domingo, 13 de março de 2011

W193 - A MINHA INFÂNCIA (com imagens)


Tive uma infância muito feliz. Tudo corria bem. Gostava do meu mundo, que eram casas grandes, corredores compridos, quintais e jardins cheios de recantos convidativos para constantes correrias e diversões(nas casas da Avó Maria e da Tia Rozaura, em Gondomar e dos Avós paternos em Avintes). Havia árvores, cães, gatos, flores. E, sobretudo, o mundo estava de bem comigo, porque todos tinham paciência para me aturar, apesar de me manter sempre vertiginosamente em movimento, de fazer muitas asneiras, muitas perguntas e de contar histórias inverosímeis. Foi a minha época de ouro! Achavam-me precoce e engraçada e, por isso, assim eu me considerava. Tinha uma autoconfiança ilimitada e indestrutível, sentia-me o centro daquele mundo perfeito e divertido. O pior era a noite, porque me obrigavam a deitar cedo e, para mim, dormir era um desperdício. Imparável no ambiente doméstico, tornava-me um modelo de bom comportamento quando se tratava de passear, de carro, aos fins-de-semana. Os pais levavam-me com eles, prudentemente (para não causar dano, algures), nessas excursões familiares, com muitos tios e primos, numa fila de vários carros, quase sempre por terras do Minho, com paragens para almoços e jantares... Com a Avó Maria ia, muitas vezes, ao Porto, lanchar à Confeitaria Villares, depois de ela andar às compras em Santa Catarina e Sá da Bandeira, com o Avô Manuel, desde os 5 ou 6 anos de idade, aos teatros e aos cinemas do Porto (os filmes que ele e eu apreciávamos, nada de desenhos animados ou outras infantilidades...). Com o Pai, um pouco mais tarde, desde os 9 ou 10 anos, frequentava, como sócia do FCP, habitualmente, o Estádio das Antas (estive na inauguração, o resultado foi mau, mas vi jogar o Barrigana, o Virgílio, o Carvalho...). A escola foi uma outra experiência bem sucedida e esperada impacientemente. Nascida no mês de Junho, não me deixaram principiar a escolaridade com 6 anos, em Outubro de 1948. A regra era os 7 anos e a minha mãe - que acabava por mandar mais do que o resto da família... - achou que era melhor não tentar abrir excepções, deixar que a criança gozasse, por mais uma época, o "dolce far niente". Porém, a criança estava cheia de pressa de mudar de vida. Via a escola como uma etapa de crescimento, a transição para uma outra idade. E foi - ganhei juízo, acalmei os ímpetos infantis, tornei-me confiável, bani a mentira pela mentira, por desporto, passei ao extremo contrário, a dizer escrupulosamente a verdade, a cumprir os deveres, pelo menos os que considerava exigíveis. Assumi a promoção a um estatuto superior. Lembro-me exactamente de como pensava, então. Ir para as aulas, orgulhosa, de pasta nova, cheia de cadernos e de livros, para decifrar o mistério da escrita foi um verdadeiro prazer. Era excelente aluna, tinha, porém, uma feiíssima caligrafia... Comecei na Escola do Crasto, em Gondomar. Na 2º classe, uma passagem curta e tempestuosa pela escola da Rua 23 em Espinho (porque os pais decidiram prolongar a época de férias, na casa de praia). Desentendi-me com a professora, uma mulheraça imponente, gorda e implicativa. Fui salva pela transferência para a Escola do Magarão, em Avintes, voltei a ser aluna bem cotada e realizada. A partir da 3ª classe, e durante sete longos anos lectivos, eis-me aluna interna do Colégio do Sardão, em Gaia, onde cumpri uma espécie de serviço militar obrigatório. Num distinto "quartel" de Doroteias, que são, ou eram, o feminino dos Jesuítas. A minha irmã também lá andava e contentíssima... O problema não era do colégio, a muitos títulos admirável, sem dúvida. O problema era meu - sentia-me enclausurada.Apesar disso também lá se sucederam os momentos bons. Depressa me envolvi activamente na pequena comunidade de gente da minha idade. O Sardão era uma antiga quinta (de Almeida Garrett? – era o que constava…), com jardins, pequenos lagos, árvores, alamedas e caminhos, onde podíamos fazer quilómetros de marchas e corridas. Havia campos de jogos, courts de ténis, ringue de patinagem... Tirei o devido partido dessas amenidades. O desporto era aquilo de que mais gostava – “volei”, andebol, "basquete", até futebol (clandestino, visto ser considerado, definitivamente, modalidade imprópria para meninas - e só fui apanhada uma vez, mas sem castigo, porque a Mestra-Geral deu mostras de bom humor, dizendo-me: tu já que tens uma paixão tão grande pelo futebol estás autorizada a jogar, as outras não...).Não obstante esta preferência, era, creio eu, mais dotada para os estudos - tinha notas altas, excepto a “comportamento”. Por fim, estive perto de ser expulsa, por ter escrito uma crónica jocosa sobre o colégio, o “sistema” (mais o sistema do que as pessoas – muitas das religiosas, foram amigas e conselheiras, professoras excepcionais). Cheguei a ser suspensa, mas venceu a facção das Doroteias que me era favorável. Ao ser expulsa não estaria a abrir precedentes na família, porque dois irmãos da minha mãe, mais exactamente, um irmão e uma irmã já tinham tido essa sorte, ela também por "delito de opinião", ele porque fez explodir o laboratório de química).As melhores recordações são as de fora de portas – os jogos, os recreios, quilómetros de saltos e correrias. Dentro da casa, tudo era frio, enorme, desconfortável - pelo menos para mim. Detestava os dormitórios, o compridíssimo refeitório - onde me obrigavam a comer bacalhau, com frequência - o labirinto de corredores, onde marchávamos aos pares, com as mãos atrás das costas. Deprimente! A capela era mais acolhedora. Havia uma imagem do Menino Jesus de Praga, que fazia os meus encantos. E o confessionário, também. O meu director espiritual era o Padre Leão, um jovem Padre muito inteligente e muito culto, homem de poucas e brilhantes palavras (sucinto e lapidar!), que dizia a missa quotidiana em 20 minutos e a missa solene em pouco mais de meia hora. No confessionário, ouvia a enumeração dos meus pecados, que pouco variavam, e depois respondia às minhas perguntas e comentários sobre leituras. Teve muito mais influência na minha formação neste campo do que qualquer das minhas professoras... Ler foi sempre um dos meus passatempos preferidos. Gostava, porque gostava, mas a família também estimulava esse gosto. Ofereciam-me mais livros do que brinquedos. Com as "mesadas", eu própria comprava sobretudo livros e, desde que aprendi as primeiras letras, uma revista, "O Mosquito", que saía duas vezes por semana. Às escondidas, folheava, no sótão da casa de Avintes, uma Bíblia antiga, que tinha sido de um tio bisavô padre - uma edição preciosa, com muitas gravuras e iluminuras. Um dia desapareceu. Soube-se depois, que a Avó Olívia a deu ao pároco da terra - não sei se por me ter surpreendido em flagrante, a desvendar os segredos do Antigo Testamento... Tive de voltar aos contos de Anderson ou às aventuras da Condessa de Ségur...Mas rapidamente passei a George Elliot, às irmãs Bronte, a Charles Dickens, a Júlio Dinis, ao Eça de "A cidade e as Serras" e da "Ilustre Casa de Ramires".... Das edições de "Os livros do Brasil", incluindo a colecção de "Miniaturas" poucos me escaparam. Nessa fase, dos 12-13 anos, um dos livros que mais me impressionou foi "O velho e o mar", um dos que mais me divertiu foi "In illo tempore" de Trindade Coelho" (aí terá começado o projecto de me formar em Coimbra, se bem que numa era mais mortiça...). E também alguns dos humoristas que o Pai recomendava, como Jerome K Jerome ("Os 3 homens num bote") e Guareschi (a série de de Dom Camilo)... Depois, os policiais da "Vampiro" foram ganhando o seu lugar, com Agatha Christie e Erle Standley Gardner à cabeça. (muito desaconselhados pelo Padre Leão, que os achava um desperdício de tempo e uma perigosa, porque atractiva, concorrência à melhor literatura - mas no meu caso só muitíssimo mais tarde é que os "misteries", na língua original, ganhariam ascendente, nas viagens, nos aeroportos, nas pausas de reuniões, entre a consulta de dossiers e relatórios.Do colégio privado para o Liceu públicoEntretanto, aproximava-se a data da "libertação": terminado o 5º ano (agora 9º), saí, de vez, como queria, para o Liceu Rainha Santa Isabel, no Porto, onde fui muitíssimo afortunada - até recebi um prémio dos Rotários , mais o "prémio nacional" no fim do 7º ano. Com os premiados dos outros liceus do país, ganhei, como "extra", uma viagem em grupo ao norte de África, Ceuta, Tânger, Alcácer-Kibir, porque estávamos em 1960, ano de comemorações Henriquinas. Fiz o meu baptismo de voo, porque não tinha alternativa, a não ser recusar o convite. Lá em cima, achei o espectáculo deslumbrante, e toda a visita foi uma festa, mas não fiquei cliente da aviação por muitos anos ainda - até que voar se tornou parte do trabalho profissional. Imagine quem era o rapaz que representava o liceu de Ponta Delgada… Mota Amaral, muito novo, mas já com a pose que tem hoje.O tempo de adolescência, que tão longo me pareceu, é bem mais difícil de definir claramente, em termos de felicidade de alma, do que o anterior - foi feito de mais contrastes, de muito mais incertezas, muito mais descontentamento e rebeldia... O que se explica, em parte, por causas exteriores, a começar pelo internato no Sardão, mas também por estados de alma subjectivíssimos. Foi a altura de escrever versos tristes, de alinhavar um diário inspirado no incomparável livro de Anne Frank (uma fracassadíssima imitação, a minha!), de olhar com pessimismo o futuro, sobretudo o académico (o pavor que tinha dos exames, sempre convencida que se aproximava a hora do grande desaire, que nunca aconteceu). Fora dos círculos da família e amigos, onde mantinha intacta a antiga exuberância, era, então, uma adolescente mais ou menos tímida e desageitada. Estranha metamorfose, que não atingiu, porém, outros traços de temperamento que suponho inatos, como a combatividade (quando surge o desafio ou a crise), o gosto pelo movimento constante, físico e mental, o entusiasmo por certas ideais ou actividades – sobretudo pelo desporto! Recordo, por exemplo, o delírio vivido nas Antas, ao lado do meu pai, com o 1º campeonato ganho pelo FCP de yustrich (o 1º desde o meu nascimento...).Pela negativa, lembro o ano em que uma das Tias (a que foi expulsa do Colégio, a célebre Tia Lola, que tem, na realidade, o mais solene nome de Glória Doroteia…) mandou para o director da revista "Modas e Bordados" um dos meus sonetos, que foi publicado, com foto e tudo, em pleno verão (de 55?). Estava em Espinho. As amigas da mãe todas me vinham dar os parabéns e eu ficava envergonhadíssima, queria desaparecer dali para um deserto...Muita dessa tardia timidez, dessa falta de auto-confiança iriam lançar as suas sombras ao longo da juventude, dos 5 anos de Coimbra, na Faculdade de Direito.Falta de confiança mais notória em época de exames, em cada uma das escritas e das orais, que tive de fazer. Tanto "stress" para nada, a entravar o gosto genuíno pelas matérias... Acabou tudo, finalmente, bem, não valeu a pena o sofrimento. Nunca consegui mudar este quadro psicológico... Ficam dessa época, grandes amizades e o primeiro namoro, longo - cinco anos - que acabou em casamento (breve, outros cinco anos, o que para casamento é pouco). No conjunto, uma década, que não deixou mal-estar. Nem havia razão para tanto. Desajustamento de feitios e de modos de encarar a a vida…. Ficamos bons amigos, e ele, como amigo, não tem defeitos.Esse rapaz praticante de vela, desporto mais chique do que o meu voleibol, era colega de curso e uma fonte de preocupações suplementar, porque achava que ele também ia chumbar sistematicamente (não foi o caso, apenas dois ou três "chumbos", o que não foi mau de todo, atendendo ao pouco que estudava , devido às muitas actividades extra-curriculares, o CADC, o Clube de Cinema, as tertúlias de café, a vela… - o curso dele deu-me ainda mais trabalho do que o meu.Em fins de 64, quando entrava na última etapa do curso, aconteceu-me o que mudou definitivamente a forma como encarava e queria o futuro: a morte inesperada da minha única irmã, com apenas 20 anos. Estava doente, mas há tanto tempo, e tinha tanto ânimo, cantava, dançava, era uma imagem de alegria de viver, sem os meus medos e preságios... Nunca acreditei que ela estivesse em perigo. A partir daí, nada mais foi tão importante como dantes. A vontade de andar à frente, a extrema competitividade, que era imagem de marca, deixou de ter verdadeira correspondência na realidade. Pode até parecer que não, porque sou sempre muito "reactiva". Mas é coisa epidérmica, questão de hábito, de feitio. Ou de princípios... frequentemente reacção "feminista" num mundo onde as mulheres continuam a ser o "2º sexo". Este é um domínio onde estive e, se for preciso, estou pronta para a luta. Já em criança, com 5 ou 6 anos, quando me proibiam uma brincadeira, porque não era "própria para uma menina", eu desobedecia de imediato e mostrava que era tão capaz de a executar como qualquer rapaz. Quando necessário, desobedecia clandestinamente. Assim joguei futebol na rua com os miúdos de Gondomar (graças a um primo, que era "craque" e que garantia a minha resistência, vencendo preconceitos - foi obra, porque isto aconteceu há 60 anos...). Assim entrava e saía dos carros eléctricos, em andamento, a caminho da escola... Só me surpreende nunca ter sido denunciada à Avó Maria por algum pressuroso vizinho. Acho que não fui, porque se fosse não me deixariam continuar a fazer sozinha o curto trajecto para o Crasto. (ainda hoje gosto de saltar do "intercidades" em andamento, com a técnica aprendida aos 7 anos).

1 comentário:

Lé disse...

Manela!
De volta ao Blogger! Gostei imenso de ler esta tua infância!
Bjinhos