terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

W70 - MARIA DA CONCEIÇÃO PÓVOAS

AFECTOS, BRIO E LEALDADE

Nascida a 4 de Março de 1901.
Morreu há 30 anos, em Espinho, na casa da Avó Olívia, tratada por ela e pela Arminda, assistida pelo Dr. Mendes Ferreira, que, em plena greve de médicos, vinha visita-la e lhe receitava remédios para levantar a "moral", apesar do seu caso não ter, como ele e nós sabíamos, solução possível. Mas a Maria nunca perdeu a esperança de viver!
Uma vida vivida connosco, ao longo de décadas.
Era filha de um padre de Aveiro, que a mandou, a ela e à irmã Paula, para um colégio-orfanato do Porto e, aos 14 ou 15 anos, e depois as deixou irem "servir", como criadas. Não sei quem, ou qual a conexão que as levou para Gondomar.
A Paula, uma excepcional cozinheira, ficou na mansão "rica" da Avó Maria, ainda no tempo do Avô António. Tinha um péssimo feitio, dava respostas tortas e foi  despedida.
A Maria foi destinada à mais modesta habitação da Tia Rozaura. Ao contrário da Paula, era um encanto de pessoa: humilde, boa, simpática, prestável... Trabalhava como uma "moura", dentro e fora de portas, no  extenso quintal dessa "casa da Pedreira". Andou com a minha Mãe ao colo, depois, comigo e com a Madalena.
Tinha paixão por crianças e era correspondida Deixava-nos fazer tudo e mais alguma coisa. Com ela, eu portava-me particularmente mal,  porque achava muita graça...
Também tinha o dom de se fazer amar pelos animais, que tratava como crianças...A minha cadela "Chinita", numa época em que morávamos com a Tia Rozaura, "trocou-me" por ela. Os cães só têm um (a) dono (a). Para a Chinita, era a Maria. E, por isso, quando, aí pelos meus 10 anos, a Maria se despediu, a custo, de Gondomar para ir cuidar dos meninos da sobrinha Géninha - filha única da Paula - tivemos de lhe oferecer a "Chinita", que chorava por ela...
A Géninha pertencia às "classes médias", com uma bela moradia, onde a Maria reinava, com um novo estatuto, como a "senhora da casa". Com prestígio social, no meio da vizinhança, e a sua inata simpatia. Feliz com os pequenos sobrinhos, que educou como se fossem seus filhos. Feliz por mais de uma década, na sua família natural. Deu-se, então, o regresso da Paula. Andou por longe, anos e anos - como cozinheira da paquetes, ao que me parece. Quando se reformou, escolheu ir morar com a Géninha e tão mal tratou a Maria, que esgotou a sua paciência - que era grande!...

Voltou a Maria para a família Aguiar, sua segunda família. Foi comigo para Lisboa, quando arrendei a casa da Av. do Uruguai, em 1970. Tinha ela 70 anos.
Lembro-me de me dizer que queria que as pessoas de fora a tratassem por "Senhora Dona", como acontecia nos tempos de vida com os sobrinhos. Eu estava absolutamente de acordo. Era bonito o seu itinerário ascendente, e eu, que gostava tanto dela, não queria que o perdesse, por nada deste mundo!
Em Lisboa, como, em comentários havemos de contar, a Maria reinou, de novo como dona e senhora daquele andar moderno, que tão bem cuidava. Não percebo nada de nada, do governos de casa, e ela era perfeita. Fez grandes amizades, entre as vizinhas, que eu mal conhecia: a Dona Floripes e a Dona Antónia, sobretudo.
Sabendo que podia contar com os cuidados dela, levei para casa cadelinha Serra de Aire, que comprei a um vendedor de jornais do Rossio. A ninhada era grande, peguei num dos cãezinhos, gostei e não suportei a idéia de o abandonar, ali, num fim de dia chuvoso.  Por acaso, era uma menina, eu nem reparei... Deu muitas alegrias, e algumas preocupações à Maria...
Por alguns anos, a prima Docas partilhou este tranquilo ambiente, e com certeza, poderá contribuir para completar mais um dos breves apontamentos biográficos, com que vamos alargando o "Círculo Aguiar"
E assim decorreu a última década na vida desta boa e insubstituível amiga, constantemente lembrada, nas nossas conversas, a propósito de um determinado prato, que ela fazia, incomparavelmente, ou do seu sentido de economia, ou das flores do jardim, que com ela floresciam mais, ou dos gatos e cães, cuja linguagem entendia, ou do seu riso contagiante.
























9 comentários:

Anónimo disse...

Docas comenta: A relação da Maria com a Endora, era tipo - mãe e filha muito pouco obediente. A Maria passava os dias a ralhar à Endora, atrás dela, a tentar bater-lhe com um chinelo e a Endora muito contente a fugir à sua frente, com um trapo qualquer ou meia, na boca, roubado na cozinha, ou na varanda.

Anónimo disse...

Docas comenta: A Maria ficava muito orgulhosa, quando havia visitas lá em casa, para jantar. Sobretudo, doutores, engenheiros, ou médicos. Nesses dias, as travessas vinham para a mesa muito bem enfeitadas - tudo servido com muito requinte! Suponho que se sentia importante: a dona da casa, ou a governante, pois tanto eu como a Manuela pouco percebemos de coisas domésticas. Deixavamos a Maria perfeitamente à vontade para decidir tudo.

Anónimo disse...

Docas comenta: Eu e Manuela costumavamos comer na mesa da cozinha, quando estavamos as duas sozinhas em casa. Mesmo assim, as travessas eram sempre bem apresentadas - e tudo bem cozinhado. A maior parte das vezes não nos lembravamos de a felicitar, ou de fazer um comentário agradável. Nessa situação, no fim das refeições, ela invariavelmente dizia: Estava delicioso, minhas meninas, não estava? Nós, claro, olhavamos uma para a outra com um sorriso cúmplice e respondíamos: Está sim, Maria! E era verdade...

Maria Manuela Aguiar disse...

Um dos visitantes que mais entusiasmava a Maria era um médico guineense, formado em Paris, que conhecemos através do Deodato. Tornou-se um amigo, que aparecia, de vez em quando, convidado para jantar. Gostava muito de falar de política comigo (então ainda longe de me imaginar em andanças governamentais!) e mostrava-se tão português como eu - ou mais!
Era o rei ou o irmão do rei dos Manjacos. Não sei se era esse título de nobreza o que impressionava a Maria e o tornava o seu predilecto.
Só a Endora se portava mal, rosnando a olhar para ele, sabe-se lá porquê! Ele até gostava de cães, tinha um , muito mais bem educado do que a minha Serra de Aire...
É que a Maria, no fundo, tratava-a com demasiada complacência.
O bicho parecia um faquir: comeu, engoliu lascas enormes de madeira das cadeiras e das esquinas de todos os móveis da casa, sem sofrer dano.
Lembra a Docas, que até as tijelas do seu leite devorava, no fim das refeições. Uma vez, no Porto roubou e tragou uma prenda do bolo-rei, que saíu à pequena Maria João - uma espécie de medalhão!- que ela mostrava aos circunstantes, contentíssima. A cadela foi rapidíssima , no ataque... Ficou a menina a chorar, sem presente, e eu apavorada com medo de que o medalhão tivesse, por trás, um alfinete. Um constante terror! Ficávamos sempre a temer uma ruptura intestinal. Mas não!...

Maria Manuela Aguiar disse...

A Maria dava à Endora ao pequeno almoço, leitinho, com sopas de pão, na tijela, depois, como nós, almoço, lanche e jantar!
Resultado: engordou a cadelinha, a tal ponto que até já tinha um problema de pele.
Por mais que lhe dissessemos que os cães só devem comer uma vez por dia - máximo, duas - não acreditava.
Quem salvou a Endora, foi o Fernando, apesar de não ser veterinário, mas antes distinto cirurgião do Hospital Inglês.
Assustou-a, afirmando que a Endora, a continuar assim, não tinha mais de 6 meses de vida. Como era médico, a Maria acreditou e diminuiu, drasticamente, as rações.

Maria Manuela Aguiar disse...

Ainda sobre a relação de bom entendimento com a Endora:
Deixava-a dormir na sua cama estreita, e, como ela cresceu, era enorme, ocupava um largo espaço, a Maria ficava num cantinho. Quando me apercebi da situação, troquei, imediatamente, de quarto, passei para a cama de solteiro e a Maria e a Endora para o meu quarto, ocupando a bela, antiquíssima e larga cama de mogno, que foi da Tia Rozaura.

Maria Manuela Aguiar disse...

Logo depois do 25 de Abril, a 1 de Maio, andei na grande marcha popular, que percorreu o Areeiro, e a Av. EUA até ao estádio. Trouxe para casa um cravo cor de rosa (não vermelho), comprado na Praça de Londres, e guardei-o, para recordação.
A Maria gostava muito de ir ao cemitério de Benfica, rezar no Jazigo do Padre Cruz, e, um dia, trouxe de lá um cravo, que também guardou.
Tempos depois, a Endora foi vista por nós a passear no corredor com um cravo na boca. Quando a Maria tentou tirar-lho, como era previsível, desfez-se, e ela, muito preocupada, foi ao quarto, para identificar o cravo.
Voltou, eufórica, a dizer-me:
Não era o cravo do Bondoso Padre Cruz. Era o cravo do 25 de Abril!
Tinha por hábito "adjectivar" assim.
Por exemplo, falando da personagem predilecta de uma novela radiofónica que ouvia, quotidianamente, contava-nos o último episódio da seguinte maneira:
A "Simplesmente Maria" fez isto ou fez aquilo...
"Simplesmente Maria" era o título da novela.

Maria Manuela Aguiar disse...

Logo depois do 25 de Abril, a 1 de Maio, andei na grande marcha popular, que percorreu o Areeiro, e a Av. EUA até ao estádio. Trouxe para casa um cravo cor de rosa (não vermelho), comprado na Praça de Londres, e guardei-o, para recordação.
A Maria gostava muito de ir ao cemitério de Benfica, rezar no Jazigo do Padre Cruz, e, um dia, trouxe de lá um cravo, que também guardou.
Tempos depois, a Endora foi vista por nós a passear no corredor com um cravo na boca. Quando a Maria tentou tirar-lho, como era previsível, desfez-se, e ela, muito preocupada, foi ao quarto, para identificar o cravo.
Voltou, eufórica, a dizer-me:
Não era o cravo do Bondoso Padre Cruz. Era o cravo do 25 de Abril!
Tinha por hábito "adjectivar" assim.
Por exemplo, falando da personagem predilecta de uma novela radiofónica que ouvia, quotidianamente, contava-nos o último episódio da seguinte maneira:
A "Simplesmente Maria" fez isto ou fez aquilo...
"Simplesmente Maria" era o título da novela.

Maria Manuela Aguiar disse...

Na televisão a sua telenovela preferida era uma americana, em que os heróis eram uns sobrinhos, já não sei de quem.
Creio que lhe lembrava os seus próprios sobrinhos, um rapaz e uma rapariga, de quem gostava imenso.
Numa tarde de domingo, em que eu fui votar a Coimbra, onde estava recenceada (era aí assistente da faculdade de direito) ela distraiu-se a ver a novela e provocou uma inundação: abriu as torneiras do tanque, e esqueceu-se, quando foi dentro da sala buscar qualquer coisa, e viu que o episódio já tinha começado.
Depois, durante muito tempo, sempre que o caso vinha à baila, dizia:
No dia do "dilúvio"...
A Docas e eu achavamos tanta piada, que ainda não esquecemos essa expressão, com uma acentuada ressonância bíblica...