domingo, 25 de junho de 2017

27 de junho

A PARTIR DE UM SONETO " Deixei, num voo pleno de ansiedade, Vogar, na asa do sonho, o coração" (in "Íntimo") Em 1995, o Pai e eu estávamos a preparar uma edição dos seus versos de juventude - sonetos dedicados a minha Mãe, no início dos anos 40, quando se conheceram. Havia muitos mais, mas só restam os que ela guardou. À época, anos 30 e 40 do século passado, era comum os namorados expressarem sentimentos, de preferência, em palavras que rimavam e podiam guardar-se, em bom papel, como recordação, numa gaveta ou num cofre. Foi exatamente o que fez minha Mãe - guardou-os e, por isso, os "versos para você, Maria" são praticamente os únicos de sua autoria, que chegaram até hoje. O Pai era um repentista, escrevia, com facilidade, os seus poemas e, muitas vezes, igualmente, outros para os amigos, que queriam passar por poetas. Em regra, à mesa de um café - os salões dos café foram sempre a sua segunda casa, no Porto ou em Espinho... Quando começámos o projeto, rapidamente mandei dactilografar os manuscritos e o Pai escolheu, logo, o título : "Íntimo", que é o do soneto a que pertencem as estrofes acima citadas. Ao Pai cabia fazer a definitiva revisão do texto, acrescentar ou cortar vírgulas, e eu trataria do resto - tipografia, capa, imagens, edição. Mas o Pai foi adiando, adiando... Reuniu as folhas soltas, uma para cada soneto, numa pasta de cartolina, e, às vezes, até saía com a pasta debaixo do braço, levava-a para o Café Palácio. A boa intenção era dar-lhe uma vista de olhos, enquanto esperava os amigos, depois da leitura vagarosa do seu jornal (estava sempre atualizado, sobretudo em matéria política - bem mais do que eu, então sempre de partida para as reuniões do Conselho da Europa ou para visitas às nossas comunidades transoceânicas). Contudo, os amigos não tardavam. ou encontrava-os já sentados numa das mesas redondas do novo Palácio ou. mais raramente, no bar do Casino. O tempo esgotava-se nas conversas, nos passeios à beira-mar, nos encontros com a família de Gondomar, diante do ecrã de televisão (horas...) ou na leitura pela noite fora - ultimamente biografias, os policiais de Sara Paretsky, Umberto Eco, humorísticos, como Guareschi, Jerome K Jerome, ("so british", o seu predileto), sem esquecer a missa e meditação diárias, as novenas na capela de Nossa Senhora da Ajuda. Era evidente que a pontuação dos versos não tinha prioridade nesta preenchida agenda de reformado, em Espinho, terra de tertúlias, esplanadas, praias e mar, de que tanto gostava, desde a sua infância. Não havia pressa. Contudo, a morte veio subitamente. O seu coração parou. Parou mesmo, coisa absurda, enquanto conversava connosco, a meio de uma frase... Sereno, bem disposto, a jantar, fazia um comentário sobre esse dia animado domingo de Páscoa, em casa do Mário, em São Cosme, onde nunca falhávamos o "compasso". Antes tinha discorrido sobre a crónica semanal de Marcelo Rebelo de Sousa, já nem sei em que jornal, talvez "O Expresso". Era um incondicional admirador de Marcelo, decerto apreciaria agora o seu estilo na presidência. Dou por mim, muitas vezes, a pensar nos diálogos que teríamos sobre vagas de acontecimentos que se sucederam na sua ausência - vitórias do Porto, derrotas do Porto, a "troika", a "peste grisalha", no dicionário dos medíocres políticos da nova geração, os atentados, a ameaça da hegemonia alemã na UE, o "Brexit", o Papa Francisco... Não estávamos sempre de pleno acordo, mas conversávamos longamente, a dois, ou no seu grupo de amigos, a que me juntava, de vez em quando. Éramos uma família pluralista - o Pai, um democrata de sempre, republicano, anglófilo, conservador, votava PSD, a Mãe, muito à direita, monárquica e militante do PPM, fazia "voto útil" no CDS e eu, à esquerda, "social- democrata à sueca" (embora também eleitora do PSD) e, se a questão de regime ainda se pusesse, monárquica, mas igualmente à maneira sueca. Quanto à coletânea, publiquei-a prontamente, sem mais revisões, com a ajuda de um dos mais jovens participantes da tertúlia do Café Palácio, o Fernando, que tratou da parte gráfica, numa tipografia dos Carvalhos O Pai teria apreciado esta ligação aos Carvalhos, onde viveu 11 anos felizes no famoso colégio, que é um "ex-libris" da terra, ainda hoje. Além dos versos, apenas algumas fotografias (de pouca qualidade, por sinal), e umas breves palavras da mulher e da filha. Agora, esta edição, no ano do centenário do seu nascimento, é uma ocasião para falar dele, da sua vida, família e amigos. Íntimo, nos seus versos e na nossa prosa. A VIDA QUE VIVE NA NOSSA MEMÓRIA Para mim, foi um Pai presente numa infância alegre, acompanhou-me nas crises e esperanças da juventude, e, depois, ainda por muitos anos, numa relação progressivamente mais equilibrada, mais igualitária, como se a diferença de idades se fosse esbatendo. E, por isso, quando assim é, o Pai não pode desaparecer, fica connosco até ao fim de nós próprios. Especialmente, se era como gostávamos que fosse. Se cada vez o compreendíamos mais e o achámos melhor, de facto, em correspondência com a realidade, porque quando as qualidades existem, o tempo e a experiência servem sempre a sua afirmação. Com ele, assim aconteceu, sobretudo, no respeitante àquelas qualidades que exercitava no dia a dia e o faziam ser sagaz nos seus juízos sobre as pessoas e o mundo, muito simpático para com toda a gente e competente no seu trabalho ("reliable", para usar a sua língua estrangeira preferida - para ele tudo o que era britânico era bom, da democracia aos seus bonés de "irish tweed"). Havia, sem dúvida, outros talentos inatos, de que desistiu cedo, fosse por descrença nas vantagens de os cultivar, por lucidez sobre a relativa insignificância de atingir objetivos que outros prezavam demais , ou (quem sabe?) por não se achar fadado para os alcançar. Faltava-lhe ambição, agressividade competitiva, instinto empresarial (que ambos os seus avós tinham de sobra, e, por isso, ambos fizeram fortuna). mas não lhe faltavam preocupações, com coisas grandes e pequenas. Preocupava-se demais, era excessivamente dado à ponderação de prós e contras de uma decisão, abordava as questões por todos os ângulos possíveis, levava o seu tempo (muitos anos mais tarde, quando o Dr Silva Leal, que foi seu professor no ISCTE, e meu "chefe" num Centro de Estudos, referindo-se a um político ascendente no fim do velho regime, o classificou como "suficientemente ignorante das matérias, para tomar decisões rápidas e eficazes", lembrei-me logo do meu Pai, que estava nas antípodas). Isto no que respeita a sucesso material, não na vida que há para além da procura do lucro e da "glória", nem em matéria de aventuras sentimentais, inicialmente simples namoros de juventude, depois, dois casamentos românticos, aos 19 e 22 anos, o primeiro breve e trágico, com a morte da noiva, o outro longo - mais de meio século - até à sua morte. Duas mulheres belíssimas, de forte personalidade, sempre vestidas pelo último figurino, inteligentes e audaciosas, que trouxeram, certamente, "glamour" e intensidade à sua vida. Dizem os entendidos na matéria que os nativos de gémeos são eternamente jovens. Não sei se se comprova, se é coisa escrita nas estrelas, sei que, no caso do Pai. era certamente verdade. Talvez por isso, voltou à universidade depois dos quarenta e foi colecionando bacharelatos e licenciaturas. Começou com um recém-criado curso de Política Social no ISE e acabou, entre os primeiros licenciados em Sociologia pelo ISCTE. Tudo em Lisboa. Fez muitos amigos, sobretudo, entre os que eram, como ele, do Porto. Iam para aulas de fim de semana (gesto simpático dos professores) e para os exames em excursão de camionete. Uma festa! Gostava de conviver com jovens. Era tolerante e divertido, embora discreto, nas tertúlias. Tinha sentido de humor, graça e simpatia, que o tornavam popular junto de todas as gerações. Seria um bom político, se tivesse vocação, mas não tinha. NASCIDO EM AVINTES "Deixa aqui escrito o seu nome O célebre João de Avintes" (in " Apresentação") João. O menino que nasceu em Avintes, numa casa com vista para o Douro, numa colina verde, a que chamam, justamente, "o outeiro". A 6 de junho de 1918. O nome dificilmente poderia ter sido outro. O Avô paterno era João Dias Moreira, o Avô materno João Capela. Era o primeiro neto de ambos. Um herdeiro robusto, branco, loiro: assim o mostram as fotografias tiradas num estúdio do Porto. Não tinha os olhos azuis do Avô Capela, mas prometia a compleição nórdica do Avô Dias Moreira, com os seus imponentes quase dois metros de altura. A mesma estatura do meio irmão, o Tio Padre Manuel Pinto da Silva. Família de gigantes, que parecia vinda dos "Highlands" da Escócia. E, talvez, remotamente, viesse, fruto do encontro de povos que provocaram as invasões francesas, mais a aliança luso-britânica. Soldados inimigos e aliados, todos andaram por ali. Gramido fica em frente ao Outeiro, do outro lado do Douro. Sempre achei curioso que em Avintes, nos tempos da minha infância, ainda se pronunciasse o "L" à francesa.... Mas sobre essa possível ascendência nada sei em concreto, para além desses traços fisionómicos pouco latinos, e de anglofilia declarada, que passou de geração em geração, atravessando as duas guerras europeias do século XX, a que então terminava e a que havia de acontecer duas décadas depois. De concreto, sabe-se que eram chamados os "patrões", provavelmente descendiam de antigos donos de estaleiros que existiram na ribeira de Avintes. Foram-se os estaleiros, mas não a alcunha. O menino era o "Joãozinho Patrão", filho do Manuel Patrão e neto do João Patrão. Na primeira imagem, possivelmente de fins de 1918, é um bébé gordo, a olhar em frente, olhos bem abertos, muito sério, entre os pais, Olívia e Manuel. Tem a mesma expressão, um pouco depois, já sozinho, sentado nos veludos de um estúdio, face à câmara, vestindo apenas uma diáfana camisa de cambraia branca, o cabelo escondido numa touca de renda. Era coisa comum, então, fotografar os meninos nus, como os anjinhos do céu, mas imagino que a Mãe o quis poupar a tamanha exposição... O traje escolhido, sumário, leve e gracioso é, em todo o caso, mais etnográfico do que a nudez. (Tão religiosa a Avó! Creio que, se pudesse, vestiria até os anjinhos, tanto nas esculturas como nos óleos das igrejas...)
Quatro ou cinco anos passados, é um rapazinho, que continua a não sorrir para a câmara, de pé, em poses artificiais, ensaiadas pelo retratista; de perfil, com calção curto e "blazer", encostado a uma coluna, ou de frente, com indumentária semelhante, junto a um brinquedo de praia. Praia de Espinho, estúdio da Fotografia Evaristo.
O assim retratado não desperta uma grande empatia, não sendo, nessa fase, particularmente bonito ou expressivo, sem sinais da beleza exótica da mãe (dir-se-ia oriental, embora não o fosse) ou da pose natural de um pai bem parecido, que, para além de ator de teatro (no "Grupo Mérito Avintense"), podia bem ter sido ator de cinema. Estaria, talvez, contrariado, desconfortável sob a luz dos holofotes. Ou, talvez, refletisse o ambiente triste, em que terá crescido, depois da morte ainda recente dos irmãos mais novos, os gémeos, Alberto e Manuel e a irmã Maria, os três vítimas de complicações que hoje a medicina resolve facilmente. Saudável e forte só mesmo ele, o primogénito. Foi criado entre adultos, objeto de todas as atenções e de todos os cuidados, mas brincou, com certeza, muitas vezes, com os primos Reis e os primos Marques, nas casas deles, ou na sua, nos campos tranquilos da beira rio e em passeios de barco. Nos meses de verão, encontravam-se em Espinho, onde os avós maternos tinham casa de férias. E a relação fraterna, entre todos, manteve-se ao longo da vida. O Pai não falava muito dessa infância mais remota, nem das pessoas, nem dos lugares - o que é normal, sempre que nada corre particularmente mal. Mas abria uma exceção para a Avó Quitéria Francisca, que era uma fascinante contadora de histórias e declamadora de poesia popular - ela própria, quando jovem, imbatível na arte das "cantigas ao desafio". Grande mulher de pequena estatura, que acumulava bom senso e imaginação, frontalidade e gentileza e tanto sabia, trabalhar, infatigavelmente, como divertir-se. Impressionou o neto mais do qualquer outra figura tutelar, sem sombra de dúvida. ONZE ANOS FELIZES NUM COLÉGIO Aos 6 anos, grandes mudanças, que o levaram de casa de seus Pais para um colégio interno. Primeiro, a escolinha do Padre Luís, em Oliveira do Douro, e,logo de seguida, o colégio dos Carvalhos. Decisão paterna, pela certa. O Pai valorizava, acima de tudo, uma excelente educação, e o sucesso académico. Tinha as suas razões... Ele próprio, não pode formar-se, em Coimbra, no curso de Direito, porque, como único filho varão, estava destinado a tomar conta das muitas terras que iriam ser suas, Não era o que queria - prezava mais a cultura das Letras do que a agricultura. A mim, lembro-me bem de que me dizia: "a melhor herança que podes ter é um curso universitário". Obviamente, ao filho disse o mesmo, muitas vezes. Não creio que a ideia agradasse à mãe, que, parecendo dócil e serena nos retratos, não era fácil de contrariar no dia a dia. Mas te-la-ão convencido os senhores padres - o Padre Luís, que era um verdadeiro santo, o abade de Avintes, visita assídua da casa e a falta de argumentos, porque em Avintes não havia colégio e porque o filho gostava do internato, que via como um mundo lúdico, cheio de companheiros da sua idade. Na época do Colégio dos Carvalhos, o Pai já tem, enfim, algumas parecenças com a pessoa de que eu me lembro, noutra idade, naturalmente. Já sorri, no meio de muitos amigos, todos irradiando boa disposição. Podia ser fingimento, encenação, "fazer de conta", mas não era! Aquele colégio foi mesmo, para ele, um lugar perfeito. As amizades que aí fez, perduraram. Era um excelente desportista (futebol, atletismo) um aluno despreocupado, que cumpria os mínimos em ciências e se dedicava de bom grado às letras, com uma inclinação para os autores latinos (para meu espanto, contava que lia Virgílio e Ovídio no original, por gosto - exemplo esse que eu não fui, nem de longe, capaz de seguir
). Do ciclo do colégio eram inúmeros os episódios engraçados que recordava - coisas de rapazes, partidas que pregavam uns aos outros, escondiam os pacotes de doce ou os queijos regionais que alguns guardavam nos cacifo, e, também, passeios, excursões, bailes locais em que conseguiam introduzir-se, não sei se quebrando as regras da instituição, ou não. Numa dessas festas, à porta do salão havia um cartaz que dizia: "Pede-se às excelentíssimas damas para virem calçadas". Nas feiras, o pai representava facilmente o papel de um inglês, que como estrangeiro, então uma raridade, recebia as melhores atenções. Os outros faziam de conta que traduziam... Uma vez correu mal, tropeçou, lançou um brado em português e pouco faltou para que todo o grupo, o falso inglês e os falsos tradutores, fossem linchados... Os onze anos de Carvalhos tiveram, contudo, o hiato de uma época, justamente no último ano. Influenciado, certamente, por amigos de Avintes, talvez mesmo pelos primos, quis ir para o liceu Rodrigues de Freitas e os pais fizeram-lhe a vontade. Tomava a camionete para o Porto mesmo à porta de casa, onde havia uma conveniente paragem, e seguia num grupo animado de colegas, Foi um tempo divertido, possivelmente até demais, porque chumbou. Para tudo há uma primeira vez. Queixava-se de perseguição de um dos professores... Parece que partilhavam idêntica atração por uma jovem portuense, que foi fonte potencial de conflitos alheios ao curriculum liceal. Paixões juvenis, devaneios românticos, não não eram mencionadas pelo Pai como matéria de que se fazem histórias para rir ou sorrir - só esta e "en passant", como justificaçãom digamos, um pouco incomum do "insucesso escolar". Ficou a impressão de que era precoce nesse capítulo e que encontrava boa recetividade no sexo feminino. Aos 17, 18 anos era já um rapaz vistoso e comunicativo, alto e loiro e, se isso era fator atendível para algumas meninas, com fama de herdeiro rico. Perante o desastre académico, não hesitou, pediu, sensatamente, aos Pais para voltar ao colégio. No Porto, as coisas não prometiam a correção de trajetória, que facilmente conseguiu na branda e lúdica clausura dos Carvalhos. Não sei se foram desse tempo do Liceu Rodrigues de Freitas, mas devem ter sido, outros divertidos episódios, protagonizados em parceria com o primo António (Reis). O Tio Reis era funcionário superior das Finanças e vinha diariamente de carro para a cidade. O automóvel ficava o dia inteiro estacionado por perto, na rua e quem, secretamente, o utilizava era o filho, Com o seu talento para toda a espécie de engenharias, mesmo sem chaves, conseguia abrir portas e acionar o motor Convidava o primo e alguns amigos para um passeio até à Foz ou outro sítio aprazível e, depois, retornava o veículo ao lugar de estacionamento. Mesmo que não fosse rigorosamente o mesmo lugar, o Pai era um senhor distraído e não notava o desvio. Reparava, sim, no consumo excessivo de gasolina e trocou de carro por causa desse defeito. Não sei se também trocou o seguinte, ou se os rapazes passaram a dar umas voltas mais curtas... Uma vez, apareceu um polícia, quando o António estava se preparava para abrir a porta sem chave... Nada que o embaraçasse. Chamou a autoridade e pediu ajuda, dizendo que tinha perdido a chave. O polícia amavelmente tentou ajudar. O António tinha, definitivamente, ar de dono daquele carro. Não se pode dizer que a sua infância e juventude fossem pontuadas por acontecimentos espetaculares. Foi sempre demasiadamente bem comportado, pois com comedidas e inofensivas transgressões se contentava. Espetacular, bombástico, embora, segundo alegava, não doloso, só o caso de uma experiência laboratorial do António no Colégio João de Deus, contando com a desastrada colaboração do colega José Aguiar, que alguns anos depois, seria cunhado do primo João. Na altura em que ambos fizeram explodir parte do laboratório, nenhum parentesco, nem mesmo por afinidade, os ligava, Os pais pagaram o prejuízo, e parece-me que foram expulsos (a expulsões de colégios portuenses estava o José já habituado, facto agravante que terá pesado na sanção de ambos).
De Avintes, as narrativas mais divertidos começam com a chegada dos novos "vizinhos do lado", donos da quinta que confinava com os terrenos da casa dos pais: o Coronel Novais e Silva, a mulher Haydée Genelieu (descendente de um dos engenheiros que acompanharam Eifel na construção da ponte sobre o Douro) e os filhos, Maria Beatriz e António Júlio. Uma família encantadora, da alta burguesia portuense, que trocou a cidade por aquela aldeia milenária e tranquila, numa colina com esplendorosa vista sobre casas rurais, campos de milho e uma larga curva do Douro ao longe. A mesma vista que se desfrutava das janelas do 1º andar da casa do Pai (ou dos seus Pais) na Rua 5 de outubro, a primeira que se encontrava à vinda do Porto ou de Oliveira do Douro, depois de atravessar o Febros, afluente do Douro, no início de uma subida íngreme. As propriedades eram separadas por uns metros de declive, cada vez mais acentuado, à medida que se descia vários lances de escadas da casa da quinta para o interior da quinta. Entre as casas, a divisória era apenas um muro alto, onde colocaram, de ambos os lados, escadas de madeira para um trânsito fácil, quando a relação de vizinhança se transformou em grande amizade. Os três adolescentes, a Maria Beatriz um pouco mais velha e o António Júlio um pouco mais novo do que o João eram tratados como irmãos pelas duas famílias. O Coronel era, naturalmente, mais severo com eles do que com ela e o João tinha de cumprir ali reagars de disciplina, a que não estava nada habituado. Gostando embora do Coronel, o Joãozinho sentia-se bastante intimidado na sua presença, gaguejava mais do que o costume para se justificar, quando era preciso, atrapalhava-se e, por isso, várias vezes as coisas lhe corriam menos bem. Era, de facto, ligeiramente gago, caso que não se explicava pela genética. Constava que teria sido consequência de um grande susto, quando, por brincadeira, uns rapazotes, talvez moços da lavoura das terras dos Avós, fizeram de conta que o deixaram sozinho dentro de um barco, aparentemente à deriva, fugindo da margem do rio. Ninguém tinha certezas, nem os pais nem ele, mas o problema surgiu, de repente, aí por volta dos 3 ou 4 anos. Certo é que não tinha medo da água, nem do mar, nem do rio, nem de correr pelas terras ribeirinhas, onde se lembrava da figura imponente do Avô João, agigantado nos seus capotes alentejanos e da avó de um metro e meio, que o deliciava com histórias, provérbios e lenga -lengas. Os primos diletos (Reis, Capelas e Marques) moravam, todos longe (o "longe" das aldeias pequenas, na outra extremidade da rua 5 de outubro, que é a "avenida de Avintes"), muito mais comprida do que larga, ter, ali, quase em comunidade, aqueles "novos irmãos" foi uma sorte para um filho único, tão sociável e divertido. E a relação havia de manter-se, sempre, mesmo depois dos Novais e Silva se mudarem para o centro do Porto, na Boavista. A quinta foi comprada por um casal minhoto, sem filhos, que manteria as escadas de ligação por sobre o muro e uma relação de vizinhança muito amistosa, mas isso aconteceu vários anos depois. Nos relatos do Pai, rapazes e raparigas do seu círculo eram referidos no mesmo plano, um plano de igualdade, o que nos deixava, a minha irmã e a mim, um pouco surpreendidas. Contava, por exemplo, como conviveu, no colégio dos Carvalhos, no fim do curso do liceu, com colegas raparigas, não sei porque razão, nesse ano, admitidas, a título excecional. Poucas, é claro, uma delas, se não me engano, Virgínia de Moura. Vi-as com simpatia, tal como as primas ou a Maria Beatriz (nunca falou, porém, de namoradas, sendo certo que nós também nunca perguntámos). A mesma atitude parece ter tido o António (Reis), que reagiu, até onde pode, às limitações que eram impostas à irmã, por exemplo à proibição de conduzir carro e tirar carta. Ensinou-lhe a guiar, às escondidas, e deixava-a levar o carro, pelas estradas cheias de curvas perigosas, subidas ou descidas, das saídas de Avintes. E, em compensação, ela deixava-o tocar o seu piano. Para o conservadorismo dos tios Reis, o volante do automóvel era para mãos masculinas, tal como o piano para as femininas. Na verdade, o pianista mais talentoso era mesmo o António, que sem nunca ter tido professor, tocava, de ouvido, excelentemente, música clássica... O João também quis, em vão, aprender piano. O Pai, que era melómano, e até também tocava de ouvido vários instrumentos, ofereceu-lhe um pequeno violino no lugar de um grande piano, como a Jacob, ao qual"em vez de Raquel lhe davam Lia". Ao contrário de Jacob conformou-se. Nunca se converteu em grande executante, mas sentiu a falta do violino depois de o ter, imprudentemente, emprestado a um amigo de um amigo, que lhe deu sumiço... Com ou sem violino, em Avintes, ou ao som do piano, ou com o coro familiar a cantar à capela, os nossos serões eram muitas vezes animados, pela música. (Todos cantavam bem, exceto eu, que em coro tratava de não sobressair). Outras vezes, eram estas histórias de juventude que nos entusiasmavam, mesmo que fossem repetidas, porque havia sempre um novo pormenor. Arrepiante só a tragédia dos saguís do António, que era situada no seu exato contexto, com uma infinidade de detalhes e de protestos de inocência, de facto, credíveis porque os dois primos eram amigos de todos os animais conhecidos. Resumindo: os pequenos macacos engraçados, trazidos do seu habitat por um tio, que era médico de bordo de navios, em longas viagens intercontinentais, estranhavam, naturalmente, o frio dos invernos europeus. O tio, e os macaquinhos, as brincadeiras eram descritos com enorme realismo - e também o desconforto de bichinhos de outras paragens, no comparativamente escuro, frio e confinado horizonte de um casarão de Avintes. Solução, com a marca mais do António do que do João: estágios de alguns minutos numa fornalha, bem temperada para os aquecer, mas não demais. Os saguís davam espetáculo, coitados, saltitando lá dentro, até serem libertados, de novo, para o exterior, à temperatura ambiente. Morreram rapidamente de pneumonia... "LOVE STORY" NAS MARGENS DO DOURO Avintes era terra de boa agricultura e de pinhais, de lavradores, uns mais ricos do que outros, de gente pobre também, trabalhadores rurais e operários, e de elites intelectuais - um grupo alargado de artistas, académicos, gente de profissões liberais, empresários, quase todos ligados ao Porto, naturalmente. E, alguns, até ligados ao Brasil, com os seus palacetes ao longo da rua 5 de Outubro. O ciclo era de remanso económico e político, entre duas grandes guerras fratricidas, Cá dentro uma ditadura, aparentemente branda, consolidava-se a olhos vistos e para muitos portugueses, como os pais do António e do João, era uma boa resposta à agitação política e social da 1ª República. Os pais eram mais salazaristas do que os filhos, que, contudo, não andavam pelas trilhas da luta revolucionária. Com prioridades mais ligeiras, para eles, em Avintes, o tempo era de festa. Os jovens estudantes estavam unidos pelo parentesco, ou eram "primos dos primos" e, em qualquer caso, conviviam como família. Para muitos, bastava andar uns metros na mesma rua, para se encontrarem nas casa uns dos outros. Uma maioria morava acima do Cruzeiro, onde a rua que vem da Igreja entronca na 5 de Outubro, à vista da elegante mansão que acolhe o Clube Avintense, na altura um clube luxuoso, fechado, só para alguns, só para homens. (As portas abriam-se às senhoras apenas para bailes de gala). A casa dos Tios Reis (onde está agora instalado o teatro dos "Plebeus Avintenses") era junto à dos primos Marques (herdada de um avô comum do Francisco, do Corinto, do João, do António, da Maria Angélica). Um pouco abaixo, a vivenda da Maria Argentina, prima dos Reis e a da Celina Viana. Mais a cima, as meninas da quinta da Gândara, que pertenciam ao grupo, dentro do qual alguns casamentos românticos foram tecendo (como o da Hilda da Gândara com o Carlos Reis, o da Çelina com o João Moreira, ou muito mais tarde, o da Maria Angélica com o Corinto Marques). De facto, da amizade também nasceram paixões... De todas, a que mais marcou o imaginário daquela geração, foi, certamente, a que teve no centro a personalidade forte, a grande beleza, e o destino de Celina.
A vida parecia tê-la favorecido em tudo. Sabia conseguir o que queria, de uma forma sensata e determinada, que os outros aceitavam com a força dos seus argumentos e do seu encanto pessoal, a começar pelo "inner circle" da própria família. Com amável camaradagem, afastava os pretendentes, que eram bastantes, e, por fim, fez a sua escolha - o João. Amor correspondido. Quando casaram, ela tinha 21 anos e ele 19. Por Celina, desistiu do curso Letras em Coimbra. A Faculdade de Letras do Porto, tinha sido encerrada pela ditadura, para correr com todos os vultos (oposicionistas) que tanto a prestigiavam. Ciências que era o que a cidade podia oferecer-lhe e aí se matriculou. Talvez só para satisfazer a vontade do pai. Como era previsível, rapidamente abandonou as aulas, por declarada falta de vocação científica. E procurou emprego por perto - na Câmara de Gaia. Havia uma boa razão para um enlace tão prematuro. A "doença do século", ou do início do século, que era ainda a tuberculose, não poupou aquela fascinante mulher, em plena juventude. Não se deixou vencer pelo medo, não quis esperar pelo veredito incerto sobre a doença, não hesitou, quis viver com o homem que amava, nem que fosse por um breve futuro de felicidade. Ele também não hesitou e ambas as famílias se empenharam, em tornar possível uma verdadeira "love story" de fins da década de 30. Quando vi o filme com esse título, tantos anos depois, lembrei-me daquela história antiga, que eu, ainda criança, fui reconstituindo e recriando na minha imaginação, como um "puzzle", ouvindo comentários daqui e dali, ou discussões ciumentas, por parte da minha Mãe, sem nunca ter questionado diretamente ninguém, e muito menos o meu Pai. Os contornos sociais eram bem diferentes dos da trama "made in USA" - ali tudo e todos giravam à volta dela, como sujeito de admiração universal. Todavia, na ficção americana e numa realidade, onde Celina ocupava graciosamente o centro de cena, o papel principal, a essência era a mesma: a vivência efémera de um sentimento eterno. O casamento durou sete ou oito meses de felicidade. Valeu, certamente, a pena. E a imagem de Celina, que partira, continuava intensa e luminosa na memória da terra. Uma memória venerada contra a injustiça da sorte. Os sogros, que a adoravam, como uma filha querida, conservavam o seu retrato na sala de visitas, numa enorme moldura de prata. Uma foto de meio corpo, cabelos escuros, soltos, compridos, uns olhos expressivos, um sorriso e um luxuoso vestido de seda, sem colares nem adereços. Parecia-me uma princesa, ou uma estrela de Hollywood. Encantava-me a senhora do retrato, queria saber mais sobre a sua vida. Impossível, porque minha Mãe não suportava o que chamava "o culto" de Celina, as fotos expostas na casa, as "romagens" ao seu túmulo, as recordações e os sentimentos os sogros dela guardavam. Pode ter ocupado um lugar igual no coração do marido, mas não no deles! As disputas sobre a exposição do retrato duraram anos, e, por isso, me foi acessível até uma idade, 7 ou 8 anos, em que ficou bem gravado na memória . Mas um dia, a minha ciumenta Mãe levou a melhor, a moldura desapareceu, depois de uma última discussão, e fez-se silêncio. Nunca consegui aceitar, ou melhor, compreender a razão dos ciumes de alguém que já não estava ali - sou e, já em menina era, instintivamente favorável ao absoluto respeito por uma diacronia dos afetos, em que cada tempo tem o seu império - a simultaneidade de relações amorosas é o que não tolero, no que me diz respeito, embora reconheça, racionalmente, que é possível estar dividido entre dois amores atuais. Ainda por cima, a segunda mulher era também elegante e bonita, diziam até que parecida com a primeira. Mais pequena e mais magra, é certo, mas não menos arrebatada e voluntariosa. Só mais de meio século depois destes incidentes, que me desgostavam, mas que não tinha com quem comentar, encontrei um interlocutor inesperado: o primo António Reis, em Toronto, numa das minhas frequentes visitas ao Canadá (para onde ele emigrou a meio dos anos 60, com a Mulher Amélia e o filho pequeno). Quando podia, prolongava a visita e ficava em casa deles, perto do aeroporto. Foi numa dessas ocasiões que o tema surgiu, a propósito da produção poética do meu Pai, que se perdeu, como já disse, quase toda. Os versos dedicados a Celina foram rasgados, durante uma crise de ciúmes. Na verdade "abismus abissum invocat" (espero ter acertado no dito latino, que o Pai saberia aprovar ou corrigir...). São atitudes de fácil contágio - o Pai fez exatamente o mesmo a uma composição musical inédita do pianista Marques Ribeiro dedicado à Mulher, com quem tivera um princípio de romance... Foi então que, na sua casa de Martha Eaton Way, o António "agarrou" o tema de conversa. Primeiro, tentou lembrar-se dos sonetos escritos para Celina, mas só conseguiu recitar um, e incompleto. Depois, falou dela, infindavelmente - de uma jovem moderna, um ícone da última moda, alta, lindíssima, muito divertida, e sempre cercada por uma corte de admiradores. Entre estes, ali o confessava perante uma Amélia complacente, ele próprio! Com dezasseis, dezassete anos, sentia-se perdidamente apaixonado. Os dois primos, cada qual o mais atraente, numa disputa pouco fraternal pela mesma mulher - jamais imaginaria! Celina, obviamente, não levava a sério o mais novo, novo demais. Essas confidências foram uma revelação, trouxeram-na, da distância de um Olimpo, da figura recriada a partir de uma pose teatral, que a fazia parecer mais velha, com um "glamour" de "mulher fatal" para uma jovem extrovertida, com eu própria tinha sido, irreverente, iconoclasta, ágil, desportista. O que mais me ajudou a reconverter o mito na pessoa real, foi o episódio da sua chegada a uma reunião de amigos pelo telhado - estavam, elas e eles, à conversa num sotão e ela surpreendeu-os entrando por um postigo do telhado. Mas que bem! Tão parecida com a minha Mãe, que fazia coisas perigosamente na mesma linha, como subir ao telhado da "casa da eira" e inclinar-se na esquina para apanhar os araçás mais inacessíveis, ou saltar do 1º andar da casa por sobre canteiros de roseiras de pé alto, só para vencer apostas... Na geração seguinte, eu fiz o mesmo. Do primeiro casamento do Pai não existem imagens - deve ter havido muitas, mas perderam-se, nunca as vi, nem mesmo nos álbuns dos Avós - e, assim, tudo quanto sei foi o que o António me contou nessa tarde - foi um casamento de estadão, a noiva de vestido branco, sumptuoso, banquete nos salões da grande mansão dos Viana e uma multidão de convidados. Memorável. O António descrevia a cerimónia com todos os detalhes,inclusive o discurso eufórico e emotivo do Avô Manuel, que parece ter sonhado tanto com aquele casamento como os próprios noivos. Ele próprio não quis participar da festa, sentia-se demasiadamente preterido e infeliz. Mas, como não se falou de outra coisa durante os dias que se seguiram, ficou a par do que se passara, como toda a gente, entre presentes e ausentes. Pouco foram os meses, as semanas, os dias que os noivos viveram "num voo pleno de ansiedade", o "coração vogando nas asas do sonho". O desaparecimento de Celina, uniu as famílias à volta da sua memória - pais. sogros. cunhados, tios e primos conviviam intensamente depois, como antes. O Pai tinha 20 anos, o seu emprego rotineiro, muitos amigos. Faltava-lhe o ânimo para recomeçar estudos, ou para procurar profissão mais interessante. Entre os seus melhores amigos, amigos de infância, estavam dois irmãos, os Padres Eduardo e António. Foi através deles que conheceu, em Outubro de 1940, a família Aguiar, a Maria Antónia, que iria ser a sua segunda mulher. Na capela do Monte da Virgem, no domingo da "missa nova" do Padre António. A Maria Antónia, no colégio, foi colega e grande amiga da Maria Luísa, irmã dos futuros padres, que eram, nessa altura, colegas e grandes amigos do João. E, por isso, uns anos depois, todos estavam presente na primeira missa do mais jovem dos padres - a Avó Maria Aguiar, com as filhas solteiras (difícil já, então, levar os filhos à igreja...) e a Avó Olívia Capela, com o filho viúvo. Conta a Mãe que o bonito rapaz alto e loiro, apesar de muito devoto, se distraiu o suficiente para a olhar, repetidas vezes. E tendo ela sentido esses repetidos olhares, é claro que também não prestou à missa a devida atenção. Cá fora no adro, antes mesmo de serem formalmente apresentados, já ele lhe pedia para aceitar uma lembrança do dia da "missa nova" do amigo comum, comprada numa tendinha, que vendia terços, imagens da Virgem e anjinhos, a par de pequenas peças de artesanato - reduto em que o Pai escolheu a sua simbólica oferta. Presente estava também a Tia Arminda (que não era bem tia, mas sim tia da Nucha Aguiar, professora de piano das primas mais novas), que era de Avintes, íntima da Avó Olívia, e, igualmente, da Avó Maria, que visitava, sempre que passava férias em Gondomar. Foi tempo de saudações e conversa entre as três cristianíssimas senhoras e entre Maria Antónia e João, que estava entusiasmado com a perspetiva de uma excursão a Lisboa, com o primo António, para verem a exposição do "Mundo Português". De lá iria escrever-lhe e mandar-lhe um soneto, o primeiro que discretamente falava de amor que se procura. O que começa assim: "Lancei o meu olhar sobre esse imenso Tejo, À noite semeado de um encanto vago E vi em cada onda uma sombra, um lampejo Dessa história de heróis, que no meu peito trago" Dir-se-ia que toda a inspiração vem da temática da "expo", mas não, na última estrofe o A. sente o irreprimível desejo de lançar às ondas o seu coração em busca de um amor... que, pelo visto, até já estava encontrado. À primeira vista. Seguiu-se uma frequente correspondência, muitos encontros em Gondomar, no Porto, num roteiro de terras, como Santo Tirso, onde, por coincidência, a Maria Luísa dava aulas num colégio de freiras e o António Aguiar, irmão da Maria Antónia, era tesoureiro da Fazenda Pública e morava numa pensão dos tios da rapariga com quem namorava, para casar uma beldade de fulgurantes olhos verdes (Antónia, o seu nome no feminino, que todos chamavam Toninha). A irmã Maria passou a visita-lo, mais vezes, ficava na mesma pensão, encontrava-se com a amiga dos tempos do colégio e com o namorado (que tinha de escolher outra pousada. O irmão era tão severo como a Mãe, embora com agenda mais preenchida, abrandasse a vigilância durante o dia de trabalho. Passeavam por aquela vila linda, sempre acompanhados pela Toninha, naturalmente. Entretanto já era amigo de toda a numerosa, alegre e turbulenta família da namorada. Um rigoroso contraste, com a sua. Não só eram muitos (sete irmãos, mulheres, os mais velhos já com filhos pequenos, namorados e namoradas) como muito diferentes entre si, com uma tradição de confronto e discussão política, que nunca acabava mal, embora ninguém nunca mudasse de campo, ou de opinião. Nas gerações anteriores, uns eram monárquicos, outros republicanos. Nesta, em plena guerra, degladiavam-se, sobretudo, anglófilos/democratas e germanófilos/salazaristas. Mas, felizmente, eram todos também muito dados às artes da música e da dança, e facilmente passavam do modo de "tertúlia - debate" para o de tertúlia musical, tocavam piano as senhoras, cantavam todos em coro, com algumas vozes assombrosas. O Pai era mais um, com o seu belo timbre de voz e os argumentos de fortes convicções, gaguejando, embora, no auge das discussões. De comum, a mãe e à futura sogra, tinham , antes de mais, a religiosidade que governava as suas vidas, e as respetivas casas era frequentadas por inúmeros padres o pároco, os coadjutores, outros padres de fora, seminaristas, freiras, missionários. Ser o João um crente de missa e comunhão quase diárias, tornou-o muito popular, desde a primeira hora, desde o encontro do Monte da Virgem... No verão de 41, as meninas Aguiar não puderam veranear na Foz, como era habitual. Madalena, a mais nova, estava convalescendo de uma "primo infecção" e os médicos aconselhavam os ares da serra, não as nortadas do litoral. Passaram o verão numa quinta cedida por amigos, em Branzelo. Duas primas do João, a Alda e a Maria Helena foram convidadas da Avó. Já o João, nos fins de semana, tinha de procurar um quarto de pensão, convenientemente perto, mas não demais. Eram noivos, sem oposição alguma, (graças ao catolicismo do viúvo, a que acrescia a fama de herdeiro rico), mas sem permitir "liberdades", que tão conservadora senhora acharia impróprias. Costumes da época, levados ao máximo limite do rigor. Todavia, as filhas, sobretudo as mais novas, sabiam achar mil e uma maneiras de contornar proibições. Cumplicidades nunca lhes faltaram, a de umas com as outras, a das amigas e, particularmente importante, a dos vários e sucessivos empregados ao serviço na "Vila Maria" (ou das criadas e criados, como então se usava dizer). Sobre Branzelo há uma carta do Pai, em versos bem humorados, contando uma atribulada viagem de regresso de fim de semana, em que os convivas tinham sido muitos, incluindo o jovem Padre Vitor Hugo, coadjutor na paróquia de São Cosme, autor uma grande reportagem fotográfica dos acontecimentos... Avintes, tantos de tal daqui fulano de tal etc. e tal Maria: Venho escrever-te/porque o ler também diverte/quem nada tem a ocupá-la.../- E enquanto a pena desliza/A gente sente, imprecisa,/ A sensação de que fala!//Começo por te contar/ Que ainda antes de chegar/ Ao Porto- que forte perda/ O camião de Branzelo/ Furou antes do Covelo/ E teve "panne" na Meda/E assim sem mais novidades/ Cheguei cheio de saudades/ Ao café para engraxar;/ Mas aí, nova surpresa/ Sentado em frente a uma mesa- / Me estava a aguardar.../- Espantei que nem Texugo/...Era o Padre Victor Hugo/ Cheio de fotografias./ Tinha ali toda a excursão/- A Maria e o João/ E mai-las outras Marias!/ A Lolita numa delas/ Está tão só que mete pena./Apenas aos pés, deitada,/Uma galinha coitada (esfolada) Tem pena de não ter penas.../ (Diz a má língua que as outras eu/ As comi- tenham juízo -/ Que alguém as comeu, comeu!/ Quanto a mim estou "indeciso" ...)/ Na da Penha vi: que vento!/ Se me rio mais rebento/ De dar tanta gargalhada - / Quanto a ti minha "migalhas",/ Se te ris mais, escangalhas/ Não se te aproveita nada!/ Agora assunto mais grave/ - A Lolita sempre quer/ Fazer anos quarta-feira?/ porventura ela não sabe/ Que isto de envelhecer/ É grande asneira, ui, que asneira?!/ Ela que tenha juízo/ durma bem e ganhe siso/ Um ano a mais... não vem mais/ A graça morre, se passa.../ Recordar é uma desgraça/ Desgraças já há demais!/ Oh abri alas.../ E a Lena como está?/ Sossegue, sim?- que a Tatá/ Um dia faz-lhe a surpresa!/ Lá quando menos o conte/ Inda o "Sole" "male" desponte/ Na manhã! Ei-lo a ele!que surpresa!/ Oh! abri alas!/ E vocês como estão?/ Não estejam com "cem" cerimónias!/ Por aqui andou toupeira/ Já lambeu a capoeira,/ Sou todo vosso/ João Uma narrativa, que podia ter saído da pena, ou melhor, oralmente, da voz da Avó Quitéria Francisca... cheia de pormenores explícitos e sub-entendidos - alguns difíceis de descodificar, mas que nos falam de amizade e boa disposição, de passeios, de casos, de romances de verão e de amores que se revelariam duradouros... Nos versos dedicados às futuras cunhadas Lolita e à Lena, a primeira letra de cada estrofe dá-nos uma pista, o nome dos rapazes da sua predileção, nesse agosto de 41: Eduardo e Esolino. O primeiro, que viria a ser o muito querido e divertido Tio Eduardo, um acabado exemplar "bon vivant", estava na lista negra da Avó por isso mesmo, e por não ser um católico praticante (apesar das famílias pertencerem ao mesmo círculo social da vila de Gondomar...). O Esolino era vizinho do lado, as propriedade confinavam, o pai era músico, compositor, tocava na igreja, (preenchia uma condição "sine qua non"...), parece que gostava da menina, muito bonita e serena (ao contrário das manas, que eram tão bonitas, quanto temperamentais). E talvez ela lhe achasse graça, mas aos 15 anos, era cedo para se pensar em compromissos. A Tatá que levaria o simpático vizinho a Branzelo era a Tia Hermínia, cunhada da Avó Maria e uma segunda mãe da Tia Lena, sempre pronta a fazer-lhe todas as vontades. Mais enigmática é a menção à galinha retratada numa foto, e às galinhas devoradas. Talvez uma forma de auto-crítica, porque o Pai tinha um apetite muito saudável, que manteve até à meia idade, comia quantidades assombrosos de carne de qualquer espécie. Comia imenso e bebia pouco. O gosto dos contrastes - ele tão alto e tão apreciador de boa mesa, ela tão magra, frugal e pequenina... Quanto ao passeio à Penha, havia de repetir-se muitas vezes, afrontando a ventania, com risos e gargalhadas. (Como os jovens de 20 anos, em Portugal, estavam longe de uma guerra tão próxima, que acompanhavam pela imprensa e pela rádio, mas não entrava no seu quotidiano!).
. O casamento civil foi, em Gondomar, a 1 de novembro de 1941. Em tempo pré-concordatário era obrigatório realizar primeiro o casamento civil e só depois o religioso. Mas não era encarado como festa, apenas como pró-forma. Por isso, a Avó chamou o único táxi que havia em São Cosme, o do Sr Alvarinho e assim foi com a filha até ao Registo Civil, em Quintã. O Conservador era um primo afastado, chamado Jazelino. Homem muito delicado beijava à prima Maria e fazia vénia à Maria Antónia. A Mãe recorda que, no trajeto, só viam gente vestida de preto, com ramos de flores brancas na mão, em sentido contrário, a caminho do cemitério. Em Gondomar, o dia de todos os santos é também o dia dos fiéis defuntos. Assinada a documentação da praxe, os noivos recolheram cada um a sua casa, porque o que contava era a cerimónia religiosa, na Igreja Matriz de Gondomar, que aconteceu daí a duas semanas. O "pedido da mão da noiva" tinha sido feito formalmente, à mãe e a um dos irmãos, o Tio Alexandre, o que sempre acompanhou os sobrinhos como um pai, na falta do pai. O Tio defendeu, pois, paternalmente a Maria Antónia, com uma variante de "sermão laico" sobre as obrigações do marido (era republicano e anti-clerical - seus únicos defeitos, do ponto de vista da irmã - e o ser o noivo muito devoto para ele não era recomendação bastante). A lua de mel foi na região do Vouga. Como o noivo ainda não tinha comprado o seu primeiro carro, viajaram no comboio, no famoso "vouguinha", a partir de Espinho, fazendo paragens para pernoitar, aqui e ali, até Viseu, cidade onde a minha mãe fez questão de passar uns dias. Era outono, quase inverno, contudo o tempo pouco importava. Ficaram, nos primeiros anos a viver na casa enorme da Avó Maria, onde já só só moravam com ela dois filhos solteiros, o Zé e a Lena. A Mãe manteve-se no seu ambiente, o Pai foi encontrar uma nova família, grande e divertida - gostava de todos e todos gostavam dele. Não tão excelente a relação da Mãe os sogros - acho que nunca a viram como a filha que tinham em Celina, e ela retribuía, interpondo distância. Quanto a todos os demais novos parentes por afinidade foi um sucesso - adotou e foi adotada, facilmente, por tios e primos, e até, também, pela mítica Avó Quitéria Francisca, então já com mais de 90 anos, mas lúcida e esperta, como sempre fora. Achavam a maior graça uma à outra, mesmo quando a velhinha repreendia a jovem por usar saias tão curtas, coisa que esta não toleraria a mais ninguém. Limitava-se a responder que "era a moda", que, realmente, fazia questão de seguir, à sua maneira. Curiosamente, nesse aspeto, o Pai não era diferente - embora muito mais comedido em matéria de gastos, o seu lema era "pouco, mas bom", fazendas inglesas, costureiro afamado do Porto (durante muitos anos, o Arménio). Quando iam para Avintes passar uns dias (a casa dos Avós tinha, também, espaço de sobra), o convívio com os tios e primos Reis e Marques, sobretudo, e, também, os Capela era uma festa constante. De qualquer modo, onde quer que estivessem, o Porto era um ponto de encontro muito frequente. Para tomar café (no Guarani, no Imperial, no Paládio), para ir ao cinema nas noites de sábado, para deambular por Santa Catarina e Santo António. Curiosamente, os casais frequentavam juntos esses cafés, com os primos solteiros. Naquele tempo, não era coisa habitual (seria influência das vivências de Espinho, onde isso era a regra?). Quando só entre elas, as senhoras escolhiam as confeitarias tradicionais, como a do Bolhão, a Arcádia ou a Ateneia. A Mãe e a prima Cristina eram as únicas que se aventuravam no Café Ceuta, que talvez oferecesse um ambiente menos sexista do que os outros. Nos fins de semana, aos domingos, eram, muitas vezes, desafiados pelos cunhados para passeios pelo verde Minho, sempre à descoberta de um novo restaurante típico e de circuitos por estradas secundárias, com vistas espetaculares sobre serras e rios. Seguiam em verdadeiros cortejos de carros, levando a Avó Maria e todas as criacinhas. Pelo Minho, e não só - também pelo Douro interior, por Trás-os-Montes (não perdiam as corridas de Vila Real), mais raramente, em direção ao sul. Muitas excursões eram dirigidas, também, a pequenas terras do interior, onde os antigos coadjutores da paróquia de Gondomar eram senhores abades - como o Padre Campos ou o Padre Serafim, muito hospitaleiros, divertidos, boa companhia. Eram os destinos favoritos da Avó Maria, que, contudo, gostava de passear, fosse para onde fosse.
Em 1942 nasci eu, na Villa Maria, no ano seguinte, em dezembro, a Madalena. Para nós, como para todos os primos da nossa idade, o casarão, os jardins e, para trás, o terreno mais rural, cheio de árvores de frutas e de vinhas, era o paraíso, como fora para a geração anterior. Nos Natais, Páscoas, e outras festas, éramos 30 ou 40 convivas à volta da mesa. Cada casal trazia a sua empregada, para ajudar na cozinha e no serviço. Uma multidão - a casa tinha sido construída para ser vivida assim...

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