. Mais ainda pela avó Maria que chamava a prédios altos  de apartamentos, por melhor que fosse a sua qualidade arquitetónica, "Ilhas na vertical" - ilhas no sentido portuense, de casario horizontal, térreo e modesto. A minha irmã Madalena (Lecas) e eu não fomos da mesma opinião. Adorávamos, positivamente, o Porto e o nosso confortável apartamento.
  Por fim, ainda antes dos anos de reforma, uma última mudança, consensual e liderada por ele, trouxe-nos para Espinho, na começo da década de 70, já sem a Lecas, que morreu em 1964,  aos 20 anos
A geografia da sua vida, incluí, ainda, incontáveis excursões pelo norte, até à Galiza, muitas viagens a Lisboa, onde colecionou os vários títulos académicos (alcançados como aluno voluntário) e poucas, mas memoráveis visitas a sul, a Olhão, onde morava a nossa amiga e antiga vizinha de Latino Coelho, a Maria do Carmo. O estrangeiro limitava-se, para além da Galiza, que é difícil considerar estrangeiro, à Espanha, da Estremadura e Castela ao País Basco e a França... Nunca ninguém conseguiu convencê-lo a entrar num avião. 

POETA NASCIDO NUMA TERRA ANTIGA
Homem de várias terras, dois casamentos, duas filhas, muitas amizades.  A sua história começou há 100 anos. Nasceu, em Avintes, a 6 de junho de 1918, uma quinta-feira. Eram. precisamente, 11.00 da manhã. Dia inesquecível para a família reunida na casa da Rua do Paço. Ali, a muito poucas centenas de metros, as águas do Douro corriam tranquilas, longe, muito longe das terras que a grande guerra, a meses do seu termo, ainda devastava. A mais terrível epidemia de gripe, a espanhola, era a ameaça muito concreta, o País chorava os mortos do massacre de La Lys e Sidónio Pais, que fora opositor da nossa desastrada intervenção militar na Europa e na África, enfrentava vagas de contestação, no que seria o seu último verão. Tempos de incerteza e de angústia. Católicos, conservadores, monárquicos, os pais, Olívia e Manuel, de quem era o primeiro filho, e os avós paternos, Quitéria Francisca e João Dias Moreira, e maternos, Joaquina e João Fernandes Capela, de quem era o primeiro neto, aceitavam Sidónio como "presidente - rei", ou como mal menor, mas, de momento, todos esqueciam os destinos de Portugal e do mundo. Sonhavam, simplesmente, o destino de um menino forte e perfeito. Nome já tinha. O de ambos os avós: João.

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 O menino já tardava. Os pais tinham casado, na Igreja de Avintes, dois anos antes, a 24 de setembro de 1916. Casamento simples, apenas com a presença de famíliares  e amigos íntimos. A mãe, Olívia, ia muito bonita no seu vestido branco, alta, magra, pálida, olhos grandes e cabelos  negros, sorriso doce, e apenas dezasseis anos, menos dez do que o loiro e melancólico Manuel, homem bem parecido e elegante. Seguia  os cânones da moda, era frequentador do Clube Recreativo Avintense, desportista, melómano, ator amador do Grupo Dramático Mérito. A noiva não girava nos mesmos círculos. Tímida e recatada, muito religiosa, quase se limitava a ir de casa para a igreja, com a mãe e a irmã mais velha, Clementina, que haveria de ser sempre bem mais "chique" e mais dada à vida social. 
Nas missas de domingo se cruzaram Olívia e Manuel. Um caso de amor "à primeira vista", que durou pela vida fora. Ele continuaria a frequentar as tertúlias, as salas de concertos e os cinemas, onde ela raramente o acompanhava. Saía para fazer o que verdadeiramente lhe agradava -  para a missa diária, para visitar a mãe e as amigas, quase todas senhoras mais velhas, e para os convívios de família. Dentro de sua casa, era uma anfitriã natural, sempre pronta a receber convidados, em grandes almoços e jantares, onde, geralmente, pontificavam senhores abades, mas todos eram bem-vindos. A culinária era o seu domínio de elleição, cozinhava por gosto. As criadas, moças rudes vindas do interior, nunca passavam do estatuto de ajudantes, para tarefas marginais, não lhes dava ensinamentos nem oportunidades.

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João aparece na sua fotografia mais antiga, possivelmente de fins de 1918, sereno e confiante perante as câmaras, entre os pais. Olha em frente, sem sorrir. Com a mesma expressão o vemos meses depois, sozinho, sentado, vestindo uma diáfana camisa de cambraia branca, o cabelo claro escondido numa touca de renda. Fotos de época, de fotógrafo profissional, que nos falam apenas de um casal burguês, orgulhoso do seu pequeno sucessor. 
Note-se, pormenor sem importância, mas revelador da faceta puritana da mãe, em matéria de modas e costumes, que o infante está vestido... Era comum, então, retratar os bebés nus, como os anjinhos do céu, mas ela não admitia tamanha exposição. Se pudesse, vestiria até o menino Jesus nos presépios e os anjinhos nas esculturas e nas telas das igrejas. Nunca perderia essa faceta, embora fosse, em tudo o mais, um paradigma de tolerância. Em qualquer caso, o traje escolhido para a foto, sumário e leve, é certamente mais etnográfico do que a mera nudez.
Do batizado, a 21 de junho desse ano, não há imagens. No livro de apontamentos de capa de capa de seda vermelha, o feliz pai, apenas regista a data e o nome dos padrinhos, João Dias Moreira e João Fernandes Capela, os dois avós, sem referência a madrinhas.


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Cinco ou seis anos passados, o rapazinho, que viria a ser um homem tão jovial, de sorriso fácil, continua de semblante fechado para a câmara, nas poses artificiais ensaiadas pelo esforçado retratista profissional. De perfil, com calção e "blazer", encostado a uma coluna, ou de frente, junto a um brinquedo de praia. Recordação do verão em Espinho. Foto Evaristo.

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Nesse ano, (1924, provavelmente) já não existiriam os seus três irmãos, Maria, nascida a 28 de janeiro,  em 1922, e os gémeos, Alberto e Manuel, tão auspiciosamente vindos ao mundo, na data de aniversário de seu pai, em 9 de outubro de 1923  - todos desaparecidos com poucos meses de vida, de doenças, então fatais, agora facilmente combatidas com antibióticos. Deixaram saudades, e o Joãozinho regressado à condição de filho único. Com o sucedâneo de seis primos-irmãos. Do lado paterno, da tia Maria Francisca Reis, o António e a Maria Angélica, dois e três anos mais novos, e da tia materna, Clementina, o Alberto (1922), a Alda (1923), o Manuel (1924) e a Maria Helena (1925).

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 Todos os seus "quase irmãos" moravam por perto, em Avintes. Davam-se bem, sem rixas nem rivalidades, num circulo que abrangia outros primos. o Francisco e o Corinto Marques e os primos desses primos,como a Maria Argentina, o Carlos e o Fernando Reis. Crianças saudáveis e alegres, suficientemente bem comportadas para não deixarem um rasto de histórias extravagantes para a posteridade.  Decerto a razão porque, desse tempo de infância, recordava mais  ambientes do que episódios. Falava de Avintes, como de um paraíso terreal. E Avintes podia, então, candidaatr-se ao título de uma das mais encantadoras terras percorridas pelo Douro, situada numa das largas curvas do seu curso mais tranquilo, já perto do Porto e da foz. Era a vista que se lhe oferecia contemplar da janela do quarto. Os pais moraram, nos primeiros tempos de casados, no Outeiro, colina verde, que descia suavemente para a ribeira, até uma das mais belas propriedades dos seus avós paternos, que chamavam a quinta da Pena. Ele encurtou muitas vezes essa distância, correndo, rua abaixo. A quinta era ponto de encontro com os primos Reis, nas visitas aos avós, que viviam em frente, numa casa rústica, com altos muros de pedra, ao longo da estrada, na subida até à casa da quinta do Paço. Um conjunto edificado em épocas diferentes, a mais antiga, talvez, dos inícios do século XVII, a mais moderna terminada em 1901, data gravada na pedra da entrada principal.

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Na quinta da Pena, a casa estava vazia.Tinha pertencido a um famoso advogado do Porto, que morreu sem herdeiros diretos, deixando-a a um coletivo de muitos sobrinhos, a quem a comprou o avô Moreira, interessado, sobretudo, nas terras de cultivo. A casa teria sido construída, inicialmente, para os feitores da Quinta do Paço, e, depois, sucessivamente remodelada. Era pequena  pequena e discretamente senhorial, com as paredes de pedra caiadas de branco, janelas verdes, linhas retas à face da rua do Paço, a entrada principal e a vivência voltadass para o pátio das traseiras, para o que restava dos jardins, em redor da carranca antiga, incrustada num conjunto de pedra, que ás crianças parecia um altar de capela. A enigmática carranca lançava um fio de água sobre um lago retângular talhado no granito. Um simples espelho de água,que  foi cenário de muitas aventuras infantis e de piqueniques da família inteira. Ali tinha, nos seus últimos anos, algumas vezes, celebrado missa campal, para família e vizinhos, o tio Padre Manuel Pinto da Silva. O eco dessas reminiscências dos mais velhos acrescentava à "capela" uma aura de misticismo e magia, propício à invenção de enredos e de personagens por rapazes cheios de Imaginação e energia (as meninas eram mais novas, e a diferença de idades parecia, então, considerável.
 O jardim, sombreado pelo arvoredo, perdera muito terreno para os campos de milho do novo proprietário, que desciam até às margens do Douro. Os milheirais quase entravam pela água adentro. Antes do abandono da agricultura tradicional e da invasão do cimento clandestino sobre essas terras baixas e fertilíssimas, a ribeira de Avintes não tinha rival, na singularidade desse encontro entre o rio e as searas, que nele deixavam, ao sabor da brisa, o seu reflexo ondulante. Searas altas, onde os meninos se escondiam, como numa floresta... Na zona de transição entre as searas e as matas, a casa desocupada era, livremente, usada por eles (esconderijo ideal, à vista de todos os que deviam vigia-los). Sentavam-se nos bancos de pedra que ladeavam as janelas, arrumavam os brinquedos nos fogões de sala dos quartos, vazios de qualquer outro mobiliário. A privacidade desse espaço só deles, contrastava com o movimento da casa dos avós, do outro lado da passagem estreita. Eles habitavam no andar de cima da parte nova, o pessoal contratado para os trabalhos dos campos - ao menos, os rapazes solteiros -  ficava na ala antiga, com a sua entrada separada pelas portas, que davam para o terreiro. Em baixo, lojas para máquinas e alfaias e a adega, o lagar grande. No terreiro, protegido por altos muros de pedra, erguera o avô João um edifício de quatro andares, a acompanhar os desníveis do terreno - em baixo, aidos para o gado, em cima, a eira, o espigueiro. O granito predominava nas paredes, nos muros, nas escadarias, e até no chão, onde a pedra irregular alternava com a terra batida. O exterior da casa fora rebocada numa cor beige, pouco contrastastando com a pedra. 
O pai sempre teve predileção pela quinta, com a moldura verde das suas árvores, a sua frente sem muros, aberta para o rio. Era o sítio dos seus sonhos e não sabia a razão porque os  pais a preteriram, procurando vivenda no Outeiro.Talvez não tenham querido ficar tão longe do centro urbano de Avintes. Era um longe relativo... A perceção da distância em pequenas urbes, tem menos a ver com a geografia do que com  a sensação de isolamento, que ali ainda hoje persiste, um século depois - salvo nos meses de verão, quando a baixada se transforma em praia fluvial, para multidões de turistas. O conceito de praia fazia ainda, pouco a pouco, o seu percurso, e não ali, mas à beira-mar, O rio era apenas caminho para o comércio  com o Porto, que já fora mais intenso, quando dezenas de embarcações, cruzavam as suas águas durante o dia inteiro. Avintes tinha até tido os seus prósperos estaleiros, mas em  breve, os automóveis e as camionetes  iriam aparecer e ganhar o seu espaço, deixando o rio quase deserto, por muitas décadas, até ser redescoberto, em fins  do século XX, por barcos de cruzeiro e de desporto.
Por isso, para o pai e os seus primos, a diversão fluvial limitava-se à travessia do Douro, de vez em quando. Viagem curta, mas nem por isso menos excitante. O barqueiro estava estacionado em Gramido, chamava-se de Avintes, gritando e gesticulando. E ele vinha logo, a remar, compassadamente. Nesse vaivém tranquilo, há uma exceção, envolta em tão nebulosa narrativa, que se pode duvidar da sua existência. Tem por protagonista o menino João aos três anos de idade. Alguém o terá deixado, por momentos, sozinho, dentro do grande barco, rodeado de água. Partida estúpida, de um miúdo mais velho? Só poderá ter acontecido, se aconteceu, numa breve ausência do barqueiro. O susto, diz a narrativa, foi tal que o menino voltou para casa, gaguejando. E, daí em diante, não mais se livrou da gaguez, que se acentuava em situações de nervosismo e quase desaparecia, quando descontraído. Ele próprio não se lembrava de nada, apenas de ouvir dizer, imprecisamente. Certo é que era o único gago da família. A hereditariedade não fazia parte desta história, que, aliás, não deixara outros traumas, a envolver barcos e águas fluviais ou marítimas. O pai um experiente mergulhador nas ondas batidas do mar de Espinho. 
Espinho era a sua segunda terra. A terra no verão, dos longos dias de sol e férias, com a atração do mar de vagas altas, dos cinemas e cafés, onde tinha a companhia de muitos colegas dos Carvalhos, Ficava sempre na rua 7, numa casa de praia que os avós Capela  compraram, nos começos do século, e que foi servindo para o veraneio das filhas, dos netos, e que eles ocupavam apenas durante umas semanas em fim de "saison". Espinho era uma estância de praia em ascensão, estava na moda, ficava perto. O primeiro pároco de Espinho tinha sido o Padre Manuel Pinto da Silva, tio-avô do neto João. Não sei se esse dado teve importância na escolha dos Capela e de muitos outros avintenses. Talvez porque, antes de ser família por afinidade, o Padre Pinto da Silva foi  encarregado da paróquia de Avintes. E, talvez, não só os Capela, mas outros paroquianos o tenham seguido. Muitos mais. Recordo-me que, nos anos 50, quando, seguindo os passos do pai, mergulhava nas ondas da praia azul, pela manhã, gozava as "matinés" nos cinemas, jogava dominó nos cafés, e engrenava, vestida a preceito. no vai-vém das multidões na "Avenida", já não havia vagas de turistas espanhóis. O turismo matricial do estrangeiro, há muito, dera lugar ao nacional e vizinho - dizia-se, com nostálgica ironia, que Espinho estava "cheio de espanhóis de Avintes",,,

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 Quanto ao Padre Pinto da Silva, nos anos em que esteve à frente da paróquia, na última década do século XIX, parece não ter tido a missão facilitada. Por razões políticas, provavelmente. Era monárquico, pouco dado a transigências, sempre pronto a partir para o ataque e a confrontar ideias e posições, numa vila nova, onde o sentimento republicano parecia já enraízado nas elites. Próximo do Bispo do Porto, o Cardeal D Américo Ferreira dos Santos, de quem foi secretário, mantinha distâncias com os poderes ascendentes. Passou os últimos anos retirado no lugar do Paço, junto ao meio-irmão. Podemos imagina-los a passear junto ao rio, dois gigantes, com quase dois metros, o padre de batina preta, o empresário não menos impressionante no seu comprido capote alentejano. Concordantes na condenação dos novos tempos políticos. O Padre ainda teria a energia para lançar, em 1915, um jornal de combate, "A Aurora". Morreu em 1917, sem conhecer o sobrinho neto.


ONZE ANOS FELIZES NUM COLÉGIO

Os 6 anos de meu pai  foram de grandes mudanças, que "o levaram de casa de seus Pais" para um internato. Ao contrário do que poderia esperar-se, sem lágrimas nem lamentos. O Colégio dos Carvalhos. Aí começou, igualmente, a sua involuntária mas  definitiva rotura com o paraíso rural da ribeira do Douro. Estava  a dar passos irreversíveis no mais mais citadino dos futuros. Os pais iriam, entretanto, estabelecer-se da Rua 5 de outubro, na reta que levava à ponte sobre o Febros, o formosíssimo afluente do Douro, entretanto soterrado em cimento. Ao lugar do Paço voltava em férias, de vez em quando, para os almoços de família. Decisão paterna certamente. O avó Manuel queria para o filho o que tinha idealizado para si, um título académico, uma carreira profissional. Um curso de Direito, de preferência, uma carreira na magistratura ou no notariado. Notário era o seu melhor amigo de mocidade, num percurso que ele acompanhou, com a nostalgia das suas próprias oportunidades perdidas. O pai contrariou esses projetos. Não tinha outro continuador para a sua obra de lavrador moderno e bem sucedido. Diferentes mentalidades, sonhos opostos. Quando chegou a hora de herdar as terras, meu avô entregou-as a caseiros, que nelas fizeram fortuna. Da sua parte, resposta tardia, mas definitiva a uma imposição com a qual nunca  se conformou. Valorizava, acima de tudo a cultura, não a agricultura... Ofereceu ao filho a melhor formação académica que um colégio privado podia assegurar, e, com certeza, lhe disse a frase que lhe ouvi  tantas vezes: "a melhor herança que te posso deixar é um curso na universidade".
 A mãe, que, apesar da aparência amável, não era pessoa fácil de contrariar, deu o seu acordo. O Colégio dos Carvalhos foi uma opção natural. Era próximo, dirigido por padres e tinha uma reputação de excelência. E, sobretudo, terá pesado a aceitação do filho, que, pelo que via, estava talhado para a vida em comunidade, fazia amigos com facilidade. Era alegre e popular   
Nas fotografias desta época já tem parecenças com a pessoa que foi, na idade adulta. Sorri, no meio dos colegas, todos irradiando boa disposição  Foi um bom desportista (futebol, atletismo) e um aluno despreocupado, que cumpria os mínimos em ciências e se dedicava entusiasticamente às letras, com uma inclinação para os autores latinos. Lia Virgílio e Ovídio no original, "por gosto" .na sua própria expressão. O que infundiria respeito às filhas - à Madalena, que nunca estudou latim e a mim, que fiz a disciplina, penosamente, nos dois últimos anos do liceu, sem ter lido uma só frase, no original, por puro gosto.




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Do ciclo do colégio recordava um sem fim de episódios engraçados, coisas de rapazes, partidas que pregavam uns aos outros, como surripiar queijos, alheiras, bolas de carne, doces, que alguns guardavam nos cacifos). E passeios, excursões, bailes locais, em que conseguiam intrometer-se, não sei se quebrando as regras da instituição, ou não. Numa dessas festas, à porta de uma popular associação, o cartaz dizia: "Pede-se às excelentíssimas damas para virem calçadas". Esta é impossível de esquecer, ao contrário de muitas outras, Se me fosse então possível imaginar que, largas décadas volvidas, quereria escrever sobre o pai como personagem central desse enredo, mais atenção teria prestado a pormenores. É também um pouco vaga a memória sobre outras situações, que terão sido frequentes, em cenário variados, feiras, lojas,ou  cafés dos quais o grupo de amigos não fosse cliente habitual, A diversão consistia em o pai fazer de estrangeiro, papel em que, com as suas melenas aloiradas, os "blazers" de "tweed", e um inglês desembaraçado, era muito credível. Num tempo em que os turistas de fora eram raridade, e a nossa gente os idolatrava, aquele número teatral causava sensação. Mas, uma vez, e logo numa feira concorrida, o pai tropeçou, pelos ares ecoou o seu brado em calão português, e pouco faltou para que todos, o falso inglês e os falsos tradutores, fossem sovados.
O pai não era dado a escrever diários, nem a guardar cartas, notas ou mesmo poemas, que com tanta facilidade, compunha desde criança. Do colégio, resta um, quadras de sabor popular, na senda da famosa avó Quitéria Francisca, a repentista, que ganhou fama a cantar ao desafio nos serões de aldeia e nas romarias.
É, afinal, uma espécie mista de auto-retrato/ caricatura:

Sou cá de Avintes... é terra 
de boa gente, afinal
Nasci em mil... já lá vão
dezoitos anos e tal!

Tenho altura regular 
- Mais esperto que um onagro
nariz grande e recurvo
carão vermelho e não magro

Para comer valho por sete
para beber por trinta e um
para escrever uns sete ou oito
como eu não valem um...

Mas, afinal, meus amigos,
sou filho de boa gente
Tenho alma e vou tentar
dizer-vos o que ela sente

Se alguma coisa quiserdes
De mim, meus caros ouvintes, 
deixa aqui escrito o seu nome
o célebre
              João de Avintes


Encontrei, também, no singular, um breve apontamento, escrito no verso de uma fotografia de grupo: "Em horas de alegria, junto a um monumento religioso onde figura o Crucificado". O humor discreto não surpreende quem o conheceu, exceto, talvez, juvenil irreverência - logo ele, sempre católico praticante e homem de fé ortodoxa e  inabalável.... Verdes anos, 14 ou 15.
Houve, contudo, um hiato nos onze anos de colégio, uma época escolar, justamente no sétimo ano do liceu, então, o último. Influenciado, certamente, pelos primos, insistiu em se mudar para o Liceu Rodrigues de Freitas. O pai terá pensado que, assim, melhor o rapaz faria a transição para a universidade. Novas rotinas!Tomava, de manhã, a camionete para o Porto à porta de casa, onde havia uma conveniente paragem, e seguia viagem num grupo de colegas. Foi um belo tempo de liberdade, de deambulações pela cidade grande, de conversas à mesa dos cafés. Sabemos que, muitas vezes, a troco de um café, escrevia um soneto para os amigos, surpreenderem as namoradas por uma veia poética insuspeitada. Também redigia, em prosa, cartas bonitas, ao correr da pena. Mas, por fim, chumbou! Para tudo há uma primeira vez. Queixava-se da sanha persecutória do professor de alemão. Confessava que partilhavam o interesse numa jovem portuense, que se revelou fonte de conflitos de todo alheio ao curriculum liceal. Paixões juvenis, devaneios sentimentais, só mencionava os dos outros, com exceção desse caso que era justificação pouco comum de "insucesso escolar".  Não sei se nos convenceu, inteiramente, à minha irmã e a mim,  conseguiu, sim, deixar-nos a suspeita de que não lhe faltavam namoradas, num vasto plural. Aos 17, 18 anos era um rapaz bem-humorado, desembaraçado, comunicativo, apesar de ligeiramente gago, elegante, um desportista de várias modalidade, "sprinter" nas corridas, extremo no futebol, seu desporto favorito, como praticante ou espetador. E, se isso podia constituir para algumas das meninas do Porto uma mais valia, com fama de rico. 
Face ao desastre académico, não hesitou em fazer "mea culpa", pedindo, avisadamente, aos pais para voltar ao colégio. Na irresistível boémia portuense, reconhecis que não lhe era fácil corrigir a trajetória, como seria, e foi, na branda e protetora clausura dos Carvalhos. Do Liceu Rodrigues de Freitas, nesse ano de 1934/35, ficou-lhe, como uma das melhores recordações, Leonardo Coimbra, o pedagogo, o melhor professores professor que teve na sua vida , e a cujo nível, só colocava Vasco Pulido Valente, que lhe daria aulas em Lisboa, trinta anos depois, no regresso tardio aos bancos da Faculdade. Improvável dueto de vultos que fascinavam meu pai. tendo, ao menos, isso em comum. 
Creio que foram desse tempo do Liceu outras divertidas aventuras partilhadas com o primo António. O tio António Reis era funcionário superior das Finanças e vinha sempre de carro para a cidade. O automóvel ficava o dia inteiro estacionado por perto, na rua e quem, secretamente, o utilizava era Reis filho, exímio em abrir portas e acionar motores, sem chaves. E, evidentemente, em conduzir sem carta de condução. Convidava o primo, e alguns amigos, para passeios até à Foz ou outro destino aprazível. Por fim, retornava o veículo ao lugar de estacionamento. Mesmo que não fosse rigorosamente o mesmo lugar, o pai, muito distraído, (caraterística que o filho herdou), não notava desfasamentos. Reparava, sim, no consumo excessivo de gasolina e trocou de carro por causa desse defeito. Não sei se também trocou o seguinte, ou se os rapazes passaram a dar passeatas mais curtas. Uma vez, apareceu um polícia, quando o António estava se preparava para abrir o carro... Nada que o embaraçasse. Chamou a autoridade e pediu ajuda, dizendo que tinha perdido a chave. O polícia, amavelmente, ajudou. O António tinha, de facto, ar de dono do carro. Outra história, em mais do que um sentido, bombástica, deste primo tão inteligente e empreendedor, na altura aluno do Colégio João de Deus, contou com a colaboração de um colega chamado José  Augusto Aguiar, que quatro ou cinco anos depois, seria cunhado do primo João. Ambos fizeram explodir parte do laboratório, numa experiência em que alguma coisa falhou. Os pais pagaram o prejuízo, e parece que não houve outra espécie de sanções, apesar dos antecedentes do José Augusto que já fora expulso de alguns de colégios da cidade. Do historial disciplinar de João, não consta nada de semelhante...

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De Avintes, as narrativas mais divertidos começam com a chegada dos novos "vizinhos do lado", donos da quinta que confinava com os terrenos da casa dos pais: o Coronel Novais e Silva, a mulher Haydée Genelieu (descendente de um dos engenheiros que acompanharam Eifel na construção da ponte sobre o Douro) e os filhos, Maria Beatriz e António Júlio. Uma família encantadora, da alta burguesia portuense, que trocou a cidade por aquela aldeia milenária e tranquila, numa colina com esplendorosa vista sobre casas rurais, campos de milho e uma larga curva do Douro ao longe. A mesma vista que se desfrutava das janelas do 1º andar da casa do Pai (ou dos seus Pais) na Rua 5 de outubro, a primeira que se encontrava à vinda do Porto ou de Oliveira do Douro, depois de atravessar o Febros, afluente do Douro, no início de uma subida íngreme.  As propriedades eram separadas por uns metros de declive, cada vez mais acentuado, à medida que se descia vários lances de escadas fe pefra,  para o interior da quinta. Entre as casas, a divisória era apenas um muro alto, onde colocaram, de ambos os lados, escadas de madeira para um trânsito fácil,no convívio quotidiano. Os três adolescentes, a Maria Beatriz um pouco mais velha e o António Júlio um pouco mais novo do que o João eram tratados como irmãos pelas duas famílias. O Coronel. naturalmente, mais severo com eles do que com a menina, impunha-lhes regras de disciplina, a que meu pai não estava habituado. Foi esse o contacto mais estreito que manteve com o mundo militar. Apesar da estima pelo Coronel, que sabia ser recíproca, o respeito era mais forte, e sempre se sentia intimidado na sua presença, gaguejava mais do que o costume, sinal de atrapalhação geral e a falta de auto-confiança levava a que as coisas lhe corresses menos bem, muitas vezes.
 A relação de grande amizade entre as famílias havia de manter-se, naturalmente, depois dos Novais e Silva retornaram ao Porto. A quinta foi comprada por um casal minhoto, sem filhos, que manteria as escadas de ligação por sobre o muro e uma relação de vizinhança muito amistosa. Eram mais velhos dos que os meus avós, e, quando se viram demasiado frágeis para sozinhos continuarem a governar a quinta, tentaram, em vão, que a avó Olívia deles cuidasse até ao fim, em compensação lhe doando a quinta e mais património. A avó era uma boa cristã, a tarefa não a assustava e criados não faltavam. Foi porque achava que estariam melhor com os sobrinhos e que não era justo deserdá-los. Quod erat demonstrandum... mas a avó era tão prestável  quanto inflexível nos seus julgamentos morais. Já só conheci a casa vazia, por muitos anos, sempre ao cuidado da minha avó e ao seu inteiro dispôr. Podíamos entrar apenas quando se abriam as janelas e uma das criadas (expressão, ao tempo, ainda socialmente correta) ia fazer limpezas de manutenção. E usávamos a parte social, os salões, muito maiores e elegantes do que os dos avós para festas excecionais. Que me lembre, apenas o banquete da comunhão solene da minha irmã Madalena e a minha.
Ao meu olhar atento de feminista precoce, o que mais me surpreendia nas reminiscências que o pai, aos serões, nos confiava, era o facto de referir rapazes e raparigas do seu círculo no mesmo plano, um plano de igualdade. Um bom exemplo: o indisfarçável agrado com que conviveu, no colégio dos Carvalhos,  com colegas no feminino, não sei porque razão, nesse ano (o último, o antigo 7º ano), admitidas, a título excecional. Poucas, é claro, uma delas, se não me engano, Virgínia de Moura. Com a mesma simpatia, recordava episódios passados com as primas, com a Maria Beatriz, Todavia, outra categoria feminina, as namoradas, sempre foram singularmente omitidas e eu nunca perguntei. Com a  mãe por perto, podia dar aso a polémica, na sua aus~encia, pareceria deslealdade filial, não obstante a mãe alardear, sem complexos, a lista longa dos seus pretéritos  pretendentes.
Curiosamente, nas relações de género, nos anos 20 e 30 do século XX, a mesma atitude parece ter tido o primo António, que reagiu, até onde pode, às limitações que eram impostas à irmã, caso da proibição de conduzir carro e tirar carta. Ensinou-lhe a guiar, às escondidas, deixava-a levar o carro, pelas estradas cheias de curvas perigosas, nas subidas e descidas da estrada de Avintes para Oliveira do Douro. Em compensação, ela deixava-o tocar o "seu" piano. Para o conservadorismo dos tios Reis, o volante do automóvel era para mãos masculinas, tal como o piano para as femininas. Na verdade, o pianista mais talentoso era mesmo o António, que sem nunca ter tido professor, tocava, de ouvido, excelentemente, um vasto repertório de Chopin a Mozart... O pai também quis um piano. O avô, reconhecido melómano, que também tocava de ouvido vários instrumentos, ofereceu-lhe um pequeno violino no lugar de um grande piano, como a Jacob, ao quem "em vez de Raquel lhe davam Lia", no poema camoneano. Ao contrário de Jacob depressa se conformou. Nunca se converteu em exímio executante, mas sentiu a falta do violino depois de o ter, imprudentemente, emprestado ao amigo de um amigo, que lhe deu sumiço...
Ao som do violino, ou do piano, na casa dos tios Reis, ou no coro familiar, a cantar à capela, os nossos serões em Avintes eram muitas vezes animados, pela música. Todos, exceto eu, cantavam bem, tanto em Avintes como em Gondomar, à volta do piano alemão da avó Maria.
Outras vezes, eram essas peripécias de juventude que nos entusiasmavam, por mais que fossem já conhecidas. Verdadeiramente triste só a tragédia dos saguís do António, sobre a qual davam, os dois primos, uma infinidade de detalhes, protestando a sua completa inocência no desenlace final, aliás, credível porque ambos era amigos de todos e quaisquer animais. Resumindo: os pequenos macacos engraçados, trazidos dos trópicos e oferecidos ao António, por um tio, que era médico de bordo de navios, em longas viagens intercontinentais, estranhavam os invernos europeus. O tio, e os macaquinhos, as suas momices e brincadeiras eram descritos com muita graça -  o seu desconforto no confinado horizonte de um casarão de Avintes, cinzento e frio. Solução, com a marca mais do António do que do João, certamente: sessões de alguns minutos numa fornalha, bem temperada para os aquecer, mas não demais. Os saguís davam espetáculo, coitados, saltitando lá dentro, até serem libertados para o exterior, à temperatura ambiente. Para surpresa dos rapazes, não resultou. Adoeceram subitamente e morreram, dias depois. O sobrinho Mário, a quem, numa tarde de conversa, em Gondomar, deu todos esses e mais detalhes, fez o diagnóstico médico, sem hesitações: vítimas de pneumonia, provocada pela alternância de calor sufocante e frio  de enregelar
Estes primos não eram fisicamente parecidos - António mais longuilíneo, alto e magro, umas lindíssimas mãos de pianista, que serviram de modelo a um escultor, de que ouvi falar, mas cujo nome esqueci. Um Gary Grant mais aristocrático do que o de Holliwwod (essa pose, nele tão natural, explica, por exemplo, a boa cooperação do polícia que o ajudou na benigna "tomada de empréstimo" do automóvel do pai). O João, mais entroncado, mais atlético, com um ar menos ousado, mais "terra a terra". Quem era o mais alto? De pé, sem dúvida, o António, com o seu 1, 80, mas sentado o João, que andava por 1,75. Discutir essa curiosa questão, era coisa que os divertia na juventude e de que ainda se riam, anos depois, já eu tinha idade para me lembrar da conversa e para constatar a veracidade do facto.  Muito semelhantes eram numa caraterística, que talvez seja hereditária, pois é partilhada na geração seguinte - a distração. Guarda-chuvas, luvas, chapéus, canetas, pastas, tudo o que não estivesse vestido ou calçado, sem ser de tirar e por, ficava esquecido em comboios ou mesas de café,  precisando de ser constantemente renovado. O pai raras vezes usou, fora de casa, um isqueiro "Ronson" de ouro, uma caneta "Monblanc", ou mesmo um guarda-chuva de estimação... O exemplo pior está atribuída ao António,  por uma conversa telefónica com o Coronel Novais e Silva. O pai, que, como disse, sempre se enervava na presença do Coronel, nunca foi além de "gaffes" menores, do género de apertar a mão à criada, que acabava de lhe abrir a porta da casa, ( gesto que hoje poderia passar sem censura, mas não naquele tempo