quinta-feira, 17 de junho de 2021

A PARTIR DE UM SONETO

I- A PARTIR DE UM SONETO (transcrever) Meus pais, Maria Antónia e João, conheceram-se num domingo de outubro de 1940, na "missa nova" do Padre António Pinheiro. No dia seguinte, ele partiu para Lisboa com o primo António, para uma visita à "Exposição do Mundo Português", de onde lhe enviou uma carta, acompanhada de um primeiro soneto, em que fazia uma discreta, e não demasiado subtil, declaração de amor. Para dois quase desconhecidos impunham os bons costumes de época essa discrição, não, porém, excessiva subtileza, que poderia tornar menos enfática a mensagem. O tempo de conversa não fora além de uma escassa hora, à saída da capelinha do Monte da Virgem. A menina de Gondomar, bonita e elegante num conjunto rosa pálido, vestido e casaco comprido, longos cabelos ondulados, e olhos expressivos, muito claros, de cores diversas, mais verde o direito, azulado o esquerdo (singularidade para o qual gostava de chamar a atenção). Franzina (1.50 de altura), um paradigma de graça e vivacidade. Certezas ele não tinha, para além de a achar muito atraente, com os seus ares de Paulette Godard. Aparentemente também que ela, no breve convívio a sós, se sentira atraída pelo seu exotismo nórdico.  Se não amor à primeira vista, fora coisa afim, de menor ordem de grandeza, mas promissora. Os dois, mais tarde, confessavam que , contudo, não haviam excluido alternativas. Para ela, o rapaz moreno que contrastava com o loiro companheiro do lado. Para ele, as irmãs da Maria Antónia, a do cabelo negro, negro, e imensos olhos verdes (que logo viria a descobrir já ter um noivado firme, daqueles contrariados e resistentes à antiga portuguesa) e a mais nova, de serena mirada azul. Todas diferentes, todas belíssimas. "Olhos de Aguiar" dizia-se, em São Cosme quando alguém tinha olhos assim, grandes e intensamente claros, como veio a saber depois, quando se familiarizou com a sociedade gondomarense. Os encontros entre Mariazinha e João, já não ocasionais, embora alguns se destinassem a dar essa impressão, haveriam de continuar bem como os sonetos, que os foram assinalando. Ele escrevia com facilidade, ao correr da pena,  poeta repentista, como a avó Quitéria Francisca. A mítica contadora de histórias, que, nas festas e nos serões da aldeia, cantava ao desafio, com rara acutilância e rima sempre certa. E, assim como a avó dizia os seus versos precisos e mordazes, o neto escrevia poemas românticos, por vezes à mesa do café, para si ou para alguns amigos, desejosos de impressionar as namoradas como poetas (que não eram), inspirados por uma paixão (que raramente existiria de verdade). Não julgava os seus versos dignos do esforço de os guardar. Assim se foi perdendo toda, menos os sonetos que dedicou à mulher e ela, sim, conservou como preciosidade. Era uma colecionadora nata -  de cartas, postais, fotografias, e outras coisas, igualmente ligadas a boas memórias, jarras, terços, caixinhas, chávenas de  de chá, colchas, vestidos antigos de seda, a desfazer-se, quaisquer objetos com história, que tivessem passado por mãos de várias gerações. Apesar de muitas andanças, de terra em terra, de casa em casa, ameaça por vezes fatal à salvaguarda deste género de espólio, trouxe-o consigo até ao século XXI, dentro  das mesmas caixas, dos velhos albums, do imenso guarda-louça da bisavó Carolina.Os sonetos, foram achados, meio século depois, manuscritos numa letra bonita e intemporal, em papel amarelecido, mas impecavelmente conservados, num fundo gavetão de cómoda. Achado meu. Levei-os ao autor, para que relesse, ao fim de meio século. E com uma proposta de publicação, que inesperadamente não rejeitou. Até  deu título ao futuro livro: "Íntimo", epígrafe de um dos sonetos Tão pronta aquiescência deveu-se, creio, ao facto de os ler como obra de outrém, do jovem que já não era e que lhe despertava simpatia .Ou apenas saudades. Estávamos na década de 90, tinha ele mais de setenta anos. Um dia, num passeio à beira mar confessou-me que tinha pena de ser velho. Estranhei. Hoje já o compreendo, Talvez seja preciso atingir essa mesma idade para compreender.Dividimos tarefas.Cabia-lhe fazer a revisão do texto, acrescentar ou cortar vírgulas, no que era exímio. Eu própria, costumava submeter os meus escritos ao seu superior conhecimento dos segredos e meandros da língua - prosa, naturalmente, sobre questões, aliás, pouco poéticas, se bem que, para efeito de pontuação, empreendimento de semelhante natureza.Na divisão de trabalho acordada, do restante  - capa, imagens, tipografia, edição - eu me encarregava. Todavia, o poeta foi adiando, adiando... Reuniu as folhas soltas, uma para cada soneto, numa pasta de cartolina preta. Às vezes, chegava a sair, com a pasta virtuosamente debaixo do braço, a caminho do Café Palácio, sua segunda casa em Espinho. A intenção era ir burilando as estrofes, uma ou outra palavra, aqui e ali, uma v´rgula, enquanto esperava os amigos. Porém,  percorria, primeiro, vagarosamente, as páginas do seu jornal - que foi o "O Comércio", era eu criança, e, depois "O Primeiro de Janeiro" . Acompanhava, de perto, as vicissitudes do desporto e da política - bem mais do que a filha, então sempre de partida para reuniões do Conselho da Europa ou para visitas à "Diáspora" da Nação.... Entretanto, chegavam os amigos O tempo, para os mais velhos, passa depressa. O dele, esgotava-se em conversas, passeios à beira-mar, diante do ecrã de televisão (horas e horas...), em leitura pela noite fora - ultimamente biografias, os policiais de Sara Paretsky, Ruth Rendel, Amanda Cross (que eu providenciava), os seus eternos favorito, os divertidíssimos Jerome K Jerome e Guareschi, por vezes, um  Umberto Eco, ou um autor brasileiro da coleção da mãe,como Amado. Ou Eça - curiosa a ausência de poesia, talvez como se pertencesse, mesmo o gosto pela poesia dos mestres, a um período findo. E havia, ainda, os encontros em Gondomar, com os sobrinhos, os alegres sete filhos do António e da Xaninha, e quatro do Mário e da Sameiro. Mais as missa e novenas e outras orações diárias na capela da Senhora da Ajuda. O que me levou a dizer-lhe, uma vez irreverentemente que cumpria as horas canónicas como um frade, de  fora do convento.  A revisão dos versos não tinha, obviamente, prioridade nesta preenchida agenda de reformado, em cidade de tertúlias, esplanadas, praias e mar. Não havia pressa - até que a morte veio, subitamente, num domingo de Páscoa. O seu coração parou. Parou mesmo, coisa absurda, enquanto conversava, ao jantar, a meio de uma frase... Tão cheio de vida, a comentar um artigo de Marcelo (Rebelo de Sousa), a próxima peregrinação a Fátima, a festa em casa do Mário, onde nunca faltávamos ao "compasso",  tradição bonita, que andava perdida em Espinho, há muito, e permanecia, religiosa e etnograficamente intacta, em São Cosme de Gondomar. Já não sei qual foi a crónica de Marcelo. Recortei-a, talvez do " Expresso", para logo a perder, como é meu lamentável costume. Incondicional admirador do cronista, hoje Chefe de Estado, decerto apreciaria o seu estilo na presidência. Dou por mim, muitas vezes, a pensar nos diálogos que teríamos sobre vagas de acontecimentos que se sucederam na sua ausência - vitórias do Porto, derrotas do Porto, Lopetegui e Sérgio Conceição, a "troika", a "geringonça", o Brexit, o bom Papa Francisco e o mau Trump...A coletânea dos sonetos foi prontamente publicada, em 1996, sem revisão alguma. Fernando, o mais jovem dos participantes da tertúlia do Café Palácio,( que, às vezes, reunia no bar do Casino, ou no "Nosso Café), tratou da parte gráfica, numa tipografia dos Carvalhos. A ligação aos Carvalhos, lugar onde viveu onze anos de gratas memórias, no famoso colégio, ter-lhe-ia agradado. 2 - O Porto parece uma aldeia pequena, onde todos se conhecem. O Porto e arredores. Quando não o país inteiro... Exemplo disso é a minha experiência de Montreux, em 68. Era domingo de Páscoa, decorria a final do torneio internacional de óquei em patins. O pavilhão, onde me sentei na primeira fila, com a prima Eduarda (Docas), estava cheio de compatriotas. (Nunca tínhamos visto um jogo de tão perto, nos primeiros minutos seguíamos mais a bola do que o jogo, com medo que nos caísse em cima, hipótese pouco provável, no centro da bancada, ´longe da área de remate à baliza, depois, com a emoção, esquecemos o risco)  Durante os festejos de vitória portuguesa, num pequeno café pacato - pacatamente suíço, até à nossa chegada -  ao fim de apenas alguns momentos de diálogo, descobrimos, sem esforço, um vasto leque de amigos comuns, do liceu, da faculdade, da missa de domingo, do emprego, da praia...  Podia a população global ascender a milhões, mas o círculo em que nos movíamos era uma espécie aldeia global lusitana, com pouca gente e muitas afinidades..Foi justamente este fenómeno, a rede de amizades tecidas em colégios privados, que esteve na origem do encontro de destinos de meus pais, nascidos a poucos quilómetros de distância, ela norte do Douro, no centro de São Cosme, ele a sul, em frente a Gramido, na ribeira de Avintes. Por sobre o rio que separava geograficamente, os uniu a comunidade escolar. O jovem padre António e o irmão Eduardo, também padre, tinham sido colegas de infância do João, no colégio dos Carvalhos, tal como a Maria Luisa Pinheiro e a Maria Antónia no Colégio das Águas Férreas, dirigido por freiras francesas - amizade que se manteve, depois que as meninas Aguiar se foram para o Colégio da Esperança, junto ao Jardim de São Lázaro, no Porto. E, assim, ambos estavam presentes na capela do Monte da Virgem, para a "missa nova" do Padre Pinheiro, consigo levando as catolicíssimas mães, Maria e Olívia e mais família.Dentro do templo, o protocolo separou as gerações: as respeitáveis senhoras quinquagenárias mais perto do altar, os jovens, atrás, nas últimas filas. Conta a mãe que se viu, com as irmãs, junto a dois rapazes, que, durante a missa inteira, mais do que para o altar a olhavam para elas - ou, mais precisamente, para ela. É a sua versão e não há mais ninguém, lúcido e vivo, para a contrariar .Dois homens bonitos, um moreno, o outro loiro. Não sabia bem qual deles achava o mais interessante. Em geral, pensando em galãs de cinema, ia pelos os morenos, ao contrário dos homens, que, segunda consta, nos quatro cantos do mundo, preferem as loiras. Naquele dia, contudo, quem se antecipou, mal saíram para o adro, foi o rapaz das melenas claras... Como parte de um mesmo círculo de íntimos da família Pinheiro, podiam prescindir de apresentação formal,  Disseram os nomes um ao outro, ele perguntou-lhe a idade, mas ela preferiu que ele tentasse adivinhar.  -  "15 anos? - " foi o desastrado vaticínio, em forma de interrogação. Com um franzino 1.50, ela prestava-se ao equívoco, mas não tanto. - " 20!" - respondeu, acrescentando secamente : - "A, si, dou-lhe 35 ou 36! ". Do alto do seu atlético 1.77, com apenas 22 anos, não se deu por atingido, precisou a idade e pediu licença para lhe oferecer uma pequena lembrança, comprada ali ao lado, num bazar. Era uma simples miniatura de artesanato, dois soquinhos de couro, ligados por um fio de prata. A música foi terreno mais consensual, onde desvendaram afinidades. Ela pianista, com o 6º ano do Conservatório, e uma paixão obsessiva por Chopin. Ele violinista. Contou que também preferia o piano, mas os pais decidiram que começaria pelo violino, instrumento mais portátil e menos dispendioso, talvez para testar a sua vocação. Vocação que não era assim tão evidente. Do seu repertório, exemplificava com a "valsa da meia-noite", detalhe fatal  na avaliação daquela exigente melómana.Na roda de apresentações e cumprimentos, formada à porta da capela, pontificava, como elo de ligação, a tia Arminda, senhora que morava em Avintes e  ia, assiduamente, a Gondomar, sendo amiga tanto da avó Olívia, como da avó Maria. Arminda era mais exatamente tia da Nucha Aguiar, (prima e professora de piano da Mariazinha, Lolita e Leninha), visitava com regularidade a casa da Gândara, berço dos Aguiar, nessa altura já pertença do pai da Nucha, o tio Augusto, que a mãe lembra, sobretudo, pelos seus cintilantes olhos azuis, pelos fatos chiques e pela não menos chique joalharia da rua das Flores. Maria e João mantinham-se àparte. lado a lado . Ele contava-lhe que no dia seguinte, uma 2ª feira, ia para Lisboa, com o primo António, passar uma semana de férias e ver a famosa Exposição do mundo português. Não era coisa que acontecesse todos os meses, mas dava-lhe, ali e então, por sorte, uma aura de rapaz viajado, um quase explorador das vastidões do Império, ainda que só revisitado à beira Tejo.De lá, lhe escreveu uma carta, com um um soneto, em que, discretamente, falava de um coração em busca de uma amor. Começava por se focar, patrioticamente, na história pátria, mas deixava adivinhar uma intenção, muito individual de futuro...::Lancei o meu olhar sobre esse imenso Tejo,À noite semeado de um encanto vagoE vi em cada onda uma sombra, um lampejoDessa história de heróis, que no meu peito trago Dir-se-ia que toda a inspiração vinha da "expo", da imersão nas suas temáticas Todavia, na última estrofe, o Autor confessa o irreprimível desejo de lançar às ondas do Tejo o seu coração "em busca de um amor". No que não tardaria a ter sucesso..A correspondência continuou, assim como os encontros em Gondomar, no Porto, num roteiro de terras, como Branzelo ou Santo Tirso. Santo Tirso, onde, por coincidência, a Maria Luísa (Pinheiro) dava aulas num colégio e o António, irmão da Mariazinha,( como era chamada), acabava de ser colocado como tesoureiro da Fazenda Pública. Morava numa pensão e namorava a sobrinha dos donos, uma minhota de olhos verdes (a Antónia ou Toninha, com quem havia de casar). A mana passou a visitar o irmão, com desusada frequência. Havia sempre um quarto para ela na mesma pensão e tempo para passear com a amiga do colégio e o namorado - evidentemente. alojado em outra pousada, como se impunha. O irmão António pretendia ser severo e presente, à imagem da mãe, embora com agenda mais preenchida, abrandasse a vigilância durante o horário de trabalho, enquanto o trio deambulava pelas ruas e pelo parque da vila - eles, os noivos, sempre escoltados, ou pela Toninha ou pela Luísa. São Cosme era, de qualquer modo, o lugar mais comum daquele namoro convencial. Mais precisamente, a sala de estar da Vila Maria, tão solene, com os espessos cortinados de veludo escuro, os solenes  retratos de família nas paredes, o piano, os cadeirões e o sofá "arte nova" de veludo verde claro, onde mãe e filha se sentavam distanciadas do pretendente. A mãe lrecorda-se, sobretudo, de longas conversas a três, que, na realidade, alternavam com os alegres convívios de uma família numerosa.  João  era companheiro bem aceite pelos divertidos e turbulentos irmãos Aguiar -  a Carolina, o Manuel Joaquim, o António Maria. o José Augusto, a Glória Doroteia (Lolita), a Maria Madalena (Lena). Para além da Mariazinha, naturalmente! Os dois mais velhos casados, Carolina com Serafim Caetano Pereira, Manuel com Clara de Sousa  e já com filhos pequenos. Todos diferentes entre si, e cultores de uma tradição de confronto e discussões políticas, que jamais acabavam mal, embora raramente alguém mudasse de opinião e  menos ainda de campo (não consta que isso jamais tivesse acontecido). Nas gerações anteriores, uns eram monárquicos regeneradores, outros republicanos  e provavelmente"maçons",  entre eles um anarquista simpático, que esteve degredado em Angola, o tio António Barbosa, enquanto os demais não foram além da prisão no "Aljube", ou da aposentação compulsiva das funções de juiz do Supremo Tribunal de Justiça (um colega de curso de Salazar, o tio José Barbosa Ramos, ou tio José velho, como o chamávamos para o distinguir do tio José novo, irmão de minha mãe, seu afilhado e não menos revolucionário, que, anos mais tarde, acabaria por se "exilar" no Brasil e nos EUA, tornando-se o nosso lendário tio das Américas) . Em plena guerra, ou no pós-guerra, na década de quarenta, degladiavam-se, incessantemente, anglófilos/democratas, o pai, os manos Aguiar, versus germanófilos/salazaristas - os cunhados, Serafim e David, futuro marido da Lena, sendo Eduardo Fonseca, que casou com a Lolita em 1942; aparentemente, o mais neutral, e, sem dúvida,  o mais "bon vivant". Sendo todos  muito dados, não só ao acompanhamento da política, mas também às artes da música e da dança, facilmente passavam do modo de "tertúlia - debate" para o de tertúlia musical. As meninas tocavam piano, os demais cantavam em coro. Alguns, como o tio Serafim, solista do coro da Igreja, e as irmãs Carolina, Lólita e Mariazinha, esplendidamente. Lena era  melhor como pianista, fez o curso de conservatório. O pai com o seu belo timbre de voz constituiu uma mais valia - e não gaguejava a cantar, ao contrário do que acontecia no auge de qualquer debate.   No verão de 41, a família Aguiar não pode ir a banhos para a Foz, como era habitual. Lena estava a convalescer de uma "primo infecção" e os médicos aconselhavam os ares da serra, não as nortadas do litoral. Passaram o verão numa quinta de amigos, cedida ou arrendada, pormenor que se desconhece, em Branzêlo. Duas primas do João, Alda e Maria Helena foram convidadas da avó Maria. O João vinha, nos fins de semana, e tinha de  procurar quarto numa pensão. Eram noivos, sem oposição, (graças ao catolicismo do viúvo, a que acrescia a fama de herdeiro rico), mas fora de questão estava e permitir "liberdades" impróprias, segundo os seus cânones rigidamente  conservadores. Todavia, as filhas, sobretudo a dupla Mariazinha/Lolita, conseguiama engendrar mil e uma maneiras de contornar proibições. Cumplicidades nunca lhes faltaram, a de uma com as outra, a das amigas e, particularmente importante, a dos vários e sucessivos empregados ao serviço na "Vila Maria" (ou das criadas e criados, como então se usava dizer).  Sobre Branzêlo há uma carta,  contando em vers, uma atribulada viagem de regresso de fim de semana, em que os convivas tinham sido muitos, incluindo o jovem Padre Vitor Hugo, coadjutor na paróquia de São Cosme e autor uma grande reportagem fotográfica dos convívios. Avintes, tantos de taldaqui fulano de taletc. e tal Maria:Venho escrever-te/porque o ler também diverte/quem nada tem a ocupá-la.../- E enquanto a pena desliza/A gente sente, imprecisa,/ A sensação de que fala!//Começo por te contar/ Que ainda antes de chegar/ Ao Porto- que forte perda/ O camião de Branzelo/ Furou antes do Covelo/ E teve "panne" na Meda/E assim sem mais novidades/ Cheguei cheio de saudades/ Ao café para engraxar;/ Mas aí, nova surpresa/ Sentado em frente a uma mesa- / Me estava a aguardar.../- Espantei que nem Texugo/...Era o Padre Victor Hugo/ Cheio de fotografias./ Tinha ali toda a excursão/- A Maria e o João/  E mai-las outras Marias!/ A Lolita numa delas/ Está tão só que mete pena./Apenas aos pés, deitada,/Uma galinha coitada (esfolada) Tem pena de não ter penas.../ (Diz a má língua que as outras eu/ As comi- tenham juízo -/ Que alguém as comeu, comeu!/ Quanto a mim estou "indeciso" ...)/ Na da Penha vi: que vento!/ Se me rio mais rebento/ De dar tanta gargalhada - / Quanto a ti minha "migalhas",/ Se te ris mais, escangalhas/ Não se te aproveita nada!/ Agora assunto mais grave/ - A Lolita sempre quer/ Fazer anos quarta-feira?/ porventura ela não sabe/ Que isto de envelhecer/ É grande asneira, ui, que asneira?!/ Ela que tenha juízo/ durma bem e ganhe siso/ Um ano a mais... não vem mais/ A graça morre, se passa.../ Recordar é uma desgraça/ Desgraças já há demais!/ Oh abri alas.../ E a Lena como está?/ Sossegue, sim?- que a Tatá/ Um dia faz-lhe a surpresa!/ Lá quando menos o conte/ Inda o "Sole" "male" desponte/ Na manhã! Ei-lo a ele!que surpresa!/ Oh! abri alas!/ E vocês como estão?/ Não estejam com "cem" cerimónias!/ Por aqui andou toupeira/ Já lambeu a capoeira,/ Sou todo vosso/ João Narrativa, que podia ter saído da pena, ou melhor, da voz da avó Quitéria Francisca, a mestra da oralidade... Cheia de pormenores explícitos e sub-entendidos, alguns difíceis de descodificar, mas que, no seu conjunto, é uma crónica de boa disposição, aurida em passeios, romances de verão e amores, que se revelariam duradouros. Nos versos dedicados às futuras cunhadas Lolita e à Lena, a primeira letra de cada estrofe dá-nos uma pista, o nome dos rapazes que as cortejavam, nesse agosto de 41: Eduardo e Esolino. O primeiro, que viria a ser o nosso divertido tio Eduardo, o "bon vivant", por excelência, estava na "lista negra" da futura sogra por isso mesmo - classificado como católico pouco praticante, de nada importando que as famílias pertencessem ao mesmo círculo social da vila de Gondomar,  onde o pai de Eduardo, o Dr Ernesto Fonseca, sucedera ao pai da avó Maria, como tabelião. O Esolino, um vizinho,que morava na propiedade confinante com a Villa Maria, foi caso passageiro. O pai era músico, compositor, tocava na igreja, logo, preenchia uma condição "sine qua non"... Gostava da menina, que vivia do outro lado do muro, muito bonita e serena, ao contrário das três manas, tão bonitas quanto temperamentais. E talvez ela correspondesse ao brando sentimento, mas aos 15 anos, era cedo para compromissos. Depois, do Porto veio David, já homem feito, anos mais velho do que ela, amor  uma vida inteira. A Tatá que levaria o simpático vizinho a Branêelo era a Tia Hermínia, cunhada da avó Maria e segunda mãe da Leninha, sempre pronta a satisfazer-lhe as vontades. Mais enigmática é a menção à galinha retratada numa foto e às galinhas devoradas. Talvez uma forma de auto-crítica - tinha um apetite saudável, que manteve até à meia idade, consumia quantidades assombrosos de carne de qualquer espécie. Comia imenso e bebia pouco. O gosto dos contrastes,  ele alto, forte, apreciador de boa mesa, ela magra, frugal e pequenina... Quanto ao passeio à Penha, havia de repetir-se muitas vezes, afrontando a ventania, com risos e gargalhadas. Como os jovens de 20 anos, em Portugal, estavam longe da guerra próxima, que seguiam pela imprensa e pela rádio, como um folhetim trágico da vida real.        
. O casamento civil foi a 1 de novembro de 1941, em Gondomar. Para a avó Maria o que contava era o compromisso assumido perante  Deus, não face a um funcionário da República, como  a lei exigia, em  tempos pré concordatários. A noiva recolheu a casa, o noivo teve de voltar para  Avintes. O Conservador do Registo, Dr Jazelino, marcou o ato para o dia em que, em São Cosme, se evoca a memória dos mortos. A Mariazinha, de casaco debruado a azul marinho, carteira e sapatos da mesma cor, seguiu de táxi, com a mãe, para a Conservatória. Cruzam-se com dezenas de conterrâneos de coroas de flores na mão, que faziam caminho em sentido contrário, para o cemitério,O "casamento a valer", realizou-se na Igreja Matriz de Gondomar, duas semanas depois. O pedido formal da "mão da noiva" tinha sido feito à mãe e ao irmão Alexandre, o republicaníssimo mas conservador nos costumes, tio Alexandre, o mais próximo e mais querido, o segundo pai, depois da morte do avô António Carlos. O tio, numa variante de "sermão laico", lembrou ao noivo as suas obrigações. Laico e anti-clerical não valorizava particularmente a faceta religiosa do candidato a sobrinho.Para a lua de mel foi escolhida a região centro. O noivo ainda não tinha comprado o primeiro de uma série de velhos carros cinzentos, em que, quando eu era criança, circulávamos não só no triângulo Gondomar-Porto-Avintes, e em curtos passeios à Foz e a Espinho, mas em ousadas excursões por vales e serras do Minho e Douro.. Viajaram, pois, de comboio, no famoso "vouguinha", de Espinho a Viseu, fazendo paragens para pernoitar, aqui e ali, até ao fim de linha. Era outono, quase inverno, o que pouco importava. Ainda hoje Viseu é uma das cidades preferidas pela minha mãe.No regresso instalaram-se em Gondomar, por insistência da avó Maria. Com ela já só moravam, no enorme casarão, os filhos solteiros, Zé e Lena e ela estava habituada a muito mais, era avessa à solidão - quanto mais gente à sua volta, melhor. O pai ganhava assim uma nova família, mais extensa e festiva do que a sua. Gostava de todos e todos gostavam dele. E a mãe podia dizer o mesmo, na sua relação com todos os parentes de Avintes, à exceção - não pequena -  dos sogros, de quem sempre manteve distância. Não sei e ninguém sabe porquê. Razões muito subjetivas, provavelmente simples, mas insolúvel,  questão de ciúmes da primeira mulher do marido, que eles sempre recordaram mais como filha do que nora.Na Villa Maria ficaram por mais de oito anos, lá nasceram as duas filhas, Todavia, sempre num vaivém de curtas viagens, entre São Cosme e Avintes, onde passavam muitos fins de semana. No verão, o destino de férias era Espinho, por um ou dois meses - às vezes, mais. Depois de um primeiro emprego na Câmara de Gaia, o Porto foi.o seu local de trabalho e, desde fins da década de sessenta, também de residência, num andar pequeno e simpático, na Rua Latino Coelho. Muito perto do Colégio da Paz e do Marquês de Pombal. Solução muito criticada pelos avós dos dois lados, que os queriam nas suas casas grandes. Mais ainda pela avó Maria que chamava a prédios altos  de apartamentos, por melhor que fosse a qualidade arquitetónica, "Ilhas na vertical" - ilhas no sentido portuense, de casario térreo e modesto. A minha irmã Madalena (Lecas) e eu não fomos da mesma opinião. Adorávamos, positivamente, o Porto e o nosso pequeno andar.  Por fim, ainda antes dos anos de reforma, uma última mudança, consensual e liderada por ele, trouxe-nos para Espinho, na década de 70..A geografia da sua vida, incluí, ainda, incontáveis excursões pelo norte, até à Galiza, mais algumas, poucas, a sul de Lisboa, vários títulos académicos de estudos seguidos em Lisboa (como aluno voluntário)... O estrangeiro limitava-se, para além da Galiza, que é difícil considerar estrangeiro, à Espanha, da Estremadura e Castela ao País Basco e a França, apenas a costa sul.... Nunca ninguém conseguiu convencê-lo a entrar num avião   

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