
MENSAGEM DA TIA LENA
"O MEU DAVID ERA UM HOMEM TRABALHADOR, INDEPENDENTE, DETERMINADO E DETESTAVA PERDER.
ESTIVEMOS CASADOS 48 ANOS E FOMOS MUITO FELIZES. SÓ A MORTE DELE NOS SEPAROU.
FIQUEI COM A SAUDADE E MUITAS RECORDAÇÕES. UMAS TRISTES, DEVIDO A DOENÇAS, OUTRAS ALEGRES, QUE AJUDAM A VIVER.
HOJE, DIA 30 DE JANEIRO DE 2009, FARIA 98 ANOS.
O TIO DAVID DE ALMEIDA RIBEIRO
VIVA O FCP!
Nasceu no Porto, em 30 de Janeiro de 1911.
A véspera de uma data bem adequada ao seu temperamento aguerrido de homem do Norte, o mais patriota e bairrista, que imaginar se possa, sempre pronto a defender as suas causas, na primeira linha, com convicção e tenacidade. Um portuense com raízes no Alto Douro. O pai era de São Cipriano, perto de Resende. Sindicalista, dos mais arrojados. O filho seguia-lhe as pisadas, embora noutro quadrante político. Era de direita, para além de ser um homem às direitas!Nesse aspecto, como se imagina, fazia coro com o Tio Serafim. Do outro lado, o meu Pai, os Tios Tónio e Zé, e, bastante à esquerda destes "democratas moderados", o radical Tio Manuel. Discutiam muito, mas davam-se todos bem - até os Tios Manuel e Serafim...
O Tio David entrou para a nossa família, pelo casamento com a Tia Lena. E tornou-se, de imediato, o mais popular e fascinante dos tios.Para mim e para a Lecas, sem dúvida!... Era o que mais convivia connosco, e o que mais gostava de brincar com crianças. No dia em que o conheci, encantou-me com os seus truque de magia, fazendo aparecer e desaparecer moedas e lenços.Tinha uma enorme habilidade e reflexos rápidos - ao volante, o melhor dos condutores. Na estrada, com o seu "Citroen" (daquele mítico modelo que, popularmente ficou conhecido como "arrastadeira", que, a meu ver, foi dos mais equilibrados que jamais se construíram, do ponto de vista estético e funcional), ultrapassava tudo e todos, passando tangentes a carros e a transeuntes, com a mais incrível das perícias. Eu delirava! Queria ir sempre no carro dele. O meu Pai era um condutor da escola oposta, lento e cauteloso demais...
O Porto, a nossa cidade, para ele não tinha igual! E o FCP era o maior, mesmo quando não o deixavam, por tramas e conluios lisboetas, ser o campeão... Portistas, como o tio David, há poucos! Habituei-me a ouvir e acompanhar os seus argumentos. Podia discordar dele em coisas "menores", como a política, mas nunca em matéria de futebol! Os mais "fanáticos" éramos ele e eu, muito embora, com a excepção do Tio Manuel (da Académica, claro...) todos fossemos do mesmo clube.Jogou futebol, nos juniores do FCP, e bem, com certeza, porque tinha estampa de atleta, muita garra e era dotado para tudo o que quisesse empreender. Muitas vezes nos contava histórias desse tempo - das resistências da família que tinha de contornar, das arbitragens malvadas, das jogadas propriamente ditas, dos arruaceiros da assistência... Era um óptimo contador de histórias, fosse destes casos engraçados dos estádios, fosse das velhas lutas do Pai, que admirava imenso, fosse da espantosa Avó, que viveu, esperta e lúcida, até aos 108 anos!
Outro desporto da sua predilecção era o bilhar. Imbatível nos torneios de café! Uma vez, organizaram um torneio internacional, no Café Embaixador. Ganhou, naturalmente. O prémio foi um taco, com o seu nome inscrito.
Continuou a praticar, diariamente, até adoecer, aos setenta e sete anos.
Mesmo depois da doença, que o debilitou muito, tinha períodos de melhoria, e voltava a ser o centro dos debates familiares, com o seu gosto por marcar posições, sobretudo em matéria de política ou de futebol, e de combater por elas, com um espírito sempre jovem e aguerrido. No futebol estávamos invariavelmente de acordo (nos anos 70, fui a sua companhia para os jogos dos juniores, que eram pouco "stressantes" e gloriosos, porque o FCP ganhava tudo!). Em questões políticas, as divergências aconteciam, como regra... Nos últimos anos, defendia acerrimamente o Cavaco Silva, e, através da adesão ao cavaquismo, o próprio PSD. O que quer dizer que acabamos por ser do mesmo partido, embora não da mesma ala no partido - coisa excelente, porque, assim, podíamos continuar intermináveis polémicas, a animar as tardes, em casa do Mário.
O Tio David foi alguém que se fez, com os bons princípios da família, mas à sua custa. Impôs-se pelas qualidades de empreendimento, e de trabalho, e de honestidade, sem dúvida. E pela vivacidade, por essa combatividade, de que falei, servida pela inteligência e pelo seu feitio expansivo. Como já disse, mas não é demais repetir, o centro das atenções em qualquer reunião ou convívio. Sabia fazer amigos e conserva-los, tanto nos negócios, como no campo social.
Quando o conhecemos, era o dono de uma empresa de douragem de metais, de pequena dimensão, mas, graças a ele, ao seu senso de gestão, à sua rede de contactos e clientes fiéis, muito rentável.
Funcionava na parte inferior da casa onde vivia, na Rua Firmeza. Uma casa antiga e simpática, com um quintal atrás, onde havia uma enorme nogueira, e, sempre, muitos gatos visitantes, que ali encontravam abrigo, peixinho para comer e água para beber (quase uma sucursal da sociedade protectora dos animais).
A Tia Lena e o Tio David moraram aí, sempre, durante 48 anos.
Tiveram uma longa vida em comum, harmoniosa, feliz e próspera. Um casal exemplar, que toda a família admirava, e que estava no centro dinâmico da convivialidade, no "Circulo Aguiar". Cada um era carismático, de uma maneira muito própria, com feitiosdiferentes e complementares - a Tia Lena sereníssima, a contrastar com a exuberância do Tio David! Entendiam-se e apreciavam-se assim, exactamente como eram. E partilhavam, alegremente, o gosto pelas idas ao cinema, às corridas de automóveis, aos bons restaurantes, ás pistas de dança, à praia, aos recantos bonitos do Minho, de Trás-os-Montes, da Galiza ou do País Basco e de outras paisagens das Espanhas...E partilhavam, igualmente, desde os primeiros tempos de casados, a amizade dos sobrinhos - não só dos sobrinhos, mas dos cunhados também, e, com o correr dos anos, das novas e novíssimas gerações - e a paixão pelos animais. Os cães o Bobby, a Fusca, os gatinhos, o Pinóquio, o Bolinhas (várias gerações se seguiram, com os mesmos nomes), que habitavam a casa da Rua Firmeza, nº 115, e faziam as nossas delícias.
O Tio David foi, evidentemente adepto de carros bons e confortáveis. O famoso "Citroen ", cor de cinza, que privilegiou durante os anos da minha infância, e que, nas mãos dele, voava! Depois, houve vários outros. Um Taunus, um Ford Capri...
A viagem inaugural era a Fátima, e nós acompanhávamos, fazendo a festa pelo caminho! Estávamos juntos, os Tios, os meus Pais, a Lecas e eu, e, ás vezes, outros tios e primos, todos os fins de semanas. Quando passámos a morar perto, na Rua Latino Coelho, as visitas recíprocas eram ainda mais frequentes, com os Razzini incluídos. Para a Lecas, para mim, eram uns segundos pais.
Sobre este Tio inesquecível, não faltam histórias, e algumas bem invulgares, como a sua própria e fascinante personalidade. Vamos contá-las, a partir deste dia 30.
Manela
Comentários:
Maria Manuela Aguiar disse...
Estive, há pouco, a conversar com a Tia Lena, e tenho a matéria bem lembrada. Vou contar como os Tios se conheceram:
Em Gondomar, por altura das festas da Nª Sª do Rosário. Não no fim de semana de grande ajuntamento popular, mas na 5ª feira seguinte, nesses tempos, a ocasião reservada ao baile da Cruz Branca - uma organização de solidariedade, da qual eram dirigentes o Tio Serafim, o Tio Manuel, os primos Lobão (um deles, recorda a Tia Lena, levava a coisa tão a sério, que até mandou fazer uma farda vistosa!). A Cruz Branca tinha uma única ambulância - pela forma como a Tia fala, um velho calhambeque... - e a principal fonte de financiamento era essa festa beneficente...
Em princípio, a Tia Lena não deveria ter ido. A Avó não deixava as filhas frequentar "frívolas"reuniões sociais... Mas a Delfina, vizinha de uma vivenda próxima, convidou-a a assistir, com ela e com os pais. A Avó disse "não". A mãe da Fina, que falava sem papas na língua, foi ter com a Senhora D. Maria Aguiar e protestou, por ela não lhe confiar a filha, para uma simples participação no respeitável convívio. E a Avó, embaraçada, não ousou dizer "não", de novo.
O Tio David também não seria alguém ali presente, em circunstâncias normais. Nunca lá tinha ido, nem pensava ir. Era um portuense, sem relações especiais com Gondomar. Foi desafiado a acompanhar um amigo, que se chamava Ivo Araújo (um dos donos da empresa de camionagem Freitas e Araújo), que, ocasionalmente, namorava uma menina de S. Cosme. O amigo David era um grande dançarino e, por isso, não foi difícil convencê-lo a ir a um baile.
Aí aconteceu o encontro que estava destinado a durar toda a vida!
David olhou para aquela menina tão linda, com o seu ar reservado, sentada perto da amiga e do casal e perguntou à namorada do Ivo se a conhecia. Conhecia. Quem é que não a conhecia em S. Cosme, Gondomar? Conhecia e aceitou o seu pedido para o apresentar, como se usava, na época. Dançaram, dançaram, até ao fim da festa!...
O namoro durou 7 meses, mas, durante esse tempo, não se viram mais de 5 ou 6 vezes!
Parece impossível, mas é verdade - os tempos, os usos e costumes eram radicalmente diferentes dos de agora. Para as mulheres, as limitações eram semelhantes às da Idade Média. Seguramente mais próximas do quadro desses recuados séculos do que do século que haveria de seguir-se.
Só depois do 25 de Abril se deu o salto em frente, se desenhou - a ver na tv telenovelas brasileiras e outrs coisas inéditas, de outos mundos - a mudança de mentalidades e de atitudes. E não foi logo, logo, mas foi rápida. Quando começou, tornou-se imparável...
No tempo da juventude da Tia Lena, o Tio David vinha de eléctrico, saía na paragem que ficava mesmo em frente da Vila Maria, e da casa da Tia Hermínia, mas, na maioria dessas visitas a Gondomar, nem conseguia vê-la, de longe! Andava para cima e para baixo, à espera, poucas vezes recompensada. A única forma de manterem contacto era por correspondência. Diária! O Tio David tinha um mensageiro, que era o sobrinho Aires, então com 14 anos. Tomava o eléctrico, deixava a carta do Tio David, levava a da Tia Lena e seguia no mesmo transporte (que dali ia ao Souto, parava uns minutos e retomava viagem para o Porto (Bolhão).
A Tia Lena tinha 20 anos. A Avó não aceitava o namoro.
Era assim mesmo: quando gostava dos noivos - se eram muito religiosos, de famílias conhecidas, caso do Tio Serafim e do meu Pai - até incentivava. Se não, era "não"! Opôs -se ao casamento da Tia Lola com o Tio Eduardo, apesar dele ser de ilustres famílias gondomarenses - devia, porém, ser pouco pio, pelos padrões da Avó...
O Tio David não era da terra e não era grande frequentador de igrejas e sacristias, como os dois cunhados bem amados pela futura sogra - muito embora fosse um bom cristão. Deparou com uma barreira intransponível. Assim, restava à Tia Lena esperar o dia em que atingisse a maioridade.
Fez 21 anos. Preparou a mala. Partiu. Casou na Igreja de Santo Ildefonso, no Porto. E a Avó não tardou a aceitar o genro. Esta filha escolheu quem quis e escolheu muito bem (e quanto a este Tio, mutatis mutandis!). Acho que a "Léninha", como o Tio lhe chamava, foi, de todos os irmãos, (o) a mais obviamente feliz na vida de casada. Não digo que alguns dos outros não o tenham sido, também. Mas não tanto!