quinta-feira, 21 de novembro de 2019

FOTOS PASSAPORTECARTAS HISTÓRIAS DA AVÓ MARIA

1910 será o seu ano mágico, a nível pessoal, que não político. Os dois fiéis monárquicos casaram ainda no tempo do Senhor Rei Dom Manuel II, mas a lua de mel, em solo português, terminaria em pleno período revolucionário...




NO CONVÉS


Os Avós Maria e António Aguiar no convés de um vapor, na hora de partir - não se sabe extamente a data, Seria a primeira viagem, em outubro de 1910? pode ser qualquer outra, mas não estão ainda com os filhos, que, a partir de 1912, os acompanhavam nas viagens (o que não exclui o facto de esta ser de qualquer dos anos seguintes, pois se sabe que eram sempre acompanhados pela "nanny" das crianças...
A Avó Maria está ao centro entre o Avò Aguiar e uma fila de senhores de chapéu. Só se vê outra senhora, obviamente mais velha e mais à direita, na foto

PASSAPORTE

O passaporte dos Avós com os seus filhos (cinco), nesse anos de 1919.
Augusto, o mais pequenino não chegaria a fazer a viagem, faleceu no início de 1920, vitimado por uma pneumonia. Mas na viagem transoceânica vinha já a  Maria Antónia, que nasceria pouco depois, em São Cosme

CARTAS 1915

Sobre a sofrida separação dos dias em que permaneciam cada um de um no seu lado do mar Atlântico, é bem elucidativa uma carta de 1915, que ele escreve do Brasil







Fotografia do casamento dos Avós MARIA e ANTÓNIO AGUIAR
10 de setembro de 1910


Onde e quando se iniciou o romance?
 Por uma pequena nota na coluna social de um periódico gondomarense apercebemo-nos da sua presença no jantar de formatura em Direito do futuro cunhado José Barboza Ramos. A notícia comprova que nesse ano (1908?) já era figura grada na vila, pois é um dos poucos nomes em destaque, na festa que reuniu a família e numerosos amigos do homenageado. Aí se menciona ainda que ele e José tinham sido colegas de estudos. Este dado tanto nos permite aventar um anterior convivido com a pequena Maria, dez anos mais nova, (contas feitas, menina de 6 anos quando ele emigrou...), como, pelo contrário, imaginar que a tivesse encontrado nesse jantar convivial, onde decerto brilhou pelo seu invariável bom humor e cordialidade, assim chamando a atenção da formosa irmã do novel doutor, E terá sido, ele próprio, atraído pela sua graça e desenvoltura de rapariga moderna e chique. ,
Suposições, apenas. Maria Aguiar teria respondido, mas a pergunta não lhe foi feita. Gostava de falar do passado, conversas longas de que se perdeu a riqueza de infinitos pormenores, deixando, em seu lugar, impressões vagas de ambientes, situações, pessoas...
Outra hipótese plausível de um primeiro encontro entre ambos, a que muitos se seguiriam, é ter acontecido em casa de parentes, os Lopes, os Mais, os Lobão, convivas habituais dos Ferreira Ramos, primos afastados, mas que aparecem em todas as fotografias de festas e piqueniques no Monte Crasto. Ora os Maia eram, também primos da dos Pereira de Aguiar, pelo ramo Pereira, indo buscar ascendência comum dos Pereira de França e da avoenga Ana Pereira. Para além de muitas outras, já no puro domínio da imaginação, mas que podem bem ter ocorrido: no cenário de uma récita no teatro, das festas da Senhora do Rosário, de uma simples missa na Igreja, mas sempre na presença de alguém que pudesse fazer as apresentações, pois com estranhos as meninas não falavam.
Do período inicial de namoro, uma pequena confidência indicia que ele era, então, o mais apaixonado. Na primeira despedida, depois de ficarem noivos, ficou e vê-la afastar-se, desolado pela separação de tantos meses em perspetiva, e ela foi em frente, rindo ao lado de Rozaura. Por um gesto de ombros, António Carlos julgou que ela chorava e apressou-se a  segui-la, para a consolar, prolongando ou reiniciando a despedida (gesto em que os portugueses de todos os tempos são useiros). Não a viu em lágrimas, que não havia para ver, e a surpreendida Maria terá  discretamente atenuado os sinais de boa disposição. Contava o episódio com aquele riso brando e ligeiramente irónico dos Barboza, rindo de si própria, menina e moça...Não tinha, compreensivelmente, aos 20 anos, muita pressa de subir ao altar, sabendo que teria de separar-se da família inteira, para viver do outro lado do mar, ainda que  junto a um homem dedicado e generoso, que lhe oferecia um futuro de amor, conforto e abastança na mais maravilhosa cidade do mundo ,e, coisa de vital importância,  as viagens que quisesse para reencontros de férias em Gondomar. Não emigrava sem certezas de voltar...E achava-o insinuante e divertido, para além de bonito, com as suas feições perfeitas e sorriso fácil, olhos muito claros, muito grandes, verdes, os mais fascinantes que jamais vira. Alguns filhos e netos herda-los-iam, contudo, segundo ela, sempre um pouco àquem dos dele.." Os olhos são o espelha da alma", dizia muitas vezes. Também a impressionava o seu caráter, que a levava, e bem, como viu ao longo de anos, a acreditar no que lhe prometia. E a sua cultura, ou "ilustração", palavra que usava preferencialmente, Todavia, da sua parte, o grande amor terá ido em crescendo, num convívio, em que até os momentos piores, como a morte de Augustinho, (o quinto filho, falecido de uma pneumonia aos oito meses) serviu sempre  para unir, Discordâncias pequenas também as houve, certamente, mas em conversas em que não se  alterava o tom de voz.





 Era um homem calmo e cordato, dentro e fora de casa. Com a mulher, o desagrado manifestava-se, geralmente, em silêncio, numa expressão mais fechada, ou indiretamente, em mensagens subtis, a avaliar por um dos casos mais curiosos, confidenciada pela (já então) Avó Maria à neta favorita, (que era eu...), no meio de sorrisos, entre trocistas e melancólicos, a revelar, passado tanto tempo, uma notória falta de arrependimento... Acabava de chegar ao Rio a moda dos penteados curtos, a acompanhar a altura dos vestidos, que ia encurtando. igualmente, e Maria, já senhora de quase trinta anos, sentiu-se tentada a cumprir a moda, cortou a sua longa e esplendorosa cabeleira castanha. substituída por um corte que mal cobria as orelhas, com uma franjinha a cobrir a testa alta. Passou, de seguida, por um atelier de fotografia, a tirar um retrato, muito bem vestida, de fato escuro, flor ao peito, raposas cruzadas no regaço, anéis de brilhantes nos dedos, sem mais jóias ostensivas, apenas um broche a fechar o vestido rente ao pescoço. Encomendou uma dúzia de exemplares e partiu, satisfeita, para mansão de Santa Teresa. O marido não se mostrou deslumbrado pela modernidade do visual, não avançou grandes comentários. Algum tempo depois, já Maria recolhera as fotos encomendadas, já as enviara por cartas para a família de Gondomar, foi preparar malas para mais uma viagem e encontrou, numa delas, um insólito pacote com doze, precisamente doze, fotografias dele, alardeando um ar bastante crispado. Era a resposta aos seus doze retratos, de penteado drasticamente cortado por tesoura de mestre. E a expressão que António exibia naquelas imagens, era, evidentemente, a que não tinha querido revelar face a face, no dia em que terá sofrido desgosto grande...Como as fotos não eram assim tão más, não se deitaram fora e ainda existem, até em álbuns de família. 
No Rio, correu célere uma década feliz, depois do casamento, celebrado na Igreja de São Cosme, em 10 de setembro de 1910.. O casamento fora festa íntima, ao que informa uma pequena notícia da imprensa local, que volta a evidenciar a proximidade mantida por António com a gente e a terra, (como se nem residisse num longínquo país das Américas, a sua condição de expatriado não é mencionada...), assim como o estatuto da família da noiva, medido pelos cargos dos  parentes masculinos
 A notícia, de 12 de setembro, tem por t título "Consórcio" : "Realizou-se no sábado passado na egreja paroquial d' esta villa o enlace matrimonial do nosso presado amigo e conterraneo Sr António Aguiar com a Srª D Maria da Conceição Barbosa Ramos, gentil filha do estimado notário local Sr Joaquim Mendes Barbosa e irmã dos nossos amigos Srs António, Alberto e Américo, abbade de Gondalães e dos Srs Alexandre Mendes Barbosa, digno secretário da Administração, e Dr José Barbosa Ramos, novel advogado e diretor de "O Progresso de Gondomar".
Lançou a benção o irmão da noiva, rev abade de Gondalães, Américo Barbosa. A cerimónia revestiu caráter íntimo, assistindo pessoas de família dos dois simpáticos nubentes, .Aos cônjuges, dotados dos mais preclaros dotes de espírito e primorosa educação, desejamos um futuro ridentíssimo".
O recorte não permite identificar o periódico -  certo é que não se trata de "O Progresso", que referiria a noiva como irmã do diretor.."O Progresso"  , decerto, terá  noticiado, talvez mais destacadamente, mas não se achou vestígio dele
Porquê um festa íntima? E porque não há fotografias da cerimónia? Estaria uma das famílias em luto recente? l..
 O retrato oficial foi tirado no Porto, dias mais tarde, em estúdio, e até se conhecem vicissitudes do transporte dos trajes nupciais, ao cuidado de uma criada bastante descuidada... O fraque do noivo chegou ligeiramente amachucado e ele, exigentíssimo, um perfeccionista, ficou, coisa rara, zangado (ignora-se se a criada terá conseguido justificar-se, arrepiar caminho  e continuar ao serviço, duradouramente). Enfim, foi preciso alguém trazer um ferro de engomar e dar o toque necessário à perfeição. Logo depois...novo motivo de irritação. Maria Aguiar era alta, mais do que o marido e o artista fotógrafo sugeriu que ele subisse a um banquinho disfarçado nas dobras do vestido nupcial. Sugestão recebida pelo noivo, com indignação. Tanta, que nem ele, nem ela, conseguiriam recuperar o sorriso, como, a rir-se, ela confidenciaria, meio século mais tarde..
E, assim, a imagem não espelha a autêntica festa daquele sábado,10 de setembro, data em que, décadas decorridas, haveriam de nascer, o neto António José, no chamado "quarto grande" da Vila Maria e a bisneta Ana, no Algarve (prematuramente, durante  férias dos pais)
Em lua de mel, percorreram o país, desde o norte até Lisboa, onde os esperava o imprevisto de uma revolução. Alojados no Hotel Franqueforte, no Rossio, (há muito desaparecido do lugar onde também já não existe a pastelaria Suiça), estavam em pleno teatro de operações, nos históricos últimos dias da Monarquia e os primeiros da República... Ambos monárquicos declarados (uma das recordações de António Carlos, conservada para a posteridade, era o gozo com que repetia o "slogan de época "Talassa, passa, Buíça chiça!") sofreram, angustiados, a agitação das ruas e do país e partiriam incertos do futuro de uma revolução indesejada, temendo a sorte de todos os que ficavam da segurança de familiares, sem lhes poder valer. Que drama para os dois jovens, terem de partir, temendo pela sorte de todos os que ficavam, divididos dos dois lados da contenda, que de Lisboa chagaria ao Porto e a São Cosme. Os postais e as cartas sucediam-se , mas eram sempre notícias ultrapassadas, fraco sossego. De facto, ninguém correria mais perigos do que eles mesmos, ali, no Rossio, convertido em centro de toroteios, naqueles dias  a 5 e 6 de outubro.
 Uma bala atravessou a janela do quarto do Franqueforte, sem lhes causar dano, para além do susto (bala guardada como macabro troféu, que muitos dos netos ainda tiveram na mão...). O cozinheiro do hotel foi atingido e morreu.
Alguma agitação sacudiu também o paquete de luxo em que estavam em rota para o Rio de Janeiro. A jovem noiva estreou-se em travessias do oceano, com o espetáculo de ondas alterosas no percurso até à primeira paragem no porto do Funchal. Revelou-se uma excelente "marinheira", à semelhança do marido, Com a maioria dos passageiros remetidos ao recolhimento nas cabines por fortes enjouos,  Maria e António fora a assídua e agradável companhia do Comandante, com quem fizeram amizade. E, sem mais percalços desembarcaram no Rio e foram habitar a casa que António cuidadosamente preparara para receber a noiva, na Rua 7 de Setembro, não muito longe da Rua do Ouvidor, no 63, onde se situava a Joalharia Aguiar . Era a rua elegante da cidade do Rio, onde se situavamas melhores lojas, confeitarias, restaurantes, vida diurna, vida noturna...À tarde, Maria e Judith aí se encontravam com amigas, para fazerem compras ou para lancharem, à noite aí reuniam, muitas vezes, na companhia dos maridos.
António Carlos relacionava-se, com a mesma facilidade, com conterrâneos, com brasileiros, com italianos - seguramente com italianos, pois era o sócio perpétuo nº 3579 da "Crosse Rossa" ("avendo elargito a beneficio dell' Associazione la somma de Lire cento" , desde 4 de maio de 1917. É o que consta de uma certidão que Maria Antónia salvou de extravio e mandou emoldurar
No Rio de Janeiro viveriam durante uma década feliz, com muitas travessias do oceano, só interrompidas em alguns períodos da grande guerra, quando o risco de ataque inimigo se agravou, entre 1914/1918.
Há uma carta do Joaquim Mendes Barboza para a filha Maria de 15 de outubro de 1918, que alude ao fim desse período em que ficaram privados de visitas, ao dizer, em PS: "Lembro-te que deve estar afugentado o perigo dos submarinos dos scelerados alemães". Um óbvio convite  a que voltem depressa.
Sobre o marido, Maria traçava o retrato de um homem bom, muito sociável, bem disposto fora e dentro de sua casa, e que a adorava e se revia na sua numerosa família, 8 filhos em 16 anos de casamento... e mais teriam sido se não tivesse morrido, quando ela ia nos 36 anos e a última filha nos 2 meses. Quem sabe, não muito longe dos 15 do casal Aguiar Pereira, que lhe serviria de paradigma? ... Impensável, hoje, mas, então, as facilidades eram grandes. Não faltavam criadas para o serviço e as "babás" dos meninos, Pelo menos uma viajava com eles, na 1ª classe dos navios. E trabalho não lhe faltava. Os meninos eram terríveis, corriam pelo convés e conseguiam atirar à água tudo o que estivesse à mão, como as almofadas das cadeiras, talheres, guadanapos... Mais livres ficavam os pais para as distrações a bordo. Maria Aguiar fazia sucesso. António Carlos só não gostou de a ver dançar vezes demais com Chaby Pinheiro, ator, e o mais famoso dos passageiros nessa travessia...  Maria estranhou o acesso de ciúmes, sem cena de ciúmes, mas, para ela  evidente. Estranhou, sem ponta de sentimento de culpa sempre ausente do relato. Achou-o deslocado e divertido. Tirando esse "senão", tudo o mais era festa!.
 Os Aguiar ricos são assim -  não hesitam em gastar largamente o dinheiro bem ganho. Gostam de casas grandes (como a casa do Tio João, da Rua de Payssandú, a da Gandra, herdada dos pais e remodelada e remobilada pelo Tio Augusto, a Villa Maria dos Barbosa Aguiar, ou, na geração seguinte, as de alguns dos Aguiar Saraiva, no Porto, na Boavista, na Foz, ou na Lapa, em Lisboa). Investiam não só em negócios, mas também em receções, em viagens, em roupas (António Aguiar, mesmo quando viajava sozinho para Paris sabia comprar vestidos lindíssimos , última moda, para as meninas). Todos eram generosos com os empregados e solidários com os parentes menos afortunados, e, alguns, dados a causas e a beneficência, sempre gratos por favores e prontos a retribuir em dobro. António à cunhada Rozaura, agradecia a infinita paciência com que, tantas vezes, se encarregava de entreter e controlar os seus inquietantes filhos, com jóias, anéis, brincos, que ela haveria de deixar, em testamento, à Mariazinha.
Contudo, daquelas descrições da mãe e avó para a filhos e netos (sobretudo a netas), se construiu mais um estereótipo do que um homem real  - o emigrante de "torna viagem", com fortuna rápida e honesta, refinado e cosmopolita. Era sabido que, nas vindas a Portugal, aproveitava para andar pela Europa e, talvez, também, pelo médio Oriente, onde terá comprado a carpete persa do pavão azul, que se conservou no centro da sala de visitas, sob os passos de várias gerações de descendentes. Viagens, que contudo, pelo menos algumas, eram também de trabalho - assim indicia uma mensagem, enviado num postal de França, em que se desculpa de não escrever mais, por força dos "muitos afazeres" - quais não diz, mas deduz-se).
É, sobretudo, em pequenos pormenores que se vai vislumbrando uma pessoa especial, com gostos e hábitos adquiridos em outras latitudes, sob céu de outras estrelas. Começava o dia a nadar num tanque com dimensão de piscina, em água gelada. tomava duches frios numa casa de banho com sete janelas panorâmicas, e, depois, o pequeno almoço composto essencialmente de frutas variadas. Entre as suas excentricidades, uma das mais curiosas, era o prazer helénico de quebrar a loiça, nomeadamente nas romarias de Gondomar. Mania, que se tornou conhecida e muito popular entre feirantes. Logo que o avistavam, as vendedoras de cântaros e vasos, desatavam numa  gritaria: "Senhor Aguiar, venha aqui partir a minha louça!". E ele lá ia, varrer com vigorosas bengaladas, uma das tendas, pagando principescamente os estragos. Restam ainda muitas das bengalas de castão de prata ou ouro, com que executava o ato.
A sua relação carinhosa e invariavelmente amável com a mulher adivinha-se num simples episódio, que ela descrevia apenas porque o achara raro e engraçado, sem tirar dele o significado que lhe damos. Com ela, como por esse caso se vê, não levantava a voz, mesmo quando ela, por exceção à regra, lhe deu um grande desgosto. O desgosto provocado por um inesperado corte da sua farta cabeleira, em favor de um muito moderno "look"de repas sobre a testa e altura de cabelo que mal cobria as orelhas. Sem pressentir o que ele iria sentir, muito contente consigo própria e a sua nova aparência, passou do salão de beleza para o estúdio de um fotógrafo onde tirou um retrato, encomendando 12 cópias que queria enviar para São Cosme. O marido olhou-a, com certeza estupefacto, e não disse uma palavra de censura, mas foi, depois, tirar, também ele, uma fotografia no mesmo estúdio, com um ar muito carrancudo! Mandou fazer 12 cópias e colocou-as dentro de uma mala de viagem, onde, mais cedo ou mais tarde, a mulher as iria encontrar. Encontrou e compreendeu a mensagem, sem, por seu lado a comentar. Terá sido a coisa mais próxima de uma crise conjugal na sua vida de 16 anos em comum....)

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  (O marido não se mostrou deslumbrado pela modernidade do visual, não fez grandes comentários. Algum tempo depois, já Maria recolhera as fotos encomendadas, já as enviara por cartas para a família de Gondomar, quando foi preparar malas para mais uma viagem e encontrou, na mala do marido, um pacote com doze, precisamente doze, fotografias dele, alardeando um ar bastante crispado. Era a resposta aos seus doze retratos, de cabeleira drasticamente reduzida por tesoura de mestre. E a expressão que António exibia naquelas imagens, era, evidentemente, a que não tinha querido revelar face a face, no dia em que terá sofrido desgosto grande...Como as fotos não eram assim tão más, não as deitou fora e ainda existem, até em álbuns de família).

No Brasil, Maria Aguiar viveu, como reconhecia no nostálgico balanço final dos 80 ou 90 anos, a sua década dourada, Logo depois do casamento, celebrado na Igreja de São Cosme, em 10 de setembro de 1910.. O casamento fora festa íntima, ao que informa uma pequena notícia da imprensa local, que volta a evidenciar a proximidade mantida por António com a gente e a terra, (como se nem residisse num longínquo país das Américas, a sua condição de expatriado não é mencionada...), assim como o estatuto da família da noiva, medido pelos cargos dos  parentes masculinos
 A notícia, de 12 de setembro, tem por  título "Consórcio" : "Realizou-se no sábado passado na egreja paroquial d' esta villa o enlace matrimonial do nosso presado amigo e conterraneo Sr António Aguiar com a Srª D Maria da Conceição Barbosa Ramos, gentil filha do estimado notário local Sr Joaquim Mendes Barbosa e irmã dos nossos amigos Srs António, Alberto e Américo, abbade de Gondalães e dos Srs Alexandre Mendes Barbosa, digno secretário da Administração, e Dr José Barbosa Ramos, novel advogado e diretor de "O Progresso de Gondomar".
Lançou a benção o irmão da noiva, rev abade de Gondalães, Américo Barbosa. A cerimónia revestiu caráter íntimo, assistindo pessoas de família dos dois simpáticos nubentes, .Aos cônjuges, dotados dos mais preclaros dotes de espírito e primorosa educação, desejamos um futuro ridentíssimo". O recorte não permite identificar o periódico -  certo é que não se trata de "O Progresso", que referiria a noiva como irmã do diretor.."O Progresso" obviamente também noticiou,talvez mais destacadamente, mas não se achou vestígio dele
Porquê um festa íntima? E porque não existem fotografias da cerimónia? Haveria luto ainda recente numa das famílias? É uma hipótese...
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versão mais antiga


ANTÓNIO CARLOS PEREIRA DE AGUIAR
Nasceu a 20 de fevereiro de 1880.  Foram  padrinhos, António Castro Nogueira e Maria Martins das Neves, um casal da Gandra.
O mais novo dos irmãos, desde o berço um menino muito bonito e esperto, foi sempre bom aluno. sempre cuidadoso  com os seus livros, cadernos, com a roupa,  e a  apresentação. Nos retratos coletivos, está, invariávelmente em pose, como se fosse candidato ao título de mais fotogénico e de mais bem vestido. Esse sei jeito não diminuiu pela vida fora. A Maria Antónia dizia: "O meu Pai era muito vaidoso com a sua aparência". Ela também, e proclamava-o com orgulho. Na sua opinião o contrário é que seria defeito...
Podemos imaginar que o benjamim de tão larga prole, terá tido "muitas  mães e pais", nos progenitores e em todos os irmãos muito mais velhos,  Na verdade, alguns dos seus sobrinhos seriam quase da mesma idade. Isso, porém, não parece tê-lo tornado mimado e caprichoso e talvez explique a sua queda para "pregar partidas" benignas aos amigos e o facto de não proferir, nunca, um palavrão, mesmo dos mais inofensivos - caraterística que, ao caricaturar o seu perfil em jeito de adivinha, décadas depois, um periódico da terra apontaria. Outra nota que ressaltariam: era baixinho, com pouco mais de 1.60 m, como se adivinhava viria a ser, aos 15, 16, anos, em vésperas de emigrar para o Brasil, sobretudo no grupo em que a comparação se faz com três das irmãs, bastante mais altas (por acaso, as três, embora também as houvesse de pequena estatura - Doroteia e Guiomar, por exemplo. Mimos e cuidados não lhe abrandaram a determinação, a vontade de estudar, de trabalhar, com rigor, duramente, se preciso fosse, para tirar o máximo proveito dos seus talentos. Como manda o Evangelho... O Brasil servia esses fins, e para os pais o deixaram ir. A insistência sua ou, sobretudo, influenciado pelo irmão João? 


João, então já lançado em altos voos, tinha apostado, anos antes, na cooperação de Alfredo, que não conseguiu moldar à sua imagem.Talvez no mais jovem dos Pereira de Aguiar visse todas as qualidades que àquele faltavam.
E, nesta segunda tentativa, não se enganou.
 Dos primeiros anos de António Carlos, longe de Gondomar, da sua Gandra tão querida, não há peripécias que tenham chegado aos ouvidos dos descendentes. Nada, absolutamente nada! Das pessoas felizes não há histórias. É de crer que sido feliz, recebido, com alegria, em casa do irmão, ainda solteiro nesse ano de 1896, e que se tenha sentido sempre muito animado com a perspetiva de vencer no "novo mundo". Era composto daquela matéria de que se fazem os grandes viajantes, como a sua trajetória futura, de princípio a fim, evidenciaria. Não há dúvida sobre a sua paixão pelo movimento, pelas travessias do oceano, pelas incursões na costa brasileira ou africana, escolhendo carreiras de vapor, que lhe permitiam ver terras novas, ou cruzando as fronteiras da Europa. Incansavelmente...
Trabalhou, de início, com toda a certeza, para João, próspero  proprietário de uma joalharia, Pela ligação que cultivou, muito para além do círculo familiar, com amigos de infância e com a vila, de onde viera, é a perfeita imagem daquele género de emigrante, que, como dizia Jaime Cortesão, "levava a Pátria consigo".
Cruzava, como vimos, com regularidade, o Atlântico, e passava férias em São Cosme. Certamente, não só férias, mas negócios também, de princípio os do irmão, depois, os seus, à medida que se autonomizava. O mesmo duplo propósito seria o motivo de visitas a outros países, como a Inglaterra e a França. De um dos postais que de lá enviou, em 1909, justifica dar tão sintéticas notícias pelos muitos "afazeres" que o ocupavam. Não se limitava, pois, a subir à Torre Eifel, e a passeios a Versalhes, ao Bois de Boulogne, de onde mandava postais.  Provavelmente, os "afazeres" tinham a ver com projetos seus e dos irmãos, João e Augusto, relacionados com a internacionalização de negócios, parcerias na exportação/importação de jóias do estrangeiro e de ouro e filigranas de Gondomar. (tudo suposições, mas a que outras ocupações profissionais se poderia dedicar um joalheiro? )









Na família, a ligação à arte e indústria de ourivesaria, da filigrana, que é o "ex-libris" de Gondomar, vinha de trás - vários antepassados eram dono de estabelecimentos, mas outros teriam sido simples artífices, como foi o caso do pai de sua avó Anna Pereira de França, que , por sua vez, casou em segundas núpcias com um ourives  muito rico, O marido de Rosa, a filha primogénita, Manuel Aguiar, era igualmente ourives e com os proventos da profissão (fabricante ou comerciante) comprou a sua casa da Gandra e criou os 15 filhos, Deles, pelo menos três foram, não industriais mas proprietários de elegantes joalharias e fizeram fortuna, num tempo propício aos negócios do ouro, que abundava no Brasil e tinha em São Cosme uma repercussão dourada...    .
 Sem dados concretos em que nos possamos basear, é de pôr a hipótese. muito plausível. de João, que casara em 1902, com uma jovem da alta burguesia do dinheiro, se ter  concentrado, crescentemente, em outros negócios,
 António Carlos, passou, se não passara já, a morar em sua própria casa. Tinha 22 anos e seis de experiência de trabalho comum com o irmão, que nele, e bem, depositava inteira confiança. Ter-lhe-á, então, oferecido sociedade, e, poucos anos depois, trespassado a sua parte na Joalharia Aguiar da Rua do Ouvidor?
Não há notícia de visitas de João a Gondomar. Ou não apreciava as longas viagens marítimas, ou preferia dar ao irmão a oportunidade de matar saudades da Gandra, fazendo-o intermediário dos seus negócios, que envolveriam, também Augusto, o dono da Joalharia Aguiar da Rua das Flores,.Sinais seguros da especial ligação desse trio de irmãos há-os, no convívio que se sabe ter sempre existido, e na correspondência trocada entre Augusto e os sobrinhos do Rio, ainda em 1930, e entre Judith e Maria até aos anos 50 ou 60)
É por recortes da imprensa de Gondomar, não por relatos orais, que tomámos conhecimento de que António Aguiar não faltava na época da caça - desporto que, pelo visto,, o entusiasmava mais em São Cosme do que no Rio,  porque ali tinha, evidentemente, os melhores companheiros para passeatas e convívios. Como alegre e sociável jovem que era, juntava trabalho e diversão, também em Portugal, relações familiares como de trabalho com Augusto, o joalheiro, no Porto (aparentemente, nenhum deles começou como artífice, eram todos empresários, nascidos  nesa meca da ourivesaria portuguesa, que era a sua terra...).

Terá começado tão rápida ascensão empresarial, provavelmente na joalharia de João, com quem aprendeu os segredos de a bem gerir. A diferença de idades era substancial, a relação foi, decerto, mais do que fraterna, quase paternal/filial. Não se sabe se terá sido sócio do irmão. Certo é que, com pouco mais de 20 anos, já tinha o seu próprio estabelecimento, e aos 28, na altura em que se terá enamorado da futura mulher, era um homem muito abastado. Milionário antes de atingir os 30, com que casou,


 Viagens, que  contudo, pelo menos algumas, eram também de trabalho - assim indicia uma mensagem, enviado num postal de França, em que se desculpa de não escrever mais, por força dos "muitos afazeres" - quais não diz, mas deduz-se).
É, sobretudo, em pequenos pormenores que se vai vislumbrando uma pessoa especial, com gostos e hábitos adquiridos em outras latitudes, sob céu de outras estrelas. Começava o dia a nadar num tanque com dimensão de piscina, em água gelada. tomava duches frios numa casa de banho com sete janelas panorâmicas, e, depois, o pequeno almoço composto essencialmente de frutas variadas. Entre as suas excentricidades, uma das mais curiosas, era o prazer helénico de quebrar a loiça, nomeadamente nas romarias de Gondomar. Mania, que se tornou conhecida e muito popular entre feirantes. Logo que o avistavam, as vendedoras de cântaros e vasos, desatavam numa  gritaria: "Senhor Aguiar, venha aqui partir a minha louça!". E ele lá ia, varrer com vigorosas bengaladas, uma das tendas, pagando principescamente os estragos. Restam ainda muitas das bengalas de castão de prata ou ouro, com que executava o ato.


NA VILLA MARIA

A data em que a família se mudou para a nova morada não é conhecida com precisão, aponta-se para 1923.
O regresso do Brasil da família acontecera no primeiro semestre de 1920. Maria Aguiar atravessava o Atlântico a meio de uma gravidez, situação que sempre encarava com naturalidade, e que sabia não mais se repetir. O Brasil era já apenas passado, com saudades de parentes e amigos e da beleza incomparável da tão amada cidade do Rio. O futuro era São Cosme, a família mais chegada, a casa dos seus sonhos para construir no centro da terra, pequena, tranquila e formosa, que, nos seus afetos, era a primeira  . Trazia os filhos Carolina, Manuel, António Maria e José. Muito presente estava ainda o desgosto da perda de Augustinho, o mais bonito de todos "os meninos de sua mãe". Com ela veio, certamente, o marido, que a reorganização dos negócios obrigaria, ainda, a várias deslocações e estadas no Rio, onde deixava um sobrinho com amplos poderes, à frente da Joalharia. 
A compra de todas as diversas parcelas da propriedade fora concluída, antes deste retorno, e as obras estavam já em curso. Ao mesmo tempo avançava o planeamento dos espaços exteriores, os jardins, os pomares e vinhas, que precedeu o tempo de instalação definitiva - a azáfama do transporte das malas e caixotes de  pertences, a colocação das mobílias modernas, recém encomendadas, com algumas, poucas,antiguidades à mistura. À finalização da decoração do interior faltavam pormenores, mas o fundamental fora feito para acolher os seis membros da família e os serviçais, as criadas de dentro, e o criado, que dormia fora, na chamada "casa do forno" (onde, de facto havia um discreto forno, à esquerda da porta de entrada, que era para utilizar, de vez em quando, sobretudo, para cozer pão caseiro, ou grandes assados, em dias especiais.) 
São poucas as imagens conservadas desses primeiros tempos, todas do exterior e tiradas por amador pouco hábil, (um dos meninos mais velhos, então nos seus 10 ou 12 anos?). Assim mesmo, são interessantes testemunhos  da paisagem envolvente dos edifícios, ainda despida das japoneiras, que haviam de ladear o portão de entrada, das árvores de porte imponente, o diospireiro, cujos ramos, anos depois, caíam sobre o muro e se abeiravam do mirante e do poço, ou a macieira que, no largo frente à fachada principal da casa, dava privacidade e sombreava a varanda estreita da sala de visitas. O dia a dia apenas começava, no espaço onde se iria desenrolar, por meio século, a história da família. o enraízamento das pessoas e da flora, a par e passo. Em 1925, o roseiral já crescia, como se vê num pequeno retrato do pai e das duas meninas, Mariazinha e Lolita, as quase "gémeas",  tirado no lado sul, onde ficava o pequeno "chalet", que servia de apoio a jardinagem  tão sofisticada. As rosas levavam o seu nome latino em fichas de chumbo redondas, eram todas especiais, as mais formosas destinadas a exibição em exposições, como se viu, uma diversão cara a muitos dos Aguiares. Nenhum jardineiro estava autorizado a tocar-lhes e os meninos muito menos. Eram tratadas pelo seu cultor, que apenas com a mulher partilhava esse privilégio.

Depois da sua partida, ela continuaria a cuidá-las sozinha, durante mais de meio século. Ver a  Mãe (ou a Avó Maria), de tesoura em punho, a podar as roseiras, protegida do sol por um impressionante chapéu de palha de abas largas, como  um  "sombrero" mexicano, tornou-se uma das imagens marcantes da Vila Maria. Espetadores de várias gerações, filhos, netos e bisnetos, puderam observar, receberam explicações, mas nunca foram verdadeiramente iniciados no seu manuseamento....
 Numa dessas primeiras fotografias,.Mariazinha, a que tinha os olhos de cores diferentes, está ao colo do Padrinho Tio Manuel Marques e Lolita, a moreninha, nos joelhos do Pai, Dois anos mais nova, a diferença de idade que cedo deixou de se notar. Aos 4, era quase do mesmo tamanho, e, já  ultrapassara, definitivamente, a altura da irmã,quando, no mesmo dia, fizeram a comunhão solene..







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 Curto e memorável foi o tempo do Pai na Vila Maria, As portas sempre abertas ao  movimento habitual de amigos e parentes, a alegres convívios nos salões e  nos jardins,  onde se espalhavam cadeirões  de verga da Ilha da Madeira  e  cadeiras de ferro e ripas em tons de verde escuro, a combinar com o das venezianas, contra o rosa forte das paredes.
Frondosa, já, a árvore das laranjas amargas, frutos enormes e vistosos, que, porém, esgotavam  a utilidade na beleza estética, pois eram tão azedas que ninguém as aproveitava, Dizia a Maria Antónia que o pai a plantara só para "pregar partidas" aos companheiros de tertúlia. oferecendo-lhes um cesto de magnífico aspeto só com essas laranjas intragáveis, ou com algumas, misturadas com as doces...  Mais um traço  do seu feitio divertido, que joga bem com a mania de partir loiça, sem causar dano a ninguém. Era useiro em graças ligeiras e suaves, invariavelmente cortez, tão contido na linguagem, que nem nos círculos masculinos de conversa  jamais lhe ouviram um palavrão (é uma notícia de jornal que nos dá conta disso, ao traçar-lhe, em tom humorístico, o perfil)..Em casa, foi sempre igual a si próprio. Irritava-se, naturalmente, com as constantes malfeitorias dos filhos, dos rapazes, a quem castigava pelos moldes da época, mas, com alguma benignidade, pois todos o adoravam. Quanto às meninas era prosélito da doutrina de que não se tocava nem com uma flor .cedia facilmente aos pedidos e caprichos da Lininha e deixava qualquer reparo a cargo da mulher, que só depois que se viu sozinha com eles se tornou severa educadora...
No que respeita às relações do casal, já muito velhinha, relataria, sempre com humor, algumas pequenas  discordâncias, que ele lhe dava a entender, subtilmente, sem expressar recriminações - como aconteceu daquela vez em que ela dançou no feérico salão de festas de um vapor, com o famoso Chaby Pinheiro, que a convidava sempre que a ocasião se oferecia...É de imaginar que nunca o marido pisou tantas vezes com ela a pista do baile...Curioso que nunca a tenhamos visto dançar... Não era por falta de agilidade, que mantinha em avançada idade 
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   (Maria Antonia: Éramos felizes sem saber)
  A Vila Maria era, na meia década de 20 um pequeno mundo, de fronteiras geometricamente traçadas entre propriedades dos vizinhos, onde  cresciam as flores, as árvores, as crianças,cumprindo  os sonhos de um casal  .
 Mariazinha, a sexta das crianças, era suficientemente pequena, quando a família se instalou na Vila Maria, para não se lembrar de ter habitado qualquer outro lugar. E do Pai não guardou muitas recordações - algumas,  de um dia em que ele colheu morangos numa bonita cesta, e a mandou leva-los para os  seus padrinhos, (os tios Marques), na companhia de uma criada, ou de outro em que colherem e comerem fruta no quintal, o pai, ela e a irmã Lolita. E de diálogos jocosos, em que ele chamava à Lolita, tão morena como ele, a sua "molequinha". Ao que ela respondia: "O Papá é o meu molequinho". A mais viva recordação é, porém, a da sua morte trágica, súbita, (enfarte do miocárdio, aos 46 anos...). Estranhou vê-lo, na sala de visitas, naquela caixa estreita, imóvel, de olhos fechados, e, quando o tocou na face, sentiu-o gelado, tentou acordá-lo, sem conseguir. Estava horrorizada. Quando vieram buscar o caixão para iniciar o cortejo fúnebre. o filho Manuel  deitou-se por cima da urna, para os impedir de levar o Pai. Foi preciso tratar dele primeiro.
Do funeral sabe-se mais pelas notícias de jornais, do que por testemunhos da família, naturalmente mais focada as memórias da sua vida.
A "ORDEM" escreve:  "faleceu o Snr António d' Aguiar, opulento e estimado capitalista, nosso amigo e assinante de "A Ordem". Contava 46 anos e  faleceu repentinamente na manhã do dia 10 do corrente. Teve um funeral muito concorrido , celebrando missa de corpo presente o rev Manuel Coelho.. O extinto gosava de geral estima  e porisso o seu falecimento foi muito sentido, (...)
A SOMBRA DA CRUZ
"Inesperadamente, quando parecia ainda ter longa vida, pois era bastante novo, faleceu na passada semana o nosso querido amigo e assinante Snr António Carlos Barbosa Aguiar. Depois duma viagem recente  que fez ultimamente ao Brazil. a sua saúde ficou de tal  maneira abalada que d' ahi resultou quase repentinamente a sua morte. Deixou imersa na mais amarga saudade a sua ex-ma esposa  e filhinhos. O seu funeral que foi excecionalmente concorrido, realizou-se no passado domingo, ma Igreja desta vila, organisando-se vários turnos durante o percurso. (...)
O título do jornal não está anotado no recorte. Erro, de algum modo, significativo é a inclusão do apelido da mulher (Barbosa) no nome de António Carlos Pereira de Aguiar - sinal do seu entrosamento com a família da mulher que era perfeito....
Outra constatação inesperada é pertencer ao jornal " A voz de Gondomar" (republicano). o mais completo obituário, um artigo de quase página inteira  sobre um conhecido monárquico, (embora fosse cunhado e íntimo amigo de alguns dos mais interventivos republicanos do concelho). Convicto nos princípios, tolerante também com os dos outros...
"Mais um bom que desapareceu do scenario tumultuoso da vida ungido da recordação saudosa de todos os que o conheceram  e chorado pela dor angustiosa e percuciente da família que estremeceu e idolatrou, António Aguiar, o saudoso e querido amigo que sacrificou a mocidade ao trabalho para conquistar a independência de que usufruia; o lutador austero e persistente que, quási criança ainda, abandonava a Pátria, e com a Pátria a família, para, em terras distantes e pisando o doloroso trilho do "struggle for life" , onde as ambições se entrechocam, consolidar no trabalho a garantia do seu futuro e a dos seus, acaba de tombar, sacudido pela crueldade brutal de uma "angina pectoris", que desapiedadamente o arrancou de um lar que era todo o seu enlevo (...)
Espírito de eleição consagrado ao culto da família, a que lega o inapreciável tesouro dum nome digno como poucos e o exemplo salutar duma vida impoluta, António Aguiar soubera impor-se à admiração e à amizade sincera de quantos com ele privaram, pela intensidade dos sentimentos afetivos  em que vibrava a sua alma e pela galharda afabilidade do seu trato em que se espelhava toda a nobreza de um carácter nobre e honrada. Era um justo, de quem pode dizer-se que desceu à vala fria do cemitério sem uma única inimizade a empanar-lhe o brilho suave da sua chorada memória".
O funeral do saudoso extinto, que se celebrou na matriz desta vila em 10 do corrente, foi bem uma demonstração imponente da consternação provocada pelo seu desaparecimento  e uma grandiosa homenagem de sagração póstuma tributada às suas virtudes e à sua memória  pelos muitos amigos de António Aguiar , que os possuía em todas as classes sociais".
Na última parte da notícia são mencionados os turnos, em que os amigos se revezaram no transporte da urna entre a Vila Maria e a igreja matriz. Vale a pena transcrever a listagem, porque nela estão os familiares mais próximos, os amigos que eram presença constante de uma casa, sempre cheia de visitas, de festas. ou os companheiros de um associativismo local, a que dava generosa contribuição:
1.º turno - António e Alberto Mendes Barbosa, o irmão Augusto Aguiar, José e Damião de Oliveira Aguiar (sobrinhos?) e Saúl Fonseca e Sousa
2.º. - Mário Ferreira (sobrinho, casado com Isabel Barbosa, "Mimi"), Adelino Garrido, Manuel Martins dos Santos, Camilo de Oliveira (o escritor e autor da monografia do Concelho de Gondomar), Alberto Martins de Moura e Artur Cabral Borges
3.º Manuel Ribeiro de Almeida, Vicente Gaspar Vieira, Doutor Agostinho de Sousa Pinto, José Coelho das Neves Junior, José de Sousa Santos e Manuel Coelho das Neves
4.º - José Marques dos Santos, Avelino Martins da Silva, António Coelho da Silva, Manuel Martins de Castro Neves, Joaquim Martins Rosas e Abílio Ferreira da Costa.
5.º -Membros do Club Gondomarense, de que o finado era sócio
6.º - Sócios do Club de Caçadores, a que o extinto também pertencia.
7.º -  Bombeiros Voluntários de Gondomar e João Pereira, criado do extinto.
8. - º (no percurso da Igreja para o cemitério) - Dr António Ribeiro Seixas, Dr Manuel Nunes Pereira, José Ribeiro Borges da Cunha, Eduardo Kock, Serafim Rosas e Francisco Herculano Novais de França. (talvez primo, porque França é um dos apelidos na árvore genealógica de Rosa Pereira).
Um outro registo revelador de pertença a um círculo mais íntimo é o das coroas fúnebres, colocadas junto ao ataúde: "Club Gondomarense, última homenagem", "Último adeus de Maria Irmínia Barbosa e Alexandre Mendes Barbosa; "Útimo adeus de Rozaura Barboza Marques e Manuel Marques"; Saudades de José Martins das Neves e família"; "Saudade eterna e último beijo de tua esposa"; "Último adeus de sua irmã Amélia Aguiar e esposo": Sentida saudade de seu tio João Moreira dos Santos e Maria Gomes Bessa";"Último adeus de seus cunhados Maria Celestina de Abreu Mesquita Barbosa e José Barbosa Ramos";"Eterna saudade de seus filhos": "último adeus de seu amigo Dr Agostinho Emílio de Sousa Pinto".
Pela notícia, que termina apresentando condolências "à desolada viúva, Ex.ma Srnª D Maria Barbosa Aguiar e a seus filhinhos", sabemos ainda que a chave do caixão foi entregue ao Ex.mo Snr Dr José Barbosa Ramos, distinção que lhe coube certamente como cunhado e juiz ilustre....
Comoção no ambiente familiar e em toda a Vila de Gondomar, onde era, como transparece nos jornais,  pessoa muito querida, dos grandes e dos pequenos, dos ricos e dos pobres. A essa sua forma de viver, e conviver devemos a imagem, que perdura, dos Aguiar como exemplos de extrema dedicação à família, de  franqueza, de generosidade espontânea, quase a parecer excessiva, e de alegria comunicativa. Alguns laivos de excentricidade, também, terreno em que em que, todavia, seria ultrapassado pelos cunhados Barbosa. (criam-se, assim, "estereótipos dos "Aguiar" e dos "Barbosa", nos quais mal se enquadram muitos dos que levavam ou levam esse nome, de um aristocrata minhoto que nada tinha de excêntrico...).
Em 1926, a Mariazinha com seis anos, a Lolita com quatro. (ou a mais nova, Madalena, apenas seis meses), não podiam entender o que acontecera, mas viam mãe, vestida de preto, caída em depressão e prantos, cada vez mais ausente nas devoções da igreja. Um dos rapazes, o terceiro mais velho, António Maria, deixou-nos (aos 10 ou 11 anos), nos seus versos simples, de criança, testemunho único de um sentir comungado por todos dentro das paredes da Vila Maria:

Meu Pai?
"Quem te levou, meu Pai?!... Quem te levou?
Para esse mundo assim tão azulado.
Responde...sim. Teu filho, um desgraçado
Para quem a tua ausência já chegou

Para esse mundo sem fim, quem te arrastou?
Partiste!... Fiquei só! Desventurado
Pede a Deus a quem por ti tenho rogado,
 embora infeliz.., para quem tudo se quebrou.

Partiste, morreu tudo neste mundo...
E minha Mãe, oh Pai, sempre a chorar
E eu choro, desde o dia em que, moribundo, 

Te segurei... morreste Pai... Agora, então,
Depois de tudo, me vês, sempre a chorar,
Chorará eternamente, Senhor, meu coração!"

Terá sido o primeiro a encontrar o pai. agonizante? Talvez, pois não seria normal ser uma criança a segurá-lo, a dar-lhe apoio se os adultos ali estivessem...
Tudo mudou, mas continuou. A mãe, senhora elegante e mundana, divertida e compassiva,  transformava-se, a pouco e pouco, numa líder severa e enérgica, dentro e fora de casa, entregue às tarefas de educar sete filhos, não muito fáceis, e, cada vez mais, às boas causas na paróquia e na terra (aos pobres, aos doentes, aos presos, não raras vezes, intercedendo por eles, ajudando as famílias ou dando emprego a ex-presidiários -  pequenos ladrões, alguns dos quais não perdiam hábitos velhos, nem mesmo em relação à benfeitora...Levava criancinhas ao batismo e promovendo casamentos a partir  de persistentes e pagãs "uniões de facto"...). A Vila Maria era quase um prolongamento da residência paroquial, frequentada no dia a dia por padres e seminaristas, hospedaria de luxo para as freiras que passavam por São Cosme, ou para recém-chegadas professoras primárias, até que achassem morada definitiva.Também a organização de festejos religiosos era ali programada, e executadas tarefas variadas, como a fabricação, em massa, de flores de papel para os andores das procissões e os carros alegóricos, ou o ensaio de grupos corais, reunidos à volta do piano. Filhos e netos eram incitados a colaborar, uns mais renitentes do que outros....
Apesar das profundas marcas que a partida do pai provocara no ambiente famíliar, Maria Antónia sempre se sentiu protegida e feliz dentro da Vila Maria e, muito mais tarde deixaria escrito num apontamento (dos muitos que se vão, agora, encontrados, em folhas soltas) "éramos felizes e não sabíamos").. A natureza alegre e despreocupada impôs-se ao luto, de que ficou para sempre um eco,  Alexandre, foi para os meninos órfãos, um autêntico pai, muito presente, muito marcante, para a viúva, o mais amigo dos irmãos, o mais próximo, e não só porque vivia em frente, do outro lado da rua. A sua filha única tinha morrido bébé, anos antes. A afilhada Maria Madalena ocupou esse vazio -  praticamente vivia com eles os tios, Hermínia e Alexandre, embora a Mãe não a deixasse nunca pernoitar fora Era, para rapazes e raparigas a figura tutelar.masculina, sempre mais compreensivo do que a mãe se tornara - mais dialogante, generoso e divertido (o pai tinha sido com as meninas, invariavelmente gentil, nunca as castigou, isso ficava da responsabilidade da mulher, já com os meninos, tais eram os desmandos, que lhes aplicava os corretivos usuais na época...).
Em Alexandre a irmã tinha um conselheiro, um gestor competente de negócios propriedades e títulos da bolsa, que eram parte substancial da herança indivisa. Excetuavam-se  da sua influência as coisas da igreja -  foi sempre em vão que ele, republicano e laico, tentou moderar impulsos beneméritos e oferendas, que considerava largamente  excessivos, para as obras da paróquia....). 
Presença constante, desde os tempos do regresso do Brasil,  era a da irmã Rozaura, casada, sem filhos, com  um homem, o "tio Marques" igualmente muito dedicado aos pequenos Aguiar, e, em particular, afilhada, Maria Antónia. Moravam a curta distância, uns minutos a pé, por caminhos rústicos e lindos, no lugar chamado "a  Pedreira"
.A "casa da Pedreira" de tão boas memórias para a Mariazinha!. Ali, ela era especial e única, não tinha de repartir atenções, com mais seis crianças. E, entre os seus escritos, que vão sendo descobertos,, há um que lhe é dedicado. 
A CASINHA DA PEDREIRA
Queria voltar a ver
as camélias a florir,
as laranjas a crescer.

Queria voltar a ter 
na minha mão pintaínhos 
acabados de nascer

Queria voltar a ver
o jardim, a capoeira,
a horta - querida Maria - 
que se enchia de canseira

Limonete ao fim da escada
Alecrim pro's ramos bentos
toda uma festa, a ramada
a casinha, tão modesta,
com o nicho e a cantareira...

Na comparação com a "Vila Maria", a "Casa da Pedreira" era modesta, embora pequena não fosse.Teria sido uma antiga sede de quinta, com um grande portão e um átrio espaçoso de pedra. O piso de baixo era de terra batida, servia de adega, de casa da lenha, de arrumação. As escadas de acesso ao patamar superior eram de pedra, assim como as outras duas que davam, numa extremidade da casa, para as salas e, e, na outra, para a cozinha. O primeiro andar dividia-se em quartos espaçosos, ao todo oito divisões. Salas e os quartos de dormir e a sala de jantar, com mobílias antigas, muitas de casa dos pais (terá siso a filha mais conservadora). A cozinha, sim, era pequena e escura, um absoluto contraste com a da Vila Maria. A criada era a Maria Póvoas, que cozinhava muito bem e tinha tempo para tudo, até para cultivar a horta e tratar das galinhas e das flores.
As janelas de guilhotina, do primeiro andar, eram encimadas por vitrais coloridos, muito bonitos, e davam para o Largo da Pedreira, para um comprido tanque comunitário, constantemente ocupado por grupos ruidosos de lavadeiras e, do outro lado, casinhas térreas, de ourives que trabalhavam filigrana de portas abertas. A casa, com certeza,completamente alterada, ainda existirá... Não assim a Vila Maria, que o município quis conservar, mas sem avançar para a compra (que a família teria feito, por metade do preço de venda a particulares) e que o novo proprietário, homem ganancioso, de vistas curtas, mandou demolir à pressa, antes que lhe fosse atribuída a classificação que António Maria Aguiar andava a tentar conseguir.  Erro a todos os títulos, porque a casa com o terreno circundante teria sido de fácil utilização para turismo, a mais evidente, ou para uma clínica ou um Museu, até para um centro comercial, ou condomínio de luxo, se soubessem aproveitar o enorme espaço que ladeia o edifício de época, em construções, com uma moderna compatibilização arquitetonica. O aventureiro faliu, o terreno , anos e anos depois, continua à espera de destino, no entretanto serve de parque de estacionamento (cumpriu-se a profecia de que tocar naquela casa era igual a maldição, traria  desgraça e morte)...
A casa que já só vive na memória, ficava dentro do jardim, a uma distância de 30 metros da rua principal, formando um largo ladeado de roseirais simétricos, num plano superior cerca de uma metro, bordejado a granito, à volta da casa passeios largos,, que permitiam fazer gincanas com os carros, como as que algumas vezes se organizaram. De cada lado do portão de ferro as japoneiras, de camélias cor-de-rosa. No extremo norte, à face da estrada, o mirante (que chamávamos o mirante da frente para o distinguir do mirante que ficava na outra extremidade, e dava, então, para um caminho de terra batida, onde agora é uma escola, perto do auditório de São Cosme. Nos muros do  terraço dessa mirante, caíam os ramos cheios de damascos, enquanto no da frente eram dióspiros que se podiam apanhar à mão., A sul, à face da estrada, o “chalet”, que fora destinado a cavalariça ou garagem, e, depois da morte do Avô, acabou arrendado a vizinhos tranquilos, gente respeitável da terra.
A simetria dos canteiros de rosas terminava  face à entrada principal da casa e ao seu terraço, e nessa vertente, prolongava-se até a pequena "casa do forno e à área em que  o pomar confinava com as vinhas. Do lado do chalet, em frente ao grande vitral da parede sul, começava o pomar, por trás do qual se escondia, num retângulo fechado por muros de granito, a pocilga.. De fora, sem porcos à vista, dir-se.ia uma longa vivenda térrea, discretamente avistada entre muitos troncos e ramos das árvores de frutos. Havia sempre dois porcos e, quando chegava o dia da matança, as meninas eram fechadas na sala, tão longe quanto possível, para não ouvirem os gritos do tenebroso ato sacrificial. Ouviam, mesmo longe ouviam, e recordaram o horror dos sons, sem imagem. Quem vinha executar o ritual era o dono do talho, negociante próspero e homem simpático. pai da Felismina, que era amiga das meninas e, como elas, aluna de piano da prima Nucha. Depois, era dia de comer rojões, esquecendo a sua origem trágica.. 
A carne de porco sobrante era guardada em arcas, antes cuidadosamente limpas com areia e, depois, cheia de quilos e quilos de sal. A mãe conhecia bem a arte de conservar produtos, frutos, por exemplo:  mandava colocar as laranjas em areia, numa grande arca de castanho, ou os dióspiros, embrulhados em papel, em gavetões fechados. 
Do círculo de amigas e colegas das lições de pianos d pequena Mariazinha faziam parte as "Paciências", (simpáticas filhas de um dos antigos proprietários das terras onde se implantou a Vila Maria,) e as irmãs Maria Amélia e a Madalena da Estrela. Não era apelido, mas alcunha -  o pai tinha construído um palacete original, em  forma de... estrela.Antecipando o futuro em alguns anos, poderá, desde já dizer-se que há muitas fotografias do casamento de estadão da Maria Amélia, com quem, depois, perderam contacto. porque foi viver para Viana. Madalena uniu o destino a um rapaz de Avintes, contra um coro de opiniões adversas. Gostava dele, e não quis saber de mais nada. Não se conhece o desfecho, pois também lhe perderam o rasto. A Felismina viria a ser uma rapariga bonita, alta e loira e a primeira a casar, com um Ramos, a quem chamavam o "Ramitos". Contou às colegas das, pormenores surpreendentes sobre a noite de núpcias, e deixou um conselho

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