segunda-feira, 1 de janeiro de 2024

AUTORETRATO (S) início a de janeiro de 2024

EU… EM BONS BELOS TEMPOS AUTORRETRATO(S) de uma vida em movimento 1 - Infância feliz, quando eu era outra... Olho os meus retratos (muitos!) de menina e dificilmente me reconheço neles. O gosto pelo retrato vem de longe, de tetravós, ao menos na família materna. Meus pais parecem ter passado a juventude de máquina a tiracolo, e, por isso, não faltam imagens de mim, em papel brilhante de bordos rendilhados, na primeira dos quais apareço em forma de embrulho branco, que um casal enlevado partilha nos braços. Estão sentados num banco comprido de jardim, com uma fachada de pedra de cantaria em fundo, e um cão grande, preto e branco, a aproximar-se. É verão, a criança protegida pelo abafo talvez esteja a morrer de calor e vai preferir aragem fresca pelo resto dos meus dias…. Difícil é, de qualquer modo, compor o autorretrato a partir de um sem número de retratos de época, de cada época. Não os que a câmara fixou e estão alinharam em álbuns, mas os que perfizeram um longo percurso de imprevistos. Na verdade, a partir do momento em que terminei a licenciatura de Direito em Coimbra, único plano que tracei e prossegui com determinação, o imprevisto passou a comandar uma vida errante. A minha mais remota recordação é de uma fuga para a liberdade. Passeava em Espinho, entre a multidão estival do vaivém da Avenida 8, que era, então, o centro da vila, conhecida simplesmente como “a avenida”. Ainda em passo incerto, soltei-me da mão que me prendia, e segui sozinha em frente…mas logo o gozo da libertação cedeu ao medo do desconhecido. Guardo na memória imagens surrealistas de uma floresta de pernas muito altas, entre as quais procurava, desesperadamente, os pais… e a lembrança ficou presa nesse momento de angústia, não na felicidade do reencontro. Depois disso, não consigo estabelecer uma cronologia de eventos impactantes. Todos os dias foram iguais, aprazíveis e indistintos. As reminiscências são de lugares e de pessoas – os familiares mais próximos, as suas casas, em especial a “Vila Maria”, o casarão “de brasileiro” onde nasci, em Gondomar. Sei do que mais gostava: de saltos e correrias, de gatos, cães e flores. E do que abominava: os monstruosos laços de seda presos de lado num cabelo loiro, liso e curto e as colheradas de óleo de fígado de bacalhau. Retrospetivamente, acho-me detestável – uma criança turbulenta, irrequieta, precoce. A precocidade é uma perigosa virtude, porque eleva expetativas gerais e, em regra, como o meu caso evidencia, é terreno propício a deceções futuras. Disse a primeira palavra aos sete meses – e não foi “mamã” nem “papá”, mas “Jesus” – “coaching”, paciente e hábil ensinamento da avó Maria. Dei os primeiros passos aos nove meses, ao que consta em corrida, terminada numa queda contra a esquina de um guarda-vestidos – um susto, nada mais. Com um ano de idade comecei a palrar e não me calei mais! Metralhava perguntas, contava histórias invariavelmente inverídicas, e dava largas a inesgotável energia nas mais imaginativas traquinices. Um dos livrinhos que a avó Maria me ofereceu, mal aprendi a ler, foi “Os desastres de Sofia” … “Os desastres de Manuela” não ficavam muito atrás. Nada de novo, na família Aguiar. Marquei a sua década de quarenta do século XX, mas já nos anos vinte e trinta toda e qualquer diabrura acontecida nas escolas e nos clubes de São Cosme de Gondomar era atribuída aos Aguiares. Líderes natos de tropelias que acabavam mal… A tradição de excentricidade vinha de trás, de jovens e de menos jovens, com esse e outros apelidos, e não excecionava mulheres, que poderiam ter servido de inspiração a heroínas de Agustina. Avós extravagantes e formidáveis, também havia do lado paterno, com destaque para a bisavó Quitéria Francisca Pinto, que se tornou figura lendária por cantar ao desafio e jogar varapau em dias de festa popular – poetisa repentista, sempre, e, na velhice, fantástica contadora de histórias antigas. Tenho na ascendência gente das duas margens do Douro, na fronteira com a cidade do Porto, a minha cidade. A norte, a família materna, em Gondomar. A paterna dividia-se entre o sul, (os Dias Moreira, proprietários de terras ribeirinhas em Avintes, rigorosamente em frente a Gramido), e o norte, os Castro Mello/Capella, da Quinta dos Órfãos, na Foz do Sousa. Sobre estes antepassados nada sei. O bisavô João Capella cortou, em definitivo, laços com a família, ao que consta para casar, contrariando a vontade dos pais, com a indómita bisavó Joaquina Gonçalves da Rocha, filha de um boticário de Melres. O século XIX familiar abunda em crónicas de paixões proibidas, romances que parecem ultrapassar a ficção. Quase todos com um “happy end”. Há longínquos avós vindos do Minho, da Galiza, de Trás-os-Montes, e alguns emigrantes de torna-viagem, um trisavô no ramo paterno, um avô no materno, ambos “empresários de sucesso”, como se dizia na era cavaquista. Outros ramos, porém, como o Pereira de França, no qual se entrelaçou o Aguiar (oriundo de Montalegre), tem mais de três séculos de permanência em São Cosme. Também os Ferreira Ramos, ascendentes maternos da avó Maria, são desta terra, com ascendência no reino da Galiza. O pai, Joaquim Mendes Barboza, veio de Paredes para São Cosme, onde foi notário, e onde protagonizou um desses casamentos indesejados pela família da noiva, a indomável e formosíssima Carolina. Razão tinha ela, como a família e todo o Gondomar depressa haviam de reconhecer. Todos estes avoengos se juntam para fazer de mim uma mulher do Norte. No entanto, de qualquer outro ângulo de abordagem deste legado, que não o geográfico, a palavra para o caraterizar é: diversidade! Diversidade de origem, fortuna, mentalidade, ou posições políticas e ideológicas. Invejo os biografados (ou autobiografados), que se reveem num determinado meio social e político, definido e homogéneo. E mais ainda os que se orgulham de trajetórias ascendentes. O meu caso, já o deixei antever, é o inverso. Eu própria fui regredindo, devagarinho, de criança explosiva e cheia de si a adolescente e mulher cheia de dúvidas (sobre si…). O mesmo se diga da família, ao menos, no plano material. Os bisavós, os avós eram empreendedores, fizeram ou aumentaram a fortuna. Depois, as fortunas decaíram, sem ninguém as gastar, em excessos. As gerações seguintes limitaram-se a não acompanhar a mudança dos tempos e das novas maneiras de engendrar lucros e proveitos. Razão de sobra tinha o avô Manuel quando dizia ao filho e, mais tarde, a cada uma das netas: “A única fortuna que quero deixar-te é um curso universitário”. De facto, as terras e as casas herdadas só me dão dores de cabeça, enquanto do curso tirei rendimento suficiente para a vida que quis levar. E ainda tiro, agora sob forma de pensão de reforma. Com este avô, mais dado às artes do que a aventuras empresariais, ator de teatro amador, melómano e cinéfilo, aprendi a amar o cinema, nas “matinés” do Batalha, do Rivoli e do Trindade, e com a avó Maria as viagens, os passeios, o gosto pela poesia. Muito antes de ir para a escola, já cativava audiências, declamando “O melro” de Junqueiro, vate favorito da avó, que era monárquica e muito devota, mas tinha o seu fraco pelo poeta republicano e anticlerical. Pais e avós contribuíram, por igual, para uma infância de boa memória. E, também, os tios e os numerosos primos. Até aos oito anos, vivi, com os pais e a irmã mais nova, Madalena, a Lecas na Villa Maria. Minha mãe, quando casou, não quis sair de “sua” casa, e o pai, jovem com fama de rico, mas pouco proveito, apreciava a economia e o conforto de coabitar com a sogra, de conviver com os divertidos cunhados. Nós, as crianças, gozávamos as delícias de um autêntico paraíso terreal, e a avó prezava companhia no casarão que se fora esvaziando com a partida dos outros filhos. Quase todos moravam por perto. Visitavam-na, assiduamente, em dias e noites de animados convívios, verdadeiras tertúlias políticas, onde mulheres e homens elas terçavam argumentos revestidos de uma camada protetora de fino gozo ou ironia. Ninguém se zangava, nem mudava de campo. Recriavam, em novos contextos, um jogo antigo, num continuado desentendimento entre conservadores e progressistas: monárquicos regeneradores versus republicanos moderados ou revolucionários, a que se sucederam salazaristas contra democratas e, na guerra em que fomos oficialmente neutros, germanófilos e anglófilos. O conflito acabara há anos nos campos de batalha, mas prosseguia nas discussões de Gondomar, que eu olhava como uma partida de ping-pong – modalidade, diga-se, em que minha mãe se distinguia nos campeonatos do colégio, e eu era uma “aselha”. O desporto, ou, mais precisamente, o futebol também tinha ali o seu quinhão de debate, mais na metade masculina, apenas dividida na análise dos lances, porque eram todos portistas, com a exceção única de um tio (o tio Manuel), que, durante os seus estudos de Medicina em Coimbra, se convertera à Académica. Nessas buliçosas discussões, fiz a minha iniciação à política, ao futebol. e à aprendizagem da equivalência das virtudes humanas de quem pensava diversamente. Já então era bastante propensa a dar opiniões, de preferência, tal como minha mãe, contracorrente - ela numa direção e eu em outra. As questões feministas não eram abordadas diretamente. Faltavam ali teóricos do sufragismo, e mulheres em luta por um estatuto profissional (nessa geração só uma prima se formou na Universidade de Coimbra). A única cidadã verdadeiramente interventiva e influente na comunidade era a mais conservadora de todas: a avó Maria, grande defensora dos estereótipos salazaristas da “fada do lar”, militante da “Obra das mães”, e de outras obras beneficentes, a que se dedicou, depois de perder, subitamente, o marido. À tragédia de se ver sozinha, com sete filhos, entre os doze anos e os dois meses de idade, reagiu, voltando-se para a igreja, pelo envolvimento nas atividades da paróquia e da comunidade, e suscitando geral admiração e respeito. Sendo a sua neta preferida, deixei-me, sem dúvida, moldar por ela em quase tudo, da fé católica ao prazer pela leitura de prosa e poesia, mas resisti, eficazmente, à conversão aos seus padrões sexistas do “feminino”. Quando a avó me dizia: “Uma menina não faz isso!” (não trepa às árvores, não anda aos pontapés a uma bola, não entra em briga de rapazes, etc. etc…), eu questionava: “Mas porque não”? Achava-me tão capaz como os meninos de executar todos os atos constantes da sua longa lista de tabus… Sem resposta convincente à minha pergunta, o discurso catequético falhava. Involuntariamente, a avó fez de mim uma ativa feminista, aos cinco ou seis anos de idade. Não perdia uma oportunidade de demonstrar as minhas habilidades no terreno do masculino, e tinha por inesperados aliados os primos, bons companheiros de brincadeiras, e os outros homens da família, pai, avô, tios… Fui incentivada a estudar, sobretudo pelos homens, que acompanhavam os meus passos na escola, com um exagerado entusiasmo, esperando que eu fosse, sempre, a melhor da turma. As mulheres não me desencorajavam, mas não davam à “performance” mesma importância. Eu sentia-me contente por ter nascido rapariga, e ser capaz de rivalizar com os rapazes da mesma idade. E arrastava a irmã e as primas, para a prática de “desportos radicais”, como acrobacias por cima de telhados e das árvores da Vila Maria. O que, aliás, não nos dava galões de precursoras. Na geração anterior, a mãe e as tias faziam o mesmo. Mais longe terei ido ao saltar para (ou dos) estribos de elétricos em andamento, e ao praticar futebol de rua, com garotos da minha idade. É claro que não fui aceite pacificamente, mas consegui entrar em cena, graças à mediação do primo Ernesto, que gozava de invulgar prestígio como goleador. Não o deixei ficar mal…mostrava serviço, compensando a falta de técnica com imensa energia e velocidade. Varria o campo, com ou sem bola, distribuindo encontrões com fartura. No hóquei em campo, jogado com caules de couves, era ainda mais temível, normalmente, acertava na bola e nas pernas do adversário, em simultâneo. O futebol era a minha paixão, mas só aos 9 anos, depois da inauguração das Antas, passei a ser, pela mão do pai, uma frequentadora habitual do estádio. Meninas na bancada, nessa época, eram raridade… Quando digo que não havia feministas na família, quero apenas dizer que não havia teóricas da igualdade de sexos, mas é claro que havia “praticantes” de longa data, ou seja, mulheres mais dadas a mandar do que a obedecer. Antepassadas, que deixaram, mais ainda do que os homens, o seu rasto em histórias insólitas, e aquelas com quem convivia no quotidiano, levaram-me a acreditar, desde criança, na igualdade natural entre os sexos. Do mesmo modo, o meio benigno e convivial em que cresci, a assistir a confrontos civilizados de posições contrastantes, gozando de liberdade de trato com os adultos/aliados, mulheres e homens, sem verdadeiro confinamento no reduto das crianças, terá grandemente influído na forma como, nas outras idades da vida, fui interagindo com amigos e adversários no campo da política, qualquer que fosse o seu lugar na pirâmide hierárquica. Outra certeza é a de que, esse meu passado matricial, fez de mim uma feminista em luta contra preconceitos, mas não contra o outro sexo…

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