sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

P24b - MADALENA - "LECAS"


TÃO VIVA NA NOSSA MEMÓRIA
A Madalena nasceu em 12 de Dezembro de 1943, em Gondomar, na "Vila Maria", no quarto azul , do primeiro andar - um quarto tranquilo e relativamente pequeno, com vista para o pomar, o mesmo, que, anos antes, a Tia Lina escolhera para a chegada do Mário. Não sei porquê, mas as duas irmãs optaram, no caso dos primogénitos pelo "quarto grande" do andar de cima, e para os segundos por esse outro, tavez , do ponto de vista psicológico, mais confortável ( os ingleses diriam "cosy").
O Tónio e eu eramos, pois, a "dupla" do aposento mais imponente. Mas, pelo menos no que me respeita, o evento foi longo e muito complicado... A assistir a mãe, tanto no parto da Madalena, como no meu, estiveram o Tio Manuel, na qualidade de "quase" médico, melhor do que a maioria dos especialistas, e a Tia Clara, na qualidade de cunhada e amiga. E a Avó Maria, evidentemente!

A Madalena era uma menina bonita, grande e gordinha, loira e de olhos azuis, muito claros. O Nestó era mais velho apenas um mês e eu, dezoito meses. o que me permitia uma postura de comandante, visível, sem necessidade de legenda, em muitas fotografias de época. Crescemos juntos, nos tempos e nos espaços de uma infância feliz: a década de 40, passada em Gondomar, em Espinho, em Avintes. Os primos, Nestó, depois Docas e Xana, andávam pelas várias terras de minas, conforme as colocações profissionais do Tio Eduardo, mas apareciam costantemente. O Tónio e Mário estavam ali, ao lado.
Uma das facetas curiosas da minha irmã era a de resistir, surpreendentemente, em situações de guerra aberta, naqueles muitos conflitos em que se envolvem crianças da mesma idade e temperamento diferente, como era o nosso caso. Eu, como mais velha, tinha a minha margem de influência, quando era para a "levar a bem ". Mas a mal, não! A uma bofetada, encontrão ou rasteira, respondia em força - e tinha igual força... Só que, depois chorava, e eu ficava imperturbável. Consequência: era sempre castigada, como se tivesse todas as culpas...
Olhando essa fase das nossas vidas, tenho de dizer que o progresso da Lecas- como lhe chamávamos - daí em diante, foi muito mais interessante do que o meu. Acho que, após um começo promissor, a andar e a falar antes dos 10 meses, e por aí fora, comecei a perder qualidades e ainda não parei. Ela, pelo contrário, floresceu em graça, em beleza e em boa disposição, à medida que avançou na idade! Era uma criança frequentemente rabugenta, que para além dos bons momentos, em casa, mal saía fora de portas, para qualquer evento social - cinema, circo, passeio pelas ruas do Porto, chá na Villares, ida de carro à Foz, a qualquer lado- queria logo voltar a casa. Queixava-se dos sapatos, que a magoavam, de dores nas pernas, de imensa fadiga, sono, sede, fome... Terrível! Nas fotos, punha, muitas vezes, a cara correspondente a esses estados de alma. Até no retrato da comunhão solene se vê bem que estava farta das instruções do fotógrafo, e pouco disposta a fingir animação...
Porém, em adolescente, já era o centro de toda e qualquer festa: dançava optimamente, do rock à valsa - e nunca se cansava... - cantava, com uma voz assombrosa, era sociável, risonha, divertida! E, ainda por cima, lindíssima!
Uma beleza muito singular, a ponto de ser difícil dizer se tinha mais parecenças com o lado materno ou paterno da família. Acho que juntava o melhor dos dois lados.
Passear com ela nas ruas do Porto, quando tinha 18 anos, era uma sensação, semelhante á de acompanhar uma celebridade. Muitas pessoas paravam para ver melhor! E alguns portuenses dirigiam-lhe aqueles "piropos", que na altura eram coisa corrente, ainda por cima tratando-se de uma mulher bonita (nem as feias escapavam, embora, ás vezes, ouvissem galanteios mais ambíguos - mas esse risco não era assim tão grande, porque a tradição mandava mesmo ser "elegante", ou, quando entravam no terreno da "ordinarice", também era para todas. A um dos representantes desta última corrente deu a Lecas, perto da Praça da Batalha, uma bofetada sonora e tão certeira, que lhe partiu os óculos e ele ainda acabou a pedir-lhe desculpa ...). Mas foi acontecimento único. Em regra recebia homenagens simpáticas, com a naturalidade de quem está, por demais, habituado a elas.
Ninguém diria que era doente. Muito doente, desde que teve uma hepatite, aos 10 anos, pouco mais ou menos. Foi tratada pelos melhores especialistas do Porto. Recuperou, aparentemente, mas não de verdade. A hepatite degenerou em cirrose. Não sabia, então, mas é hoje evidente que os médicos conseguiram, daí em diante, apenas prolongar-lhe a vida, por mais dez anos.
Não sabia eu, nem, felizmente,ela.
Ninguém viveu a vida com mais gosto, com mais serenidade. Intensamente!
Por fim, sobreveio uma leucemia, doença que hoje tem cura, mas então não tinha...
Nunca nos apercebemos de que estivesse tão mal. Os médicos pouparam-nos a preocupação de conhecer a sua situação exacta, e assim ela esteve sempre rodeada de optimismo, num ambiente
normal, em que nem precisámos de "fazer de conta"que tudo ia bem . Julgávamos que ía...
Esperávamos que melhorasse! A vontade de viver, a alegria, o aspecto radioso da Madalena pareciam uma garantia de sobrevivência. Quando éramos mais novas, e as pessoas sabiam que uma de nós tinha problemas de saúde, sem saber qual, achavam s que era eu - mais pálida , com pior aspecto...
Apesar de ser eu a fanática do desporto, em geral, e do futebol, em particular, quem tinha talento natural para qualquer modalidade era ela. Estou a vê-la a "bolar", esplendidamente, nos jogos de voleibol, no colégio ou a patinar, com velocidade vertiginosa ,mal pôs uns patins nos pés. Deu grandes quedas, claro, mas aprendeu em tempo "record". Também caiu do cavalo, na primeira experiência equestre, ao lado do Nestó, na mina da Bica, mas isso não a fez desistir. No mar de Espinho, saltava às ondas, bravamente. Quantas vezes , a Rosa Maria Gayoso, à data nossa vizinha de barraca de praia, e eu rememoramos, nostalgicamente, esses episódios espinhenses !
A Madalena era "o máximo" , como então dizíamos. Moderníssima, sempre bem vestida, sempre elegante. Com uma corte de pretendentes impressionante. Quase todos mantidos à distância... Da maioria, já nem me lembro. Entre os meus preferidos ( para ela, não para mim, obviamente...) um pianista, engraçadíssimo, o melhor amigo do Nestó, um dos nossos raros amigos de Avintes, etc, etc. Simpáticos rapazes, que ainda agora se devem recordar dela, com saudades...
Namorados, apenas dois: O Zé, que era um homem muito alto, bonito ( um espanto!), de quem ela gostou imenso, e o Manel Valle, de quem também acabou por gostar. A ruptura com o Manel ,em 1962 ou 63, foi definitiva, amarga, sofrida.
Namoros à moda antiga, sem as intimidades normais no fim de século e no século XX, mas com o mesmo envolvimento sentimental. Ela não teve tempo para recuperar daquele último e infeliz romance. Não houve mais ninguém. Mas foi, sem dúvida, o Zé, quem lhe deixou melhores memórias. Falou dele, até ao fim.
A maior confidente foi a Maria do Carmo. Passou, nessa fase difícil, muito tempo com ela. Iam ao cinema juntas, como se fossem da mesma idade. Eu estava a estudar em Coimbra. Nesses últimos tempos convivemos menos. A Xaninha, a Meira contavam-se entre as suas amigas. Adorava os meninos, os filhos delas e do Tónio e do Mário - os primos mais próximos, como também o Nestó, Docas e Xana.
Uma das poucas pessoas, que pressentiu a rápida degradação do estado de saúde da Lecas foi a Docas. Veio, por isso, propositadamente, passar umas férias ao Porto, em Outubro. Foram dias felizes. Há muitas fotos da visita. São as últimas da Madalena!
Tão alegre, com ar saudável. Sem adivinhar nada de muito errado.
Ainda bem que conseguiu viver a vida plenamente, como se nada a afectasse. Quem tinha a mania das doenças era eu, a hipocondríaca de serviço...
Psicologicamente, a Lecas era fortíssima. Não era dada a depressões, a abatimentos, a tristezas. Foi sempre um esteio, um apoio para todos, nunca dependeu da nossa solidariedade, dos nossos cuidados.
No último verão, deu um passeio esplêndido com a Tia Lena e Tio David. Foram de férias para a praia, no País Basco.
Nada nos preparou para o que viria a acontecer a 3 de Novembro de 1964. 
E a Mãe? Saberia, sem dizer a ninguém? Pode imaginar-se a falta que ela lhe fez, e faz. Entendiam-se particularmente bem, eram, uma para a outra, constante e perfeita companhia.
De resto, a Lecas dava-se bem com o pai, os tios,os primos, os amigos, e até comigo, a irmã , com opções de vida tão diferentes ( demasiado ocupada com estudos, exames e notas, que ela sempre relativizou)... "Todo o mundo"! Era popularíssima, para a generalidade das pessoas do seu círculo de convivência e a grande "favorita" da Avó Olívia , da bisavó, de boa parte da família.

O seu desaparecimento foi uma tragédia. E um choque de que nunca mais recuperamos

.
Fica a imagem do seu rosto jovem e bonito, que nunca envelheceu .Do seu sorriso. E um exemplo de coragem para encarar o destino e para o viver, com esperança no futuro, até ao fim.

Sinto hoje, hoje mais do que nunca, o vazio que deixou na minha vida.
Seríamos duas sexagenárias a passear em Espinho, à beira mar, a tomar o cházinho nas esplanadas, a ir ao cinema, aos centros comerciais do Porto - de vez em quando, na companhia da Docas (agora já reformada, e visita frequente e sempre muito aguardada).
Ela chiquérrima, a Docas e eu não, bem pelo contrário. .
A Madalena faria hoje 65 anos.





























































53 comentários:

Maria Manuela Aguiar disse...

A dupla abertura de mensagens sobre a Madalena divide os comentários. Na primeira, o Zé Severo fez uma descoberta: a parecença da Lecas com a Tininha, quando era da mesma idade. E logo eu me lembrei de um retrato da Tia bisavó Ana ou Joana, irmã da bisavó Carolina, também muito semelhante à jovem Lecas, aos 20 anos.Vou procurar essa foto e junta-la às da Lecas!

Maria Manuela Aguiar disse...

Não consigo pensar a Lecas com 65 anos.E por isso quando imagino um impossível passeio de 3 velhinhas à beira mar, em Espinho (ela, a Docas e eu),vejo-as ao longe, de costas. Três vultos, apenas. O "Trio das Tias". Falo de um pacto, assinado pelas três, quando tinhamos 12 a 14 anos. Era um compromisso de "não casamento", que nessa idade nos parecia o melhor projecto de vidafutura. Independentes, para correr mundo, para fazer só o que nos apetecesse, sem dar satisfação a ninguém! Acho que a idéia era essa. E divertimo-nos imenso a redigir, a passar a papel limpo, a assinar, solenemente, o dito pacto, em triplicado. A Docas ainda tem o exemplar dela. A primeira impulsionadora terei sido eu. Pelo menos, é o que diz a Docas. E acusa-me, justamente, de ter sido a primeira a rompe-lo... Mas a segunda foi ela, não foi? E a Madalena não teria demorado a seguir o exemplo.O Manel Valle teria rapidamente um sucessor.Com ele, tudo correu mal, desde o princípio. Não faziam o género um do outro. Quem queria uma mulher pouco sofisticada, para quem ninguém olhasse duas vezes, não podia escolher a Madalena. Sempre me dei lindamente com ele. E,em geral,quem se dava lindamente comigo não servia para a Lecas. E vice versa. Assim era em relação a rapazes e até a raparigas. Quase não tínhamos amigos ou amigas comuns. As excepções mais notórias foram a Rosa Maria Gayoso e a Maria Emília Castro Solla. A família era um caso diferente. Ambas nos dávamos igualmente bem com os "primos-irmâos"

Maria Manuela Aguiar disse...

Conhecemos o Manel Valle em Miramar, durante umas férias de agosto, passadas em casa doa amigos Pacheco. O Sr. Pacheco foi colega do pai num emprego qualquer, talvez na Câmara de Gaia. Depois, o Sr. Pacheco fez fortuna com negócios. Entre eles, uma fábrica de sapatos (Jeep?). A sua casa de Gaia era esplendorosa. Muito nos divertimos lá,em inúmeros bailes, ou festas mais informais. Mas a casa de praia também era óptima. A mulher, Dona Cândida convidáva-nos sempre, simpaticamente, e os quatro filhos(dois rapazes e duas raparigas) tornáram-se nossos amigos. Os três rapazes Valle eram visitas quotidianas. Tinham um grande vivenda, um pouco mais no interior. Com os Pacheco nunca houve mais do que simples amizade. Eu gostava deles todos, em especial do Artur, que era o mais divertido - com um enorme sentido de humor. O mesmo se diga do Manel Valle. Durante esse verão, ficamos com a"vaga impressão" de que o João Valle, o mais velho, engraçava com a Lecas, e o Manel comigo. Mas nada de especial - nem namoro, nem "declarações". Depois, o João sumiu do convívio, a Lecas namorava o Zé, e o Manel aparecia imenso. Era uma graça! Alto e elegante, mas feio. Um feio muito interessante. O mais fantástico sentido de humor. Ninguém contava episódios ou anedotas melhor do que ele. Chorávamos a rir! E que bem cantava! Com a Lecas fazia duetos maravilhosos. Mais tarde, quando eu já namorava com o Manel Queiroz,e a Lecas com o Manel Valle, ele tratava-me por "mana" e eu continuei a ter por ele um sentimento muito especial. Fraterno, evidentemente. Andava encantada era com o Queiroz...Tive a maior pena quando a Lecas e ele se zangaram. Ele não foi muito leal com ela, tenho de reconhecer. Nunca mais o vimos. Também já morreu (num desastre de automóvel, tal como o irmão João- e ambos eram condutores excepcionais!)

Maria Manuela Aguiar disse...

Na minha opinião, a Lecas viveu momentos felizes, na sua relação com o Manel. E ele estava genuinamente apaixonado por ela. As melhores fotografias que tem, foram tiradas por ele, e são imensas. É um sinal... O Manel Queiroz fazia o mesmo comigo. Nesse aspecto, ambas tivermos sorte - eram excelentes amadores da arte! E nós, bons modelos. A Lecas por ser uma beleza natural, que dificilmente deixaria de afirmar-se na película. Eu, porque, sendo feíssima, era, todavia, fotogénica, pelo menos em certos ângulos, que o MQ captava na perfeição. O cinema, a dança, a música, sobretudo o canto, a dois, eram "hobbies" em que Lecas e o MV podiam passar dias inteiros, em absoluta consonância. E passavam. Além disso, "filho- famílias", riquíssimo como era, passeava-se, com ela, em bons carros. Por fim, até no carro dele, oferecido pelos pais. A Lecas, talento natural para o volante, em estradas mais tranquilas atrevia-se a conduzir. Mas a convicção com que ficou, foi a de que os pais do MV lhe deram o carro (e ele tinha a paixão dos carros...) com a condição de acabar o namoro. E ele cedeu... Na altura, essa atitude dos pais parecia absurda. Até à altura de eu ir para Coimbra, enquanto o MV era o meu discreto "amigo especial" - nada mais, sabia que eu queria tirar o curso, sem compromissos com ninguém, e respeitava esse desejo! - o pai, Dr. Carlos Valle, achava-nos muita graça, convidava-nos para palestras, visitas a instituições, das quais era benemérito, oferecia-me livros de poemas... Ía a Coimbra, visitar-me,frequentemente, com um grupo de jovens, o MV, a Lecas, o "pretendente da Lecas, e outros, no seu descomunal "Studbaker", onde cabia uma legião. Era evidente que encorajava a amizade do filho connosco - comigo, em particular. Quando o MQ surgiu em cena, tudo mudou. Não me lembro de mais visitas a Coimbra, nem de convites para isto ou aquilo... Depois do rompimento Lecas-MV, atribuía o favoritismo, de que eu tinha sido alvo, ao facto de ser uma boa aluna de Direito e, por isso,uma boa influência no rapaz, que o pai queria ver formado , a trabalhar com ele, num óptimo escritório de advocacia (ele e a futura nora...). Após a morte da Lecas, percebi a verdadeira razão: o facto de ela ser,reconhecidamente, doente. Não o escondia de ninguém. E,talvez,para os de fora, a esperança da sua sobrevivência fosse muito menor, e, infelizmente, mais realista. De qualquer forma, foi muito triste, o que se passou.

Maria Manuela Aguiar disse...

A propósito de talento para a condução : o que sobrava à filha, faltava à mãe...A mãe ficou aprovada no exame por milagre, ou por cunha, ou pelas duas coisas. E nunca se conseguiu entender com as máquinas. A única de que gostava muito era um minúsculo Renault- Joaninha, que resistiu, bravamente, na mão dela. Eram outros tempos, os carros pareciam feitos de ferro...Um dia, numa ida a uma modista de Campanhã, a subir uma estrada íngreme, o motor "foi a baixo" e, claro, a Mãe não sabia fazer a ligação , a recuar. Vários homens, solícitos, vieram ajudar a empurrar, para cima. Nada!... A Lecas saíu para "dar uma mãozinha". E a Mãe, aflita,porque não queria que ela fizesse esforços, resolveu sair também, perante uma filha atónita. Como é obvio, ninguém mais segurou a Joaninha, que foi bater, em cheio, num portão, ao fundo da rua. A Mãe só gritava: Deixem o carro ir! Fujam! E o carro até tinha, como se sabe, o motor atrás: Mas não ficou desfeito. Apenas um pouco amolgado.

Anónimo disse...

Maria Antónia disse: Depois de casar fiquei a viver, com o João, em casa da minha Mãe. Foi ela que quis que,no verão, cupassemos o "quarto grande" ,que era o mais fresco. O outro era o quarto de inverno. Foi por isso que a Manela, em junho, nasceu em cima, e a Lecas, no mês de Dezembro, em baixo. A Lininha, quando teve os filhos morava ainda na casa que é, agora, da Maria Ernestina- ou do Quim e Manica. Nesse tempo, cor de rosa. Mas quis ir para junto da mãe. A Mamã era muito cuidadosa. Obrigava-nos a ficar de cama, ou no quarto, durante um mês após o parto, enfaixadas, para recuperarmos a boa figura, e a fazer dieta especial - caldos de galinha, etc. A Lecas foi baptizada, na Igreja de S. Cosme, tal como a Manela, com 15 dias de vida. Eu não fui autorizada pela Mamã a sair para a Igreja. Não assisti... Foram padrinhos os bisavós de Avintes, Joaquina e João Capella. Não achei nada bem. Os padrinhos devem ser gente nova. Vá lá que me foi permitido estar na festa de baptizado, nas salas da casa!

Maria Manuela Aguiar disse...

Maria Antónia disse: A Lecas nasceu com uma pequena mancha vermelha, com pequenas pintas mais escuras, abaixo do olho. Preocupados, consultámos um grande especialista, o Dr. Armando Tavares. Lembro-me que era um homem bonito e simpático, com umas mãos lindíssimas. Preveniu-nos que a menina ia sofrer do fígado. Teve ictrícia e hepatite aos 12 anos. Nunca mais ficou bem. Foi tratada pelo Dr. Carlos Alberto, que tinha salvo a Lena de crises quase fatais (duas pleuresias líquidas e, quando a Lecas nasceu, uma peritonite - tudo tratado em casa, sem internamento no hospital). A Lecas- que se chamou Madalena, como a Lena - tomou toda a espécie de medicamentos. Até o remédio das freirinhas de Vilar, que a minha Mãe mandava buscar aos garrafões. Nada resultou. Nem a cortizona, que lhe receitaram alguns anos mais tarde- ficou inchada, com a cara redonda, por algum tempo. Foi sempre a piorar ao longo dos 8 anos seguintes... Mas tinha um feitio ideal. Era optimista, alegre!

Anónimo disse...

Maria Antónia disse: Em pequena, a Lecas era um encanto. Muito dócil e bem disposta. Mas, de facto, não gostava de sair do seu ambiente. Fartava-se depressa e tornava-se difícil de aturar, com as suas lamúrias. Era por isso que, nos passeios de fim de semana, a deixavamos sempre na casa da Tia Rozaura. Connosco só ia a Manela, que se portava melhor fora de casa do que dentro. O que queria era arejar. E sabia que,para isso, precisava de ser uma boa companhia.

Anónimo disse...

Maria Antónia disse: A Lecas achava graça a tudo o que eu dizia e fazia. Dava-me sempre razão. Lembro-me de um dia em que tive uma grande discussão com o João, por causa da casa de férias de Espinho. Nessa altura, vivíamos nós, já em Latino Coelho, ainda a casa de praia da R. 7 pertencia à Avó Joaquina. Ela cedia a casa, no mês de Agosto, alternadamente, ao João e à Alda. Ao outro, restava Setembro. Mas as meninas queriam Agosto, quando estavam os amigos. Era uma guerra! A Joaquina estava a ser tratada pela minha sogra, e eu considerava que, por isso, quem tinha mais direitos eramos nós. E exigia que o João pusesse as coisas assim. Disse. Redisse. Irritei-me. Berrei com ele. Quando saíu,para o Grémio, tendo a certeza de que ele não ia falar à mãe e lutar pelo mês de Agosto, em Espinho, tive uma fúria! Atirei as panelas contra a banca de mármore, amolguei-as todas. Parti, contra a parede, a cadeira de madeira branca da cozinha! E a Lecas ria-se imenso! Foi, a correr, chamar a Maria do Carmo e o Sr. Razzini, para virem gozar o espectáculo. Quando eles chegaram, estava eu a espairecer, na varanda da cozinha, cantando, a plenos pulmões, o "Passarinho da Ribeira".

Maria Manuela Aguiar disse...

Não assisti a essa cena histórica. Estava nas aulas, em Coimbra. Ouvi contar, é claro. Até o Pai deve ter achado graça. E terá falado à Avó Olívia, mas não exactamente com o discurso bélico da Mª Antónia... Nesse ano, e em muitos outros anos. O caso resolvia-se com o arrendamento de uma casa, em Agosto, quando a da R.7 calhava à prima... Paga pela Avó Olívia, naturalmente! Lembro-me de vários arrendamentos, quase sempre perto da "nossa" rua: na própria R. 7, esquina com a 64, ali a dois passos; na R. 5; na R. 16, em frente aonde, anos depois, haveríamos de morar; na esquina da i8 com a 7. Etc. Etc. E, em 1950,calhou-nos Setembro, e, talvez porque o tempo estivesse agradável, prolongámos a estada até ao Natal. Fiz o 1º trimestre da 2ª classe na escola da R 23, hoje edifício sede da Junta de Freguesia. Por acaso, detestei a professora. Chamáva-lhe, sei lá porquê, "o cavalo espanhol". Tornei-me má aluna e rebelde. Nos dias em que havia "O Mosquito", minha revista favorita, ía para a estação do comboio esperar que chegasse. Lia o principal, e, só depois, aparecia na escola. Ficava de castigo, mas não me ralava nada. Em Janeiro de 1951, comecei a frequentar a escola do Magarão em Avintes e recuperei o estatuto de aluna "distinta", que nunca mais perdi. Por isso, acredito que o professor faz o aluno. Em regra... A Lecas terá escapado à ordália da R. 23. Parece-me que só foi para a escola no ano seguinte,em Gondomar, quando eu já estava no Colégio do Sardão, entregue às Doroteias. Onde fiquei, contrariada, até 1958. A Lecas foi para o Sardão - então, o melhor do Porto e arredores - apenas no iº ano do liceu, agora 5ª classe ou 5º ano, nem sei ao certo... Mas ela adorava estar lá! Mais uma notória diferença entre nós. Saía ao Pai, sempre feliz em 11 anos de internato no colégio dos Carvalhos. Eu ao lado Aguiar, muito inadaptada ao regime para-militar dos internatos portuenses... E, quando fomos, como tanto queríamos, ambas, morar no Porto, ela escolheu continuar nas Doroteias da "Paz" e eu insisti em frequentar o "distante" Liceu Raínha Santa Isabel, em vez do colégio, a dois minutos ( a pé...)do andar na R. Latino Coelho.

Anónimo disse...

Maria Antónia disse: Esse acidente de carro, de que falou a Manela, aconteceu em Azevedo de Campanhã. O portão onde a Joaninha embateu, pertencia a uma fábrica. Com o ruído, os homens de fato -macaco apareceram, de imediato. Um deles, mecânico, examinou logo o motor e garantiu que estava tudo bem. Estragos: só um farolim partido e a chapa amassado desse mesmo lado. Ao mesmo tempo, correram para nós, vindas sei lá de onde, dúzias de crianças, sujas, de pé descalço... Era a hora de almoço. Estavam todas dentro de casa. Uma sorte! Entretanto, o mecânico pôs o carro a funcionar, resolvendo o problema da bateria, que falhava, e eu segui viagem, a todo o gás - não fosse o carro ir abaixo, de novo...

Anónimo disse...

Maria Antónia disse: A Lecas era a criança mais tranquila, mas foi a que mais nos assustou, no dia em que lambeu uma lata de veneno para formigas! Eu tinha ido passear para o Porto, como acontecia muitas vezes, e deixei a Manela com a Tia Rosaura e a Maria Póvoas, porque era a mais difícil de controlar, e a calmíssima Madalena com a Rosa, a criada mais nova, que "ia aos recados" e ajudava a outra . A Mamã tinha o hábito de pôr o veneno numa latinha, debaixo do aparador da sala de jantar. A Rosa distraiu-se, e a menina chegou à lata... Teve de ir fazer uma lavagem ao estómago, no hospital de Santo António!

Anónimo disse...

Maria Antónia disse : Valeu nessa altura a Lininha, que felizmente andava por lá. Chamou os bombeiros e levou-a para o Porto!

Maria Manuela Aguiar disse...

Esses primeiros anos, na Vila Maria,foram fantásticos! O que nós bricávamos, à solta naquele espaço enorme, e seguro. Acho que pouco brigámos. E ela, apesar do ar de menina "prendada" e pouco hábil em "desportos radicais", era tão capaz como eu de trepar a todas as árvores, de fazer corridas com as "carretas" de jardinagem ou de improvisar "baloiços" em ramos altos. E, também, de cantar e representar peças de teatro, quando os primos vinham às festas de Natal(vendíamos bilhetes de entrada, à família numerosa, e tinhamos muito sucesso!). Em pequenas, quando apanhávamos a Mãe fora, adorávamos calçar os seus sapatos de tacão altíssimo - cunha e tacão grossos, como agora se usa outra vez. E, mais pacatamente,de bordar paninhos, a ponto de cruz, muito encorajadas pela Avó Maria. Alguns compravam-se, já com os desenhos impressos - vejam lá!- nas mercearias, que vendiam tudo. Havia uma perto de casa dos Avós de Avintes. Outras compras de mercearia, mais heterodoxas, podiam mesmo incluir cigarros "definitivos". Isso acontecia em Gondomar, e com os primos. Sozinhas, não achavamos piada... A iniciação á culinária também era divertida. As imagens que guardo, dessa actividade muito tradicionalmente feminina, são, sobretudo, das férias em Espinho, na casa da R. 7. A Lecas era uma artista. Eu limitava-me à "mousse" de chocolate... Tudo o resto me saía mal. De qualquer forma, já era mais do que a nossa Mãe sabia cozinhar, quando casou( não sabia rigorosamente nada, nem queria saber!). Nem mesmo para produzir uma chávena de chá ou café, coisa em que eu sou perita. Para além disso, só ovos cozidos. Cozinhar, só cozinhei,para a minha "yorkie", enquanto a tive, sem empregada, em Lisboa". Coisas fervidas, claro... Como dizia um amigo inglês: o que tu sabes é apenas ferver água. Tem razão.

Maria Manuela Aguiar disse...

Uma paixão, que a Lecas e eu partilhávamos: os animais! Cães, gatos, cavalos... E, para ver, todos os outros, coelhos, pássaros... Eu só não engraço com galinhas, embora seja incapaz de as molestar.Também quero distância de vacas e de porcos. Havia tudo ísso, em Avintes.E tudo, menos vacas, em Gondomar. Mas era em Avintes que havia sempre uma quantidade de gatos esplendorosos, grandes e peludos. Uma vez, a Lecas e eu salvámos uma ninhada inteira de recém-nascidos, quando a gata-mãe adoeceu. Dávamos aos bebés o leitinho às colheres. Metade leite de vaca, metade água. Tentámos um "biberão", comprado na farmácia, mas eles rejeitáram a assustadora inovação.

Anónimo disse...

Docas disse: Quando eu estava a estudar no Porto, vivia num quarto alugado a uma senhora muito simpática e bem educada, a Dona Cândida. Ficava a dois passos da Tia Lena e ia com facilidade a pé, até casa da Tia Mariazinha. Subia a R. D. João IV, depois a da Alegria, e estava lá. E aí é que era uma alegria! Passei muitas tardes com a Tia, a Madalena e a Dona Maria do Carmo, sempre a rir às gargalhadas. A Tia tinha à volta de 40 anos, era nova e divertidíssima. A Madalena achava graça a todas as asneiras que ela dizia, e acrescentava as dela também. Vou organizar um "dicionário de asneiras", disse um dia. A D. Mª do Carmo e eu só ríamos, não as conseguíamos acompanhar...

Maria Manuela Aguiar disse...

Maria Antónia disse: A Lecas teve essa idéia do dicionário decerto por causa de uma conversa, um dia, com o Sr. Razzini. Ele tinha sociedade numas padarias que começaram a vender "gressinos", para além de todas as qualidades de pão. E, quando ouvia os nossos disparates, achava-os inofensivos: "julgam que sabem muito e não sabem nada. Haviam de conviver, de manhã, com as padeiras, que vão fazer a distribuição... Essas é que têm vocabulário. Com elas é que se aprende". E a Lecas pedia- lhe: "Por favor, Sr. Razzini, leve papel e lápis e aponte tudo!" Estava, com certeza, à espera de uma contrbuição dele para o "dicionário". Outra que merecia ter os seus ditos contados em livro era a nossa "mulher a dias", uma pequenina e muito gorda - esqueci-me do nome. Eram, às vezes, palavrões. Outras erros, de pura ignorância. Estou a lembrar-me de quando me disse: E eu vinguei-me, minha Senhora. Para violão, violão e meio!". Foi uma pena náo termos, mesmo, apontado as tiradas dela. Cada palavra, cada erro delirante!

Anónimo disse...

Docas disse: A rapariga que viveu a infância no campo, e tinha obrigação de lidar bem com animais era eu, mas quem aprendeu rapidamente a andar a cavalo foi ela, numas férias passadas connosco na mina da Bica. Eu, tal como o meu Pai, e a Xana, só de burro...Ela, tal como a minha mãe, adorava! Cavalgava, sem medo nenhum, com o Nestó e o Moutinho. De uma das vezes, a sela não estava bem presa e ela começou a deslizar, devagarinho, juntamente com a sela, e os rapazes tentaram, mas não conseguiram valer-lhe. Caíu! Pouco se importou, montou outra vez, depois de fazer curativo a um braço esmurrado. E estava sempre pronta para galopar pelo meio das serras. Que belas férias, foram essas, no verão de 1957 ou 58!

Maria Manuela Aguiar disse...

Docas disse: A Lecas ainda sofreu outro acidente cómico, durante esse verão. Nós gostávamos muito de ir à piscina do Fundão, a única que havia lá perto. O meu Pai, que de cavalgar não gostava, era um excelente nadador, e eu já dessa idade, também nadava como gente grande. A Madalena não, Mas eu convencia-a de que podíamos avançar, juntas, para a parte mais funda, desde que ela se segurasse na minha cintura. E lá fomos. Até qie ela achou que bastava e me disse para regressarmos. Eu dei meia volta rápida demais, e deixei-a para trás. E ela afundou...Tentei segura-la por um braço, mas não consegui. Não houve falta de salvadores! Nessa fase da vida, além de ser bonita e jeitosa, andava de cabelo pintado de loiro-branco! Todos os homens que estavam por perto se atiraram à água, e ela saíu, trunfalmente, aos ombros de um magotede rapazes. Imaginem a cena!

Maria Manuela Aguiar disse...

Uma das diversões da Lecas era, de facto, mudar de cor e de corte de cabelo. Tinha, ao natural, uma linda cor de castanho, depois de ter sido loirinha, em criança. E um cabelo espesso, forte, ligeiramente ondulado, que dava para tudo. Gostava de mudar de " visual", como gostava de mudar de roupa - sempre na última moda. As versões de penteados mais extravagantes, foram à base desse loiro branco, e, depois, de um negro azulado! Enquanto loiríssima, uma vez, quando descíamos a R. Sto. António foi interpelada numa língua estranha. Ficámos atónitas, e logo o rapaz, loiro, mas não tanto, nos disse, em inglês, que era norueguês, e tinha tido a esperança de que ela fosse uma compatriota. Em Portugal ainda não tinha visto ninguém com um ar tão nórdico.

Anónimo disse...

Em primeiro lugar adorei ver a biografia da Lena não só porque era muito amiga dela e tornou mais presente a recordação já um pouco longínqua que dela tinha. Em segundo lugar, quero informar (porque a autora do blog omitiu) que na fotografia do baloiço há duas meninas ajuizadamente sentadas e a terceira menina que está de cabeça para baixo é...imaginem lá!!!...a ilustre Sra Doutora Manuela Aguiar....claro que só podia ser ela!!!!!

Maria Manuela Aguiar disse...

Estava à espera desta saída da Rosa Maria, sobre a menina que via o mundo "de pernas para o ar", que é exactamente como o mundo anda. Realista... O certo é que nos divertíamos imenso, nessas brincadeiras de praia, e a nadar ou a saltar às ondas, até enregelarmos. E tu, que eras a mais magrinha (elegantíssima!), enregelavas primeiro.

Maria Manuela Aguiar disse...

Estava à espera desta saída da Rosa Maria, sobre a menina que via o mundo "de pernas para o ar", que é exactamente como o mundo anda. Realista... O certo é que nos divertíamos imenso, nessas brincadeiras de praia, e a nadar ou a saltar às ondas, até enregelarmos. E tu, que eras a mais magrinha (elegantíssima!), enregelavas primeiro.

Maria Manuela Aguiar disse...

Interessante, como mantivemos essa amizade de infância, ao longo da vida. Dos outros amigos, quase náo me lembro. Será que também andaste nas " tardes dançantes" da piscina e, pelo menos uma vez, no "baile dos Bombeiros", em frente à Igreja?Foi bem frequentado, nada género bombeiros do Milos Forman! Havia muitas fardas brancas da Marinha, e a Madalena conquistou quase todas. Para mim ficaram os desfardados... Mas foi aí que conhecemos o Florival, que me recomendava livros dos melhores autores. Esse ainda por cá anda, sempre cm a mulher. São simpáticos.

Anónimo disse...

Docas disse: A primeira aventura que contam de mim e da Madalena tem a ver com um pique nique de cerejas, debaixo da mesa, na sala de jantar da Avó Maria. Foram encontrar-nos a comer cerejas às mãos cheias. Não sei se, depois, ficámos doentes. Eu devia ter 2 anos e ela 4. Claro que não me lembro - só de ouvir contar. Mas a Tia Mariazinha deve saber

Anónimo disse...

Maria Antónia disse: Eu lembro-me, como se fosse hoje. As cerejas estavam num cesto. Algum lavrador as tinha oferecido à Mamã. A menina mais velha deve ter conseguido pegar no cesto, que era grande e pesado. E levou a outra, para o esconderijo, debaixo da mesa. Ninguém sabia onde estavam. Andávamos à procura delas, em toda a casa, e até já no jardim. Uma das criadas, a certa altura, disse-nos: Não vejo ninguém na sala de jantar, mas quando lá vou, ouço ruídos. Foi então que um de nós se lembrou de espreitar junto ao chão, aparadores e mesa. E, assim foram encontradas, muito sujas, rodeadas de cerejas e caroços. Devem ter ficado ambas um pouco adoentadas, mas nada de grave, porque isso não ficou na memória.

Anónimo disse...

Docas disse: Muito mais tarde, já adolescentes, noutras férias, em casa da Avó Maria, para além daquelas coisa habituais, que não ficam na memória, resolvemos fazer de jornalistas ou historiadoras da terra de Gondomar.
Fomos comprar cadernos de apontamentos, e, com eles debaixo do braço, metemo-nos ao caminho, à procura de sítios típicos ou idílicos, para servirem de tema de reportagem. Andámos pela quinta de Bouça Cova, e pelos lugares menos povoados. Não me parece que tenhámos escrito as crónicas, mas, pelo menos, fizemos exercício físico, e vimos coisas bonitas, porque S. Cosme ainda era a capital de um concelho rural, cheio de campos de lavoura, de silvsdos com amoras, de pinheirais e de casas de pedra lindíssimas, dos lavradores ricos, que eram bastantes.

Maria Manuela Aguiar disse...

Acho que a Docas tem razão, quando diz que nos esquecemos de tudo, excepto do que foge à normalidade. À normalidade corresponde uma imagem difusa de brincadeiras, como as corridas à volta da casa, a subida às árvores,ou as idas à Igreja, com a Avó, ou as festas da Nª Sª do Rosário (as farturas, os carrinhos de feira, a louça vendida nas barracas, que eram uma grande atracção...). Mas não distinguimos quando e com quem estávamos. Está tudo misturado. Agora uma boa queda abaixo de uma árvore e outras desgraças cómicas, que são as melhores desgraças, embora, às vezes, não nos pareçam assim tão cómicas no momento em que acontecem, ficam claramente impressas, cá dentro, e só vão morrer connosco! É por isso que, quando penso na Madalena, me recordo sobretudo de "situações-tipo" ou de situações muito divertidas, ou muito tristes. Lembro-me dos Natais, de acordarmos a meio da noite, para abrir as prendas, que o Menino Jesus tinha mandado, enquanto dormíamos. A 1ª a acordar, acordáva, logo, a outra. De entramos,disfarsadamente, no quarto onde a Mãe guardava os sapatos de tacão altíssimos, para nos passearmos, em excitante desiqilíbrio permanente, com eles calçados, ou de pintarmos os lábios com o seu "baton". E de jogarmos às cartas, com a Ana Sousa, que ficava a tomar conta de nós e era uma "azelha" conveniente, para ganharmos sempre.. E de ficarmos fascinadas com os truques de magia do Tio David, que tinha muito jeito para lidar com crianças, e que nós adorávamos, desde os primeiros tempos de casado com a Tia Lena (nós, então, com 5,6,7 anos...). Dos jantares em casa da Avó Olívia, que ambas chamávamos Madrinha, e que, às 7 horas da noite, nos perguntava sempre como queríamos as batatas fritas: aos palitos ou às rodelas (para acompanhar os inevitáveis bifes de vaca). E nós sempre de acordo, para uma ou outra modalidade! Lembro-me das gargalhadas, das risadas da Madalena. Parece-me que nos entendíamos muito bem, com algumas raras intermitências. Foi mais tarde que começámos a divergir, um pouco - nalgumas coisas bastante, sobretudo nos amigos. A Lecas declarava os meus uns "intelectuais" aborrecidos, e eu retribuía, etiquetando os dela de "fúteis". Exagero, de parte a parte, na minha óptica da agora. Muito embora, ainda hoje, considere que a Lecas achava as minhas prioridades de vida, e as minhas aflições, com exames e com notas altas, uma bizarria. Ela nunca se ralou com isso, nem um bocadinho. Não era dada a aflições, nem a depressões, nem a melancolia. Vivia o presente, com alegria. e olhava o futuro com optimismo. Uma sorte, em qualquer caso. No caso dela, com a doença, que ignorou, olimpicamente, uma verdadeira benção.

Maria Manuela Aguiar disse...

Acho que a Docas tem razão, quando diz que nos esquecemos de tudo, excepto do que foge à normalidade. À normalidade corresponde uma imagem difusa de brincadeiras, como as corridas à volta da casa, a subida às árvores,ou as idas à Igreja, com a Avó, ou as festas da Nª Sª do Rosário (as farturas, os carrinhos de feira, a louça vendida nas barracas, que eram uma grande atracção...). Mas não distinguimos quando e com quem estávamos. Está tudo misturado. Agora uma boa queda abaixo de uma árvore e outras desgraças cómicas, que são as melhores desgraças, embora, às vezes, não nos pareçam assim tão cómicas no momento em que acontecem, ficam claramente impressas, cá dentro, e só vão morrer connosco! É por isso que, quando penso na Madalena, me recordo sobretudo de "situações-tipo" ou de situações muito divertidas, ou muito tristes. Lembro-me dos Natais, de acordarmos a meio da noite, para abrir as prendas, que o Menino Jesus tinha mandado, enquanto dormíamos. A 1ª a acordar, acordáva, logo, a outra. De entramos,disfarsadamente, no quarto onde a Mãe guardava os sapatos de tacão altíssimos, para nos passearmos, em excitante desiqilíbrio permanente, com eles calçados, ou de pintarmos os lábios com o seu "baton". E de jogarmos às cartas, com a Ana Sousa, que ficava a tomar conta de nós e era uma "azelha" conveniente, para ganharmos sempre.. E de ficarmos fascinadas com os truques de magia do Tio David, que tinha muito jeito para lidar com crianças, e que nós adorávamos, desde os primeiros tempos de casado com a Tia Lena (nós, então, com 5,6,7 anos...). Dos jantares em casa da Avó Olívia, que ambas chamávamos Madrinha, e que, às 7 horas da noite, nos perguntava sempre como queríamos as batatas fritas: aos palitos ou às rodelas (para acompanhar os inevitáveis bifes de vaca). E nós sempre de acordo, para uma ou outra modalidade! Lembro-me das gargalhadas, das risadas da Madalena. Parece-me que nos entendíamos muito bem, com algumas raras intermitências. Foi mais tarde que começámos a divergir, um pouco - nalgumas coisas bastante, sobretudo nos amigos. A Lecas declarava os meus uns "intelectuais" aborrecidos, e eu retribuía, etiquetando os dela de "fúteis". Exagero, de parte a parte, na minha óptica da agora. Muito embora, ainda hoje, considere que a Lecas achava as minhas prioridades de vida, e as minhas aflições, com exames e com notas altas, uma bizarria. Ela nunca se ralou com isso, nem um bocadinho. Não era dada a aflições, nem a depressões, nem a melancolia. Vivia o presente, com alegria. e olhava o futuro com optimismo. Uma sorte, em qualquer caso. No caso dela, com a doença, que ignorou, olimpicamente, uma verdadeira benção.

Maria Manuela Aguiar disse...

Eu sabia que a Lecas era doente.U Que os médicos lhe recomendavam dietas e repouso, mas isso nunca foi para seguir de uma forma fundamentalista. Ela gostava, naturalmente, de tudo o que lhe fazia mal. Como regra, cumpria. Em casa, no dia a dia ,ninguém abusava de nada, ela não tinha grandes tentações à frente. Em festas transgredia, é claro. A começar pelo exercício, porque não havia quem fosse mais solicitado para dançar, e quem dançasse mais, infatigavelmente. Poupava-se nos estudos, estudando o menos possível. O Colégio da Paz, onde andou, desde que fomos morar para o Porto, servia-lhe para o convívio. Suponho que a maioria de amigos, que davam festas frequentes, aos fins de semana, eram meninas de lá e irmãos ou primos delas. Para mim, era uma ordália. Os Pais impunham que fossemos as duas e eu nunca queria ir. Mas acabava por ceder e passar umas noites longas e penosas, em que só pensava nos romances ou policiais que poderia estar a apreciar, no confortável isolamento de minha casa, do meu quarto, do meu canto... Uma vez, a Lecas apanhou-me a ler um livro de bolso, que levei comigo, clandestinamente, e ficou zangadíssima. Não percebia como eu desperdiçava tão boas oportunidades de deslizar pelos salões com um daqueles meninos, que ela achava engraçados - e eu não. Ao fim de uns anos, a doença crónica da Lecas passou a ser vista tipo "dado de facto", como a sua beleza ou a sua veia musical. Era para durar. Apesar dos sinais evidentes de uma rápida degradação da vitalidade, que fora sempre tão intensa, no verão de 1964, eu tomei-a por efeito de crise passageira, como outras, antes. E ela foi para Gerona,em agosto, com a Tia Lena e veio feliz. Notei que andava inchada, e pálida - com aquela palidez da leucemia, ou do cancro, em fase terminal - mas recusei-me a "ver" esses sintomas. Mais do que evidentes para os médicos, até para os estranhos... Isso teve uma vantagem: a de a tratar descontraidamente, como ela vivia. Só esteve de cama nos últimos dias - 3 ou 4 dias. Foi de ambulância para a Casa de Saúde da Trindade apenas uma ou duas horas antes de morrer. Os Pais seguiram com ela, e mandaram-me para Avintes, almoçar com os Avós. Mal lá cheguei, antes de ser eu a falar para lá, recebemos um telefonema a dar a notícia. Foi um momento que não sou capaz de descrever. Um momento de "fim de mundo", do meu mundo, tal como tinha sido. De uma certa forma de esperança, de crença (até religiosa) e de combatividade, que nunca mais tive. Nunca mais certas coisas, certas metas ou objectivos mantiveram a importância que tinham tido... Começou, para mim, uma fase de relativização de tudo, ou quase tudo. Mas naquele primeiro momento foi sobretudo o desgosto. Nunca vi o Avô tão transtornado, ele que era, normalmente, muito contido. Da reacção da Avó nem me lembro, e deve ter sido muito mais extrovertida. Depois, nem recordo mais nada, até ao funeral, saído da "Vila Maria". Nâo quis vê-la morta.

Maria Manuela Aguiar disse...

A Maria Emília Castro Solla era, como a Rosa Maria, uma das raras amigas que a Lecas e eu tínhamos em comum. Nesse dia 3 de Novembro, às 3 horas e tal da tarde, telefonou para minha casa, a perguntar se a Lecas demoraria. Estava à espera dela, para irem ao cinema. Deve ter sido a Maria do Carmo quem atendeu e lhe disse o que tinha acontacido. A Mª Emília teve, nos tempos que se seguiram uma depressão. Não foi a única.

Maria Manuela Aguiar disse...

As últimas férias que passámos com os primos, nas minas, foi em Cercal do Alentejo, em 1961, antes do Tio Eduardo ir para Angola. Como sempre, foi uma festa permanente, feita de muitas agradáveis aventuras: acampamento na praia de Vila Nova de Milfontes, em duas grandes tendas, uma para as meninas, outra para os rapazes. Difíceis de montar! Mas isso foi trabalho deles, com o Nestó muito activo, e nós a olhar,sentadas na areia quente, com banhos "anti-calor", de vez em quando. Eramos muitas. Nem sequer me recordo delas, ou deles. Deviam ser locais, e tinham bom ar. A nossa tenda era azul, e, apesar de enorme, um pouco claustrofóbica, para mim. Não sou fã de campismo... O Tio Eduardo andava de perna engessada, não podia nadar, que era o seu desporto preferido. Quando, a certa altura, fomos longe demais, a brincar com um colchão de borracha, e a corrente forte começou a arrastar-nos para as rochas, em pleno oceano, ele não pÔde ir salvar-nos... Valeram a Docas e o Nestó, também potentes nadadores. Eu estava entre os "quase náufragos", a Lecas, a Tia Lola, Xana, e Tio Gustavo entre os ansiosos espectadores de praia. Outro divertido "fiasco", aconteceu quando tentámos andar à boleia - um ensaio de originalidade, num dia tranquilo demais. Dividimo-nos em dois grupos, porque eramos cinco. Tentámos, e ainda conseguimos, pelo menos um dos grupos conseguiu. Mas passávamos o tempo a pedir boleia ao mesmo carro, o do Tio Eduardo, que nos seguia, à cautela... Uma frustração... Visitamos, dia a dia, boa parte da magnífica costa alenteja, de Sines e S. Torpes à fronteira do Algarve. E, depois, ao próprio Algarve, que a Lecas e eu não conhecíamos. Nesse ano de 61, ainda a praia da Rocha era das mais belas do mundo! Que fantásticos banhos lá tomámos!

Maria Manuela Aguiar disse...

Ainda sobre o verão de 61: o pior de tudo, ou melhor, a única coisa que não correu bem, foi a viagem de combóio Porto-Lisboa. A Lecas - sempre ela!- tinha arranjado dinheiro para uma confortável ida, em 1ª CLASSE, NO RÁPIDO ( pedinchando à Avó Olívia, que acabava sempre por lhe dar o que ela queria, beneficiando eu, às vezes, por tabela). Pois bem, ou pois mal - o Rápido avariou, levou umas 6 horas a chegar, e, ainda por cima, com o ar condicionado avariado, num dia de calor sufocante. Pouco gazámos das mordomias. À nossa espera, pacientemente, estava o Tio Gustavo, que nos levou de carro até ao Cercal, sem mais percalços. O que, atendendo à forma, diletante e distraída como sempre conduzia, é dizer alguma coisa.

Maria Manuela Aguiar disse...

Outra memória que me ficou dessas férias alentejanas é de um baile, onde fomos todos, com os Tios. Era um espaço agradável, com serviço de jantar, mas tipo festa de benefiência, ou festa da terra. Aberto, mas com frequência de gente que se conhecia. As forasteiras eramos nós, praticamente mais ninguém. Na pista de dança, havia grande animação. Já nem sei se a música era ao vivo, ou "play-back", ou gira-disco. Era suficiente. A Lecas tornou-se, logo, o centro das atenções, mas nessa noite, o que a divertiu foi dizer "não" a todos os pedidos para dançar... A todos! Excepto o primo, claro. Tentei demovê-la, mas não adiantou. Eu lá fui para a pista, com um ou outro, sem "despachar" nenhum, de nariz levantado, mas a minha popularidade era muito menor. Hèlas!..

Anónimo disse...

Lembro-me que quando a Lecas partiu, a minha mãe levou dois dias para me dar a noticia e eu.....não queria acreditar.

Anónimo disse...

Exactamente como tu, és a única amiga que conservo de miúda, espero que quando formos muito velhinhas, questionemos uma com a outra qual era a maior!!
Para já das nossas brincadeiras mirabolantes as ideias geniais eram quase sempre tuas e eu e a Lecas achávamos uma maravilha e seguíamos cegamente e quase sempre resultava.
Lembras-te dos nossos gritos histéricos no cinema???

Isabel Aguiar disse...

Adorava ter conhecido a prima Lecas...cresci vendo pela casa da Tia Giginha fotografias de uma super modelo! sim, era uma verdadeira Diva! Conta a minha mãe que a sua beleza era infinita e tinha uma pose inigualável e que adorava ir para as compras com a Lecas pois não havia ninguém com tão bom gosto como ela.
Aos sábados pela tarde, à volta da mesa da Giginha todos nos deleitamos a ouvir histórias da Lecas...com saudade!
Bia

Anónimo disse...

Lembro-me uma vez de ir com a Lecas a um concerto do Marino Marini no Coliseu. Antes fomos ao "Arnaldo Trindade" comprar um disco para eles nos darem um autografo. Depois de estarmos horas numa fila que já chegava a Passos Manuel, lá chegamos e compramos os discos e noutra fila esperamos a nossa vez para a assinatura. Pediu a cada uma de nós o nome para por na dedicatória e quando a Lecas disse que se chamava Maria Madalena, ele começou a cantar bem alto a canção "Maria Madalena". Toda a gente olhou para nós, a Lecas perdida de riso e fomos a correr para o Coliseu para noutra longa fila esperarmos a nossa vez de entrada na sala. O concerto foi uma maravilha, claro, e ele não deixou de cantar a canção "Maria Madalena".

Anónimo disse...

Eu e a Lecas combinamos um dia ir ao cinema no Porto. Não me lembro a que cinema iamos mas como ponto de encontro combinamos na Praça da Liberdade, na paragem do 7 (o meu eléctrico). Desci do eléctrico ao pé do Ultramarino e fiquei á espera da Lecas. Furiosa por ela não aparecer, resolvi atravessar a Praça para lhe ligar da companhia dos telefones. Na passadeira, cruzei-me com a Lecas furiosa por eu não ter aparecido ao encontro. Ela estava á minha espera na paragem do 7 mas do lado da Ateneia. Como já tinha passado a hora do cinema, fomos lanchar, muito chateadas as duas por termos perdido a sessão de cinema e pondo as culpas uma á outra.

Anónimo disse...

Maria Antónia disse: Lembro-me muito bem desse espectáculo do Marino Marini, no Porto. A Lecas cantava as músicas dele todas, e tinha os discos, em 45 rotações. E gostou imenso do "show", que foi ver ao Coliseu. E do próprio MMarini. Ainda bem que a Rosinha se recordou disso. Fez-me pensar nas cantorias dela, com uma voz afinadíssima, desde criança. Quando começou a ir para a escola do Crasto, levava sempre com ela a " Maria Formiga ", que eu chamava assim por ser muito magrinha e minúscula, ao lado da Lecas, que era grande, para a idade, e forte. A "Formiga" era empregada de recados lá de casa, mas também andava na escola. As duas cantavam, em coro, um grande reportório de cantigas minhotas, como o " Amanhã vou-me casar, já passei a roupa a ferro...", etc. Ou: "O mar enrola na areia, ninguém sabe o que ele diz...". A Maria tinha vergonha de ser vista a cantar. Iam as duas para a casa de banho, ao lado da cozinha da Tia Rozaura, e davam o "concerto", que se ouvia na casa toda.

Anónimo disse...

Mª Antónia disse: Outra companheira desse tempo era a Rosa Caçoila, filha de um barbeiro, que cortava o cabelo aos homens com uma tijela enfiada na cabeça. E era ladrão, preso por roubo, várias vezes. A Manela só andou na escola de Gondomar um ano, mas tinha uma parceira ainda pior: a Arminda do mato. Pai e Mãe eram ladrões, viviam no mato, numa cabana com um bando de filhos. A minha Mãe intercedia por eles e conseguia que, ao menos, a mulher fosse solta para tomar conta dos filhos - o Tio Alexandre era da Administração da Câmara e tinha pena deles, satisfazia o pedido da irmã. Uma e outra vinham brincar para a casa da Pedreira, mas a Tia Rozaura nem as deixava entrar - só no quintal...E protestava: "As tuas filhas dão-se com o que há de pior nesta terra. Nâo entram cá dentro. Estão cheias de piolhos!" A secola pública era assim... Depois, foram as duas para o colégio, primeiro a Manela, a seguir a Lecas. E as amigas passaram a ser "do melhor que há".

Anónimo disse...

Mª Antónia disse: Não estava a referir-me à Mª Formiga. Essa era de boa gente, e ainda hoje está ligada à família. É a Lina. Todos gostámos dela. Trabalha para as filhas da Xaninha, é da maior confiança!

Maria Manuela Aguiar disse...

Hoje falei com o Zé Severo, por telefone, e ele, a certa altura, contou que um dos antepassados(Abreu), foi um dos bravos de Mindelo e tinha uma espada com dedicatória da Raínha Dona Maria II, que não sabe onde está. Talvez na América, com um dos irmãos. Ou não... E eu lembrei-me, logo, das espadas que existiam em casa dos Avós de Avintes, sem história comparável (alías, sem história conhecida...), já velhas - já nem o fio cortava coisa alguma - e com as quais a Lecas e eu nos fartámos de brincar. Que sensação, desenbaínhar e empunhar as espadas! Estavam escondidas numa pequena arrecadação, com acesso ao sotáo (demasiado baixo para ter utilização) e cuja porta dava, convenientemente, para o nosso quarto. O sotão também nos servia para esconderijo ocasional. A casa tinha uma estranha arquitectura, como se fosse construída por módulos interligados, com dois andares à face da rua 5 de Outubro e apenas um nas traseiras - embora com um sotão mais alto, onde havia algumas coisas interessantes, como livros, incluindo uma deslumbrante bíblia do tio bisavô Manuel Soares Pinto ( Pinto era, não sei se estou a confundir os outros nomes). Pensando bem, que bizarria ter livros no sotão! Devia ser o espólio esquecido do tal antepassado. Hei-de contar a "minha história" dessa bíblia, que acabou sendo oferecida ao pároco da terra. Gostaria de a ter comigo, como o Zé a tal espada com história. Era uma bela recordação de família, que se perdeu nas mãos de estranhos. Tinha, no início de cada capítulo iluminuras ´belíssimas, para além de muitas gravuras. O Antigo Testamento, na íntegra, não é leitura própria para crianças, e, depois de ter sido descoberta a lê-lo, fui proibida de repetir a graça. Claro que não obedeci... Aquele seria o melhor livro da minha infância (9,10 anos...). Bom, acabei contando a minha história dessa Bíblia´.

Maria Manuela Aguiar disse...

Quando considero bastante insólita a arquitectura da casa de Avintes, não estou a pensar somente nas assimetias, que referi, mas sobretudo nessa parte da casa em que ficávamos: o hall era muito pequeno e positivamente "invadido" por uma escadaria larga, comprida e íngreme, que parecia tombar sobre ele. Uma coisa de dimensão desmesurada e que conduzia apenas a dois quartos muito grandes - à direita, o dos meus pais, à esquerda, o nosso. As portas eram enormes! As janelas que davam para a rua constituiam um bom miradouro para o movimento de carros e camionetes. A paragem da camionete para o Porto era em frente. No quarto dos pais havia outra janela com uma idílica vista para o rio Douro e as suas margens. Acredito que muitos dos poemas românticos do Pai foram escritos ali mesmo. Estou a ver-me, criança,com a minha irmã em infindáveis "brincadeiras de interior", a jogar cartas,a correr de um lado para o outro, a ouvir música, a dançar, a seguir as pavorosas novelas radiofónicas do "Tide", a folhear revistas da mãe - ou postais e cromos de vedetas de Hollywood, que infelizmente não guardámos, e fariamhoje as minhas delícias. Uma vez, ainda muito pequena,no auge da correria, rolei pelas escadas só parei no "hall",que, ainda por cima, era de pedra. Sem uma simples nódoa negra. Milagre! À direita dessa entrada ficava a sala de visitas, que era pouco usada, só mesmo para fins cerimoniais, e, à esquerda, a sala de jantar, essa, sim, muito "vivida". Os Avós viviam na outra ala, toda ela mais recatada, com vista para vinha e quintal. Mais tarde, qundo vieram morar em Espinho, a Casa foi toda dividida em apartamentos e arrendada a variadas famílias. Consequência: depois do 25 de Abril, acabámos por vende-la... Náo era uma casa esplêndida, mas podia ter óptimos aproveitamentos! Tenho saudades, e pena de a ter perdido, embora ainda lá esteja, sem grandes mudanças exteriores. Era um "mundo" como que isolado, e com um bom pedaço de terreno, à maneira da casa da "Pedreira" - também palco de muita animação, povoado de amável bicharada, a começar pelo gatos "Titos"- os filhotes da famosa "Tita", uma gata francesa, muito bonita.

Anónimo disse...

Docas recorda: A Madalena, eu e a Manuela, queríamos ir ao cinema, ver um filme para adultos (nessa altura, penso que era para maiores de 17 anos - não tenho a certeza)- eu, ainda não tinha essa idade. Para poder entrar sem suspeitas, calcei uns sapatos novos de salto alto... Durante o filme, os pés já me doiam e, resolvi tirar os sapatos, para os aliviar. O lugar da frente não estava ocupado e, eu, descontraídamente, estiquei os pés, apoiando-os no banco. A certa altura comecei a sentir qualquer coisa no pé - ainda jovem e ingénua, imaginei que fosse qualquer metal do banco. Mais tarde estranhei e, olhando para o banco da frente, percebi que ao lado estava um homem com a mão estendida. Virei-me para a Madalena a rir às gargalhadas e como não consegui abafar o riso, saiu-me alto: - Ó Madalena! Está aqui à nossa frente um homem, a fazer-me cócegas nos pés. Ela desatou também a rir muito alto - os espectadores a mandarem-nos calar... Tivemos de sair da sala, porque não conseguíamos reter o riso! Após o intervalo, quando nos sentamos, de novo, nos nossos lugares, o homem tinha desaparecido, com vergonha de tanto alarido feito por nós!

Maria Manuela Aguiar disse...

Na minha procura de uns versinhos dos meus 10 ou 11 anos, que tinha à época, oferecido à Rosa Maria , e que ela queria que eu recuperasse, pois perdeu os dela, encontrei não só essas quadras de criança tonta, mas também um inquérito, não menos "naif", mas hoje divertidíssimo de ler, ao qual a Lecas foi uma das cerca de 30 adolescentes que aceitaram responder.
Estava eu no antigo 6º ano do liceu (1958/59), e vestia a pele de " socióloga aprendiz", e tinha ela 16 anos.
Vou reproduzir essas respostas, seguidamente.

Maria Manuela Aguiar disse...

Pergunta 1
Nome, idade, altura, cor de cabelo, medida dos pés, curso, profissão futura.
Mas, claro, isto é o que tu és.
E o que gostarias de ser, fisicamente?

R
MMADM, 16 anos, 1.60, castanhos, 39
Talvez Direito. Não sei.
Alta, 1.70,mais magra e cabelo loiro clarinho

Maria Manuela Aguiar disse...

Perguntas 2 a 5

P2 Qual a intensidade com que vives o dia a dia?
R
Sempre a mesma coisa, estudar, comer e dormir.

P3 O que consideras mais essncial para ser feliz? Qual o sentimento humano que deveria guiar um mundo melhor?
R
O dinheiro e a saúde, é claro.
Os direitos serem iguais entre homens e mulheres.

P4 Qual é o teu passatempo preferido?
R
Viajar, dançar e ler.

P5 Agora está na moda: fumar - beber - usar calças - falar calão - existencialismo - geração perdida (não sejas prolixa)
R
Acho tudo isto muito bem, e estou de pleno acordo.

Maria Manuela Aguiar disse...

P6 Cinema: quais os teus actores preferidos?
Fala do filme que mais te agradou.
R
Charlton Heston, Yul Brynner, Tony Perkins e Paul newman.
Os filmes que mais gostei foram:
A pousada da 6º felicidade
Os dez mandamentos e
Quero Viver

P7 Música: Qual a que te desperta mais a sensibilidade?
R
Música ligeira italiana e valsas de Strauss.

P8 Pintura: Qual é para ti o maior pintor do mundo?
R
Van Gogh.

P9 Literatura: Qual a qualidade que mais aprecias num escritor, numa literatura?
R`
É o realismo.

P 10 Fala-nos dos teus escritores preferidos.
R
Gosto de Somerset Maughan e Steinbeck.
Livros que mais gostei: "Antes do amanhecer", "O homem que via passar os combóios", "Ratos e homens" e "Casamento em Florença".

Maria Manuela Aguiar disse...

P11 Escreve um pensamento que te tenha agradado.
R
"Só vale a pena viver, quando se vive o momento presente", de Jean Paul Sartre e "Belo é tudo quanto agrada desinteressadamente"

P12 Tens preocupações de filosofia e política?
R
Não.

P13
Qual o povo que mais aprecias e porquê?
R
Os alemães, porque são trabalhadores e boas pessoas.

P14 Gostarias de casar com um homem de côr?
R
Porque não? Não há nenhuma diferença, além da cor, entre um preto e um branco.

P15 Em que país achas poder levar uma vida melhor?
R
Talvez na França ou na Itália.

P16 Em que época gostarias de viver e porquê?
R
No futuro, porque nessa época já deve haver mais igualdade entre os homens.

P17 O que fazias, se te saísse a sorte grande?
R
Ía viajar e comprava vestidos no melhor costureiro de Paris, construia um prédio em Lisboa e comprava um automóvel.

Maria Manuela Aguiar disse...

P18 O que fazias, se fosses o 1º habitante da terra a pôr o pé em Marte?
R
Sentia-me orgulhosa e iria inspeccionar aquilo, não sem um certo receio-

P19 O que levavas contigo se fosses numa viagem interplanetária num foguetão? (lembra-te que o espaço não é muito)
Em que nacionalidade de foguetão te aventuravas?
R
Levava uma carteira com a agenda e um bloco, lápis e caneta. Baton, puff, espelho e pente, algum dinheiro e lenços para me assuar. Levava depois uma mala de viagem com alguns vestidos, casacos e sapatos, e roupa interior. Depois partia feliz.
Iria num foguetão russo.

Maria Manuela Aguiar disse...

Que maravilha, ter encontrado o caderno de capa vermelha, com perguntas e respostas manuscritas pelas próprias entrevistadas. Como novo, após meio século no fundo de uma gaveta.
E, nas suas páginas, nós, muito genuinamente novas.
Uma entrevista da Madalena, tal como era, divertida, "gozona", despreocupada! Uma relíquia de família!

Maria Manuela Aguiar disse...

Para o lanche a Mãe comprou nada mais nada menos do que as chamadas "glorinhas", umas argolas de massa folhada forradas de doce de ovos, que são deliciosas. Há décadas que estavam aparentemente fora do mercado!
E lembrou-se da Madalena.
Nas vésperas daquele dia em que nos deixou, já estava por casa, bastante doente e quando a Mãe ia a sair - tomar um café ali perto -pediu-lhe para passar por uma confeitaria e trazer glorinhas para o seu lanche.