sábado, 4 de abril de 2020

Mãe 5 abril

VILA  MARIA
ÉRAMOS FELIZES E NÃO SABÍAMOS


Os últimos anos da década de 20 foram dramáticos na Vila Maria. Diz-se que, depois de uma morte, para os que ficam "a vida continua", mas a vida, depois daquele dia 26 de julho, para a não continuou igual nem ao que tinha sido para a família Aguiar.. Para Maria Aguiar foi como se o tempo tivesse parado no momento em que se abraçou ao corpo morto do marido.  Na verdade, não sabia como continuar.  Entre lágrimas e desmaios, caía doente na cama, o médico tornara-se uma visita frequente e não tinha remédios para a sua falta de ânimo. Dois irmãos Alexandre e Rosaura moravam muito perto e eram muito amigos. Ambos casados, sem filhos, disponíveis e dedicados, fizeram frente à situação. O bébé de 2 meses, Maria Madalena, a Leninha, ficou ao cuidado de Hermínia e Alexandre, que, alguns anos antes, tinham perdido a sua única filha. Como moravam do outro lado da rua, era fácil à Leninha transitar da casa dos tios, onde preferia de passar os dias, para a casa da mãe, onde, ao longo dos anos, até à idade adulta, praticamente apenas pernoitava. 
Tempo de pesadelo, que deixou marcas. O funeral fora cerimónia arrasadora, uma multidão juntou-se para dizer adeus a um amigo amável e encantador, de quem todos gostavam. No curto trajeto que liga a Vila Maria à Igreja Matriz , atravessando o Souto, organizaram-se, segundo relato dos jornais de Gondomar, oito turnos para transporte da urna, a fim de que muitos pudessem prestar-lhe essa homenagem, família chegada, as elites da vila, as direções do Clube Gondomarense, do Clube dos Caçadores, dos Bombeiros Voluntários, dos quais era associado ou benemérito. Pormenor tocante,  num dos turnos, vem mencionado, no meio de doutores. empresários e grandes lavradores da terra,  o nome do seu criado, João Pereira, possivelmente um dos mais diretos beneficiários da sua proverbial simpatia e generosidade.
Depois, foi o silêncio, por longos meses rompido pelo pranto incontido e  coletivo. O testemunho mais lancinante, mais expressivo, chegou até nós sob forma de um soneto escrito por menino de 11 anos, o filho António Maria:
Meu Pai
Quem te levou, meu Pai?!...Quem te levou
Para esse mundo, assim tão azulado?
Responde... sim. Teu filho, um desgraçado
Para quem a tua ausência já chegou

Para esse mundo sem fim, quem te arrastou?
Partiste!... Fiquei só! Desventurado
Pede a Deus, a quem por ti tenho rogado, 
Embora infeliz... para quem tudo se quebrou

Partiste, morreu tudo neste mundo...
E minha Mãe, oh Pai, sempre a chorar
E eu choro, desde o dia em que, moribundo, 

Te segurei... morreste pai... Agora então
Depois de tudo, me vês, sempre a chorar,
Chorará eternamente, Senhor, meu coração!

Só as mais pequenas  atravessaram o verão negro como o luto, de 1926, num estado de absoluta incompreensão, e dele não guardaram  memórias. 
Mariazinha recordava nitidamente apenas a estranheza  de ver o pai a dormir numa caixa comprida e estreita,  de se ter aproximado e tocado nas suas mãos, e na face, e de as sentir  geladas, de ter tentado acordá-lo e de ele não lhe responder. Contava, também, mas por ouvir contar, a cena dramática da saída da urna -  o irmão Manuel deitou-se sobre o caixão fechado, e quis impedir que o levassem da sala. Foi preciso retirá-lo, afastá-lo, tratar a crise de desespero em que se via, antes de seguirem com a cerimónia. Mais nada se sabe, por relatos de família, somente pelos recortes de imprensa do que por relatos. Da morte quase não se falava, e do funeral menos ainda, a mulher punha, definitivamente, o acento na sua vida extraordinária, na pessoa generosa, extrovertida e divertida que ele era, nos alegres e constantes convívios com amigos, de preferência ao ar livre, no jardim, à volta da mesa redonda, em bancos e cadeiras de ripinhas de madeira verde escuro, a mesma cor das venezianas, em contraste com o rosa forte das paredes da casa. Sobrevivem, assim, apontamentos pitorescas, de hábitos tropicais, que conservou sempre -  tomar um  duche frio pela manhã, seguido de um almoço só de frutas, ou  nadar nas águas gélidas do tanque gigante, que ficava na zona de transição entre os jardins e a quinta agrícola, junto à chamada "casa da eira".  Ou o gosto pelas caçadas e pelas partidas inofensivas, como a de oferecer aos amigos laranjas de aspeto magnífico, misturando umas muito doces, outras muito azedas (de uma laranjeira exótica, que mandara plantar só para esse efeito). E a mania de partir pratos e canecas à bengalada, nas feiras e romarias de São Cosme, extravagância muito popular entre as louceiras, que, mal o viam, o chamavam : "Sr. Aguiar, venha partir a minha louça!". Compreensível convite, porque ele pagava sempre a dobrar...
É, também, pelos jornais que ficamos a saber outros peculiaridades, como a do uso uma linguagem sempre correta, mesmo em ambientes de camaradagem masculina, sem nunca soltar um palavrão.  "Com os diabos!" era a exclamação mais heterodoxa que lhe arrancavam,... E, como monárquico convicto, ouviam-lhe dizer, algumas vezes: "Talassa, passa, Buíça chiça"....
Mais de vinte e cinco anos de Brasil, com tanto sucesso, dezasseis de casamento, com tantas alegrias  e não mais de dois anos feéricos, com toda a família na Vila Maria...
 E depois?...Depois, a viúva, uma jovem de trinta e seis anos bonita e chique, moderna e sociável, perfeita esposa e mãe e perfeita anfitriã de infindável sucessão de festas, tão de agrado do marido, ficou convertida num vulto negro e severo. De um longo período de depressão, saiu para a igreja, refugiou-se na fé e na religião, primeiro passivamente, para consolo da sua alma mas, à medida que recuperava forças, voltou-se, inesperadamente, para trabalho diário num campo novo, o da beneficência. Fora a mulher do prestigiado  empresário António Carlos Aguiar, de seguida, enquanto dele a  memória estava bem viva entre os da sua geração, a sua respeitada viúva, e, por fim, ela própria, Maria Aguiar, voz influente, personalidade forte, única líder no feminino, universalmente admirada, da sua terra. 
Os filhos fizeram-se, certamente, muito diferentes do que teriam sido, com o pai, e sem o futuro que ele lhes teria aberto.
Com o pai, os sete teriam tido outros percursos, oportunidades, escolhas, casamentos, carreiras.... Alguns, certamente, associados aos seus empreendimentos 
de milhões, todos com outros horizontes, entre São Cosme e Rio, onde mesmo a viver em São Cosme, António Aguiar planeava continuar presente em 
negócios de banca, com o inseparável amigo Cunha, que haveria de prosseguir sozinho um roteiro ascendente. Manteve sempre o contacto com a família do
 velho companheiro. Era o padrinho da Lolita, e muito popular entre os meninos Aguiares. Anos depois, proporia casamento à lindíssima e virtuosa viúva, aceitando, de 
bom grado, a ideia de se tornar o segundo pai dos seus muitos filhos, que vira crescer. Não conseguiu da mãe um "sim", que os filhos teriam dado, com entusiasmo,
 em uníssono. Para serem uma família completa e no pleno gozo do estadão em que tinham vindo ao mundo. Todos tinham noção de viver num patamar de baixo, e sentiam-se vítimas de perda irreparável, como se tivessem sido, sem culpa nem motivo, biblicamente, expulsos do paraíso... Mais tarde, muitas décadas mais tarde, Mariazinha escreveu numa das folhas soltas em que guardava grande variedade de notas e reflexões: "éramos felizes e não sabíamos". O pai deixara-lhes por herança, um pequenos paraíso pensada para eles, onde sonhara vê-los crescer., a Vila Maria, uma vila dentro da vila, com espaços muito diversificados e esplêndidos, o casarão, onde tudo era grande, à dimensão de uma família extensa e em crescimento, rodeada pelo jardim, o pomar, as vinhas, a casa do forno, onde dormia o criado, a casa da eira, contígua ao maior dos tanques, o galinheiro, para as crianças, uma espécie de pequeno zoo, e, do lado oposto, quase escondidas atrás do pomar, as pocilgas, albergadas num comprido conjunto granítico, os tanques, o chalet, com entrada independente para a rua, destinado a garagem e arrumos, os mirantes, o da frente, do qual se poderia acenar, e até, verdadeiramente conversar, com apenas uma rua de permeio, para quem assomasse às janelas da residência do tio Alexandre, e um outro, semelhante nos fundos da quinta, num idílico cenário campestre, há muito desaparecido, depois da abertura, no início da década de setenta, de uma nova via, que cortou parte da propriedade. No preciso lugar onde existira, se construiu uma escola profissional, agora vizinha do auditório de Gondomar.
Não é de admirar que Mariazinha, como todos os manos, ali se sentisse tão absolutamente livre, mesmo estando, como as outras meninas, proibida de passar a linha vermelha dos portões. Ela, que era a mais rebelde e desobediente, não precisava de desafiar essa ordenação materna, porque gostava mais de estar na Vila Maria do que em qualquer outro lugar. Rapariga desportiva, pequena e ágil, ávida de ar livre e exercício físico, bastante criativa nas formas, mais ou menos radicais, de o praticar, em companhia de Lolita, trepando às árvores mais altas, saltando a partir delas para telhados, o mais procurado dos quais era o da casa da eira da casa da eira. Tinha, porém, um ponto fraco – era visível das janelas da sala dos tios, e a tia Hermínia, sempre vigilante, quando as avistava, obrigava-as a descer imediatamente, com brados e gestos frenéticos. Nem por isso as denunciava à mãe, por recear a sua tendência para uma excessiva severidade, que era, talvez, a sua maneira de assumir o duplo papel de mãe e pai de crianças rebeldes. Por sorte delas, mostrava-se mais preocupada em as manter dentro dos limites protetores da quinta e muito menos em as vigiar no seu interior. Ao longo do dia,  ausentava-se constantemente, envolvidíssima na prática de boas obras, com sede na paróquia. Por causa de um incansável voluntariado as deixava, assim, muito à vontade, e elas aproveitavam em pleno as virtualidade da situação. Podiam, sem oposição, convidar primos e amigas, escolhidas, é claro, dentro de um seleto círculo de convivência, sob o olhar de autoridades mais benignas do que a materna, não as criadas, pois não as havia com o perfil de uma velha governanta (raramente  satisfaziam, por muitos anos seguidos o grau de exigência da empregadora), mas os queridíssimos tios, o tio Alexandre, convertido em figura tutelar masculina, em segundo pai e as tias Rosaura e Hermínia.
As fotografias, depois de um longo hiato, são já todas da década de 30, quando o ambiente se torna mais distendido, Mariazinha e Lolita posam para as câmaras com a maior compostura, não deixando transparecer aquilo de que eram capazes quando não vigiadas pela objetiva, Erm todo, nota-se que a mãe toma a precaução de as separar, Uma à sua esquerda, a outra à sua direito, não fossem tecer alguma partida... E, como se vê, não abandona os fatos negros, mostra-se de semblante triste e nostálgico, embora tivesse recuperado o antigo hábito de captar em imagens momentos conviviais - nestas fotografias com o primeiro genro, a primeira nora, os primeiros netos, António José e Mário, filhos de Carolina que casara, aos 18 anos, com Serafim Caetano Pereira, um empresário de Quintã, católico de comunhão diária e solista do coro da igreja, e de  Manuel Joaquim e Clara de Sousa,  os pequeninos Margarida e António. Clara pertencia a uma conhecida família de São Cosme,era lindíssima e muito viva, e por ela Manuel se apaixonou, a ponto de abandonar, aluno brilhante e quase doutor, o curso de Medicina, em Coimbra.
A foto em que Maria Aguiar está com as filhas Mariazinha e os netos António José e Mário é uma raridade, a única em que figuram, ao colo das crianças, três dos lendários gatinhos franceses de olhos azuis e pelo branco, a que o marido era muito afeiçoado. E, em fundo   avista-se uma casa velha como uma série de janelas de guilhotina, que se tornaram o alvo da pontaria do António Maria. O mais tranquilo dos rapazes, tão bem comportado em todos os demais aspetos, era um perigo de fisga na mão. Nenhum dos numerosos  quadadinhos de vidro lhe escapava. O vizinho, contudo, não protestava e era sempre compensado do incómodo, com o pagamento dos estragos a dobrar. 
     














A Mariazinha, em retrato oficial para as fichas de inscrição escolar, parece exatamente o que não era, uma menina melancólica e  tristonha.
Da escola primária tem boas recordações, o que implica tê-las, também, da professora, Dona Aurora Montenegro, senhora muito distinta, pertencente ao círculo de amizades da mãe. Já velhinha do ponto de vista da criança, o que possivelmente significa que era mulher de meia idade, vivia numa mansão próxima da Vila Maria, uma pequena quinta, no caminho do Largo da Pedreira, onde moravam os tios Rosaura e Manuel. 


O início do ano letivo coincidia com as festividade em honra de Nossa Senhora do Rosário, que eram, e ainda são, as mais importantes no calendário anual da vila (agora cidade) de Gondomar, um composto de celebração religiosa, romaria, feira popular.. As meninas gozavam-nas, imparavelmente, Em nenhuma outra época do anos se viam tanto por fora dos muros da Vila Maria, acompanhadas, sim, mas não lhes faltando nunca voluntários para esse papel,, entre tios, outros parentes e os confiáveis pais das suas  amigas. A mãe participava, de boa vontade, na sucessão de eventos, mais ligada à organização da vertente religiosa, mas olhando com a mesma simpatia as diversões, talvez por se lembrar de igual condescendência da parte dos seus pais.  O Largo do Souto, a dois passos da Vila Maria, e a rua espaçosa que o liga à Igeja,  transformavam-se  em esplanadas cheias de gente, em constante vai vem entre tendas, onde se vendia de tudo, da doçaria tradicional a louças regionais, bordados, ou brinquedos. A banda tocava no coreto. A restauração centrava-se em dois grandes pavilhões, o da Cruz Vermelha e o da Cruz Branca, ambos com fins beneficentes..   
 Recordação singular dos convívio e tertúlias em que todo o Gondomar se reunião nos dois pavilhões é um simples guardanapo de papel rendilhado e florido, com uma quadra popular, que mais do que pelo valor poético, em verdade nulo, vale pela graça e por ser testemunho de outros modos de estar e de agradar ao seu público. A dizer-nos, por exemplo, que as batatas fritas já estavam na moda!
Também não faltavam fotógrafos ambulantes e um deles retratou, em 1931, em grupo, as pequenas Mariazinha, Lolita e Leninha,com os primos José Joaquim e Tininha, filhos dos tios Celestina, que eram os mais próximos na idade. Todos engalanados para a festa, como mandava o protocolo. Por muitos que fossem os de fora, a festa não deixava de ser um ponto de encontro para a sociedade elegante de São Cosme, os pavilhões eram frequentados por famílias inteiras e o chá, os bolos, ou as batatas fritas, servidos por meninas voluntárias.  
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Maria Aguiar, na senda de seus pais e irmãos, era uma apaixonada pelo folclore,  música, tanto pela chamada "clássica"como pela popular, e pelo teatro. Todas as filhas  aprenderam piano, qualquer que fosse o seu grau de talento, mais elevado, por sinal, (quem diria?), na estouvada Mariazinha, ainda que só Madalena, menos fulgurante, mas mais metódica, tivesse completado o curso do Conservatório.
E também lhes foi permitido pisar os palcos do Cine teatro Nun' Álvares, em récitas beneficentes, muito aplaudidas como vedetas de comédias. Mariazinha que sonhava ser atriz, aí fez a sua estreia de sucesso e aí acabou uma a brevíssima carreira... 
Um programa com correções feitas à mão, indicará que a colaboração da família Aguiar, não se limitava à representação, antes estaria no centro da organização



  





Maria Laura foi a outra prima, que entrou na iconografia da Vila Maria, onde era visitante muito frequente com a mãe Maria Isabel (Mimi), prima direita e a melhor amiga de Maria Aguiar. Orfã, como elas, de um pai desaparecido na juventude. Um artista plástico, muito moreno, de quem filha herdou os traços e a tez -  tão morena que, a seu lado, a Lolita parece mais branca e a Mariazinha irremediavelmente pálida..







Enfim, uma fotografia das duas, em que, de algum modo, desafiam a câmara, com mais naturalidade, como se estivessem a magicar uma próxima golpada.
Estão atrás do poço, com a parede do mirante em fundo.

O COLÉGIO DA ESPERANÇA
A Maria Antónia passou dois anos num internato de freiras, esperando que a irmã Lolita terminasse a instrução primária, para juntas entrarem no colégio da Esperança.. Para ambas, o colégio, foi contrariando o nome, um lugar de desesperança, onde se sentiam confinadas, presas e frustradas. Sem longos carreiros e veredas para correr, sem mirantes e esconderijos, sem telhados para saltar, sem mirantes e esconderijos,  nem árvores para saborear a fruta mal amadurecida, trepando aos ramos mais altos.. À solta, como se estivessem num pequeno sertão... 
Choravam noite fora até caírem de cansaço no sono. Ficavam em camas seguidas,  em sussurro planeavam fugas que nunca levaram a cabo, (talvez por saberem que seriam recambiadas de volta, depois de castigadas, sem dó nem piedade (já não tinham o pai para se comover com tormentos e lamentos, como acontecera np caso idêntico da irmã mais velha. Um dos planos
consistia na escalada dos muros da quinta. outro, que evitava o risco e o prazer de tais proezas atléticas, era, escapulirem-se pela capela que dava acesso à rua e à liberdade por uma sólida porta com grades, fechada por chave de ferro, para o que  bastava roubar a chave. Uma vez, estiveram preste a executar este plano B,  e foi  a colega Maria Laura Horte que, avisadamente, as convenceu a desistir... Não se sabe como tencionavam chegar a Gondomar, se a pé, fazendo uns dez quilómetros por estrada, se utilizando,o elétrico. Dinheiro não lhes faltava para pequenas extravagâncias e esta, pelo preço, valia a pena. Recebiam uma mesada do tio Alexandre, vinte escudos para cada uma, com os quais encomendavam a uma recoveira chocolates e toda a espécie de bolachinhas e doçarias.
Um plano de deserção, mais discreto, mas sempre de curto prazo, era engendraram uma doença, uma constipação, gripe, pneumonia, se preciso fosse.  Para isso,  andavam de meias e soquetes molhados, mas eram demasiadamente resistentes,  raramente conseguiam resultados....
Da Esperança, no centro do Porto, a poucos quilómetros de São Cosme, só iam a casa nas férias, Páscoa, verão, Natal E só recebiam vistas à quinta-feira, a mãe, o Tio Alexandre, às vezes os irmãos.  Nos últimos anos,  também o namorado da Lolita, o Eduardo Fonseca, que era mais velho e parecia ainda mais  velho, e se fazia passar por tio, sendo admitido na sala de vistas, nessa confiável qualidade, com natural permissão para dar um beijo na face à falsa sobrinha. Ela aparecia,  muito juvenil, de lacinho vermelhos no cabelo e soquetes ou meias pelo joelho. Vermelho era a sua cor preferida, como o amarelo era a da irmã.
  Numa dessas quinta.feiras, a mãe não pode visitá-las, porque estava doente e mandou em seu lugar o Manuel Joaquim com os presentinhos do costume (queijo, marmelada, compotas caseiras...). A certa altura, subiu a um banco, desatarrachou uma lâmpada e meteu-a no bolso, deixando as manas apavoradas. Mas não conseguiram arrancar-lha e repô-la. Não se sabe a razão daquele insólito gesto - talvez uma aposta.
No novo habitat, não lhes faltavam amigas, entre colegas e professoras, a suavizar a ordália. Eram muito populares, e as suas excentricidades davam colorido às rotinas colegiais e serem  chamadas "os galos doidos" dá uma ideia da fama que granjearam. Entre as colega, Miriam Cavalier (uma das poucas alunas dessa geração que, depois, faria carreira distinta como médica)
Renia Finkelstein (que veio muito pequena da Polónia, de onde trouxe muitos "pins", que lhes oferecia) a Zita Seabra (muito bonita, loira, de olhos azuis, mãe da Zita Seabra, antiga deputada do PCP e dos PSD), Fernanda Málen (que haveria de professar como religiosa), a Olímpia e a Julieta com quem continuaria a conviver, já depois de casada, em Espinho, onde elas tinham casa de praia, a sensata Maria Laura, que lhes impediu uma fuga destinada a fracasso,  Manuela Abrantes (aluna externa, que as convidava para festas, num esplêndido palacete, ali bem perto . ocasião para saírem da clausura por umas horas, com uma autorização da mãe, primorosamente falsificada).
 Curiosa a quantidade de nomes estrangeiros, a dar o toque cosmopolita a um colégio bem conceituado e bem situado, onde as filhas da burguesia se misturavam com meninas orfãs, de qualquer classe sócio-económica. Muitas eram do litoral, havia um importante contingente de Ílhavo, outras de vários pontos do norte e nordeste  como Olímpia e Julieta, as tais que veraneavam por Espinho. Não era desse tempo o convívio à beira-mar com as Aguiar,  que sempre arrendavam casa na Foz velha, em agosto.
As melhores recordações da Mariazinha são da sala de piano, as de Lolita, certamente, da sala de visitas, onde namorava com Eduardo, o suposto tio.
 A Professora de piano era Margarida Portela, uma extraordinária executante e pedagoga faz, que considerava a mariazina uma aluna muito especial, uma grande pianista em prespetiva. Ofereceu-lhe as valsas de Chopin, com dedicatória. Muitas décadas depois, deu-as à única música da família da  nova geração, a Sameiro (que terminou, em simultâneo, os cursos de Medicina e do Conservatório de Música), mas esqueceu-se de copiar a dedicatória, e sempre lamentava o esquecimento. Em programas de festas, as pianistas eram sempre a Maria Antónia Aguiar e a Amélia, uma colega de Avintes, com quem chegou a tocar a quatro mãos, Amélia morreu jovem (mais uma vítima da tuberculose, como a inesquecível Tia Glorinha). Nas temporadas  que passava em Avintes, depois de casada, a Maria Antónia recorria a uma boa costureira da terra, muito engraçada e tagarela, que conhecia
 meio mundo e logo descobriu, em conversa, como descobria tudo o mais, que tendo a nova cliente andado no Esperança fora contemporânea da famosa menina Amélia, para cuja mãe continuava a fazer os arranjos da roupa e a quem prontamente transmitiu a novidade. Foi a mediadora de um primeiro convite para
 a Maria Antónia a visitar, seguido de vários outros. Morava, por acaso, muito perto dos seus sogros, Para ela, abria o piano de Amélia, que mais ninguém tinha tocado desde a sua morte,   e ficava a ouvi-la, encantada... 
A professora Margarida era muito bonita e tal como a boa aluna de Gondomar, muito míope. Esta, além de míope, condenada a óculos de lentes grossas, (que,  por vaidade, tirava sempre que podia, sem risco de tropeçar e cair) era praticamente cega do olho esquerdo, o mais azul, contrastando o direito, o esverdeado. 
Uma das mais melancólicas recordações dois a do roubo de jóias de que foi vítima. A possiblidade de haver ladras, mesmo nos bons colégios é sempre de considerar, mas a mãe  deixava-as arriscar. E assim ficou sem uns brincos lindíssimos que tinham sido da Tia Glorinha, dados pela Tia Rozaura. E ela até viu, a rapariga a mexer nas suas gavetas. Mas hesitou - mais expedita a escalar telhados do que a denunciar colegas..A ladra não parou por aí e acabou
 por ser chamada a capítulo, e expulsa, mas sem devolver muitos dos objetos surripiados. No dormitório ficava ao lado da Mariazinha - foi-lhe fácil observar os seus movimentos, a vasculhar gavetas sem chave. Depois passou a ter a melhor da vizinhas, a amiga Fernanda Málen, futura freira.
Décadas mais tarde, numa reunião de antigas alunas, olhou em volta e reconheceu a ladra., mas a pedido da Miriam guardou segredo silêncio sobre esse escândalo do passado distante... .
Os dois dormitórios, o das pequenas e o das veteranas, eram vigiados por uma encarregada, de nome Beatriz, estavam separados pela sala de piano, O das mais novae aberto, sem divisórias, o outro  com a privacidade relativa de cortinas que podiam fechar-se. Na convidativa sala de piano imaginava-se  num salão de concertos, sonhava alto, sem saber que Os únicos palcos que a mãe lhe permitiu pisar seriam os do colégio e, esporadicamente, os do Teatro Nuno Álvares
 Pela vida fora anos  atraiu com as suas canções, as suas histórias e  benignas excentricidades, apenas a família, gerações sucessivas . Curioso é que até o seu dentista, um dia, sem saber das suas ambições secretas. lhe disse: "Devia ter
 sido atriz. Vê-se que tem jeito!" Até mesmo na cadeira do dentista representava bem a sua personagem. "tem a certeza de que isto está limpo?  Não usou essa agulha nos dentes do homem que saiu daqui quando eu entrei? 











NAS RUAS DO PORTO
Para a gente de de Gondomar, o Porto era a capital do País, onde se ia, constantemente, às compras, à modista, ao cinema e ao teatro, às confeitarias e cafés, aos médicos especialistas.
 O elétrico de São Cosme ao Bolhão, o nº 10, com dois traços, tinha paragem em frente ao portão da Vila Maria A viagem era demorada mas muito agradável e a mãe utilisava-o, com muita frequência e, em tempo de férias, gostava da companhia das ffilhas. O Bolhão estava rodeado de lojas de toda a espécie, e de algumas das suas confeitarias preferidas, como a Villares.. O Grande Hotel do Porto, em Santa Catarina, era  lugar de boas recordações, o escolhido pelo marido quando, de longe a longe, decidiam passar a noite na cidade,para um jantar especial ou um espetáculo.
O colégio não contava uma parte do Porto, que ali dentro não se via nem se sentia, era uma clausura que podia estar em qualquer ponto geográfico... A cidade alegre, que adorava, só começava para além dos seus portões.
 Mais do que a mãe, era o tio Alexandre que as levava em  excursões  ao comércio portuense, às sapatarias, às lojas de roupa ou às livrarias. vestidos, de sapatos, sempre liberal, bem-disposto e complacente. A Lolita era sempre rápida e despachada nas escolhas. A Mariazinha era um caso bicudo... Não gostava de nada, punha defeitos em tudo, sobretudo no que respeita a sapatos.. Corriam a "baixa" inteira, miravam as montras, aqui e ali entravam para ela experimentar vários modelos, sem que ela se decidisse. 
 O tio, paciente, sugeria: : "Vai olhando e quando vires uma menina com uns sapatos de que gostes, diz-me e eu pergunto à mãe onde os comprou e levo-te lá".
Irremediavelmente exigente e complicativa... 
Não sabemos, com certeza, como a julgavam os outros, as amigas, os professores, os parentes, mas ela própria se descreveria assim, numa idade avançada:: 
Não sou bonita, nem feia, sou simpática, Fui sempre muito simpática (isto não é narcisismo). E fui, em tempos, há muitos anos, uma rapariga interessante, pequena, bastante pequena, mas cheia de saúde, extuante de vida, de vida e de alegria, que transbordava por todos os poros do meu corpo. Diziam, até, que tinha muita graça, aquela graça natural de uma rapariga que da vida só queria a vida e nada mais. E o fulcro da vida era o amor. De uma sensibilidade doentia, muito sincera, expansiva e nada egoísta.
Na verdade, o auto-retrato,  no que respeita à beleza física,  pecará por excessiva modéstia. Para a tia Rozaura era a rapariga mais bonita de Gondomar, na sua geração. O tio Alexandre achava-a parecida com uma irmã do futuro cunhado António Aguiar, segundo ele, lindíssima, por quem fora apaixonado na juventude (Florinda?). João, o futuro marido, quando a conheceu, notou as suas semelhanças com a famosa atriz Paulette Goddard.  Os rapazes com que namorou, às vezes, simultaneamente, também a consideravam uma beldade.... E, acima de tudo, tinha e teve até aos últimos dias, acima de tudo, carisma. 

GONDOMAR,  MONTE CRASTO E OUTROS IDÍLICOS LUGARES

Se o Porto era uma atração, nem por isso Gondomar, São Cosme, deixava de ser o centro do universo, à volta da qual tudo girava. Para a Mariazinha, até o Porto fazia parte de Gondomar, era, afinal, a sua vertente cosmopolita, era a paisagem que o Monte Crasto dominava do alto da sua alma verdejante. De todos os recantos de uma terra idílica, nenhum igualava o celebrado Monte, que, na sua própria família, era uma verdadeira Meca de passeios rituais e inspirava poetas. 
O tio materno, José Barbosa Ramos, era o autor da letra do hino de Gondomar, com música composta por José Moura, que fora o primeiro professor de piano das meninas Aguiares.
Se o Porto era uma atração, nem por isso Gondomar, São Cosme, deixava de ser o centro do universo, à volta da qual tudo girava. Para a Mariazinha, o próprio Porto fazia parte de Gondomar, era, afinal, a sua vertente cosmopolita, era a paisagem que o Monte Crasto dominava do alto do seu verdejante esplendor.



O tio materno, José Barbosa Ramos, era o autor da letra do hino de Gondomar, com música composta por José Moura (que foi, por sinal,  o primeiro professor de piano das meninas Aguiares).

"Gondomar, terra bendita
Rincão formoso e fecundo
O nosso Crasto frondoso
Não tem, não, rival no mundo.
Filigranas delicadas,
Verdes prados cinge a serra.
Cantam fontes e avezinhas
Eis os dons
Da nossa terra.
Gondomar é o nosso berço
Beija-o a brisa fagueira
Cantemos por Gondomar, 
É divisa da bandeira
Cantar, cantar,
A linda terra de Gondomar".

 Na geração seguinte, seu irmão Manuel glosou o tema, destinado à célebre revista que estreou em Setembro de 1933 e ficou nos anais de Gondomar, e que ele voltaria a recitar para os amigos, em pleno Monte Crasto. Um repórter registou-o nas páginas do "Correio de Gondomar"  de 17-3-34, e minha mãe guardou o recorte nas suas gavetas, onde foi encontrado já depois de ter partido.

"E o Castro
Belo e frondoso
Erguendo-se majestoso
Na terra que nos foi mãe,
No sino da igreja além, 
Trindades oiço tocar
Como é linda a minha terra
Como é linda a verde serra
Como é lindo Gondomar!"

Os poemas têm assinatura, mas retratam o estado de alma de uma família inteira, a olhar quotidianamente, com orgulho, as belezas naturais de São Cosme. 
O falso e malfadado “progresso do cimento e do betão” vedou aos vindouros essa comunhão com a gentileza de um meio ambiente, hoje definitivamente  perdido. Nem mesmo o Monte Crasto, último bastião, que resiste, é tão frondoso quanto era nessa idade de ouro...
Dissipou-se, também, na populosa "cidade-dormitório do Porto", a dimensão de uma comunidade autêntica e convivial, quando os dias corriam devagar e todos fruíam de recantos onde a vila e o campo se misturavam numa interlocução de pessoas e espaços, em todos se conheciam, nos clubes e tertúlias, na botica, na igreja e nas festas populares, partilhando hábitos e costumes, a sonoridade do sotaque, a fala com as peculiaridades, em que o "povo-povo" resistia à uniformização ditada pelas elites letradas.
A pequena Maria Antónia, excelente aluna a História e a Geografia, foi sempre muito dada a recolhas de natureza cripto-etnográfica, talvez influenciada pelo exemplo da Tia Rosaura de quem também se conhecem apontamentos soltos sobre mezinhas e rezas das mulheres do antiquíssimo Gondomar, anotou os lugares, que faziam os seus encantos - o Barroco, a represa de Cascaneira, entre a Gandra e Ramalde, Bouça Cova, Azenha, Ermentão, Rio Carreiro, Fontela, Ponte Real, São Miguel, Pevidal, Santo André... - , e, também, expressões, nomes e alcunhas aldeãs, que lhe despertavam a curiosidade, como Pojeiras, Restivos, Cabaças, Jeque-Jeque, Tarré, Fome Negra, Caga Troços, Carriças, Pilha Galinhas,Patacas, Pirabeca, Arregalados, Folhetas, Estabões, Bagulho, Parraxila, Chasco, Varetas, Melros, Pisco, Choco, Pimpão, Pinguinhas,Pombalinos, Toca- certo...
Menos invulgar o nome de Isidro Izidoro, que, todavia, fez sensação, quando deixou dito que, nas exéquias, queria levar um cravo vermelho na lapela. Era ela uma criança, mas conseguiu que a levassem a vê-lo, talvez uma benigna criada, lhe tenha permitido a secreta escapadela.
A família materna, tal como a paterna encontravam-se praticamente livres de quaisquer dessas alcunhas, fossem elam trocistas ou amáveis, com a exceção de uma tia Aguiar, a quem, por ser baixa e gordinha, chamavam Maria Parrachila. As antepassadas da bisavó Carolina, as que pareciam  algumas das formidáveis figuras femininas do universo ficcional de Agustina, e ficaram conhecidas como "as Alexandras", não entravam naquele “dicionário”. O nome popularizou-se e foi adotado, também, no masculino, ainda hoje. em sextas ou sétimas gerações dos seus descendentes, mas, curiosamente, não aparece nas pesquisas 
genealógicas do século XIX.
 Há, sim, entre tias e primas, alguns outros de ressonância greco-latina, como Lavínia, Leocádia, Violante, Blandina ou germânica, como Guiomar.
 No apanhado de vocábulos esquisitos, então em voga nas camadas populares, apontou, dando sempre o sinónimo, palavras ou expressões como: vasculho malandro), paspalhão (desajeitado), dar uma topada (tropeçar), encatrapiada (aleijada), pimpineira (aldrabice), pixote (pequenino). "embaçado" (envergonhado) ou ditos antigos, por exemplo:  "estás a olhar para ontem, que já lá vai", ou "estás a ver navios" (distração): Deus nos dê muito e nos abone com pouco":"estreminguei um pé" (torci) "vim da outra banda" (do outro lado) "estou triste como a noite"...

Tudo o que era, ou. pelo menos, considerava ser, particularidade da terra e das gentes de Gondomar lhe parecia dar a certeza de estar onde e com quem mais queria. Ligavam-na à longa herança de ancestrais, que certezas semelhantes tinham enraizado ali, mesmo quando, como aconteceu com seu pai, se aventuravam, por muitos anos para além das fronteiras do concelho, do país, ou do mar... Sem perder a vontade de voltar à melhor de todas as vilas e cidades erguidas no planeta - a vila de Gondomar, dos Mendes Barboza, dos Ferreira Ramos e dos Pereira de Aguiar...








 



Tudo o que era, ou. pelo menos, considerava ser, particularidade da terra e das gentes de Gondomar lhe parecia dar a certeza de estar onde e com quem mais queria. ..































AMIGAS
Do círculo de amigas e colegas das lições de pianos d pequena Mariazinha faziam parte as "Paciências", encantadoras filhas de um dos vendedores das terras
 onde se implantou a Vila Maria, e as irmãs Maria Amélia e a Madalena da Estrela. Não era apelido, mas alcunha -  o pai tinha construído um palacete original, 
em  forma de... estrela.. (Antecipando o futuro em alguns anos, poderá, desde já dizer-se que há muitas fotografias do casamento de estadão da Maria Amélia, 
com quem, depois, perderam contacto. porque foi viver para Viana. Madalena uniu o destino a um rapaz de Avintes, contra um coro de opiniões adversas. 
Gostava dele, e não quis saber de mais nada. Não se conhece o desfecho, pois também lhe perderam o rasto. A Felismina viria a ser uma rapariga bonita, 
alta e loira e a primeira a casar, com um Ramos, a quem chamavam o "Ramitos". Contou às colegas das, pormenores pedagógicos sobre a noite de núpcias,
 e deixou um conselho: "Não vale a pena gastarem dinheiro na camisa de noite de núpcias. Não vale mesmo a pena...).  

NAMORADOS
Duas gémeas na proximidade, nas confidências  e nas aventuras, na audácia, mas muito diferentes no temperamento, nas escolhas sentimentais e na vida
 que viveriam pelos casamentos. Lolita foi a primeira a prender-se a um namorado, que seria o único. Não o único marido, mas a única paixão da juventude,
 pela qual desafiou a mãe,  para quem ele, o Eduardo d´Ascensão Fonseca, embora de boas famílias, com quem socialmente convivia, era um perigoso 
ateu e boémio. Mais ou menos como dois dos seus três filhos, que, porém, não podiam, naturalmente ser enjeitados ou rejeitados como os pretendentes de
 teimosa adolescente  de 15 anos. Eduardo não tinha pressa de acabar o curso, era também um desportista polivalente, muito voltado as modalidades náuticas
 nadador de poderosa braçada e velejador. No rio Douro tinha uma canoa para dois tripulantes, que fazia sucesso entre os amigos. Até que o amigo Licínio 
caiu ao rio e morreu afogado. No funeral, Eduardo chorava e só dizia: "Foi no meu barco!". Não quis mais ver a canoa. Vendeu-a. ( morte foi muito sentida na
 terra e, ainda hoje, a sua fotografia está guardada nos albúns - pela imagem parece um rapaz sereno e amável)
.Mariazinha, que seria casada com João por mais de meio século, teve uma longa fila indiana de namorados (nem sempre assim tão indiana, pois alguns o 
foram simultaneamente. Os mais lembrados eram o Albino (não se esquece o primeiro beijo, furtivo, na varanda grande e recatada da sala de jantar), o Adriano
 e o João.  Tal como Albino, este era de São Cosme Jacinto, ambos de São Cosme, com acesso à Villa Maria, pela camaradagem com os rapares da casa. 
Emboraa vizinhança desaconselhasse a simultaneidade, a Maria Antónia correu o risco. E, entretanto, surgiu um terceiro e o mais interessante de todos. 
Fernando Marques Ribeiro, um grande amigo de Eduardo, mas, ao que parece, menos dado a "farras" na noite portuense. Era um pouco mais velho e já um
 pianistanotável, a quem se adivinhava grande futuro. Compositor e maestro, haveria de ser conhecido como o "Chopin português" (o que introduz a dúvida 
quanto à questão de saber se a paixão da Mariazinha por Chopin, começou no génio polaco ou no brilhante português, mas qualquer que fosse a origem, não
 teve fim - foi a música de fundo que se ouviu, o tempo todo, discretamente, baixinho, no seu velório, em 2019, no ano em que ia completar 99 anos)
Albino estava na tropa e, quando terminou o serviço militar foi festejar com Jacinto e outros camaradas e contaram um ao outro que namoravam a bonita
 Aguiar. Seguiu-se uma barulhenta discussão sobre "quer era quem" para ela  e, sem mais argumentos, envolveram-se numa cena de pancadaria, digna de um
 filme do "far-west". Um dos circunstantes, Licínio, por coincidência amigo íntimo do João Moreira, que ainda não entra nesta história, e também do Marques
 Ribeiro, que nela já tem papel central, resolveu satisfazer a curiosidade e perguntar à jovem, que era o pomo da discórdia. Ela olhou-o. encolheu os ombros e
 disse-lhe. "Olhe, Licínio, eu gosto dos dois". Contudo,  acabou logo com o Albino, e, umas semanas depois, com o o Jacinto. Seguiu-se o Adriano de Rio 
Carreira, sobre o qual não forneceu muitos detalhes. Foi relação de pouca dura. Entretanto, todos aquelas desventuras e anomalias, tinham chegado aos ouvidos
 de Marques Ribeiro, que numa última visita à Vila Maria, onde era sempre bem recebido pela Senhora Dona Maria Aguiar, encantada por poder ouvi-lo tocar 
piano, a repreendeu severamente,  mostrando-lhe que era muito acriançada e que voltaria a procurar a sua companhia quando fosse mais ajuizada.  Já lhe 
tinha dirigido um convite para atuar com ele num concerto no Porto  - a que a mãe se opôs firmemente - mas pensava, com certeza noutras parcerias mais 
duradouras. E se tivesse casado com ele, decerto que o caminho para os palcos lhe estaria aberto. Todavia, ele, (que continuava a carreira em Lisboa), 
voltaria tarde demais, já ela estava há uns meses consorciada com o João, o seu poeta particular. Da música para a literatura...  Pensando nesses 
tempos, deixaria um pequeno texto em que lembra as ilusões de então, que só verdadeiramente se perderam nos anos 60, ao fim de duas décadas de 
casamento:
"Sonhos meus, audaciosos, inquietantes, insatisfeitos - como eu, uma insatisfeita - sonhos belos de um amor quase perfeito.
 Mais de uma vez desci o Crasto num voo pleno de graça e leveza. Senti mesmo os pés a levantarem-se do solo e voei acima
 daqueles queridos pinheirais, eucaliptos e mimosas, voava em direção a minha casa.


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