quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

30 nov - autoretrato

UTO-RETRATO 26 de novembro O paraíso da infância Nasci em Gondomar, numa das chamadas “casas de brasileiro”, a Vila Maria – uma homenagem do avô, que era portuguesíssimo, a sua mulher. Prática muito comum nessa época. O que não há, tanto quanto sei, é “vilas” batizadas com nome masculino. Para quem havia de trabalhar no terreno da emigração durante mais quatro décadas, pode parecer predestinação ter vivido os seus primeiros e felizes sete anos num ambiente marcado pelo Brasil. A Vila Maria era uma propriedade enorme, constituída por um casarão de paredes cor de rosa e venezianas verdes, circundado por jardins simétricos com canteiros de rosas (rosas magníficas, que o avô levava a exposições) e, nas traseiras, extensos pomares e vinhedos. Não havia palmeiras, nem vestígios de flora tropical, descontado um diospireiro gigante e dois graciosos araçazeiros, de porte arbustivo, mas a “brasilidade” estava bem presente no dia a dia, nas histórias sobre o avô António Carlos Pereira de Aguiar, tão prematuramente desaparecido, nas memórias da cidade fascinante, o Rio de 1910 - a Rua do Ouvidor, as colinas de Santa Teresa residencial, a mata da Tijuca - das férias de verão austral em Teresópolis, e de muitas travessias festivas do mar em luxuosos vapores. E, também, na gastronomia, na música, sobretudo, na paixão com que alguns dos tios se orgulhavam de ser brasileiros. Até minha mãe, que viera a luz em São Cosme, como tal se considerava por ter sido concebida do lado de lá do Atlântico e cruzado o oceano no seio materno. Nunca lá iria fisicamente, mas reencontrava o seu Brasil em Érico Veríssimo e Jorge Amado ou nas telenovelas da Globo. A Vila Maria, que já só existe na nossa memória, foi o paraíso da infância da geração anterior e da minha, também. Era um mundo aparte, com as suas fronteiras de granito, muros altos a toda a volta, um espaço de total segurança, de total liberdade de movimentos, com alamedas largas, recantos e casinhas (a do forno, a da eira, as pocilgas de pedra e reboco, o pequeno “chalet” face à rua principal). Do mirante da frente e do gradeamento do portão olhávamos o exterior, um Gondomar urbano, mas ainda com mais transeuntes do que carros e, espaçadamente, vagarosos elétricos amarelos, que nos levavam ao Porto. Na outra extremidade do terreno, um mirante mais modesto oferecia-nos o Gondomar rural e bucólico, campos de cultivo a perder de vista, casario disperso. Da varanda de pedra que continuava a sala de jantar, uma visão panorâmica do Monte Castro. O nosso Gondomar! Quando meus pais casaram, em 1941, a avó Maria quis que ficassem a morar com ela, numa casa cheia de quartos vazios, onde já só restavam dois filhos solteiros. prestes a partir. Arranjo ideal para os recém-casados, muito novos, ela com 21 anos, ele com 23, fama de rico sem proveito, tendo por certa a modesta remuneração de funcionário júnior da Câmara de Gaia, e por incertas e ocasionais as ajudas paternas. Logo depois, em anos sucessivos, 1942 e 1943, chegaram as duas meninas, e a solução tornou-se ideal para a generalidade dos coabitantes, pequenos e grandes. Madalena (Lecas) e eu sempre tivemos uma relação de igual proximidade com pais e avós, incluindo os paternos, Olívia e Manuel, de quem éramos as únicas netas e com quem passávamos fins de semana, férias, largas temporadas, na casa de Avintes, também bastante grande, por padrões atuais, e com vistas pitorescas sobre telhados em cascata e sobre o rio Douro, em fundo. Destas figuras tutelares, é difícil avaliar quem contava mais, quem mais influenciou a criança precoce, apressada e rebelde, de que falam crónicas alheias. A mãe, Maria Antónia, a quem chamavam Mariazinha, era pequeníssima (um metro e meio…), mas compensava a estatura com magnetismo, exuberância e uma certa tendência para a excentricidade, que o historial da família regista, tanto do seu lado Aguiar, como do seu lado Barbosa. Fazia gala de qualquer singularidade, como, por exemplo, ter olhos de cores diferentes, muito claros, um verde, o outro azulado. Foi sempre uma menina pouco menos que indomável e, no Colégio da Esperança, uma aluna preguiçosa, que só se dedicava ao que lhe dava prazer –línguas, história, geografia e, sobretudo, música. Talentosa pianista, solista em todas as festas do colégio, sonhava com uma carreira nos palcos. Não teria, também desdenhado seguir arte dramática no Conservatório e tornar-se atriz – uma segunda Mirita Casimiro, uma outra Laura Alves. Mas nem pensar… a mamã educava as filhas para o casamento, combinando aprendizagens adequadas, sem exclusão do piano – ela própria adorava música. A Mariazinha retaliou, recusando todo e qualquer tirocínio em artes domésticas. Dentro de uma cozinha, não sabia fazer quase nada...Era alegre, divertida, tocava Chopin e cantava os fados da Amália, com uma voz fortíssima, que conservou afinada até aos quase 100 anos. Ao ritmo do seu tempo, gostava de dança, de cinema, de corridas de automóveis, touradas, vida de praias e esplanadas, passeios, e dos romances de Eça e de Zweig, de Maria Archer e Aurora Jardim, que conhecia de vista, da hora do chá elegante da Ateneia. Discípula de Florbela, ela própria, tal como a irmã Carolina escrevia sonetos pungentes. Curiosamente, a poesia foi ponto de encontro com o futuro marido, João. João, sem diminutivos, atraente rapaz, alto e loiro, poeta repentista - dom herdado de uma fantástica avó, Quitéria Francisca, que cantava ao desafio em festas populares. O neto, mais letrado, lia o seu Virgílio, os poetas clássicos em latim, tocava violino, (sem ser um virtuoso) e, seguindo o lema “mens sana in corpore sano” praticava atletismo, jogava futebol. Após onze anos no Colégio dos Carvalhos, desistiu do curso na universidade de Coimbra, para se casar, romanticamente, com uma lindíssima e requestada Celina, que já estava muito doente e faleceu, de tuberculose, poucos meses depois. Viúvo aos 19 anos, voltou a casar, aos 22, com outra mulher, que aliava magnetismo e beleza. O enamorado achava-a parecida com Paulette Goddad! Mãe e pai tinham, apesar das sintonias literárias e musicais, temperamentos muito diferentes. Ela otimista, impulsiva, irrealista, gastadora, ele, um sonhador cético e pragmático, pessoa ponderada, às vezes a rondar a indecisão. E muito poupado, quase “forreta”. O avô Manuel e a avó Maria, mais a sua irmã, tia-avó Rozaura, com quem, contas feitas, passávamos mais tempo do que com os pais, eram maravilhosos contadores de histórias, e graças a eles, aprendi a ouvir, atentamente, os mais velhos, pela vida fora. Pouco dada a rememorar o passado, a outra avó, Olívia, preferia pôr-nos a falar sobre nós ou sobre animais, partilhava connosco a paixão por gatos, os seus fabulosos gatos franceses, filhos da Tita, cujas ninhadas eram disputadíssimas E dava-nos boas mesadas -não havia ascendente mais pródigo… O avó Dias Moreira, Manuel, nos documentos oficiais, identificado como “proprietário”, era, como prefiro considera-lo melómano, cinéfilo e ator de teatro amador, (do Grupo Mérito Avintense). Com ele, desde os cinco ou seis anos, me iniciei no gosto do cinema (operetas, westerns, comédias, nunca filmes infantis…), e do ambiente dos cafés do Porto. Ao que consta, eu própria seria o tema favorito de conversa desse avô. Parentes e amigos tratavam de debandar, se pressentissem que se preparava para abordar, com grande detalhe, os feitos da neta mais querida. A avó Maria tinha outro perfil, era já então, figura lendária, muito para além do círculo da família. Viúva aos 38 anos e mãe de sete órfãos, o envolvimento na vida da comunidade, na paróquia, na “Obra das Mães” e em quaisquer iniciativas de cultura e beneficência à espera de patronato, foi a sua maneira muito pessoal de reagir à tragédia. Da sombra de um bem-amado marido, da maior infelicidade, emergiu a líder, que deixou de ser, para sempre, apenas a filha, a mulher, a parente de homens notáveis. Doravante, os filhos, netos, parentes passariam a ser vistos na sua relação com ela: os Aguiares! Ao contrário de tantas mulheres da família, em que minha mãe e eu nos contámos, e contra uma velha tradição peninsular, adotara o apelido do marido, reduzindo um nome comprido a “Maria Aguiar”. Mais um dos inúmeros tributos de fidelidade à sua memória, a par do traje escuro, não necessariamente preto, pois se permitia incursões num discreto cinza ou no roxo, sua cor preferida. E, sobretudo, trouxe até nós, a imagem encantatória de um homem capaz de pensar e de realizar em grande. Alegre, generoso, expansivo, capaz de fazer bons amigos em qualquer latitude. Sempre impecavelmente vestido e bonito, com uns espantosos olhos verdes e os seus bigodes de época. E muito “ilustrado”, na linguagem antiga da avó Maria. A tia-avó Rozaura é outra das personagens marcantes da minha primeira idade, com a sua paixão por lendas, crenças e ditos populares e tudo o que havia de pitoresco ou excêntrico na história esquecida da família. Tão diferente da sua irmã Maria… pequenina e roliça, discreta, mas terrivelmente observadora e capaz de um humor caustico, conciso e irreverente. Duas vezes viúva, sem filhos, era a nossa avó, “ex-aequo” com as outras duas. Uma sobrevivente da tuberculose, curada no sanatório do Caramulo, onde, na convalescença, gozou de trepidante vida social com um bonito romance pelo meio. Quem mais traria tão esplêndidas recordações de um sanatório? Assim cresci neste círculo físico e humano, alargado por alegres convívios com muitos tios e primos. A Vila Maria era o meu amável pequeno mundo, regido pela avó Maria, mestra e cúmplice, que tão bem me compreendia. Quantas vezes, escutando de onde não me viam, a ouvi bradar: “Não sabeis lidar com esta menina. É preciso explicar-lho o porquê das coisas”. Já então, para mim, obedecer ou não obedecer era coisa a avaliar por bons critérios. Contudo, não nutro incondicional simpatia por essa criança nem me reconheço inteiramente nela. Tinha um feixe de cintilantes qualidades, muito sobre valorizadas, que fui perdendo, num trajeto vivido em plano inclinado. Agustina, a genial retratista de mulheres do Norte (com algumas das quais antepassadas minhas tiveram gritantes sintonias), dizia que nascera adulta e morrera criança. Não é esse o meu caso. Nascera simplesmente precoce, e isso não é coisa boa, quando nos vamos “normalizando”, devagarinho, e, com isso, frustrando expetativas gerais, incluindo as próprias. Disse a primeira palavra aos sete meses – e não foi “mamã” nem “papá”, mas “Jesus”, graças às virtudes pedagógicas e à persistência da avó Maria. Só mesmo ela se lembraria de treinar a neta para um feito inédito em clã muito católico, embora com alguns ateus à mistura. Dei os primeiros passos aos nove meses, ao que consta em corrida, terminada numa queda contra a esquina de um guarda-vestidos, que por sorte, não deixou marcas. Com um ano de idade comecei a palrar, a amealhando vocabulário, de forma galopante, E não me calei mais - uma dessas pequenas criaturas cansativas que não param de metralhar perguntas, e estão no centro das atenções, ou pela exibição de aparentes talentos ou por malfeitorias. Tornei-me enormemente popular, embora fosse uma das crianças mais terríveis de sempre, mesmo na família materna, com pergaminhos nesse capítulo. Na geração anterior (anos 20 e 30 do século passado), todas as partidas escolares e outras pequenas patifarias acontecidas em São Cosme de Gondomar eram consideradas obra dos filhos da Senhora Dona Maria Aguiar. Raramente se enganavam. A tradição vinha de trás, com esse e outros apelidos, e não excecionava as mulheres (as tais que poderiam ter servido de inspiração a Agustina. Ao contrário das que se notabilizaram pela excentricidade, a avó Maria enquadrava-se no polo oposto, como pináculo das virtudes femininas da época.

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