segunda-feira, 1 de junho de 2020

A AVÓ MARIA AGUIAR - in A voz dos avós


A Avó Maria Aguiar
Maria Manuela Aguiar

A Avó Maria Aguiar era figura pública proeminente em Gondomar, vila antiga, na fronteira oriental do Porto. Os seus sete filhos e todos os netos eram referidos e considerados em função dela, para sempre umbilicalmente ligados à aura e ao nome da matriarca, quase sem luz própria, por mais brilhantes que fossem. 
Nasci na sua casa, cercada de jardins murados, com um mirante florido na frente da rua e pomares e vinhedos a perder de vista, por detrás da mansão grande de "brasileiro", de cor rosada e venezianas verde escuro - a Vila Maria.  Aí, fui tão feliz quanto se pode desejar, nos primeiros oito anos de vida. Com ela, aprendi a gostar de histórias (mais de narrativas engraçadas sobre si e a família do que de lendas e contos infantis), a declamar poemas de Guerra Junqueiro, exercitando a memória em alguns dos que parecem intermináveis  - "O melro, eu conheci-o, era preto, brilhante e luzidio..." - , a bordar pequenos quadrados de linho a ponto cruz, com o mínimo de habilidade inata. E a comportar-me bem, tanto em procissões e novenas de Igreja, como nos lanches das confeitarias portuenses, a Villares ou a Ateneia, onde lhe fazia boa companhia.
Criança rebelde, com reputação de indomável, várias vezes, emboscada atrás 
de um móvel, ou de uma porta, ouvi a avó levantar a voz para me defender, dizendo:
 "Ninguém compreende esta menina! É preciso explicar-lhe a razão das coisas. Se ela
perceber, aceita”! A esta persuasiva pedagoga, devo algumas das mais extraordinárias alegrias da infância: a compra de uma carteirinha de verniz vermelho, usada a tiracolo - a contragosto dos pais -, a oferta de um grande boneco pretinho, por muito tempo namorado na montra do bazar de Sá da Bandeira, e o traje de anjo amarelo, de grandes asas brancas, com que desfilei pelas ruas de São Cosme, em cortejo processional, depois de vencida, pela avó, a relutância dos pais em satisfazer tão ardente ambição infantil. 
À Avó devo, igualmente, a remota origem do meu feminismo - o que não era, de todo, resultado que ela desejasse.
 A sua influência na "res publica”crescera circunscrita ao pequeno círculo bem frequentado das obras paroquiais, onde debutou, e foi extravazando para o da comunidade como um todo, do campo da assistência e do atendimento de casos sociais ao da cultura. Organizava peregrinações, a par de récitas e concertos beneficentes, cujos ensaios decorriam, muitas vezes, na sua sala do piano. Outras vezes, as arcadas e a espaçosa adega do piso térreo transformavam-se em estaleiros de produção de carros alegóricos, ornamentados com flores de papel, confecionadas por ruidosos bandos de meninas, a que as netas tinham licença de se juntar. Para tudo havia regras, naquele mundo que se movia sob o impulso de Maria Aguiar, defensora do recato e das "boas maneiras", ao serviço das quais, tantas vezes me repreendia: "As meninas não fazem isso!". Isso sendo o que era permitido aos primos da minha idade, como subir às árvores do jardim ou aos telhados, saltar de carros eléctricos em andamento, jogar à bola com os garotos da rua. 
 Achei por bem provar, pela "praxis", que "as meninas" podiam tornar-se tão aptas como os rapazes a cumprir objetivos nos domínios interditos. E assim me converti, a partir dos seis ou sete anos, ainda que sem consciência clara da existência das questões de género, em feminista praticante. Por sinal, os homens da família, pai e avô paterno, cedo me iniciaram na paixão pelo cinema, pelo teatro e pelo futebol, não mostrando partilhar as preocupações das avós - Avó Maria e Avó Olívia - sobre a construção cultural do "feminino". Na altura, não me ocorreu nunca indagar o porquê da posição singular que a Avó Maria ocupava na sociedade local. Só muito mais tarde me apercebi de que o ganhara num trabalho incansável e generoso, que, mais do que vocação, fora destino, fatalidade de se ver  mulher só e ter de encontrar os modos de se realizar numa segunda vida.
Maria da Conceição Barboza Ramos era a mais nova de oito filhos de Carolina Ferreira Ramos (de uma família enraizada, há séculos, em Gondomar) e de Joaquim Mendes Barboza, o tabelião, que viera do norte (Bitarães, Paredes), para nunca mais deixar a terra de adoção. Em tudo fora menina do seu tempo e condição social. Depois da escola primária, recebeu, em casa, os ensinamentos de explicadores e do pai (que fora professor, antes de enveredar por carreiras jurídicas e  ser o notário de Gondomar), à espera de encontrar noivo. Jovem inteligente, prendada e lindíssima, não lhe faltaram pretendentes. A sua escolha recaíu num conterrâneo emigrado no Brasil - António Carlos Pereira de Aguiar - pessoa “muito ilustrada”, homem bonito, com expressivos olhos verdes. O Avô António partira para o Rio de Janeiro em 1996, com 16 anos, levado por um dos seus quinze irmãos, João, bastante mais velho, quase com idade para ser seu pai, e, por essa altura, já um próspero joalheiro. O jovem António Carlos, revelando-se exemplar discípulo de bom mestre, fez fortuna rápida e honesta, e era, então, o dono de uma joalharia da moda, na cosmopolita rua do Ouvidor. Sendo a Avó Maria uma incondicional entusiasta de viagens e excursões, de movimentação e convívio social, é possível que a perspetiva de viver, por uns anos, no mundo novo americano, com frequentes visitas a Portugal, a bordo de esplêndidos paquetes, tenha sido fator de peso na aceitação daquele pedido de namoro, logo depois convertido em pedido de casamento. Da parte do Avô Aguiar, fora o "coup de foudre", "amor à primeira vista", até que a morte os separou...
 No mais clássico modelo de papéis conjugais, com rígida divisão de tarefas, uma união perfeita! Dos oito filhos, só três nasceram no Rio de Janeiro. Maria preferia ter os meninos em São Cosme, no conforto da casa materna. Vinha o marido, de bom grado, trazê-la e buscá-la e, durante o tempo de separação, escrevia-lhe extensas cartas de amor, em tudo idênticas às dos tempos idos de noivado - documentado numa sucessão de postais ilustrados, com breves mensagens e saudações, uma espécie de “tweets” do início do século passado.
A Gondomar regressaram em 1920, e viveram, por breves anos, na terra e na casa dos seus sonhos. A morte súbita do Avô António, aos 46 anos, deixou a viúva num estado de depressão profunda. A senhora elegante e mundana das salas de festas transformou-se em vulto negro e austero dos salões paroquiais. Os retratos contam, sem necessidade de palavras, a tragédia da sua vida, na forma e colorido dos chapéus, das "capelines" floridas da senhora casada a que se sucedem os pequenos chapéus de viúva, rentes à testa, enfeitados por uma simples "aigrette" (a que chamávamos, na sua ausência, "os quicos da avó"). Do  torpor de muitos meses, saiu buscando orientação na fé e nas práticas religiosas, fonte inesgotável de novas energias, e razão de viver para a família e para os outros.   
Fora a mulher do empresário António Aguiar, que o  caráter extrovertido e generoso tornara tão estimado e popular no Rio de Janeiro como em Gondomar. E, por fim, ela própria, Maria Aguiar, líder no feminino, universalmente admirada. Latente, sempre, o culto do marido, simbolizado na sobriedade dos trajes escuros e no uso do seu apelido Aguiar. O nome que, hoje, descendentes de quarta e quinta geração continuam a usar, por ser o dela -  a nossa avó, a prodigiosa contadora de histórias, a força que unia a família inteira.
            Hoje, na mais completa fragmentação familiar, é, ainda, a memória da Avó Maria Aguiar, que nos reune nesta árvore genealógica de afetos.



1 comentário:

Isabel Aguiar disse...

Que privilégio Manela!
Eu conheci a bisavó Maria Aguiar mas era muito pequena...as lembranças que tenho são de muito carinho e guloseimas!
Adoro ler estas tuas memórias e rever em muitas das mulheres descendentes muitos traços do seu carater e personalidade.