sexta-feira, 25 de novembro de 2022

EU "IN ILLO TEMPORE"

EU in illo tempore Uma infância feliz e passageira Olho o retrato da menina pequena e dificilmente me reconheço nele. Na família, sobretudo a materna, o gosto pela fotografia vem de longe, de sucessivas gerações, desde tetravós, e meus pais terão passado a juventude de máquina a tiracolo. Não me faltam, por isso, imagens de mim, em papel brilhante de bordos ondulados, na primeira dos quais apareço em forma de embrulho branco, que um casal enlevado partilha nos braços. Estão sentados num banco comprido de jardim, e um cão grande, preto e branco passeia por perto. É verão, o bebé protegido pelo abafo deve estar a morrer de calor e vai gostar de aragem fresca pelo resto da vida…. O meu autorretrato é feito de um sem número de retratos de época, de cada época. E não só os que a câmara captou, mas os outros, os de um percurso de formação e afirmação. É no feixe de qualidades e defeitos que alardeava nesses anos primordiais que dificilmente me reconheço. Era irritantemente precoce, turbulenta, imparável. Dentro e fora do círculo da família, quando confronto esse género de crianças, procuro disfarçar impaciência e antipatia dissonantes no ambiente geral que, em regra, cerca essas pequenas criaturas exibidas como troféus. A precocidade eleva expetativas gerais, e, em muitos casos, é terreno para deceções futuras. Os Mozart são a exceção… Eu disse a primeira palavra aos sete meses – e não foi “mamã” nem “papá”, mas “Jesus”, (bem amestrada pela devota avó Maria) . Dei os primeiros passos aos nove meses, ao que consta em corrida, terminada numa queda contra a esquina de um guarda-vestidos, Por sorte, sem dano perdurável. Com um ano de idade comecei a palrar e a absorver vasto vocabulário. E não me calei mais! Metralhava perguntas, incansavelmente, contava histórias incrivelmente inverídicas, e dava largas a inesgotável energia em imaginativas asneiras. Um dos pedagógicos livrinhos que a avó Maria me ofereceu, mal aprendi a ler, foi “Os desastres de Sofia” … Com “Os desastres de Manuela”, já estava convertida numa das crianças mais terríveis de sempre, até na família materna, cheia de pergaminhos nesse capítulo. Na geração anterior (anos 20 e 30 do século passado), tudo o que acontecia de insólito ou heterodoxo em São Cosme de Gondomar era considerado culpa dos Aguiares. E raramente se enganavam… A tradição vinha de trás, com esse e outros apelidos, e não excecionava as mulheres, que poderiam ter servido de inspiração a heroínas de Agustina. Avoengas excêntricas, capazes de feitos incomuns, também as havia do lado paterno, a mais recente das quais era a bisavó Quitéria Francisca Pinto, que, em Avintes, cantava ao desafio e jogara varapau em dias de festa popular. Tenho na ascendência gente das duas margens do Douro, com o Porto à vista, em Gondomar e em Avintes. A família materna com raízes a norte, em Gondomar, a paterna dividida entre o sul, com os Dias Moreira, proprietários de terras ribeirinhas, rigorosamente em frente à histórica Gramido, e o norte, com o ramo Castro Mello/Capela, da Foz do Sousa. Sobre estes pouco se sabe. O bisavô Capela que aí nasceu, na Quinta dos Órfãos, fixou-se em Avintes, tendo, na juventude, rompido com os pais por razões que permanecem misteriosas, sendo a hipótese mais provável, mas nunca confirmada, o casamento contrariado com a bisavó Joaquina. O século XIX familiar abunda em crónicas de paixões proibidas, romances que parecem ultrapassar a ficção, mas não a camiliana, pois, quase sempre, esses casais “viveram felizes para sempre”. Suspeito que muito por mérito das mulheres que ousaram desafiar a autoridade, e não, necessariamente, a masculina. Também as mães parecem ter estado sempre na frente das disputas... A geografia em que tudo isto acontecia era propícia - território agustiniano. Ao menos nas últimas gerações, em linha reta, não há grande mobilidade familiar, com exceção de alguns “brasileiros de torna viagem”. Durante séculos, todo o norte de Portugal se despovoou pelo caminho marítimo para o Brasil… Os que realizaram o sonho de regresso, são os nossos avós, os que por lá ficaram os progenitores de incontáveis primos, na sua maioria desconhecidos. No meu caso, são dois os ancestrais de boa memória que fizeram o trajeto de volta. O trisavô Pinto, que construiu casa de traça bem portuguesa na rua principal de Avintes, que é hoje a 5 de Outubro, e se estabeleceu com um pequeno estaleiro de barcos do rio. Aparentemente, trouxe dos trópicos não só um razoável pecúlio, mas mentalidade aberta. Suas filhas foram raparigas modernas, gozando de invulgar margem de liberdade - a mítica bisavó Quitéria Francisca, a menina dos olhos muito azuis, poetisa repentista e jogadora de varapau, e a mana Esperança, a menina dos olhos muito verdes, que seria a matriarca de gerações de artistas, os Marques, pintores, entalhadores, escultores e arquitetos. O outro “emigrante de sucesso”, como passou a dizer-se na era cavaquista, foi o Avó Aguiar, que quando a morte o levou, repentinamente, aos 46 anos, vivia, com a mulher e sete filhos, no seu enorme casarão de Gondomar, mantendo um vaivém entre Gondomar e o Rio, onde mantinha interesses financeiros, preparando a entrada numa sociedade bancária. Duas exceções. A mobilidade dos outros, praticamente, não ultrapassou os limites de um pequeno círculo geográfico traçado à volta do Porto, nossa cidade berço. Alguns ramos, como o Pereira de França, no qual se entrelaçou o Aguiar, no segundo quartel do século XIX, tem mais de três séculos de permanência em São Cosme! Os Aguiares eram, cinco gerações antes de mim, oriundos de Montalegre. Enraizamento antigo no concelho de Gondomar tinham, também, os Ferreira Ramos, ascendentes maternos da Avó Maria, embora, muito lá para trás, encontremos entre eles avoengos imigrados do reino da Galiza para terras de Valbom. Os paternos Mendes Barboza eram de Bitarães e Paredes, apenas um pouco mais nortistas. Panorama semelhante na genealogia paterna. Está menos estudada à falta de primos com pendor genealogista. Mais rigorosamente, à falta de primos, ponto final. Os bisavós João Dias Moreira e Quitéria Francisca Pinto, de um casamento contrariado, com um longo historial de adiamentos, tiveram apenas dois filhos, e, nas gerações seguintes, três netos, três bisnetos, e um tetraneto, o Frederico, com pouco mais de um ano, várias nacionalidades e ascendência lusa, canadiana, escocesa, ucraniana e holandesa. Pode ser que venha a ter dois irmãos, batendo um recorde de várias gerações! Outros ramos paternos despertam especial curiosidade, por estarem cercados de mistério - os Castro Mello e os Capela da Foz do Sousa. Apelidos sem história, por causa de rutura antiga e definitiva, que levou o avô Capela para Avintes, sem olhar para trás. No entanto, de qualquer outro ângulo de abordagem do legado familiar, que não o geográfico, diversidade é a palavra certa para o definir. Diversidade de trajeto, fortuna, mentalidade, posições políticas e ideológicas, desafiante para quem o queira continuar. Invejo, benignamente, as ou os biografados (ou autobiografados), que se reconhecem num determinado meio, bem definido e homogéneo. E mais ainda quando fizeram, em condições adversas, trajetórias ascendentes. O meu caso é precisamente o inverso. Fui regredindo, devagarinho, de criança explosiva e cheia de si a adolescente e mulher cheia de dúvidas sobre si. E, de um modo geral, as novas gerações, acompanharam face as antecedentes, o mesmo movimento descendente, em estatuto e em meios, ao menos materiais. O bisavô João Dias Moreira, um gigante de quase dois metros de altura, que mais parecia de origem viquingue do que lusitana (e talvez fosse), não sendo filho de agricultores, fez sólida fortuna nas terras férteis do Douro, com uma mentalidade empresarial moderna. Comprou, durante a vida, 99 propriedades, entre quintas, pinhais e pequenas courelas.! O feliz marido da bisavó poetisa, que todos os netos adoravam. Um mito ao lado de outro mito. E irmão (meio irmão), do Padre Manuel Pinto da Silva, que foi fâmulo do Bispo do Porto Cardeal D Américo, primeiro pároco de Espinho e pioneiro fundador de um jornal da sua terra, “A Aurora de Avintes”, de tendência radicalmente monárquica, contra os ventos da República. O avô Manuel contava deste tio impetuoso e prosélito, por quem tinha filial admiração, episódios bem pitorescos. Não era para graças… Eu devo-lhe a leitura do mais fascinante livro proibido que lia às escondidas no sótão d casa dos avós: uma bíblia sumptuosa, com preciosas iluminuras e imagens. O outro bisavô, João Fernandes Capella foi, também, um homem bem-sucedido nos negócios e bem casado com a bisavó Joaquina - a que fica para sempre envolta na suspeita de ter provocado o desentendimento entre Capelas, pais e filho. Casal fenómeno de complementaridade, de tão diferentes que eram, ele um senhor de esmerada educação, sempre elegante e sóbrio, ela uma mulher enorme, enroupada em saias compridas demais, altaneira e introvertida. Das origens dela só sei que era filha de um farmacêutico, (no sentido de ser dono de uma farmácia, em Melres, suponho). E os apelidos Gonçalves da Rocha. Do lado de minha mãe, outro tanto posso dizer. Seu pai enriqueceu, meteoricamente, no “boom” do início do século XX, no Rio de Janeiro. Era um de 17 irmãos. Criança promissora, inteligente e bom aluno, que aparece nas fotos de grupo sempre mais aprumado do que os outros, recebeu, aos 16 anos, “carta de chamada” de um dos mais velhos, João, que já tinha idade para ser seu pai e uma boa posição na sociedade carioca. Com ele terá aprendido a arte de bem gerir negócios, e aos vinte e poucos anos, talvez com apoio do irmão, abriu a sua “Joalharia Aguiar” na Rua do Ouvidor. Na Rua das Flores, no Porto havia a outra “Joalharia Aguiar” propriedade do mano Augusto, de quem era muito próximo. Quando pediu namoro à avó Maria era um jovem milionário de 28 anos. De estatura, mais baixo do que ela, mas bonito, alegre e muito ilustrado, segundo nos dizia, velhinha, viúva há mais de 30 ou 40 anos, mas ainda apaixonada. Do lado gondomarense da avó Maria (os Ferreira Ramos maternos) fica nesta série de retratos “a la minute” uma burguesia comercial, com funcionários públicos, médicos e outros profissionais à mistura e do ramo minhota (paterno) parentela mais aristocrática. O pai foi por muitas décadas o notário de Gondomar, mas mantinha contactos com os primos, um dos quais, filho do Visconde de Paredes, foi protagonista de um breve romance com a avó Maria. Vinha a cavalo visitá-la e namoravam no mirante, sempre com alguém por perto (que denominavam à francesa: “chaperon”) O que aqui vai de heterogeneidade, antes mesmo de chegar à política… e na política, a divisão é ainda maior – há positivamente de tudo. Não há tradição que eu não possa escolher, desde monárquicos regeneradores, (a bisavó notário, o tio bisavô padre, o avô Aguiar) até anarquistas (o tio António, irmão da avó Maria, que foi exilado para São Tomé, durante a ditadura de Sidónio), e outros republicanos perseguidos, com estadas no Aljube ou aposentação compulsiva, (caso do tio avô José Barbosa Ramos, que tinha sido o mais jovem juiz conselheiro do STJ). E muitos outros ativistas, como o Manuel Guedes, que dá o nome à Praça do Município em Gondomar (um tio da avá Maria, ela própria monárquica e salazarista). Na verdade, não segui as pisadas de ninguém, mas o que aprendi sobre todos eles e muitos mais, graças às grandes contadoras de histórias que eram os avós foi a virtude da tolerância. O queridíssimo Avô Manuel Dias Moreira, (o meu maior fã!), era melómano, cinéfilo, ator teatral (do “Grupo Mérito” de Avintes). A profissão, que as escrituras notariais lhe atribuíam era “proprietário”. Não desbaratou a herança, nem a aumentou. A agricultura não o atraía. Arrendou as terras a caseiros, de quem foi sempre bom amigo. E viveu de rendimentos, vivendo bem. Meu pai teve fama de herdeiro rico, mas não o proveito. O declínio geral da agricultura foi o principal fator de empobrecimento súbito, em duas gerações. Algumas das propriedades ainda estão lá e são, para mim, fonte de preocupação e despesa… Não servem para me manter, eu que as mantenho…. Razão de sobra tinha o Avó Manuel quando repetia, aos ouvidos do filho e, depois, das netas: “A única fortuna que quero deixar-te é um curso”. E foi consequente. Todos os descendentes frequentaram, por decisão sua, os melhores colégios privados da região. (meu pai o Colégio dos Carvalhos, a Madalena e eu, o Colégio do Sardão). Ele não o pode fazer, não chegou à universidade de Coimbra, como sonhava - sendo o único filho varão, o pai opôs-se e manteve-o junto a si, na gestão das terras. A sua única aventura no mundo dos negócios (uma moderna loja de tecidos na Praça Carlos Alberto), correu mal. Era o “sócio capitalista”, com o filho a seu lado, e foram facilmente enganados pelo “sócio de indústria”, que, como consumado golpista bem-falante, fez o desfalque da praxe dos e sumiu nas lonjuras africanas – deixando os ricos a pagar a crise. Só sei que se chamava Oliveira, como o herói português dos álbuns de Tintin… A moral desse conto ou parábola familiar manteve-nos, a meu pai e a mim, cautamente a leste de tudo quanto fosse negócio…. É, sem dúvida, atividade muito compensadora, útil à riqueza das Nações e dos cidadãos, mas não é para nós… Nós trabalhámos por conta de outrem – Estado, municípios, instituições… Ou em profissões liberais. De resto, também nos avoengos, não nos faltavam precedentes - bastante mais numerosos nos ramos maternos, o que pode dever-se ao facto de serem melhor conhecidos, pela história oral e em estudos genealógicos. Funcionários públicos, professores, médicos… Mas, também, proprietários abastados, gente endinheirada, enriquecida no comércio… Por exemplo, os antepassados maternos da Avó Maria, o seu avô Ferreira Ramos, com próspera descendência em Portugal e no Brasil. Um dos tios, António Ferreira Ramos, foi dono de grandes empresas em Bajó, casou com Carolina Silveira Martins, irmã do Governador do Rio Grande do Sul, com os mesmos apelidos, um conhecido político do fim do império e da república nascente e tem, hoje, numerosos netos espalhados pelo sul do país e pelo Uruguai. Outro desses tios foi Manuel Guedes (Ferreira Ramos) A vocação empresarial perdeu-se, por completo, nas gerações seguinte, e, com ela, se foram as fortunas, que ninguém verdadeiramente dissipou. Tudo se foi perdendo devagarinho na mudança de conjunturas e circunstâncias. Hoje abundam parentes nas profissões liberais e na função pública. O queridíssimo a metralhar perguntas, tornei-me muito popular, e reconhecida como uma das crianças mais terríveis de sempre, mesmo na família materna. Uma família que tinha pergaminhos demais, nesse capítulo - em São Cosme de Gondomar, na geração anterior (anos 20 e 30 do século passado), tudo o que acontecia de insólito ou heterodoxo era considerado, acertadamente, culpa dos Aguiares. E a tradição vinha de trás, do mesmo ramo familiar, ainda que os nomes fossem variando, devido à discriminações de género na sua transmissão. Herdada, suponho, dessa longa linha de antepassados gondomarenses, possuía inquietante energia e vontade de empreendimento, e mantinha-me em constante movimentação, o que tornava difícil vigiarem-me. A sorte protegeu a audácia, como diz o ditado, porque nunca sofri mais do que escoriações menores, enquanto a minha serena irmã mais nova, Madalena chegou a ser levada para o hospital por ter ingerido veneno de formigas (estávamos, momentaneamente, entregues a uma aprendiza de criada de servir, aceite como competente por tomar conta de um rancho de irmãos pequenos… coisas de outro tempo, outra mentalidade). Eu nunca andei pelos cantos a farejar poções mágicas – era demasiado aérea para isso… - mas corria outras formas de perigo não menores. A pior revê a ver com carros. Adorava tudo o que dissesse respeito a carros. Aos três ou quatro anos, sabia as marcas de todos os automóveis… Quando ia a casa dos tios Lena e David, que moravam no Porto, Rua Firmeza, punham-me à janela para eu exibir essa habilidade em relação a todos os carros que passavam e eu não falhava um só… Paixão que me levou a entrar à socapa na viatura paterna, a sentar-me no lugar do condutor e a copiar os gestos do pai, baixando o travão de mão com a direita, e colocando ambas as mãos no volante quando senti que começou a deslizar. Um atlético Avó Manuel apercebeu-se da manobra, correu para a frente do carro e conseguiu imobiliza-lo. Nem sei como, numa descida íngreme - foi um milagre! Até hoje, recordo o prazer que a brevíssima condução me trouxe e nada mais…. O susto terá sido de tal magnitude, que ninguém se lembrou de me castigar. Já anos antes, ainda com passo incerto, tinha consumado outra fuga para a liberdade de andar só… A minha primeira recordação de mim! Em Espinho, no meio de uma multidão, talvez no vaivém da Avenida 8, ao domingo, ou numa festa da Nossa Senhora da Ajuda. Soltei-me da mão materna, ou paterna, e segui em frente. Dessa vez, o gozo logo cedeu ao medo do desconhecido. Ainda hoje vejo a imagem surrealista de uma floresta de pernas muito altas, entre as quais procurava os pais… A memória fica nessa angústia, não no feliz reencontro, que foi bastante rápido. Não cheguei a ganhar distância, o próprio susto me travou. Nasci na casa da Avó materna, uma “casa de brasileiro” enorme, de cor rosada e venezianas verde escuras, varandas voltadas para o Monte Crasto, cercada por jardins simétricos de rosas, que nas traseiras se continuavam por pomares e vinhas, a perder de vista. Não havia palmeiras…nada que especialmente nos falasse dos trópicos, á exceção um diospireiro gigante, junto ao mirante quadrangular, à face da rua (que foi a Rua Oliveira Salazar e é agora a Rua 25 de Abril) e dois pequenos araçazeiros, um de araçás vermelhos e outro de amarelos. O mítico avô António Carlos Pereira de Aguiar, que fizera fortuna no Rio de Janeiro, morrera, há muito, subitamente, de angina de peito, com apenas 46 anos, deixando uma ainda jovem viúva, e sete filhos, dos quais os últimos guardavam dele poucas ou nenhumas recordações diretas. Mas vivia nas memórias que a matriarca fazia questão de partilhar com os seus numerosos descendentes. O Brasil estava, assim, muito presente no nosso quotidiano, nas histórias, na música, até na gastronomia, da farofa do peru de natal ao chá mate quotidiano. Estes avós tinham sido grandes viajantes, sempre prontos para mais uma travessia do oceano. Alguns dos filhos, a começar pela primogénita Carolina, eram “cariocas”, outros gondomarenses. Até minha mãe, dada à luz em São Cosme, mas concebida no Rio, se considerava brasileira, por ter atravessado o mar Atlântico no ventre materno… A Avó Maria Aguiar tornara-se pessoa muito influente na vila, uma líder no feminino. Foi a viuvez que produziu a cidadã interventiva, desde que procurou na Igreja, e no voluntariado, formas de mitigar a perda de um amável marido com quem fora feliz, em dois continentes. Pertencia às organizações da paróquia, à “Obra das Mães” e outras obras Promovia peregrinações religiosas, serões musicais e o teatro amador no Cine- teatro Nun´Alvares, visitava os presos, tratava da sua reabilitação - a alguns chegava a dar emprego como jardineiros... Não menor influência nos meus anos iniciais teve o Avô paterno, Manuel Dias Moreira, cuja profissão os documentos oficiais identificavam como “proprietário”. Eu prefiro descrevê-lo como grande melómano, cinéfilo e ator de teatro amador (do Grupo Mérito Avintense). Com ele, desde os cinco ou seis ano, aprendi a gostar de teatro, de cinema (operetas, westerns, comédias, nunca filmes infantis…), e do ambiente dos cafés do Porto. A Avó Olívia era tão devota como a Avó Maria. Com ela, não escapávamos da reza quotidiana do terço. Era uma senhora generosa (da sua mão recebíamos a nossa mesada), hospitaleira. e as visitas de senhores padres eram, na sua casa, tão frequentes como na Vila Maria. Uma casa muito diferente, também grande, mas de desenho duvidoso, dando a impressão de que a o núcleo original de dois andares discretos, à face da Rua 5 de Outubro, haviam sido acrescentadas, nas traseiras, divisões de um só piso, ao sabor de passadas necessidades ou fantasias. Nestas duas casas, vivemos, meus pais, minha irmã Madalena (Lecas) e eu até aos meus 8 anos – mais centrados na Vila Maria, mas passando temporadas, férias e fins de semana na margem sul do rio, onde o nosso quarto tinha janelas rasgadas sobre larga curva que percorre, mansamente, entre Avintes e Oliveira do Douro. Uma vista de cartão postal… O verão era passado em Espinho, ora numa pequena casa de praia dos meus bisavós, na rua 7, (que meu pai partilhava com os primos Capelas), ora em andares arrendados, ali por perto, porque éramos fieis à Praia Azul. Meu pai nunca mostrou interesse em ter o seu próprio pequeno lar e a mãe ainda menos. Ele era, desde o início de cinquenta, funcionário do Grémio dos Ourives – adjunto do Secretário Geral, a quem havia de suceder, quando este se reformou, muitos anos depois. Até então o seu vencimento não era esplêndido… Partilhar os casarões da família, coisa desejada por todas as partes, resolvia a questão financeira, significava ter quem cuidasse de tarefas domésticas e, também, das crianças – um trabalhão, pelo menos, no meu caso. Também moramos, depois, uns anos, com a Tia Rosaura, irmã da Avó Maria e, como ela, viúva solitária com amplas divisões ao seu dispor, jardim, criada antiga e um gato preto e branco chamado Lulu. Tornou-se a nossa terceira avó, e no fim da vida, (a meses de celebrar 100 anos, depois de sobreviver a uma tuberculose, curada nos sanatórios da Serra da Estrela), morou connosco no Porto e em Espinho. O renitente casal só arrendou o seu próprio apartamento, por forte pressão nossa. As meninas queriam mudar para a cidade grande... O Porto era a nossa paixão, a nossa cidade, o nosso clube – o estádio das Antas, o cinema Batalha, o Café Guarani, o Imperial, o o Douro, visto das pontes das pontes de ferro rendado, com a marca de Eifel …. Nada contra São Cosme, nesse tempo, terra lindíssima, com o se famoso Monte Castro, que da varanda maior da Vila Maria se via esplendorosamente perto, como num filme em cinemascópio, das primeiras filas da sala… Ou Avintes, a casa da rua 5 de outubro, e a beleza rural das propriedades ribeirinhas do Avô Manuel, que tanto gostava de visitar pela sua mão. E a Avó Olívia e os seus gatos franceses, enormes e peludos. Adorávamos os Avós, os tios, um viver muito convivial, com gatos e cães, e muitas passeatas. Resumindo, numa frase batida: “tive uma infância feliz”! Era a favorita da Avó Maria e do Avô Manuel. Com cada um deles, fora de portas, portava-me bastante bem, porque me levavam ao Porto, para espetáculos (o Avô) ou para fazer compras e lanchar na Pastelaria Villares (a Avó Maria). Fora deste contexto, testava a paciência dos adultos - criança irrequieta turbulenta - na linha dos tios Aguiares, que granjearam tal fama nos bancos da escola, que tudo o que acontecia de pior ou mais insólito na terra lhes era assacado, em regra, justamente. Mantinha-me em contínuo movimento, saltos e correrias, com larga margem de liberdade na Vila Maria, que era totalmente cercada de muros altos. A Avó tentava moderar-me, ensinar-me o recato e as boas maneiras, femininas. Dizia-me, vezes sem conta, "as meninas não fazem isso" - "isso" sendo por exemplo, subir às árvores, saltar dos elétricos em andamento ou jogar futebol com os primos e os vizinhos... Eu gostava imenso da Avó, mas não seguia esses bons conselhos. O plural: "as meninas", levava-me a reagir, espontaneamente, a mostrar que as "meninas" eram tão capazes como os rapazes de "fazer isso". Assim, aos seis ou sete anos me converti em feminista praticante, com a emergente consciência da existência das questões de género .... Paradoxalmente, os homens, o Pai e o Avó Manuel eram fãs das minhas proezas desportivas ou escolares, por igual. Incentivaram-me ao estudo. A sonhar com um futuro profissional. Estávamos nas lúgubres décadas de quarenta e cinquenta, mas nunca o paradigma salazarista da "fada do lar" esteve nos meus horizontes - ou nos deles. Teria sido, certamente, uma fada falhada - desastrada de mãos, impaciente e rebelde de espírito, e, de longe, a mais feia criança de uma família de gente invulgarmente bonita. Contudo, plena de autoconfiança, exuberante, fantasista, tagarela (uma chata…), dotada de prodigiosa memória - muito antes de ir para a escola, recitava, com perfeita dicção “O Melro” de Junqueiro e todas as lengalengas que a Avó Maria me ensinava. Não me identifico com a criança que fui – nas antípodas do que penso que sou, desde a adolescência, ou da infância tardia, onde começo a reconhecer-me. Todos punham em mim exageradas expectativas, a que não havia de corresponder. Fui “normalizando” com o passar dos anos entrei num gradual declínio, que se foi continuando. Um amigo disse-me um dia, em jeito de consolação: “Não te lamentes. Se fosses igual a essa menina espertalhaça eras insuportável”. Os homens, (não todos, mas os melhores) sempre me compreenderam. E assim, graças a eles, o meu feminismo esteve, desde o início, na linha de pensamento de uma Ana de Castro Osório, mesmo que, nesse tempo, não conhecesse o seu nome (como Mr. Jourdain, que fazia prosa sem saber...). Os homens foram, assim, aliados - muitos, incluindo numerosos tios e primos, e, mais tarde, professores de Coimbra (Barbosa de Melo, Eduardo Correia, Ferrer Correia…), os meus” legítimos superiores”, de António da Siva Leal e José Magalhães Godinho a Mota Pinto e Sá Carneiro.

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