sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

P27 b - O TIO DAVID


MENSAGEM DA TIA LENA

"O MEU DAVID ERA UM HOMEM TRABALHADOR, INDEPENDENTE, DETERMINADO E DETESTAVA PERDER.
ESTIVEMOS CASADOS 48 ANOS E FOMOS MUITO FELIZES. SÓ A MORTE DELE NOS SEPAROU.
FIQUEI COM A SAUDADE E MUITAS RECORDAÇÕES. UMAS TRISTES, DEVIDO A DOENÇAS, OUTRAS ALEGRES, QUE AJUDAM A VIVER.
HOJE, DIA 30 DE JANEIRO DE 2009, FARIA 98 ANOS.



O TIO DAVID DE ALMEIDA RIBEIRO
VIVA O FCP!

Nasceu no Porto, em 30 de Janeiro de 1911.
A véspera de uma data bem adequada ao seu temperamento aguerrido de homem do Norte, o mais patriota e bairrista, que imaginar se possa, sempre pronto a defender as suas causas, na primeira linha, com convicção e tenacidade. Um portuense com raízes no Alto Douro. O pai era de São Cipriano, perto de Resende. Sindicalista, dos mais arrojados. O filho seguia-lhe as pisadas, embora noutro quadrante político. Era de direita, para além de ser um homem às direitas!Nesse aspecto, como se imagina, fazia coro com o Tio Serafim. Do outro lado, o meu Pai, os Tios Tónio e Zé, e, bastante à esquerda destes "democratas moderados", o radical Tio Manuel. Discutiam muito, mas davam-se todos bem - até os Tios Manuel e Serafim...
O Tio David entrou para a nossa família, pelo casamento com a Tia Lena. E tornou-se, de imediato, o mais popular e fascinante dos tios.Para mim e para a Lecas, sem dúvida!... Era o que mais convivia connosco, e o que mais gostava de brincar com crianças. No dia em que o conheci, encantou-me com os seus truque de magia, fazendo aparecer e desaparecer moedas e lenços.Tinha uma enorme habilidade e reflexos rápidos - ao volante, o melhor dos condutores. Na estrada, com o seu "Citroen" (daquele mítico modelo que, popularmente ficou conhecido como "arrastadeira", que, a meu ver, foi dos mais equilibrados que jamais se construíram, do ponto de vista estético e funcional), ultrapassava tudo e todos, passando tangentes a carros e a transeuntes, com a mais incrível das perícias. Eu delirava! Queria ir sempre no carro dele. O meu Pai era um condutor da escola oposta, lento e cauteloso demais...
O Porto, a nossa cidade, para ele não tinha igual! E o FCP era o maior, mesmo quando não o deixavam, por tramas e conluios lisboetas, ser o campeão... Portistas, como o tio David, há poucos! Habituei-me a ouvir e acompanhar os seus argumentos. Podia discordar dele em coisas "menores", como a política, mas nunca em matéria de futebol! Os mais "fanáticos" éramos ele e eu, muito embora, com a excepção do Tio Manuel (da Académica, claro...) todos fossemos do mesmo clube.Jogou futebol, nos juniores do FCP, e bem, com certeza, porque tinha estampa de atleta, muita garra e era dotado para tudo o que quisesse empreender. Muitas vezes nos contava histórias desse tempo - das resistências da família que tinha de contornar, das arbitragens malvadas, das jogadas propriamente ditas, dos arruaceiros da assistência... Era um óptimo contador de histórias, fosse destes casos engraçados dos estádios, fosse das velhas lutas do Pai, que admirava imenso, fosse da espantosa Avó, que viveu, esperta e lúcida, até aos 108 anos!
Outro desporto da sua predilecção era o bilhar. Imbatível nos torneios de café! Uma vez, organizaram um torneio internacional, no Café Embaixador. Ganhou, naturalmente. O prémio foi um taco, com o seu nome inscrito.
Continuou a praticar, diariamente, até adoecer, aos setenta e sete anos.
Mesmo depois da doença, que o debilitou muito, tinha períodos de melhoria, e voltava a ser o centro dos debates familiares, com o seu gosto por marcar posições, sobretudo em matéria de política ou de futebol, e de combater por elas, com um espírito sempre jovem e aguerrido. No futebol estávamos invariavelmente de acordo (nos anos 70, fui a sua companhia para os jogos dos juniores, que eram pouco "stressantes" e gloriosos, porque o FCP ganhava tudo!). Em questões políticas, as divergências aconteciam, como regra... Nos últimos anos, defendia acerrimamente o Cavaco Silva, e, através da adesão ao cavaquismo, o próprio PSD. O que quer dizer que acabamos por ser do mesmo partido, embora não da mesma ala no partido - coisa excelente, porque, assim, podíamos continuar intermináveis polémicas, a animar as tardes, em casa do Mário.
O Tio David foi alguém que se fez, com os bons princípios da família, mas à sua custa. Impôs-se pelas qualidades de empreendimento, e de trabalho, e de honestidade, sem dúvida. E pela vivacidade, por essa combatividade, de que falei, servida pela inteligência e pelo seu feitio expansivo. Como já disse, mas não é demais repetir, o centro das atenções em qualquer reunião ou convívio. Sabia fazer amigos e conserva-los, tanto nos negócios, como no campo social.
Quando o conhecemos, era o dono de uma empresa de douragem de metais, de pequena dimensão, mas, graças a ele, ao seu senso de gestão, à sua rede de contactos e clientes fiéis, muito rentável.
Funcionava na parte inferior da casa onde vivia, na Rua Firmeza. Uma casa antiga e simpática, com um quintal atrás, onde havia uma enorme nogueira, e, sempre, muitos gatos visitantes, que ali encontravam abrigo, peixinho para comer e água para beber (quase uma sucursal da sociedade protectora dos animais).
A Tia Lena e o Tio David moraram aí, sempre, durante 48 anos.
Tiveram uma longa vida em comum, harmoniosa, feliz e próspera. Um casal exemplar, que toda a família admirava, e que estava no centro dinâmico da convivialidade, no "Circulo Aguiar". Cada um era carismático, de uma maneira muito própria, com feitiosdiferentes e complementares - a Tia Lena sereníssima, a contrastar com a exuberância do Tio David! Entendiam-se e apreciavam-se assim, exactamente como eram. E partilhavam, alegremente, o gosto pelas idas ao cinema, às corridas de automóveis, aos bons restaurantes, ás pistas de dança, à praia, aos recantos bonitos do Minho, de Trás-os-Montes, da Galiza ou do País Basco e de outras paisagens das Espanhas...E partilhavam, igualmente, desde os primeiros tempos de casados, a amizade dos sobrinhos - não só dos sobrinhos, mas dos cunhados também, e, com o correr dos anos, das novas e novíssimas gerações - e a paixão pelos animais. Os cães o Bobby, a Fusca, os gatinhos, o Pinóquio, o Bolinhas (várias gerações se seguiram, com os mesmos nomes), que habitavam a casa da Rua Firmeza, nº 115, e faziam as nossas delícias.
O Tio David foi, evidentemente adepto de carros bons e confortáveis. O famoso "Citroen ", cor de cinza, que privilegiou durante os anos da minha infância, e que, nas mãos dele, voava! Depois, houve vários outros. Um Taunus, um Ford Capri...
A viagem inaugural era a Fátima, e nós acompanhávamos, fazendo a festa pelo caminho! Estávamos juntos, os Tios, os meus Pais, a Lecas e eu, e, ás vezes, outros tios e primos, todos os fins de semanas. Quando passámos a morar perto, na Rua Latino Coelho, as visitas recíprocas eram ainda mais frequentes, com os Razzini incluídos. Para a Lecas, para mim, eram uns segundos pais.
Sobre este Tio inesquecível, não faltam histórias, e algumas bem invulgares, como a sua própria e fascinante personalidade. Vamos contá-las, a partir deste dia 30.





Manela

Comentários:
Maria Manuela Aguiar disse...
Estive, há pouco, a conversar com a Tia Lena, e tenho a matéria bem lembrada. Vou contar como os Tios se conheceram:
Em Gondomar, por altura das festas da Nª Sª do Rosário. Não no fim de semana de grande ajuntamento popular, mas na 5ª feira seguinte, nesses tempos, a ocasião reservada ao baile da Cruz Branca - uma organização de solidariedade, da qual eram dirigentes o Tio Serafim, o Tio Manuel, os primos Lobão (um deles, recorda a Tia Lena, levava a coisa tão a sério, que até mandou fazer uma farda vistosa!). A Cruz Branca tinha uma única ambulância - pela forma como a Tia fala, um velho calhambeque... - e a principal fonte de financiamento era essa festa beneficente...
Em princípio, a Tia Lena não deveria ter ido. A Avó não deixava as filhas frequentar "frívolas"reuniões sociais... Mas a Delfina, vizinha de uma vivenda próxima, convidou-a a assistir, com ela e com os pais. A Avó disse "não". A mãe da Fina, que falava sem papas na língua, foi ter com a Senhora D. Maria Aguiar e protestou, por ela não lhe confiar a filha, para uma simples participação no respeitável convívio. E a Avó, embaraçada, não ousou dizer "não", de novo.
O Tio David também não seria alguém ali presente, em circunstâncias normais. Nunca lá tinha ido, nem pensava ir. Era um portuense, sem relações especiais com Gondomar. Foi desafiado a acompanhar um amigo, que se chamava Ivo Araújo (um dos donos da empresa de camionagem Freitas e Araújo), que, ocasionalmente, namorava uma menina de S. Cosme. O amigo David era um grande dançarino e, por isso, não foi difícil convencê-lo a ir a um baile.
Aí aconteceu o encontro que estava destinado a durar toda a vida!

David olhou para aquela menina tão linda, com o seu ar reservado, sentada perto da amiga e do casal e perguntou à namorada do Ivo se a conhecia. Conhecia. Quem é que não a conhecia em S. Cosme, Gondomar? Conhecia e aceitou o seu pedido para o apresentar, como se usava, na época. Dançaram, dançaram, até ao fim da festa!...

O namoro durou 7 meses, mas, durante esse tempo, não se viram mais de 5 ou 6 vezes!
Parece impossível, mas é verdade - os tempos, os usos e costumes eram radicalmente diferentes dos de agora. Para as mulheres, as limitações eram semelhantes às da Idade Média. Seguramente mais próximas do quadro desses recuados séculos do que do século que haveria de seguir-se.
Só depois do 25 de Abril se deu o salto em frente, se desenhou - a ver na tv telenovelas brasileiras e outrs coisas inéditas, de outos mundos - a mudança de mentalidades e de atitudes. E não foi logo, logo, mas foi rápida. Quando começou, tornou-se imparável...
No tempo da juventude da Tia Lena, o Tio David vinha de eléctrico, saía na paragem que ficava mesmo em frente da Vila Maria, e da casa da Tia Hermínia, mas, na maioria dessas visitas a Gondomar, nem conseguia vê-la, de longe! Andava para cima e para baixo, à espera, poucas vezes recompensada. A única forma de manterem contacto era por correspondência. Diária! O Tio David tinha um mensageiro, que era o sobrinho Aires, então com 14 anos. Tomava o eléctrico, deixava a carta do Tio David, levava a da Tia Lena e seguia no mesmo transporte (que dali ia ao Souto, parava uns minutos e retomava viagem para o Porto (Bolhão).
A Tia Lena tinha 20 anos. A Avó não aceitava o namoro.
Era assim mesmo: quando gostava dos noivos - se eram muito religiosos, de famílias conhecidas, caso do Tio Serafim e do meu Pai - até incentivava. Se não, era "não"! Opôs -se ao casamento da Tia Lola com o Tio Eduardo, apesar dele ser de ilustres famílias gondomarenses - devia, porém, ser pouco pio, pelos padrões da Avó...
O Tio David não era da terra e não era grande frequentador de igrejas e sacristias, como os dois cunhados bem amados pela futura sogra - muito embora fosse um bom cristão. Deparou com uma barreira intransponível. Assim, restava à Tia Lena esperar o dia em que atingisse a maioridade.
Fez 21 anos. Preparou a mala. Partiu. Casou na Igreja de Santo Ildefonso, no Porto. E a Avó não tardou a aceitar o genro. Esta filha escolheu quem quis e escolheu muito bem (e quanto a este Tio, mutatis mutandis!). Acho que a "Léninha", como o Tio lhe chamava, foi, de todos os irmãos, (o) a mais obviamente feliz na vida de casada. Não digo que alguns dos outros não o tenham sido, também. Mas não tanto!

22 comentários:

Maria Manuela Aguiar disse...

O Tio David gostava tanto do FCP e sofria tanto com os desaires - que na era pré-Pinto da Costa eram mais frequentes do que agora... - que , para poupar o coração, deixou de ir às Antas der os desafios de resultado incerto. E passou a ir regularmente assistir aos jogos de outro campeonato em que o FCP saia sempre vitorioso, e até, quase sempre, pelas chamadas "cabazadas". O campeonato de juniores.
E convenceu-me a acompanha-lo. Os jogos eram sempre de manhã, suponho que ao domingo. Confesso que, até essa altura, nâo me tinha ocorrido essa gloriosa alternativa. Mas logo no 1º desafio me converti, porque os rapazes praticavam um futebol bonito e eram imbatíveis !
Eu morava perto das Antas. Ía ter com o Tio David directamente ao estádio.
Durante umas semanas, o único desapontamento dizia respeito ao facto de não jogar, várias jornadas seguidas, a maior vedeta dessa equipa, que era o Fernando Gomes. Ora estava lesionado, ora estava castigado...
E o Tio David continuava a garantir: "Vais ver! É um grande "craque". Não há melhor, nos seniores."


Finalmente, numa partida em que, por acaso, cheguei atrasada, mal olhei para o rectângulo, antes mesmo de encontrar o Tio, vi, no lado norte, à direita, um artista pegar a bola com o pé, elevá-la à altura da cabeça e rematar para um golo fabuloso. "É o Gomes!", pensei eu. Depois, encontrei o Tio David (coisa fácil, porque a bancada do campo de treinos, onde decorria o jogo, era pequena) e perguntei se era. Era!
Agora que conheço o Fernando Gomes, já lhe falei do Tio David, várias vezes, e da sua profecia.
O Gomes correspondeu às expectativas - marcou imensos e admiráveis golos.É o nosso bi - bota de ouro. Uma lenda eterna do FCP. O Tio David tinha razão. Era um especialista de categoria!

Maria Manuela Aguiar disse...

Quando o Tio David completou os 50 anos de associado do FCP, ganhou o direito de receber a roseta de ouro, mas, nesse ano, e nos seguintes, não procederam, como deveriam, às entregas, em cerimónia solene.
Foi uma pena! O Tio David teria tido uma grande alegria ao ver-se, assim, merecidamente homenageado. E ao poder usar o emblema de ouro, o símbolo, na lapela, como uma verdadeira condecoração portista.
Infelizmente, morreu antes de lhe prestarem essa justiça.
No dia das atrasadíssimas entregas, a Tia Lena encarregou-me de representar o Tio David. O que fiz, com imenso gosto, mas também tristeza, porque queria era estar a acompanhar o Tio, não a substitui-lo, postumamente!
E, por decisão da Tia Lena, guardo, como um tesouro e uma grande recordação, a bonita roseta.
Disse-me a Tia Lena: "É para ti, e para, depois, deixares ao jovem portista mais "fanático" da família."
Na geração do Tio David, era ele, sem dúvida, o mais "ferrenho".
Na minha geração sou eu, de facto, embora haja muitos outros que se aproximam...
Tenho de estar atenta às reacções da novíssima geração. Entre as raparigas, não encontro candidatas. Entre os rapazes, sim!
Prometo esmerar-me, na escolha.

Maria Manuela Aguiar disse...

Docas disse: Que saudades do Tio David!
Lembro-me de ter almoçado muitas vezes, em casa da Tia Lena e do Tio David, com a Lecas e a Manela. Normalmente , o Tio David e a Manela discutiam muito, sobre tudo e mais alguma coisa, sobre política, sobre o papel das mulheres, e sempre a defenderem teses opostas. Ninguém mais tinha espaço para dizer nada... Acho que o Tio David gostava que lhe dessem "luta"! E a Manela dava.
Mas, quando passavam ao futebol, estavam sempre de pleno acordo!

Maria Manuela Aguiar disse...

A Docas ditou-me o depoimento pelo telefone, e eu escrevi-o no papel, pelas palavras dela.
Mas posso acrescentar que ela tem, provavelmente, toda a razão.
Mesmo a jogar futebol ou volei com os pequenos, no verão, na praia, ele queria sempre que eu estivesse do outro lado. Para "dar luta"...

Maria Manuela Aguiar disse...

Há coisas que nos dão tanto prazer, quando somos crianças, que não só não esquecemos, como até as ligamos à memória com um sentimento que permanece actual, como se ainda fosse possível repetir a vivência, com o mesmo infantil deleite!
Estou muito concretamente a pensar nos chocolates - da Regina ou da Favorita, não sei bem, qualquer que fosse a marca eram deliciosos -que os Tios nos ofereciam na Avenida de Espinho, num pequeno quiosque, com o especial atractivo de todos eles serem "sorteados". Ou seja, jogávamos a nossa sorte, furando um pequeno painel, que continha bolinhas de cores, cada qual correspondente a um chocolate diferente, maior ou menor.
Era um duplo gozo!...
A bola dourada dava o primeiro prémio. Acho que nunca o consegui... A Lecas tinha uma mão mais fadada do que eu.
Mas, quando ficávamos desapontadas, o Tio David pagava outra rodada de furinhos no painel!

Maria Manuela Aguiar disse...

Estive em Chaves, este fim-de-semana, numa reunião da APE (Associação dos Portugueses do Estrangeiro). É uma cidade que eu relaciono com o Tio David, quase como se ele fosse flaviense.
Os Tios faziam lá, sempre, o seu tratamento termal, no verão. E os meus Pais, que nunca foram adeptos de termalismo, seguiam com eles, em puro turismo. Passavam duas semanas divertidas, com muitos passeios a Espanha. Um ano ou outro, eu, que estava no governo, e tinha imensas solicitações de emigrantes daquela região, fazia-lhes uma visita, ainda que breve. Era tão agradável! Eles todos tão "radiosos", rejuvenescidos, descontraídos, a contar aventuras do quotidiano. Com o Tio David, havia, sempre, episódios memoráveis - e ninguém melhor do que ele para os relatar, com humor...
A minha última excursão com Pais e Tios, a recordar os bons velhos tempos, teve Chaves por cenário. Daí que voltar a essa cidade, beber um copo de água nas termas, como fiz no domingo, é lembrar, automaticamente, o Tio David, com o mesmo copo de água na mão, no mesmo local... Alegre, e ainda vigoroso. O incomparável Tio David!
Chaves e Fátima eram, na terceira idade, já, os únicos destinos das viagens anuais dos Pais e dos Tios
Lena e David.
Terras onde foram felizes, e, por isso, também para mim, terras de boa memória!

Maria Manuela Aguiar disse...

Outro episódio inesquecível, passado em Chaves.
Foi na sala de estar do hotel - cujo nome não recordo, mas, na altura, era o melhor, e não sei se até o único - que assisti, vezes sem conta, à repetição da final da maratona ganha pelo Carlos Lopes, seguida da cerimónia de entrega da medalha de ouro. Era o tempo em que não havia tv nos quartos de hóspede e em que a RTP não tinha concorrência.
Levada pelo furor patriótico, que o Povo partilhava, a RTP voltava à notícia, a propósito e a despropósito. E, claro, lá se tocava o hino no acto cerimonial.
Ora as Doroteias do meu colégio, ensinaram-me, em pequenina, que o hino se ouve de pé. E eu assim fiz, pela vida fora, e ainda faço. Ali, porém, era difícil. porque estava numa das primeiras filas e, sendo a única teleespectadora a levantar-se, tapava a visão aos outros e dava muito nas vistas...
A solução foi encostar-me a uma parede e ficar de pé, o resto da noite...

Maria Manuela Aguiar disse...

Não há dúvida de que das recordações do Tio David faz parte a sua graça e vivacidade a contar histórias, como já disse.
E, quando assim é, por mais que tentemos, não somos capazes de as contar como ele!
Uma das mais extrordinárias, de chorar a rir, de tanto rir, era a da primeira ida ao cinema de uma criada, que era completa e irremediavelmente analfabeta e burra.
O Tio David, um dia, achou que ela devia civilizar-se um pouco e ir ver um filme popular, próprio para principiante. Pagou-lhe o bilhete, para ela ir com o namorado, que era, também, muito ignorante e nunca tinha entrado num cinema. Toda a gente gabava o filme, e eles, entusiasmaods, lá foram.
A história tinha muitos desenvolvimentos cómicos, que eu não sei repetir.
Resumindo: ela regressou, a queixar-se de que não tinha visto nada de geito - só uns bonequinhos a saltar na parede (entenda-se, desenhos animados).
Atalha o Tio David: "isso não é o filme. O filme só começa depois do intervalo".
Pois era, mas ela não sabia. Quando todos se levantaram, para o 1º intervalo, ela fez o mesmo e veio embora, porta fora, a caminho de casa...

Maria Manuela Aguiar disse...

Para alternar o registo de momentos melhores e piores, vou agora a um dos mais tristes:
o desaparecimento do "Bobby", o mais fantástico cão que se pode imaginar.
Era um cão de caça, grande, branco, amável, com um coeficiente de inteligência máximo. Até jogava às escondidas com o Tio David.
Era um fenómeno. Eu "adorava" aquele cão-tipo-gente!
E, um dia, desapareceu.
Os tios percorreram as ruas próximas, as ruas do Porto a chamá-lo pelo nome, durante semanas, meses a fio, sempre com um pouco de esperança de o recuperar. Mas, não... Nunca mais foi visto.
Todos acreditamos que tenha sido roubado. Talvez por um caçador. Alguém que conhecia as suas qualidades. Deus queira que sim. Do mal, o menos...

Docas disse...

Também lembro sempre o Tio David com o seu amor pelos animais, gatos ou cães. Lembro-me da cadela Fusca. Tinha muito medo dela, porque ladrava imenso, quando eu chegava lá a casa.
Os gatinhos, esses eram pacíficos.
Os da casa andavam na sala. Os de fora, não, mas podiam todos vir comer à varanda das traseiras, que dava para o quintal.
O Tio David teve a paciência e habilidade para construir uma "passerelle" com tabuinhas de madeira, para eles poderem subir de de baixo ao 1º andar, que era bem alto!

Docas disse...

Para a casa do Tio David, entrava-se no nº 115 da Rua Firmeza, por um corredor comprido, e, ao fundo, havia um balcão. A douragem do Tio funcionava atrás, e, quando me ouvia, aparecia logo. Depois de estar com ele, subia ao iº andar, à casa, onde a Tia Lena me esperava.
Às vezes, porque eu achava graça, o Tio David deixava-me mexer nas maquinarias da douragem, pelo menos nas peças que estavam mergulhadas num pó escuro - e, até, ajudar a limpa-las.
Havia vários empregados e nas máquinas mesmo não podia tocar, porque era perigoso. Mas gostava de os ver a trabalhar e o Tio David explicava-me cada operação que eles iam executando. Tinha sempre paciência e tempo para as sobrinhas.

Maria Manuela Aguiar disse...

A Docas falou da FUSCA.
Era realmente temível! Uma cadela de raça "pequinois", pura, cheia de "pedigree", mas já velha e com mau feitio.
Coexistiu com o BOBBY, em quem mandava, com se ele fosse o seu "chevalier servant". Davam-se muitíssimo bem! Ele enorme e branco, com um perfil elegante, de "galgo", ela gordinha e baixa, de longo pêlo fulvo.
Era da minha prima Mª Angélica, , que chegou a fazer criação de cães de raça na sua quinta de Avintes. Não sei porque razão ela se desfez da cadela. Mas, claro, tratou de lhe garantir a melhor das famílias "de adopção", que era a da Tia Lena e Tio David, ambos famosos pelo carinho que dispensavam a animais próprios e alheios.
A Fusca teve uma fantástica longevidade - morreu com cerca de 20 anos. Mas, a certa altura, quase cegou, com cataratas, Era visível um véu, uma névoa sobre os olhos enormes. Pois o Tio David, com intuição e habilidade, arrancou-lhe esse "véu" e pô-la fina!

Maria Manuela Aguiar disse...

Tudo servia ao Tio David para nos divertir com as suas narativas, incluindo as próprias desgraças!
As doenças... Teve um decolamento da retina e outras complicações, foi operado. O Mário e, também, o cirurgião entenderam que era preferível ser internado no Hospital de Santo António, e não numa clínica, como normalmente aconteceria. E o Tio David aceitou o conselho, embora, claro, um pouco relutante...
Já não havia quartos particulares e, assim sendo, teve de partilhar uma enfermaria. Salvo erro, 4 companheiros de infortúnio.
O Tio David era particularmente exigente no aspecto gastronómico, habituado com estava, à excelência dos cozinhados, de alta "cuisine", da Tia e, aí, o hospital falhava, por completo. Era um horror. A narrativa detalhada das ementas, punha-nos às gargalhadas - pena nâo ter gravado!...
Mas, e aqui aplica-se a teoria da relatividade, enquanto o nosso Tio achava tudo mau - menos algum do pessoal e os médicos - os outros, todos de zonas rurais, gozavam o internamento, como se estivessem num hotel de cinco estrelas! O Tio imitava as vozes deles, as tiradas coloquiais, com termos e palavrões saborosos... era um teatro da vida real!
Custou-lhe muito a suportar a experiência, fartou-se de barafustar com as enfermeiras e de contestar todas as regras em vigor - à sua maneira... - e depois, durante semanas, animou as reuniões familiares com relatos muito cómicos. A face lúdica - do outro lado dos sofrimentos da vida...

Maria Manuela Aguiar disse...

Só acrescento, ainda sobre as histórias dos parceiros de enfermaria, que um deles, por acaso, até, um lavrador "rico", contava, deslumbrado, que tinha visto pela 1ª vez o rio Douro, a caminho do hospital.
Já era velho, e morava apenas a 4 ou 5 quilómetros do rio. Nos fins do século XX, isto ainda era -e ainda será? - possível!...
Era um dos tais que se sentia a fazer turismo de luxo, na enfermaria...

Maria Manuela Aguiar disse...

Num período mais recente - fins dos anos 80 e década de 90 - quando comprei os andares na Rua 7 (o primeiro acima da Rua 20, o segundo cá mais para baixo, em frente à Graça Guedes), os Tios Lena e David eram meus convidados no mês de Agosto. Havia, noutros meses, outros núcleos da família, mas os Tios é que tinham a primeira escolha. Quando deixaram de vir, Agosto ficou para a Nó e o Helder.
Mas também cá estiveram a Meira e o Mário, o Tó e a Ana Mª, a Manela, com grupos de amigas, etc....
A casa era mesmo para isso: para receber quem nos visitava, de férias, e para guardar os meus livros e mais "pertenses".
Para os meus Pais, sobretudo, (porque eu andava sempre em trabalho, ía e vinha...) muito boa companhia!
Em vez das esplanadas e cafés de Chaves, os de Espinho.
Encontrava os tios, de manhã, a apanhar ar do mar, em frente à praia da baía, debaixo de um guarda-sol.
O Tio tinha sido um grande nadador e adepto de praia , mas, tal como o meu Pai, a partir de certa idade, o mar era só para ver de longe, e o sol para evitar.
De vez em quando, almoçávamos juntos, num restaurante simpático, na Rua 23, ou no restaurante do Nosso Café, que chegou a ser bom.
Um tempo bem diferente do da minha juventude, mas ainda muito feliz.

Maria Manuela Aguiar disse...

O Tio David, o Tio Zé e o meu Pai, por último, desapereceram.um atrás do outro, com poucos meses de intervalo, entre 1995 e 1996.
Uma perda de três personalidades completamente diferentes, mas admiráveis à sua singular maneira.
O Pai, de repente, o Tio Zé com um tumor no cérebro, em poucas semanas, depois de detectado, e o Tio David, num processo mais longo, em que teve períodos de alguma passividade e outros de espantosa recuperação. E aí, voltava o autêntico Tio David, combativo e certeiro nos seus comentários divertidos!
Hei-de procurar o último video, em que o filmei, em casa do Mário, a dizer graças, viradas para a política - e muito contundentes...

Maria Manuela Aguiar disse...

O Tio David, o Tio Zé e o meu Pai, por último, desapereceram.um atrás do outro, com poucos meses de intervalo, entre 1995 e 1996.
Uma perda de três personalidades completamente diferentes, mas admiráveis à sua singular maneira.
O Pai, de repente, o Tio Zé com um tumor no cérebro, em poucas semanas, depois de detectado, e o Tio David, num processo mais longo, em que teve períodos de alguma passividade e outros de espantosa recuperação. E aí, voltava o autêntico Tio David, combativo e certeiro nos seus comentários divertidos!
Hei-de procurar o último video, em que o filmei, em casa do Mário, a dizer graças, viradas para a política - e muito contundentes...

Anónimo disse...

Maria Antónia disse:
O David era de Resende e gostava muito de visitar a terra. A família, os irmãos e sobrinhos já viviam todos no Porto.
Íamos comprar as famosas cavacas, comer bem e beber bom vinho em pequenos restaurantes, que ele conhecia.
Perto, ficava Aregos, onde a Mamã veraneava nas termas, e, em frente, do outro lado do Douro, a quinta da Clara e do Manuel (o Mirão). Atravessavamos o rio em grandes barco, com os carros dentro.
Era um dos nossos passeios preferidos! Com o David e o Manuel as discussões eram muito animadas

Maria Manuela Aguiar disse...

Temos dado algumas quedas na família, ultimamente. Exceptuando o JM (que partiu um braço, quando patinou no molhado e caiu sobre o cotovelo, numa noite de campanha eleitoral autárquica e de muita chuva), nada de grave.
Mas, sobretudo as mais idosas, como a Mãe e eu, quando isso nos acontece, lembramos sempre um frase do Tio David:
"quando chegamos a velhos, até numa folha de papel escorregamos e caímos".
É uma grande verdade!

Maria Manuela Aguiar disse...

Também em matéria de futebol o Tio David dizia coisas originais e acertadas.
Na opinião dele, jogador que não fosse "malandro", não era bom jogador.
Com algumas excepções, é bem verdade...

Maria Manuela Aguiar disse...

Homem de família, o Tio David gostava de nos contar histórias da sua meninice e juventude - do pai, sobretudo. Dava para perceber que o admirava imenso.
Tinha sido grande sindicalista, um líder e um combatente corajoso das suas causas. Um revolucionário!
Se o pai era de esquerda, o filho era muito à direita, mas nem por isso deixava de falar das paternas lutas esquerdistas com o maior orgulho!

Maria Manuela Aguiar disse...

Outra personalidade espantosa era a sua Avó, que morreu, salvo erro, com 108 anos.
As histórias dela eram,realmente, divertidíssimas.
Não gostava do neto, e ele percebia isso, mas achava-lhe graça, da mesma maneira, e dela contava
episódios hilariantes.
Tenho pena de não recordar com
precisão esses relatos vivos e pormenorizados -

mas recordo a animação do Tio, a sua expressão, o seu humor, as suas risadas.
E até também a imagem que formei da velhinha centenária, pequena e magra, vestida de preto, com um saquinho cheio de moedas na mão. Muito desconfiada, autoritária, com um feitio terrível.
E o neto que a desafiava e provocava, muito benevolamente, só para ouvir as suas tiradas...