domingo, 24 de junho de 2018

PAI outra versão mais completa sobre a FAMÍLIA ANTIGA

VERSÃO JOVEM E POETA

 É um bonito homem, com o seu ar britânico, na fase do namoro com a minha mãe (que nunca permitiu a sobrevivência de fotos de outros namoros e, ainda menos, de um primeiro casamento romântico que terminou com a lindíssima noiva a morrer aos 20 anos de tuberculose) e, depois, connosco, as duas filhas, e a família da mulher, bem mais numerosa do que a sua, onde foi prontamente adotado, Mas as imagens que mais me encantam são as do velho senhor amável e comunicativo dos últimos retratos. Envelhecer bem, física e mentalmente, eis uma arte, ou, talvez, uma recompensa que mereceu numa caminhada de 78 anos, Ninguém o definiu melhor do que o nosso amigo Padre Manuel Leão. Em Espinho, na Capela de Nossa Senhora da Ajuda, em 14 Abril de 1996. Dois minutos bastaram. Nunca vi pessoa capaz de dizer tanto em tão pouco tempo... Foi na chamada "missa de 7º dia" - o primeiro momento bom, depois da súbita morte do Pai no domingo de Páscoa. Pelas palavras do Padre Leão (que pena não as ter gravado, embora no essencial permaneçam em memória) - mas também pelo encontro com uma comunidade de igreja, a que o pai pertencia, naquela capela, e que, tanto a Mãe como eu, só conhecíamos de vista, pois em Espinho toda a gente se conhece, pelo menos assim - de vista... (situação atípica, as mulheres católicas bem menos praticante, só o homem, no dia a dia, 3 vezes ao dia, ou mais, se recolhia, em meditação, nos bancos da Capela). Ali mesmo, em frente ao altar de Nossa Senhora da Ajuda, onde rezava, a fila de cumprimentos, geralmente cerimonial lúgubre, de adensar tristezas, foi o contrário. Mulheres e homens que com ele tinham partilhado a missa de Páscoa, a comunhão, falavam da sua alegria, do seu sorriso. De um homem feliz. Gente de fé, exatamente como ele. Ficaram no quadro global da cerimónia, já sem rostos definidos. Sensação da abertura à transcendência, da visão de outros reinos e destinos, que invadiu, por momentos, todo o nosso espaço, cheio da emoção pesada de muitas dúvidas e de uma perda definitiva. E ficou a imagem daquele seu amigo, já emaranhado ou desprendido de qualquer identidade sua ou alheia, definitivamente senil, que perguntava onde estava o João, que o queria dar-lhe um abraço, antes de ir embora. E ficou, sobretudo, uma síntese de 78 anos de vida ou de uma escolha de vida, na palavra breve e definitiva do Padre Leão. - um homem culto, inteligente e justo, que sempre preferiu apagar-se, muito pensadamente, e nunca quis fazer o que podia ter feito ou ser o que poderia ter sido. E que nunca, também, e antes do mais, exibiu o que realmente foi realizando, à sua maneira discreta, com competência e com humor e simpatia. 20 anos mais tarde, por acaso, em Fânzeres, no Centro Republicano, um ourives, que com ele conviveu no "Grémio" da sua profissão (onde o Pai era secretário-geral), fechou, a seu modo, com uma simples frase, aquele desenho do perfil , em dois traços, rigorosamente esboçado num elogio fúnebre. "O seu Pai era excessivamente honesto!" (e mais não disse, mas repetiu várias vezes, com a força que lhe dava ter bebido uns copos - o Pai que gostava do seu latim, e raramente bebia, teria dito "in vino veritas"...), Aqui estava o fio condutor para o meu completo entendimento do que deixara antever o Padre Leão. Demasiadamente honesto e demasiadamente inteligente…




 RAÍZES


 A família Dias Moreira é grande, mas não o nosso ramo. Desde o bisavô João, ao longo de mais de dois séculos, os nascidos em cada geração não passam de um ou dois. Há os que não tiveram filhos ou cujos filhos não sobreviveram até à idade adulta. No século XXI, apenas uma trineta de 20 anos, fazendo, com distinção, um curso na McGill em Montreal - brilho não raro entre os parentes que chegaram à universidade ou fizeram carreira académica. Chloe Randle-Reis, é canadiana, nada e criada em Toronto, tão longe das águas matriciais do Douro. Ela tem hoje nas suas mãos, talvez sem o saber, como eu o sei, todo o nosso futuro... Não o nome, que já não chegou a ela, mas o resto, que conta mais. O pai, esse recebeu o nome completo do Avô mítico - João Dias Moreira (com um apelido materno de permeio que só usava no BI). O Avô imenso - imenso na estatura, avolumada pelos seus capotes largos de inverno, como o descrevia um dos seus antigos caseiros, que encontrei emigrado no Transval, nos anos 80 do século passado. Imenso na sagacidade de homem de bem, de bens e de negócios É em traje do dia e dia na sua casa, e não numa pose solene de estúdio, com um dos seus fatos completos, que o vemos nos únicos retratos, em que aparece. Sozinho ou com a mulher. Esperemos que algum parente, um dia, nos surpreenda com alguns outros). A bisavó, Quitéria Francisca Pinto, era do centro de Avintes. A casa dos seus pais era discreta e airosa, ni início da Rua 5 de Outubro, (mais tarde pertenceu a duas gerações de artistas, o pai e o avô do Primo Francisco (Chico) Marques). Os Marques são escultores, entalhadores, desenhadores, arquitetos (na geração do meu Pai, o último, foi o Corinto, que casou com uma prima dele e nossa, a Maria Angélica). Parece que o trisavô Pinto foi emigrante no Brasil, e, no regresso, investiu num pequeno estaleiro de barcos do rio. Não creio que fosse muito rico, não o suficiente para o padrão dos Dias Moreira… Arrastou-se o namoro de Francisca e João até ao dia em que ela lhe lançou um ultimato: ou casavam em vida da mãe dele, ou não casavam nunca, porque não queria que todos julgassem que tinha estado à espera da morte da velhinha… Não queria facilidades, exigia dele a capacidade de afrontamento que ela tinha. Mas não reclamava a vida em comum. Dava-lhe a liberdade de continuar em casa da mãe. Cada qual em seu sítio, se preciso fosse, mas casados na igreja, perante Deus e o mundo. E assim foi, até que a sogra adoeceu e lhe pediu auxílio. E a partir daí todos se entenderam surpreendentemente bem. Está tudo dito sobre o carácter da pequena e enérgica bisavó, a grande contadora de histórias, a protagonista de infindáveis horas de cantigas ao desafio… E, diz -se mais: que em menina se vestia de homem e ia para as feiras jogar varapau. Atendendo a que era muito pequena (1,50…) magra e franzina, é de espantar… Mas ela era de espantar – todos os relatos que chegaram até hoje vão no mesmo sentido João Dias Moreira e Francisca Pinto eram os avós de meu pai que moravam ao lado, aqueles com os quais foi criado. Não na mesma casa - cada um apreciava demais a sua independência - nem na quinta do Pena, ali em frente e , então, desabitada, mas na colina que vai descendo para o Douro e o Araínho e a que chamam precisamente "Outeiro". Não sei com exatidão onde ficava, nem se ainda existe - coisa improvável. Dela ouvi vagamente falar com alguma nostalgia e imagino uma alvura de paredes entre ramagens verdes e uma soberba vista de rio e de vale de espigas douradas (onde agora não há mais do que cimento clandestino...). Enfim, um lugar romântico como os Avós recém casados, num casamento, que, tal como o dos bisavós, foi escolha só deles. Mais contrariado o primeiro do que o segundo (a trisavó era viúva, vivia com aquele filho e queria nora mais rica, se é que não queria, fundamentalmente, nora alguma....) Essa moradia, onde nasceu o primeiro filho, de Olívia e Manuel era com certeza arrendada, pois não consta da lista de bens familiares - e, nesse tempo, gente abastada comprava, não vendia nunca propriedades. Parece que o bisavô fazia a sua contabilidade de novas aquisições, como num jogo, onde ganhava pontos, e essa vertente quantitativa, acabou fazendo o seu curriculum para a posteridade - com o nº auspicioso de 99. Mas vinha sempre junto à estatística um perfil de empresário agrícola, com o seu pioneiro recurso à mecanização e à compra a crédito - tão avessa à mentalidade rural da época... E crédito era o que menos lhe faltava - até sem papel escrito, porque a sua palavra era um seguro contra todos os riscos... Eram, de qualquer modo, os avós que moravam ao lado. Não na mesma casa - cada um prezava demais a sua independência - nem na quinta do Pena, ali em frente e , então, desabitada, mas no Outeiro, a colina verde, que vai descendo para o Douro. Não sei precisamente onde ficava, nem se ainda existe - coisa improvável. Dela ouvi vagamente falar, com alguma nostalgia, e imagino uma alvura de paredes entre pinhais e uma soberba vista de rio e de vale de espigas loiras (onde agora não há mais do que uma aridez de cimento clandestino...). Enfim, um lugar romântico, como os Avós recém casados, num casamento, que, tal como o dos bisavós, foi escolha só deles. Mais contrariado o primeiro (a trisavó era viúva, vivia com aquele filho e queria nora mais rica, se é que não queria, fundamentalmente, nora alguma....) Essa residência, onde nasceu o primeiro filho, era com certeza arrendada, pois não consta da lista de bens familiares - e, nesse tempo, gente abastada comprava, não vendia nunca propriedades. O bisavô parece ter gerido sua contabilidade de novas aquisições, como num jogo, onde marcava pontos, e essa vertente quantitativa, acabou fazendo curriculum - com o número auspicioso de 99 propriedades, muitas compradas a crédito - um perfil de empresário agrícola mais do que de lavrador tradicional. O número sempre presente, tal como o seu pioneiro recurso à mecanização e ao crédito - tão avesso à mentalidade rural da época...Crédito era o que menos lhe faltava e sem papel escrito, porque a sua palavra bastava... Foi um seu antigo empregado, emigrante na África do Sul quem acabou por me dar aquilo de que fiz uma imagem mais precisa desse bisavô: Ele, atravessando os campos, com o seu largo capote de inverno. Ele, presidindo aos almoços, com todo o seu pessoal, numa mesa de pedra retangular, que ainda hoje existe e é motivo de pasmo: talhada numa pedra com mais de 3 metros de comprido e mais de um de largo. Coisa tão rara, que era e é objeto de quase veneração... Mesa rara e mesa farta. Corria o ditado, que o emigrante sabia ainda de cor: Mais vale ser cão em casa do João Patrão do que criado na Quinta de... (a maior de Avintes, mas eu não apontei o nome e agora só poderia inventar...) Era m homem que não receava confraternizar com os seu empregados, que os tratava bem, mas exigindo, com certeza, bom trabalho - tudo o que ainda hoje se exige de um gestor competente. O que os resultados provam que foi... A faceta da generosidade, essa adivinho-o noutro relato de alguém da família, talvez a filha, Tia Francisca: nos seus últimos anos, já não passeava pelo meio das searas. O reumatismo, agravado pela humidade da beira rio, tornou-o praticamente enfermo. preso a uma cadeira. Passava muito tempo à janela do quarto, com vista para as suas terras, que se estendiam no vale do Douro, no caminho do rio para a foz. Daí observava e dirigia ainda os trabalhos, certamente. E, quando passava um mendigo, a pedir esmola, lançava da janela, preso por um longo cordel, um cesto de pão (e o mais que ali tinha para dar), e logo recolhia o cesto, até que viesse o próximo necessitado. Alguns seriam "os do costume"... Mas dele não ficaram palavras concretamente ditas, expressões peculiares, tom de voz, os seus gostos na música, nas cores, nos fatos, cartas suas, escritos... Ficou muito pouco da vida tão cheia do único grande empresário deste ramo da família ...(essa imagem levou o meu primo do Canadá, bisneto como eu, a dizer, quando arriscou um investimento na área de Toronto: "É preciso retomar o espírito empresarial, que anda perdido na família há 3 gerações" Deixou, pois, o Bisavô João um exemplo que ainda agora nos desafia a fazer coisas... Mas que pena tenho de não ter um registo de conversas, ao seu próprio jeito.... De um lado e outro da família é só a palavra das mulheres que resiste....e de uma palavra concreta se faz um retrato mais vivo. Como o da bisavó Francisca, apenas em duas ou três pequenas quadras dos milhares que saíram da sua veia repentista... Ou na decisão que tomou de se opor a um dote excessivo para o casamento da filha Francisca, como exigia a família do noivo e que comunicou ao marido nestes precisos termos: "Não assino, João! Seria o mesmo que deserdar o nosso filho. Não assino, quero ficar de bem com Deus e com a minha consciência". E a escritura não se fez com aquela abundância de bens, mas com o que achou correto. E o casamente foi por diante nas condições que ela impôs. A mulher tem no círculo familiar a força que tem, não a que lhe conferem leis e convenções A esta sobrava coragem e pragmatismo e por isso levava a sua por diante. Coragem e bom senso em partes iguais. O homem. que era um grande homem, começava por lhe ter respeito.... Assim o Avô Manuel contava uma das história da Mãe que tão bem o soubera proteger e que ele admirava mais do que qualquer outra pessoa à face da terra. Outra tirada que sobreviveu foi a que pôs termo a um período de namoro que se arrastava: "Não quero que esta gente diga que estive à espera que a tua mãe morresse, para me casar contigo. Ou é agora ou não é". Sintética e precisa. Neste caso o filho terá ouvido a frase da sua própria boca. A grande anotadora de lendas e de crónicas, também, às vezes, falava de si.... À casa do lugar do Paço chamava "o torrão". A partir do núcleo inicial de uma casa de pedra pequena e antiquíssima (do sec XVI ou XVII), se acrescentara outra bem maior, cujas obras terminaram em 1901. E depois se comprara a vizinha Quinta da Pena, as Nogueiras e muitas das terras da ribeira do Douro, para poente... E há ainda o insuspeito testemunho da minha mãe, que vivia em conflito constante com os sogros e de pouca gente gostava em Avintes, mas simpatizava, incondicionalmente, com aquela velhinha prodigiosa, de olhos grandes e azuis. Só ela mesmo a poderia criticar. "Menina, usas as saias muito curtas. Parece mal....



  DOIS CASAMENTOS

 A vida parecia tê-la favorecido em tudo. Sabia conseguir o que queria, de uma forma sensata e determinada, que os outros aceitavam com a força dos seus argumentos e do seu encanto pessoal, a começar pelo "inner circle" da própria família. Com amável camaradagem, afastava os pretendentes, que eram bastantes, e, por fim, fez a sua escolha - o João. Amor correspondido. Quando casaram, ela tinha 21 anos e ele 19. Por Celina, desistiu do curso Letras em Coimbra. A Faculdade de Letras do Porto, tinha sido encerrada pela ditadura, para correr com todos os vultos (oposicionistas) que tanto a prestigiavam. Ciências que era o que a cidade podia oferecer-lhe e aí se matriculou. Talvez só para satisfazer a vontade do pai. Como era previsível, rapidamente abandonou as aulas, por declarada falta de vocação científica. E procurou emprego por perto - na Câmara de Gaia. Havia uma boa razão para um enlace tão prematuro. A "doença do século", ou do início do século, que era ainda a tuberculose, não poupou aquela fascinante mulher, em plena juventude. Não se deixou vencer pelo medo, não quis esperar pelo veredito incerto sobre a doença, não hesitou, quis viver com o homem que amava, nem que fosse por um breve futuro de felicidade. Ele também não hesitou e ambas as famílias se empenharam, em tornar possível uma verdadeira "love story" de fins da década de 30. Quando vi o filme com esse título, tantos anos depois, lembrei-me daquela história antiga, que eu, ainda criança, fui reconstituindo e recriando na minha imaginação, como um "puzzle", ouvindo comentários daqui e dali, ou discussões ciumentas, por parte da minha Mãe, sem nunca ter questionado diretamente ninguém, e muito menos o meu Pai. Os contornos sociais eram bem diferentes dos da trama "made in USA" - ali tudo e todos giravam à volta dela, como sujeito de admiração universal. Todavia, na ficção americana e numa realidade, onde Celina ocupava graciosamente o centro de cena, o papel principal, a essência era a mesma: a vivência efémera de um sentimento eterno. O casamento durou sete ou oito meses de felicidade. Valeu, certamente, a pena. E a imagem de Celina, que partira, continuava intensa e luminosa na memória da terra. Uma memória venerada contra a injustiça da sorte. Os sogros, que a adoravam, como uma filha querida, conservavam o seu retrato na sala de visitas, numa enorme moldura de prata. Uma foto de meio corpo, cabelos escuros, soltos, compridos, uns olhos expressivos, um sorriso e um luxuoso vestido de seda, sem colares nem adereços. Parecia-me uma princesa, ou uma estrela de Hollywood. Encantava-me a senhora do retrato, queria saber mais sobre a sua vida. Impossível, porque minha Mãe não suportava o que chamava "o culto" de Celina, as fotos expostas na casa, as "romagens" ao seu túmulo, as recordações e os sentimentos os sogros dela guardavam. Pode ter ocupado um lugar igual no coração do marido, mas não no deles! As disputas sobre a exposição do retrato duraram anos, e, por isso, me foi acessível até uma idade, 7 ou 8 anos, em que ficou bem gravado na memória . Mas um dia, a minha ciumenta Mãe levou a melhor, a moldura desapareceu, depois de uma última discussão, e fez-se silêncio. Nunca consegui aceitar, ou melhor, compreender a razão dos ciumes de alguém que já não estava ali - sou e, já em menina era, instintivamente favorável ao absoluto respeito por uma diacronia dos afetos, em que cada tempo tem o seu império - a simultaneidade de relações amorosas é o que não tolero, no que me diz respeito, embora reconheça, racionalmente, que é possível estar dividido entre dois amores atuais. Ainda por cima, a segunda mulher era também elegante e bonita, diziam até que parecida com a primeira. Mais pequena e mais magra, é certo, mas não menos arrebatada e voluntariosa. Só mais de meio século depois destes incidentes, que me desgostavam, mas que não tinha com quem comentar, encontrei um interlocutor inesperado: o primo António Reis, em Toronto, numa das minhas frequentes visitas ao Canadá (para onde ele emigrou a meio dos anos 60, com a Mulher Amélia e o filho pequeno). Quando podia, prolongava a visita e ficava em casa deles, perto do aeroporto. Foi numa dessas ocasiões que o tema surgiu, a propósito da produção poética do meu Pai, que se perdeu, como já disse, quase toda. Os versos dedicados a Celina foram rasgados, durante uma crise de ciúmes. Na verdade "abismus abissum invocat" (espero ter acertado no dito latino, que o Pai saberia aprovar ou corrigir...). São atitudes de fácil contágio - o Pai fez exatamente o mesmo a uma composição musical inédita do pianista Marques Ribeiro dedicado à Mulher, com quem tivera um princípio de romance... Foi então que, na sua casa de Martha Eaton Way, o António "agarrou" o tema de conversa. Primeiro, tentou lembrar-se dos sonetos escritos para Celina, mas só conseguiu recitar um, e incompleto. Depois, falou dela, infindavelmente - de uma jovem moderna, um ícone da última moda, alta, lindíssima, muito divertida, e sempre cercada por uma corte de admiradores. Entre estes, ali o confessava perante uma Amélia complacente, ele próprio! Com dezasseis, dezassete anos, sentia-se perdidamente apaixonado. Os dois primos, cada qual o mais atraente, numa disputa pouco fraternal pela mesma mulher - jamais imaginaria! Celina, obviamente, não levava a sério o mais novo, novo demais. Essas confidências foram uma revelação, trouxeram-na, da distância de um Olimpo, da figura recriada a partir de uma pose teatral, que a fazia parecer mais velha, com um "glamour" de "mulher fatal" para uma jovem extrovertida, com eu própria tinha sido, irreverente, iconoclasta, ágil, desportista. O que mais me ajudou a reconverter o mito na pessoa real, foi o episódio da sua chegada a uma reunião de amigos pelo telhado - estavam, elas e eles, à conversa num sotão e ela surpreendeu-os entrando por um postigo do telhado. Mas que bem! Tão parecida com a minha Mãe, que fazia coisas perigosamente na mesma linha, como subir ao telhado da "casa da eira" e inclinar-se na esquina para apanhar os araçás mais inacessíveis, ou saltar do 1º andar da casa por sobre canteiros de roseiras de pé alto, só para vencer apostas... Na geração seguinte, eu fiz o mesmo. Do primeiro casamento do Pai não existem imagens - deve ter havido muitas, mas perderam-se, nunca as vi, nem mesmo nos álbuns dos Avós - e, assim, tudo quanto sei foi o que o António me contou nessa tarde - foi um casamento de estadão, a noiva de vestido branco, sumptuoso, banquete nos salões da grande mansão dos Viana e uma multidão de convidados. Memorável. O António descrevia a cerimónia com todos os detalhes,inclusive o discurso eufórico e emotivo do Avô Manuel, que parece ter sonhado tanto com aquele casamento como os próprios noivos. Ele próprio não quis participar da festa, sentia-se demasiadamente preterido e infeliz. Mas, como não se falou de outra coisa durante os dias que se seguiram, ficou a par do que se passara, como toda a gente, entre presentes e ausentes. Pouco foram os meses, as semanas, os dias que os noivos viveram "num voo pleno de ansiedade", o "coração vogando nas asas do sonho". O desaparecimento de Celina, uniu as famílias à volta da sua memória - pais. sogros. cunhados, tios e primos conviviam intensamente depois, como antes. O Pai tinha 20 anos, o seu emprego rotineiro, muitos amigos. Faltava-lhe o ânimo para recomeçar estudos, ou para procurar profissão mais interessante. Entre os seus melhores amigos, amigos de infância, estavam dois irmãos, os Padres Eduardo e António. Foi através deles que conheceu, em Outubro de 1940, a família Aguiar, a Maria Antónia, que iria ser a sua segunda mulher. Na capela do Monte da Virgem, no domingo da "missa nova" do Padre António. A Maria Antónia, no colégio, foi colega e grande amiga da Maria Luísa, irmã dos futuros padres, que eram, nessa altura, colegas e grandes amigos do João. E, por isso, uns anos depois, todos estavam presente na primeira missa do mais jovem dos padres - a Avó Maria Aguiar, com as filhas solteiras (difícil já, então, levar os filhos à igreja...) e a Avó Olívia Capela, com o filho viúvo. Conta a Mãe que o bonito rapaz alto e loiro, apesar de muito devoto, se distraiu o suficiente para a olhar, repetidas vezes. E tendo ela sentido esses repetidos olhares, é claro que também não prestou à missa a devida atenção. Cá fora no adro, antes mesmo de serem formalmente apresentados, já ele lhe pedia para aceitar uma lembrança do dia da "missa nova" do amigo comum, comprada numa tendinha, que vendia terços, imagens da Virgem e anjinhos, a par de pequenas peças de artesanato - reduto em que o Pai escolheu a sua simbólica oferta. Presente estava também a Tia Arminda (que não era bem tia, mas sim tia da Nucha Aguiar, professora de piano das primas mais novas), que era de Avintes, íntima da Avó Olívia, e, igualmente, da Avó Maria, que visitava, sempre que passava férias em Gondomar. Foi tempo de saudações e conversa entre as três cristianíssimas senhoras e entre Maria Antónia e João, que estava entusiasmado com a perspetiva de uma excursão a Lisboa, com o primo António, para verem a exposição do "Mundo Português". De lá iria escrever-lhe e mandar-lhe um soneto, o primeiro que discretamente falava de amor que se procura. O que começa assim: "Lancei o meu olhar sobre esse imenso Tejo, À noite semeado de um encanto vago E vi em cada onda uma sombra, um lampejo Dessa história de heróis, que no meu peito trago" Dir-se-ia que toda a inspiração vem da temática da "expo", mas não, na última estrofe o A. sente o irreprimível desejo de lançar às ondas o seu coração em busca de um amor... que, pelo visto, até já estava encontrado. À primeira vista. Seguiu-se uma frequente correspondência, muitos encontros em Gondomar, no Porto, num roteiro de terras, como Santo Tirso, onde, por coincidência, a Maria Luísa dava aulas num colégio de freiras e o António Aguiar, irmão da Maria Antónia, era tesoureiro da Fazenda Pública e morava numa pensão dos tios da rapariga com quem namorava, para casar uma beldade de fulgurantes olhos verdes (Antónia, o seu nome no feminino, que todos chamavam Toninha). A irmã Maria passou a visita-lo, mais vezes, ficava na mesma pensão, encontrava-se com a amiga dos tempos do colégio e com o namorado (que tinha de escolher outra pousada. O irmão era tão severo como a Mãe, embora com agenda mais preenchida, abrandasse a vigilância durante o dia de trabalho. Passeavam por aquela vila linda, sempre acompanhados pela Toninha, naturalmente. Entretanto já era amigo de toda a numerosa, alegre e turbulenta família da namorada. Um rigoroso contraste, com a sua. Não só eram muitos (sete irmãos, mulheres, os mais velhos já com filhos pequenos, namorados e namoradas) como muito diferentes entre si, com uma tradição de confronto e discussão política, que nunca acabava mal, embora ninguém nunca mudasse de campo, ou de opinião. Nas gerações anteriores, uns eram monárquicos, outros republicanos. Nesta, em plena guerra, degladiavam-se, sobretudo, anglófilos/democratas e germanófilos/salazaristas. Mas, felizmente, eram todos também muito dados às artes da música e da dança, e facilmente passavam do modo de "tertúlia - debate" para o de tertúlia musical, tocavam piano as senhoras, cantavam todos em coro, com algumas vozes assombrosas. O Pai era mais um, com o seu belo timbre de voz e os argumentos de fortes convicções, gaguejando, embora, no auge das discussões. De comum, a mãe e à futura sogra, tinham , antes de mais, a religiosidade que governava as suas vidas, e as respetivas casas era frequentadas por inúmeros padres o pároco, os coadjutores, outros padres de fora, seminaristas, freiras, missionários. Ser o João um crente de missa e comunhão quase diárias, tornou-o muito popular, desde a primeira hora, desde o encontro do Monte da Virgem... No verão de 41, as meninas Aguiar não puderam veranear na Foz, como era habitual. Madalena, a mais nova, estava convalescendo de uma "primo infecção" e os médicos aconselhavam os ares da serra, não as nortadas do litoral. Passaram o verão numa quinta cedida por amigos, em Branzelo. Duas primas do João, a Alda e a Maria Helena foram convidadas da Avó. Já o João, nos fins de semana, tinha de procurar um quarto de pensão, convenientemente perto, mas não demais. Eram noivos, sem oposição alguma, (graças ao catolicismo do viúvo, a que acrescia a fama de herdeiro rico), mas sem permitir "liberdades", que tão conservadora senhora acharia impróprias. Costumes da época, levados ao máximo limite do rigor. Todavia, as filhas, sobretudo as mais novas, sabiam achar mil e uma maneiras de contornar proibições. Cumplicidades nunca lhes faltaram, a de umas com as outras, a das amigas e, particularmente importante, a dos vários e sucessivos empregados ao serviço na "Vila Maria" (ou das criadas e criados, como então se usava dizer). Sobre Branzelo há uma carta do Pai, em versos bem humorados, contando uma atribulada viagem de regresso de fim de semana, em que os convivas tinham sido muitos, incluindo o jovem Padre Vitor Hugo, coadjutor na paróquia de São Cosme, autor uma grande reportagem fotográfica dos acontecimentos... Avintes, tantos de tal daqui fulano de tal etc. e tal Maria: Venho escrever-te/porque o ler também diverte/quem nada tem a ocupá-la.../- E enquanto a pena desliza/A gente sente, imprecisa,/ A sensação de que fala!//Começo por te contar/ Que ainda antes de chegar/ Ao Porto- que forte perda/ O camião de Branzelo/ Furou antes do Covelo/ E teve "panne" na Meda/E assim sem mais novidades/ Cheguei cheio de saudades/ Ao café para engraxar;/ Mas aí, nova surpresa/ Sentado em frente a uma mesa- / Me estava a aguardar.../- Espantei que nem Texugo/...Era o Padre Victor Hugo/ Cheio de fotografias./ Tinha ali toda a excursão/- A Maria e o João/ E mai-las outras Marias!/ A Lolita numa delas/ Está tão só que mete pena./Apenas aos pés, deitada,/Uma galinha coitada (esfolada) Tem pena de não ter penas.../ (Diz a má língua que as outras eu/ As comi- tenham juízo -/ Que alguém as comeu, comeu!/ Quanto a mim estou "indeciso" ...)/ Na da Penha vi: que vento!/ Se me rio mais rebento/ De dar tanta gargalhada - / Quanto a ti minha "migalhas",/ Se te ris mais, escangalhas/ Não se te aproveita nada!/ Agora assunto mais grave/ - A Lolita sempre quer/ Fazer anos quarta-feira?/ porventura ela não sabe/ Que isto de envelhecer/ É grande asneira, ui, que asneira?!/ Ela que tenha juízo/ durma bem e ganhe siso/ Um ano a mais... não vem mais/ A graça morre, se passa.../ Recordar é uma desgraça/ Desgraças já há demais!/ Oh abri alas.../ E a Lena como está?/ Sossegue, sim?- que a Tatá/ Um dia faz-lhe a surpresa!/ Lá quando menos o conte/ Inda o "Sole" "male" desponte/ Na manhã! Ei-lo a ele!que surpresa!/ Oh! abri alas!/ E vocês como estão?/ Não estejam com "cem" cerimónias!/ Por aqui andou toupeira/ Já lambeu a capoeira,/ Sou todo vosso/ João Uma narrativa, que podia ter saído da pena, ou melhor, oralmente, da voz da Avó Quitéria Francisca... cheia de pormenores explícitos e sub-entendidos - alguns difíceis de descodificar, mas que nos falam de amizade e boa disposição, de passeios, de casos, de romances de verão e de amores que se revelariam duradouros... Nos versos dedicados às futuras cunhadas Lolita e à Lena, a primeira letra de cada estrofe dá-nos uma pista, o nome dos rapazes da sua predileção, nesse agosto de 41: Eduardo e Esolino. O primeiro, que viria a ser o muito querido e divertido Tio Eduardo, um acabado exemplar "bon vivant", estava na lista negra da Avó por isso mesmo, e por não ser um católico praticante (apesar das famílias pertencerem ao mesmo círculo social da vila de Gondomar...). O Esolino era vizinho do lado, as propriedade confinavam, o pai era músico, compositor, tocava na igreja, (preenchia uma condição "sine qua non"...), parece que gostava da menina, muito bonita e serena (ao contrário das manas, que eram tão bonitas, quanto temperamentais). E talvez ela lhe achasse graça, mas aos 15 anos, era cedo para se pensar em compromissos. A Tatá que levaria o simpático vizinho a Branzelo era a Tia Hermínia, cunhada da Avó Maria e uma segunda mãe da Tia Lena, sempre pronta a fazer-lhe todas as vontades. Mais enigmática é a menção à galinha retratada numa foto, e às galinhas devoradas. Talvez uma forma de auto-crítica, porque o Pai tinha um apetite muito saudável, que manteve até à meia idade, comia quantidades assombrosos de carne de qualquer espécie. Comia imenso e bebia pouco. O gosto dos contrastes - ele tão alto e tão apreciador de boa mesa, ela tão magra, frugal e pequenina... Quanto ao passeio à Penha, havia de repetir-se muitas vezes, afrontando a ventania, com risos e gargalhadas. (Como os jovens de 20 anos, em Portugal, estavam longe de uma guerra tão próxima, que acompanhavam pela imprensa e pela rádio, mas não entrava no seu quotidiano!).
. O casamento civil foi, em Gondomar, a 1 de novembro de 1941. Cada qual continuou em sua casa, pois para as famílias o que contava era a cerimónia religiosa, realizada na Igreja Matriz de Gondomar, duas semanas depois. O "pedido da mão da noiva" tinha sido feito formalmente, à mãe e ao irmão, o Tio Alexandre, o que sempre acompanhou os sobrinhos como um pai, na falta do pai. O Tio defendeu, pois, paternalmente a Maria Antónia, com uma variante de "sermão laico" sobre as suas obrigações como marido (era um republicano anti-clerical - os seus únicos defeitos, do ponto de vista da irmã - e o ser o noivo muito devoto para ele não era virtude que o recomendasse). Lua de mel na bela região do Vouga! Como o noivo ainda não tinha comprado o seu primeiro carro, viajaram no comboio, no famoso "vouguinha", a partir de Espinho, fazendo paragens para pernoitar, aqui e ali, até chegarem a Viseu, cidade onde a minha mãe fez questão de passar uns dias. Era outono, quase inverno, mas o tempo pouco importava. Voltaram a Gondomar - a Avó Maria insistia que ficassem a viver na sua casa enorme, onde já só só moravam com ela dois filhos solteiros, o Zé e a Lena. O Pai tinha encontrado uma nova família, grande e divertida - gostava de todos e todos gostavam dele. A Mãe com os sogros nunca se entendeu muito bem - acho que nunca a viram como a filha que tinham encontrado em Celina, e ela retribuía, interpondo cada vez mais distância - mas adotou e foi adotada, facilmente, pelos tios e primos, e até também pela famosa Avó Quitéria Francisca. Achava-lhe a maior graça, mesmo quando a repreendia por usar saias tão curtas (coisa que não toleraria a mais ninguém, com exceção da sua mãe, naturalmente). A uma e outra respondia que "era a moda", que sempre fez questão de seguir, à sua maneira. Curiosamente, nesse aspeto, o Pai não era diferente - embora muito mais comedido em matéria de compras, o seu lema era "pouco, mas bom" - fazendas inglesas, costureiro famoso do Porto (durante muitos anos, o Arménio). Quando iam para Avintes passar uns dias (a casa dos Avós tinha, também, espaço de sobra), o convívio com os tios e primos Reis e Marques, sobretudo, mas também os Capela era uma festa constante. Mas, onde quer que estivessem, o Porto era um ponto de encontro frequente. Para tomar café (no Guarani, no Imperial, no Paládio), para ir ao cinema nas noites de sábado, para deambular por Santa Catarina e Santo António. Curiosamente, os casais frequentavam juntos esses cafés, com os primos solteiros, o que, naquele tempo, não era coisa habitual (seria influência das vivências de Espinho, onde isso era a regra?). Mas, claro, as senhoras, quando só entre elas, escolhiam as confeitarias tradicionais, como a do Bolhão, ou a Ateneia. A Mãe e a prima Cristina eram as únicas que se aventuravam no Café Ceuta, que talvez oferecesse um ambiente menos sexista do que os congéneres. Nos fins de semana, aos domingos, os cunhados de Gondomar, eram, muitas vezes, desafiados para passeios pelo verde Minho, sempre à descoberta de um novo restaurante, de estradas secundárias, de vistas espetaculares sobre serras e rios. Seguiam em verdadeiros cortejos de carros, com as barulhentas criancinhas. Pelo Minho, e não só - também pelo Douro interior, por Trás-os-Montes (não perdiam as corridas de Vila Real), mais raramente, em direção ao sul. Muitas excursões eram dirigidas, também, a pequenas terras do interior, onde os antigos coadjutores da paróquia de Gondomar eram senhores abades - como o padre Campos ou o Padre Serafim, muito hospitaleiros e muito divertidos - as favoritas da Avó Maria, que, contudo, não faltava a nenhuma, fosse para onde fosse. Em 1942 nasci eu, na Villa Maria, no ano seguinte, em dezembro, a Madalena. Nessa casa, que para nós era paradisíaca, vivemos os primeiros anos, anos muito felizes. nov u

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